20 maio 2021

Dar a mão (folha de sala)

 Dar a mão” - manual de leitura da peça 
Espectros”, de H. Ibsen, 
Teatro Nacional S. João (2021)

Dar a mão  

Os fantasmas assustadores, as aparições ameaçadoras, ou seja, os “espectros” que nos assolam no fim de vida são tão pessoais como imprevisíveis. Ninguém sabe como os vai ver, ninguém é capaz de verdadeiramente imaginar o que o outro vê ou pensa ver.

O enredo desta peça de Ibsen conduz-nos, num encadeado de relações equívocas, para um final sem boas saídas.

O medo de morrer é generalizado em todas as sociedades, pese embora algumas afirmações em contrário de alguns valentes saudáveis. Esse medo deriva, naturalmente, do desconhecido. É sabido que os crentes na vida para lá da morte serão mais propensos a confiar em que esse desconhecido poderá ser de eterna felicidade, mas a incerteza gera medos. Os incréus, os que pensam que para lá da morte não há nada, senão a memória, temem, tanto quanto os outros, pelo que deixam de viver, e também para eles não há certezas.

Caso diferente é o choque de medos. Quem sente que está perto de morrer passa, frequentemente, a ter dois medos: o de morrer e o de viver. As dores físicas e os sofrimentos mentais, tantas vezes juntos, seja em doenças fatais e iminentes, seja em situações incuráveis e incontroláveis, levam muitas pessoas a questionar-se sobre a qualidade do seu viver.

Estas afirmações, aparentemente consensuais, não significam que todos reajam e pensem do mesmo modo, ou que haja uma reação ou um pensamento mais correto do que outro. Não somos todos iguais e os espectros da morte próxima ou da vida insuportável podem, muitas vezes, ser afugentados com apoio profissional e lenitivo (cuidados paliativos), com ajuda de medicações para as dores, a ansiedade ou a depressão, com abordagens psicológicas apropriadas, com o amparo de familiares ou pessoas próximas e queridas.

Contudo, neste conflito de medos, restam situações em que “o direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância”, como salientou recentemente o nosso Tribunal Constitucional. São situações obviamente carregadas de grande subjetividade e perturbadas por imensas dificuldades de decisão.

Sejamos claros. Esta peça, sem happy end, nada tem a ver com a eutanásia. “A eutanásia não é um tópico central em Espectros, mas encontra um eco na peça”, como diz quem me convida a escrever umas palavras para este programa de sala. Todavia, falar desse tema é incontornável.

A palavra “eutanásia” é, contudo, algo equívoca. Melhor dito, contém em si vários significados. Há quem a entenda como sendo a morte provocada mesmo que o doente a não deseje e não a peça – seria, nesse caso, um homicídio (eutanásia não solicitada por ação). Também há quem lhe dê o significado de ação praticada a quem a solicite, qualquer que seja a situação – seria, nesse caso, ajuda ao suicídio –, igualmente um crime punível. Há ainda as situações em que, a pedido do doente ou por decisão médica, face a casos sem qualquer esperança, se suspendem os tratamentos, mantendo apenas os necessários a controlar os sintomas – eutanásia, solicitada ou não, por omissão, já hoje aceite como boa prática pelas profissões e pela deontologia consolidada.

Onde está, então, o pomo da discórdia? Só há crime e castigo se uma ação estiver prevista como tal no Código Penal de um Estado de direito, e o que alguns defendem na atualidade é que um certo e determinado ato (eutanásia solicitada por ação) deixe de ser considerado crime e deixe de ter castigo penal. Por outras palavras, é preciso acabar com a pena de cadeia para quem tiver uma atitude de misericórdia, ajudando a antecipar a morte, após pedido livre e repetido de uma pessoa, em certas e determinadas condições. É preciso mudar a lei para não castigar do mesmo modo situações moralmente diferentes.

Ah! Mas depois pode acontecer que, a coberto da misericórdia, haja homicídio ou ajuda ao suicídio por motivos fúteis ou interesses obscuros! É por isso que são tão importantes as palavras “em certas e determinadas condições”, e deva ser reafirmado que ninguém será obrigado a pedir tal antecipação provocada da morte (assim como ninguém é obrigado a atender a tal pedido). Cabe a cada um decidir em sua consciência, em sua boa-fé e respeitando o princípio da proporcionalidade. Cabe às entidades definidas em lei verificar a conformidade dos pedidos e a conformidade das respostas. Cabe aos legisladores estabelecer as “certas e determinadas condições”.

Sobre o jovem Osvald, na peça de Ibsen, não sabemos muito da doença tida por herdada, mas percebemos que o seu estado anímico está condicionado pelas peripécias da trama familiar (afinal alguém não é filho, afinal alguém não é pai). Sabemos, contudo, que o autor põe o personagem a desejar morrer e a pedir que o ajudem nesse desfecho. Não se trata, em rigor, de uma “morte medicamente assistida”. Dir-se-ia mesmo que o apelo é para que o compreendam. A sua decisão concretiza-se mesmo antes de alguma ajuda ser prestada e logo que a mãe lhe dá a mão.