17 janeiro 2024

Todo o Mundo e Ninguém

 

Gil Vicente, por Joaquim Martins Correia, 1969, Biblioteca Nacional, Lisboa

Todo o Mundo e Ninguém
Gil Vicente

adaptação/tradução livre do célebre diálogo duplo contido no 

["Todo o Mundo" era um rico mercador e "Ninguém" era um homem pobre. Belzebu e Dinato tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas ligados à verdade, à cobiça, à vaidade, à virtude e à honra dos homens.]

Ninguém – Que andas tu aí buscando?
Todo o Mundo – Mil coisas ando a buscar: delas, nem todas posso achar, porém ando teimando porque é bom sempre teimar.
N – Como te chamas, cavaleiro?
TM – Meu nome é Todo o Mundo e meu tempo, todo inteiro, é buscar sempre dinheiro e nisto sempre me fundo.
N – Meu nome é Ninguém e busco a consciência.
Belzebu: – Esta é uma boa experiência, Dinato, escreve isto bem!
Dinato: – Que escreverei, companheiro?
Belzebu: – Que ninguém busca a consciência. E todo o mundo busca o dinheiro.
N – E agora que buscas lá?
TM – Busco honra muito grande.
N – E eu a virtude, que Deus mande! E que tope com ela já.
Belzebu: – Outra lição nos acude: escreve logo aí, a fundo, que busca honra todo o mundo e ninguém busca a virtude.
N – Buscas outro bem maior do qu'esse?
TM – Busco mais quem me louvasse tudo quanto eu fizesse.
N – E eu quem me repreendesse em cada coisa que errasse.
Belzebu: – Escreve mais!
Dinato: – Que tens sabido?
Belzebu: – Que quer, com extremo cuidado, todo o mundo ser louvado e ninguém ser repreendido.
N – Buscas mais, amigo meu?
TM – Busco a vida e quem ma dê.
N – A vida não sei que é, a morte conheço eu.
Belzebu: – Escreve lá outra sorte!
Dinato: – Que sorte?
Belzebu: – Muito garrida! Todo o mundo busca a vida e ninguém conhece a morte.
TM – E mais! Queria o paraíso, sem ninguém a me estorvar.
N – E eu disponho-me a pagar quanto devo para isso.
Belzebu: – Escreve com muito aviso!
Dinato: – Que escreverei?
Belzebu: – Escreve que todo o mundo quer o paraíso e ninguém paga o que deve.
TM – Folgo muito em enganar e mentir nasceu comigo.
N – Eu sempre digo a verdade, sem nunca me desviar.
Belzebu: – Ora escreve lá, compadre, não sejas tu preguiçoso!
Dinato: – O quê?
Belzebu: – Que todo o mundo é mentiroso e ninguém diz a verdade.
N – Que mais buscas?
TM – Lisonjear.
N – Eu sou todo desengano.
Belzebu: – Escreve, anda lá, mano!
Dinato: – Que me mandas assentar?
Belzebu: – Põe aí bem declarado, não te fique no tinteiro: todo o mundo é lisonjeiro e ninguém desenganado!