30 junho 2013

O consultor de ética médica: Que estatuto? Que papel?

 
O consultor de ética médica: Que estatuto? Que papel?

Stéphane Courtois 

Tradução parcial do original sito em Le consultant en éthique médicale : quel statut? quel rôle ?, Université du Québec à Trois-Rivières

(…)

Quais são, de facto, as tarefas mais vezes citadas pelos consultores de ética médica quando questionados sobre qual é o papel da consulta de ética? Aponto aqui as principais caraterísticas geralmente mencionadas de forma desordenada e sem me preocupar ainda com questões normativas:

1. O consultor de ética médica tem um papel de árbitro a desempenhar em conflitos e disputas que possam surgir, quer entre partes interessadas da equipe médica, quer entre esta e o paciente.

2. O consultor de ética médica tem a desempenhar o papel de “ativador” de discussões de conteúdo ético (seminários, reuniões de discussão ética em unidades de cuidados, etc.).

3. O consultor de ética médica é um “articulador” que induz os membros da equipa clínica (ou da comissão de ética) a esclarecerem a natureza de suas preocupações sobre um caso clínico e expressarem as suas opiniões, evitando que um problema recorrente volte a acontecer.

4. O consultor de ética médica é também um analista: esmiúça conceitos éticos subjacentes às preocupações expressas em 3, clarifica valores, normas morais e legais, etc.

5. É também o que se poderia chamar um “advogado da moralidade”: tem de encontrar a solução mais imparcial possível quando há um conflito de interesses ou valores, seja entre os membros da equipa médica sobre o que fazer numa determinada situação, seja entre eles e o hospital ou entre eles e o paciente (ou seu representante), etc.

6. O consultor de ética é um promotor de “aprendizagem ativa”: pode confrontar os médicos com uma visão diferente das suas, levando-os a reconsiderar a sua interpretação de um caso clínico.

7. O consultor de ética é um conselheiro, tanto para a tomada de decisões clínicas como na redação de políticas de ética do hospital, no desenvolvimento de protocolos, diretrizes, etc.

8. O consultor de ética pode dar apoio emocional, tanto a profissionais como a pacientes em situações críticas.

9. O consultor de ética age muitas vezes como guia espiritual de doentes, sobretudo se tem formação em teologia.

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Segundo ele, um “código de ética para os consultores de ética” devia preencher os seguintes cinco objetivos principais:

1. Permitiria identificar os padrões mínimos de conduta ética destinados a consultores e proporcionar critérios claros e precisos para distinguir entre comportamento correto e incorreto. Como mencionei anteriormente, Freedman acredita que mesmo o especialista em ética clínica pode mentir, enganar, iludir, etc. Não é nem mais nem menos propenso à negligência do que qualquer outra categoria profissional.

2. Um código de ética seria um guia para a resolução de dilemas éticos. Mais uma vez, até mesmo os consultores de ética são, segundo Freedman, expostos a tais dilemas: mesmo o pensador mais astuto pode cometer erros de julgamento, experienciar conflitos de valor ou interesse, etc., de modo que as suas recomendações não são infalíveis.

3. Um código de ética poderá ser um instrumento de educação profissional: a ética clínica guia os consultores em situações morais difíceis, fora dos percursos académicos próprios de teólogos ou filósofos, e um código pode ser usado para consultores em fase de aprendizagem.

4. Um código de ética alimenta a cultura profissional e reflete-a. Poderia ser a personificação do “ethos” da prática da consulta de ética para todos aqueles que aspiram a prestar este serviço.

5. Um código de ética, finalmente, poderia ser usado para especificar o que, exatamente, se espera de um bom consultor de ética, um consultor de “competente”, para distinguir as práticas cuja responsabilidade lhes deve sem imputada das que o não devem ser. Tal coisa está longe de ser algo de supérfluo, dada a incerteza em torno desta prática.

(…)

3. Conclusão Como eu mencionei, parece-me que o consultor de ética mais “competente” é aquele que consegue, através da educação, tornar as pessoas que recorrem à consulta de ética autónomas no plano moral, capacitá-las a tomar suas próprias decisões de forma independente. Por outras palavras, o padrão último pelo qual devemos medir os resultados, bons ou maus, da consulta de ética é a autonomia do consulente, a sua capacidade de se emancipar da própria consulta de ética. O objetivo da consulta de ética deve ser o de assegurar que este serviço não é mais necessário. Esta é a razão fundamental pela qual a profissionalização do trabalho em consulta de ética me parece ser irrelevante. Isto não é simplesmente uma dificuldade passageira, mas um óbice de princípio. Reconhecer uma tal profissão seria, em minha opinião - e eu estou aqui de acordo com G. Scofield, A. L. Caplan ou F. Baylis - confundir as componentes técnicas e as componentes de avaliação do conhecimento humano, quando apenas as primeiras podem ser profissionalizadas, e não as segundas.

Para voltar à importante distinção feita pelo filósofo alemão Jürgen Habermas, a perícia ética é um saber-fazer que expressa uma “competência humana universal” – todos são capazes de discernimento moral. Já a perícia profissional corresponde a um saber-fazer que expressa uma “competência especial” ou seja, é compartilhada apenas por determinados grupos de indivíduos em detrimento de outros. Dito de outro modo: enquanto não há perícia profissional fora da experiência profissional, ou seja, fora do conhecimento adquirido através da formação académica própria de um campo profissional (por exemplo, medicina), há uma competência moral fora da formação ética académica, ou mesmo fora da experiência adquirida pelo consultor de ética junto à cabeceira do paciente. A “perícia ética” não pode, portanto, ser reduzida e limitada ao conhecimento académico teórico, ou à experiência prática adquirida em situações muito específicas, como situações clínicas. Em suma, para usar desta vez a linguagem de Caplan, não há e não pode haver “especialistas” em questões morais, pessoas com um corpo de conhecimentos esotéricos em ética a que acedem de modo exclusivo, de modo profissional. Existe, pelo contrário, a “perícia moral”, que não está reservada apenas aos especialistas em ética – é algo que é de todos.

Certamente, alguns dirão que há graus de competência ética. Os seguidores da Kohlberg, por exemplo, provavelmente diriam que a real “experiência ética” é a capacidade de raciocinar moralmente aos mais altos níveis do desenvolvimento moral (pós-convencional). Nem todos terão, assim, esta perícia. Mas um pouco de reflexão mostra que essa teoria confirma, mais do que desmente, o meu ponto: a “perícia ética” assim descrita está aberta a todos, é a expressão mais avançada de um saber-fazer próprio de todos. Não é o resultado de uma formação académica especial, mas o resultado de um processo de aprendizagem natural na nossa capacidade de resolver problemas no plano moral.

Do exposto, deve ser concluído, na minha opinião, o seguinte: se há diferença alguma entre a competência moral dos chamados especialistas em ética e a das pessoas comuns, a resposta apropriada não é ampliar esta lacuna através da criação de uma ordem profissional, mas antes tentar preenchê-la educando os outros a pensar por si mesmos e tornar irrelevante, pelo menos no longo prazo, a necessidade de consultores de ética. Esta é a objeção central que importa valorizar, parece-me, contra qualquer projeto de profissionalizar essa atividade de serviço que é, e deve continuar a ser, a consulta de ética. A presença cada vez mais importante de consultores de ética nos nossos hospitais (ou outros sectores profissionais), oriundos de diversos centros de consulta de ética, oferecendo serviços profissionais, bem como a existência de associações de ética que reivindicam um estatuto profissional, tudo isso é, obviamente, uma situação de facto que não podemos contestar e com que devemos, ao que parece, conviver cada vez mais nos próximos anos. A única conclusão plausível parece ser tomar as medidas adequadas para regular essas atividades e combater os efeitos potencialmente prejudiciais tanto para os potenciais consulentes como para os próprios consultores. Daí as recomendações que fiz em favor de um código de ética.

Em face do exposto, sou forçado a admitir que a consulta de ética, pelo menos na sua forma atual, partilha, pelo menos, uma coisa em comum com a atividade profissional: a necessidade de ser regida por regras que protegem profissionais e clientes. Mas aqui a analogia cessa. Para mim, a consulta de ética será, quando muito, uma “quase profissão”. Enquanto a atividade profissional tem por base a assimetria existente entre o profissional e o cliente, em que o primeiro tem uma experiência que o segundo não tem, esta assimetria desaparece ao fazer-se da autonomia do cliente, assim como da sua capacidade para se libertar permanentemente do serviço do especialista em ética, o critério de excelência da consulta de ética, como sugiro. Nesta perspetiva, um código de ética concebido para eticistas teria, a meu ver, que cumprir um papel adicional em relação aos códigos de conduta comuns: teria de definir os objetivos da consulta de ética de modo que ficasse claro que este trabalho tem de obedecer a padrões diferentes dos que regem outras profissões, padrões a que eu chamo cívicos e educacionais (como o fazem as regras de ética que eu elenquei anteriormente, por exemplo a regras números 3 e 5). Ajudar os outros a juntar-se à maioria, no sentido em que o entendia Kant, para se tornarem cidadãos adultos responsáveis pelas suas ações e decisões, não é servir os interesses de uma profissão, é servir a democracia, é servir os interesses públicos, é trabalhar para colmatar o fosso entre os cidadãos adultos, moralmente autónomos, e outros – os que, com toda a probabilidade, ainda não o são. Um código de ética para os especialistas em ética teria, finalmente, a missão de circunscrever os limites da consulta de ética, os limites que são os da própria profissionalização. Penso que esses limites mereceriam ser explicados numa regra de conduta, por exemplo a seguinte (regra n.º 6): “A consulta de ética deve continuar a ser uma atividade de serviço desempenhada de forma voluntária por pessoas que pertencem a ordens profissionais que já contenham em si finalidades de educação moral e cívica de outros profissionais ou dos seus clientes, e não deve levar à criação de um órgão profissional independente”. Penso, também, por essa razão, que um código de ética para especialistas em ética deve ser concebido de modo que não “perpetue” o trabalho da consulta. Pode-se presumir que tal código irá desaparecer um dia juntamente com a necessidade de haver consultas de ética.