08 dezembro 2021

O Desaparecimento do Exame Físico nos Cuidados Primários

 
November 2020 Volume 180, Number 11

O Desaparecimento do Exame Físico nos Cuidados Primários – Perder o Toque
Paul Hyman, MD, Mid Coast-Parkview Health, Brunswick, Maine.

Quanto vale um exame físico? Ao olhar fixamente para uma lista das próximas consultas com doentes da minha clínica de cuidados primários e tentar decidir quem deve entrar no consultório apesar da pandemia da Covid-19, esta questão paralisa-me.

Nos 15 anos que levo como médico, o exame físico sempre ocupou para mim um espaço precário. Como residente, as resmas de informação que tinha sobre os doentes antes de entrar no seu quarto fizeram com que fosse tentador fazer o “exame físico rápido”, como Robert Hirschtick se queixou num ensaio1 recentemente republicado. Mais recentemente, a insistência da minha organização de cuidados para aumentar o nosso número anual de consultas de bem-estar da Medicare, as quais não obrigam a um exame físico, e as recomendações2 de alguns, contrárias a exames físicos de rotina em doentes assintomáticos, fizeram-me pensar por que razão examino pessoas idosas saudáveis.

Dado que a nossa prática de cuidados primários se tem deslocado para a telessaúde e o exame físico se tem afastado de mim, dou por mim a refletir sobre qual o valor que este exame tem. É claramente necessário, por vezes, para fazer um diagnóstico. Mas agora apercebo-me de outras formas como utilizo o exame para antecipar cuidados e do seu significado para o meu próprio bem-estar. É um meio através do qual faço uma pausa e me ligo fisicamente aos doentes, demonstro os meus conhecimentos e autoridade, e é um instrumento que utilizo para persuadir os doentes e para processar as suas narrativas.

Muitos médicos diriam que alguns diagnósticos não podem ser feitos sem examinar pessoalmente um doente. Não sei bem como distinguir vertigens centrais versus periféricas, diagnosticar otite média ou determinar se alguém tem hipotensão ortostática sem examinar a pessoa à minha frente. Além disso, muitos de nós têm casos em que uma descoberta inesperada no exame parece ter salvo a vida de um doente. A descoberta de uma verruga irregular, uma massa de tecido mole ou um novo sopro – não me esqueço destes casos e penso que os doentes também não.

O que era menos aparente para mim antes da pandemia era como um exame físico atento proporciona um grau de objetividade que me pode ajudar a repensar a narrativa de um doente. Eu trabalho no Maine, onde há uma boa quantidade de estoicos. Um doente procurou-me recentemente, sentindo-se um pouco cansado, mas achava que não era nada, provavelmente como resultado de um trabalho demasiado árduo. O seu exame sugeriu que ele estava em insuficiência cardíaca. Se eu não tivesse sido capaz de ouvir o seu coração e pulmões e de examinar a sua veia jugular e extremidades inferiores, poderia ter colocado demasiado peso na falta de preocupação do doente e ter perdido o diagnóstico. Quando doentes e eu discordamos sobre um plano, o exame físico não só fornece dados, como também atua como árbitro. Por exemplo, os doentes sentem por vezes necessidade de utilizar antibióticos para tratar uma infeção respiratória. Se eu comunicar que os resultados do seu exame pulmonar são claros e que os seus níveis de saturação de oxigénio são normais, eles sentem-se muitas vezes mais tranquilos por não precisarem de medicação.

O exame, porém, é mais do que uma ferramenta que informa o diagnóstico e o tratamento. Percebo agora o valor que tem para mim. Os momentos tranquilos em que estou a ouvir os batimentos cardíacos e a respiração de um doente podem ser centrais, à semelhança daquela parte de uma meditação em que nos recentramos na própria respiração. Abraham Verghese3 elaborou extensivamente sobre o papel do exame físico como um ritual e a sua importância para os doentes; também observou como este ritual acarreta satisfação para os médicos devido à conexão humana. Só agora reconheço o exame como um ritual restaurador que me traz tranquilidade e confiança.

Numa admissão da minha própria insegurança, o exame físico acaba por ser uma das poucas áreas em que mantenho um sentido de competência profissional e autoridade. Nunca fui um grande procedimentalista. A base do que ofereço aos doentes é a capacidade de os ouvir, de usar o pensamento crítico e de oferecer os meus conhecimentos e experiência. Mas essas capacidades são por vezes desafiadas num mundo onde os doentes pesquisam a sua própria saúde e desenvolvem as suas próprias narrativas médicas. O exame físico continua a ser um momento em que ofereço algo de distinto valor e que é apreciado.

Assim, ao cabo de 15 anos de exercício, o exame físico é uma das minhas rotinas, adquirida com o surgimento da pandemia. Começando pelos princípios da escuta ativa, pela recolha de dados e pela criação de algo bem diferente, tinha-me afastado de praticar a medicina para que me sentia mais bem preparado. Embora continuasse evoluindo neste processo, não me questionava todos os dias se um doente precisava de um exame físico. Mas a pandemia obrigou-me a desconstruir a minha rotina, incluindo o exame físico, de uma forma que me deixa em terreno incerto. Isto tem sido emocionalmente exaustivo e inquietante.

Nem tudo está perdido com o surgimento da telessaúde. Pelo menos nestas fases iniciais, as consultas virtuais parecem permitir-me estabelecer uma ligação mais frequente e fácil com os doentes. Com a telessaúde, posso ver doentes nos seus ambientes domésticos, o que muitas vezes me dá novas informações sobre fatores que influenciam os seus comportamentos de saúde. As consultas virtuais respeitam o tempo de um doente. E, claro, nesta pandemia quando o distanciamento social é tão importante, a telessaúde é mais segura para os doentes. Com o passar dos meses, vou me adaptar e, sem dúvida, aprendendo novas formas de recolher dados de exames físicos. A tecnologia utilizável ou a orientação de doentes através de autoexames irá permitir algumas abordagens criativas para obter ganhos com o tele-exame.

Nos últimos 10 anos, com o aparecimento dos registos de saúde eletrónicos e dos cuidados baseados em equipas, nós, médicos de cuidados primários, encontrámo-nos numa base insegura com a nossa identidade e a nossa forma de praticar, frequentemente deslocados e perturbados. Não tenho dúvidas de que quando a poeira assentar da pandemia de Covid 19, as coisas voltarão a mudar, incluindo uma reavaliação do papel do exame físico em consultório.

Este exame, na sua forma atual, pode ser deixado para trás. Como Michael Rothberg escreve num artigo recente de JAMA4 (p1683), alguns exames físicos, no nosso ambiente atual de cuidados de saúde, podem ter consequências não intencionais dispendiosas e arriscadas, levando a “testes invasivos e potencialmente ameaçadores de vida”. Embora simpatize com esta lógica e reconheça os benefícios da telessaúde, tenho dificuldade em encontrar equipolência (equipoise - incerteza ou indeterminação de benefício). Ao tentar manter os doentes à distância, estou a perder o contacto com uma parte da minha identidade profissional.

___________________ 
1. Hirschtick RE. The quick physical exam. JAMA.2016; 316(13):1363-1364.
2. Society of General Internal Medicine. Five things physicians and patients should question. Choosing Wisely. September 12, 2013. Updated February 15, 2017. Accessed May 8, 2020.  
3. Parks T. Dr. Abraham Verghese looks at the patient- physician relationship. American Medical Association. January 20, 2016. Accessed May 8, 2020.  
4. Rothberg MB. The $50 000 physical. JAMA.2020; 323(17):1682-1683.

08 outubro 2021

Morrer bem


O que seria necessário para morrer bem? 
Uma revisão sistemática de revisões sistemáticas sobre as condições para uma boa morte
Mehreen Zaman, Sara Espinal-Arango, Ashita Mohapatra e Alejandro R Jadad

Tradução espontânea do artigo 

ver tradução AQUI

24 agosto 2021

Dicionário Toponímico Ilustrado do Porto

 
Dicionário Toponímico Ilustrado do Porto

Organização, fotografias e seleção de textos de Rosalvo Almeida
Unicepe, 2021 (esgotado) 
ISBN papel: 978-989-8613-15-8 | ISBN PDF: 978-989-8613-16-5

O Porto é um livro aberto.

Os seus arruamentos são uma lição de história e traduzem o valor da tolerância em muitas dimensões. O Dicionário Toponímico Ilustrado do Porto demonstra que nesta cidade invicta, nas suas ruas e praças, travessas e vielas, avenidas e alamedas, há lugar para homens e mulheres, republicanos e monárquicos, nobres e plebeus, padres e ateus, santos e pecadores, progressistas e conservadores, músicos e navegadores, comerciantes e professores, médicos e escritores, reis e presidentes, militares de várias patentes e simples gentes – um conjunto tão diversificado como rico.

Eis um dicionário para consultar mas também um livro para ler e saborear, saltando de uma entrada para outra, conforme sugestão das setas ➚ que indicam novos caminhos.

Cada entrada consiste numa citação bibliográfica que pretende despertar a vontade de seguir as pistas aí levantadas, rumo à respetiva origem. Na versão digital, oferecida aos compradores do livro, há hiperligações aos mapas dos arruamentos e às fontes telemáticas.

Pensada para coincidir com os 200 anos da ‘Revolução Liberal’ e depois com os 130 anos do ‘31 de Janeiro’, a edição desta obra foi também afetada pela pandemia mas aqui está antes dos 190 anos do ‘Cerco do Porto’. A cidade, e quem a ama, soube e saberá sempre resistir às adversidades e quarentenas.

A UNICEPE, agraciada com a Medalha Municipal de Mérito, grau ouro, da Câmara Municipal do Porto e classificada como “Loja do Porto de Tradição”, congratula-se por poder proporcionar ao Porto a fruição deste trabalho.

20 maio 2021

Dar a mão (folha de sala)

 Dar a mão” - manual de leitura da peça 
Espectros”, de H. Ibsen, 
Teatro Nacional S. João (2021)

Dar a mão  

Os fantasmas assustadores, as aparições ameaçadoras, ou seja, os “espectros” que nos assolam no fim de vida são tão pessoais como imprevisíveis. Ninguém sabe como os vai ver, ninguém é capaz de verdadeiramente imaginar o que o outro vê ou pensa ver.

O enredo desta peça de Ibsen conduz-nos, num encadeado de relações equívocas, para um final sem boas saídas.

O medo de morrer é generalizado em todas as sociedades, pese embora algumas afirmações em contrário de alguns valentes saudáveis. Esse medo deriva, naturalmente, do desconhecido. É sabido que os crentes na vida para lá da morte serão mais propensos a confiar em que esse desconhecido poderá ser de eterna felicidade, mas a incerteza gera medos. Os incréus, os que pensam que para lá da morte não há nada, senão a memória, temem, tanto quanto os outros, pelo que deixam de viver, e também para eles não há certezas.

Caso diferente é o choque de medos. Quem sente que está perto de morrer passa, frequentemente, a ter dois medos: o de morrer e o de viver. As dores físicas e os sofrimentos mentais, tantas vezes juntos, seja em doenças fatais e iminentes, seja em situações incuráveis e incontroláveis, levam muitas pessoas a questionar-se sobre a qualidade do seu viver.

Estas afirmações, aparentemente consensuais, não significam que todos reajam e pensem do mesmo modo, ou que haja uma reação ou um pensamento mais correto do que outro. Não somos todos iguais e os espectros da morte próxima ou da vida insuportável podem, muitas vezes, ser afugentados com apoio profissional e lenitivo (cuidados paliativos), com ajuda de medicações para as dores, a ansiedade ou a depressão, com abordagens psicológicas apropriadas, com o amparo de familiares ou pessoas próximas e queridas.

Contudo, neste conflito de medos, restam situações em que “o direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância”, como salientou recentemente o nosso Tribunal Constitucional. São situações obviamente carregadas de grande subjetividade e perturbadas por imensas dificuldades de decisão.

Sejamos claros. Esta peça, sem happy end, nada tem a ver com a eutanásia. “A eutanásia não é um tópico central em Espectros, mas encontra um eco na peça”, como diz quem me convida a escrever umas palavras para este programa de sala. Todavia, falar desse tema é incontornável.

A palavra “eutanásia” é, contudo, algo equívoca. Melhor dito, contém em si vários significados. Há quem a entenda como sendo a morte provocada mesmo que o doente a não deseje e não a peça – seria, nesse caso, um homicídio (eutanásia não solicitada por ação). Também há quem lhe dê o significado de ação praticada a quem a solicite, qualquer que seja a situação – seria, nesse caso, ajuda ao suicídio –, igualmente um crime punível. Há ainda as situações em que, a pedido do doente ou por decisão médica, face a casos sem qualquer esperança, se suspendem os tratamentos, mantendo apenas os necessários a controlar os sintomas – eutanásia, solicitada ou não, por omissão, já hoje aceite como boa prática pelas profissões e pela deontologia consolidada.

Onde está, então, o pomo da discórdia? Só há crime e castigo se uma ação estiver prevista como tal no Código Penal de um Estado de direito, e o que alguns defendem na atualidade é que um certo e determinado ato (eutanásia solicitada por ação) deixe de ser considerado crime e deixe de ter castigo penal. Por outras palavras, é preciso acabar com a pena de cadeia para quem tiver uma atitude de misericórdia, ajudando a antecipar a morte, após pedido livre e repetido de uma pessoa, em certas e determinadas condições. É preciso mudar a lei para não castigar do mesmo modo situações moralmente diferentes.

Ah! Mas depois pode acontecer que, a coberto da misericórdia, haja homicídio ou ajuda ao suicídio por motivos fúteis ou interesses obscuros! É por isso que são tão importantes as palavras “em certas e determinadas condições”, e deva ser reafirmado que ninguém será obrigado a pedir tal antecipação provocada da morte (assim como ninguém é obrigado a atender a tal pedido). Cabe a cada um decidir em sua consciência, em sua boa-fé e respeitando o princípio da proporcionalidade. Cabe às entidades definidas em lei verificar a conformidade dos pedidos e a conformidade das respostas. Cabe aos legisladores estabelecer as “certas e determinadas condições”.

Sobre o jovem Osvald, na peça de Ibsen, não sabemos muito da doença tida por herdada, mas percebemos que o seu estado anímico está condicionado pelas peripécias da trama familiar (afinal alguém não é filho, afinal alguém não é pai). Sabemos, contudo, que o autor põe o personagem a desejar morrer e a pedir que o ajudem nesse desfecho. Não se trata, em rigor, de uma “morte medicamente assistida”. Dir-se-ia mesmo que o apelo é para que o compreendam. A sua decisão concretiza-se mesmo antes de alguma ajuda ser prestada e logo que a mãe lhe dá a mão.

11 março 2021

Doutor, gostava de alterar o meu processo clínico


‘Doutor, gostava de alterar o meu processo clínico’
Leigh Page

Tradução espontânea do artigo

ver tradução completa do artigo AQUI

ver também Parecer 20/2010 da Comissão de Ética da ARS Norte 
(sobre se deveria ser possível eliminar o registo electrónico de um dado de saúde a pedido do seu titular)

24 fevereiro 2021

Sobre a proporcionalidade

Público, 24.02.2021

O Tribunal Constitucional saberá, seguramente, ter em conta estas e outras considerações na análise sobre a bondade da formulação encontrada pelo legislador no diploma sobre a eutanásia. É o que se espera.

No seu requerimento ao Tribunal Constitucional para verificação da conformidade com a Constituição de algumas disposições do decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República, o Presidente da República alega que o conceito de sofrimento intolerável “não se encontra minimamente definido, não parecendo, por outro lado, que ele resulte inequívoco das leges artis médicas”. Essa falta de definição é também apontada ao subcritério “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”, para mais separado pela conjunção alternativa “ou” do subcritério “doença incurável e fatal”.

Aparentemente, o PR preferiria ver explicada em Lei uma escala de sofrimentos e o corte a partir do qual este pudesse ser aceite como intolerável. Do mesmo modo, resulta da pergunta que seria bom dispor de uma lista exaustiva de lesões, bem como de uma forte relação dessas lesões com o prognóstico medido em unidades de tempo. Os defeitos de densificação dos critérios seriam, adivinha-se, razão suficiente para reprovar a lei no exame da constitucionalidade.

Acontece, porém, que a invocação de conceitos, como os usados para justificar a não punição penal da antecipação da morte a pedido do próprio, não parece poder ser senão indeterminada, embora em cada caso se exija que estes sejam e tenham de ser concretizados e fundamentados.

Os profissionais de saúde estão habituados a lidar com um outro conceito de difícil determinação abstrata, que é o princípio da proporcionalidade. Todos os dias tomam decisões que forçosamente têm de ser proporcionadas à situação que enfrentam. Muitos não saberão dizer, em resposta rápida, o que significa o princípio da proporcionalidade –aplica-se aqui o que também se diz da dignidade: não sei dizer o que é mas, quando a vejo ser ofendida, reconheço-a!

O princípio da proporcionalidade está contemplado no artigo 266.º da Constituição – a ele, como ao da igualdade, justiça, imparcialidade e boa-fé, estão subordinados os órgãos e agentes da Administração Pública.

O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 632/2008, de 23-12-2008, afirma que “a ideia de proporção ou proibição do excesso – que, em Estado de direito, vincula as ações de todos os poderes públicos – refere-se fundamentalmente à necessidade de uma relação equilibrada entre meios e fins: as ações estaduais não devem, para realizar os seus fins, empregar meios que se cifrem, pelo seu peso, em encargos excessivos (e, portanto, não equilibrados) para as pessoas a quem se destinem”.

Mas não só há referências gerais a este princípio. Ele está também presente nos enunciados da bioética, associado aos princípios da beneficência e da não-maleficência.

Veja-se, por exemplo, o Guia sobre o processo de decisão relativo a tratamentos médicos em situações de fim de vida (Conselho de Europa, 2014). “A relação de confiança entre médicos, cuidadores e doentes é instrumental na avaliação da proporcionalidade do tratamento. O caráter desproporcionado do tratamento define-se concretamente conforme a progressão da doença e a reação do doente ao tratamento.”

Não é possível definir em detalhe, previamente, todas as condições perante as quais os profissionais atuam – permitir e exigir proporcionalidade é exatamente deixar uma margem suficiente para a razoabilidade, sem excluir a responsabilidade

Veja-se, noutro exemplo, a nossa Lei n.º 46/2007, de 24 de agosto, que, no artigo 6.º, n.º 5,estipula que “um terceiro só tem direito de acesso a documentos nominativos se estiver munido de autorização escrita da pessoa a quem os dados digam respeito ou demonstrar interesse direto, pessoal e legítimo suficientemente relevante segundo o princípio da proporcionalidade”.

Ou seja, não é possível definir em detalhe, previamente, todas as condições perante as quais os profissionais atuam – permitir e exigir proporcionalidade é exatamente deixar uma margem suficiente para a razoabilidade, sem excluir a responsabilidade. O diploma agora em apreciação de constitucionalidade é claro quanto a isso – os médicos intervenientes só veem validadas as suas opiniões pela Comissão de Verificação e Avaliação se forem devidamente fundamentadas.

Acresce que não há forma de avaliar se um sofrimento é intolerável que não seja subjetiva – só o sujeito sofredor sabe até onde o tolera.

O Tribunal Constitucional saberá, seguramente, ter em conta estas e outras considerações na análise sobre a bondade da formulação encontrada pelo legislador. É o que se espera.

13 janeiro 2021

O meu testamento vital

DIRETIVA ANTECIPADA DE VONTADE (TESTAMENTO VITAL)

Eu, ROSALVO MANUEL MARTINS ALMEIDA, casado com xxx desde 29 de agosto de 1970, sob o regime da comunhão de adquiridos, natural da freguesia de xxx, concelho de xxx, portador do Cartão do Cidadão número xxx, válido até xxx, emitido pela República Portuguesa, contribuinte fiscal número xxx, residente na Rua xxx, xxx Porto, freguesia de xxx, concelho do Porto, e-mail xxx, utente n.º xxx do SNS da Unidade de Saúde Familiar “xxx”, na plena posse das minhas faculdades mentais e dos meus direitos cívicos, considerando que recebi suficiente informação e tendo refletido cuidadosamente, tomo a decisão de declarar, através deste documento, as seguintes instruções que traduzem a minha vontade atual, de acordo com o disposto na Base XIV da Lei n.º 48/90, de 24 de agosto (Lei de Bases da Saúde), o Artigo 5.º da “Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina” – Convenção de Oviedo (Resolução da Assembleia da República nº 1/2001) e a Lei n.º 25/2012, de 16 de julho, pelo que, deste modo, desejo que estas sejam respeitadas na minha assistência médica, se vier a encontrar-me em situação de não poder expressar a minha vontade por deterioração física e/ou mental:

A - Designo como PROCURADORA DE CUIDADOS DE SAÚDE a minha mulher xxx, natural da freguesia e concelho da xxx, portadora do Cartão do Cidadão número xxx, válido até xxx, emitido pela República Portuguesa, contribuinte fiscal número xxx, para a utilização deste documento, assim como para a interpretação das possíveis dúvidas que possam surgir na sua aplicação. Esta pessoa deverá ser considerada como o interlocutor válido e necessário pelos médicos responsáveis pela minha assistência e como garante da minha vontade expressa no presente documento.

B - Mais declaro que se não puder tomar decisões sobre os meus cuidados, tratamentos e exames médicos, em consequência da minha deterioração física e/ou mental, como por exemplo:

1 - doença irreversível (oncológica ou outra) que conduza inevitavelmente, a prazo breve, à morte;

2 - estado clínico terminal em qualquer doença de prognóstico fatal;

3 - estado neurológico ou psiquiátrico grave, de caráter irreversível, como o Estado Vegetativo Persistente ou demência, com intercorrência respiratória, renal ou cardíaca;

e se, na avaliação do pessoal médico que então me atenda, não existirem expectativas de recuperação sem sequelas (que me impeçam uma vida com um mínimo de comunicação com outras pessoas e de independência funcional para as atividades da vida diária), assim como sem dor grave e continuada, a minha VONTADE é que não sejam aplicadas, ou que se retirem se já tiverem sido começadas, medidas de suporte vital cardiorrespiratório, inclusive ventilação assistida, e que não se dilate a minha vida por meios artificiais, como fluidos intravenosos, antibióticos ou outros fármacos ou alimentação por sondas, as quais apenas prolonguem os meus sofrimentos.

C – Peço, por isso, que, quando os responsáveis da minha assistência tenham de tomar decisões médicas sobre a minha pessoa, quando existam graves e irreversíveis limitações cognitivas ou motoras, não apliquem tais intervenções.

D - Desejo, além disso, que se instaurem medidas paliativas (incluindo hidratação oral mínima ou subcutânea) e me administrem os fármacos que sejam necessários para controlar, com efetividade, dores e outros sintomas que possam causar-me padecimento, angústia ou mal-estar, ainda que isso possa encurtar a minha expectativa de vida.

E - Em caso de dúvida na interpretação de meu projeto vital e dos meus valores de qualidade de vida, quero que se respeite a opinião da minha PROCURADORA DE CUIDADOS DE SAÚDE.

F - No caso dos profissionais de saúde que me atendam alegarem motivos de consciência para não atuar de acordo com minha vontade, aqui expressa, solicito ser atendido por outros profissionais que estejam dispostos a respeitá-la.

G - Manifesto, ainda, o meu desejo de que, quando do meu falecimento, haja um funeral laico, que o meu corpo seja incinerado e que as cinzas sejam guardadas no jazigo de família do Cemitério da xxx, Braga.

07 janeiro 2021

Relatório do Comité Internacional de Bioética da UNESCO - Neurotecnologias

Relatório do Comité Internacional de Bioética da UNESCO 
sobre as Questões Éticas das Neurotecnologias

Tradução do 

«No âmbito do seu programa de trabalho para 2020-2021, o Comité Internacional de Bioética da UNESCO (CIB) decidiu abordar as questões éticas da neurotecnologias.

«Na sequência das discussões online do Comité após a 26.ª sessão (ordinária) do CIB em julho de 2019, o Comité criou um Grupo de Trabalho para elaborar uma primeira reflexão sobre este tema em fevereiro de 2020. Devido à situação de desafio colocada pela pandemia da COVID-19, o Grupo de Trabalho do CIB funcionou principalmente através de trocas de correio eletrónico e realizou duas reuniões em maio e setembro de 2020. Como resultado, foi apresentada e discutida uma sinopse do projeto de relatório preliminar durante a 27.ª Sessão (ordinária) do CIB em dezembro de 2020, que se realizou online com uma agenda condensada. Além disso, o anteprojeto de relatório foi discutido e apresentado durante uma sessão extraordinária do CIB e uma sessão conjunta do CIB e do IGBC (Intergovernmental Bioethics Committee), que teve lugar online em fevereiro de 2021.

«Tendo em conta as reações e comentários recebidos durante as sessões acima mencionadas, o Grupo de Trabalho do CIB realizou uma reunião online em junho de 2021 para preparar um projeto final de relatório, que foi adotado pelo Comité na sua 28.ª sessão, em dezembro de 2021.

«Este documento não pretende ser exaustivo e não representa necessariamente os pontos de vista dos Estados-membros da UNESCO.»

ver tradução completa do Relatório AQUI

Integridade científica: o que uma revista pode e não pode fazer


Integridade científica: o que uma revista pode e não pode fazer
Thomas F Lüscher, Kim Fox, Christian Hamm, Rickey E Carter, 
Stefano Taddei, Maarten Simoons, Filippo Crea

Tradução espontânea do artigo 
Scientific integrity: what a journal can and cannot do
publicado em dezembro de 2020

Revisão por pares e qualidade científica

Hoje, a ciência avança a uma velocidade sem precedentes. O número de publicações científicas atingiu um nível considerável, com tendência a ser cada vez maior em cada ano. Com este aumento de volume, a revisão de alta qualidade é ainda mais importante do que alguma vez foi. De facto, as revistas científicas de boa reputação devem proporcionar aos seus leitores o melhor da ciência disponível na sua área.1 Este é um verdadeiro serviço aos seus leitores, uma vez que se tornou impossível ler todos os artigos publicados. Consequentemente, todas as revistas de alto impacto utilizam o sistema de revisão por pares para determinar a qualidade dos manuscritos submetidos e chegar a decisões cientificamente rigorosas sobre o que publicam.2 O sistema de revisão por pares baseia-se nas recomendações de peritos na área, confrontando o que foi anteriormente publicado e avaliando o grau de novidade, bem como a qualidade de um determinado artigo (Figura 1). Assim, é-lhes pedido que determinem se a metodologia é de ponta, a análise estatística é a apropriada, o artigo está escrito de forma legível, bem como está ilustrado com figuras e tabelas apropriadas. Globalmente, entre as principais revistas, a taxa de aceitação resultante da revisão por pares é usualmente inferior a 10% dos manuscritos submetidos. Como tal, é ambição e intenção das revistas de alto impacto que estes manuscritos sejam da mais alta qualidade possível, proporcionando informação nova, clinicamente importante e fiável.

Ninguém e nada é perfeito

Obviamente, o processo de revisão pelos pares não é perfeito, é apenas tão bom como os revisores e editores que estão envolvidos no mesmo. Como tal, a revisão pós-publicação pelos leitores e especialistas na matéria é bem-vinda e necessária para o avanço da ciência. Contudo, uma limitação chave do processo de revisão pelos pares que é difícil de ultrapassar é a de só poder avaliar o que foi submetido. De facto, a revisão por pares não pode prover a validação de dados de origem, nem pode evitar ser enganada por autores fraudulentos.3 Infelizmente, as retratações, particularmente em revistas de alto impacto, aumentaram acentuadamente ao longo dos anos.4 O escândalo das células estaminais é apenas um exemplo recente desta tendência.5 Vários programas apresentaram meios para ‘otimizar’ western blots ([*]) e outros conjuntos de dados originais em artigos científicos o que torna difícil que os revisores detetem essa má conduta. Alguns dos conjuntos de dados mais obviamente fabricados no famoso caso John Darsee escaparam mesmo à atenção de revisores experientes do New England Journal of Medicine.6,7 Do mesmo modo, os artigos de revisão sistemática e as metanálises são difíceis de avaliar, uma vez que a abstração e a reanálise dos dados exigiriam esforços consideráveis que estão fora do âmbito da revisão regular pelos pares. A um certo nível, é necessário tomar os dados pelo seu valor facial e verificar se os processos de maior nível que conduzem ao conjunto de dados apresentado são sólidos. Globalmente, contudo, o processo de revisão por pares tem tido elevada aceitação entre autores e leitores, e continua a ser considerado o mais alto padrão que temos atualmente.

Publicação e depois

Sempre que aparecem publicações, particularmente quando relatam descobertas desafiantes ou inesperadas, surgem discussões alargadas no seio da comunidade científica. Esta é uma parte importante do processo científico, na medida em que avalia a validade e a importância dos dados. As descobertas controversas, sobretudo, são discutidas em mais profundidade ou mesmo condenadas (como o exemplo seminal de Galileu Galilei demonstrou de forma convincente). Isto não mudou atualmente e a maioria dos periódicos, entre os quais o European Heart Journal, acolhe favoravelmente a discussão, uma vez que estimula e fomenta o processo científico. Para o efeito, introduzimos o ‘Fórum de Discussão’ onde qualquer autor, leitor ou cientista, que queira comentar artigos publicados na revista, é bem-vindo. Desde que os seus argumentos e raciocínios respeitem a decência e estilo, os editores não restringem qualquer crítica. Graças a esta política, o ‘Fórum de Discussão’ tem publicado um número cada vez maior de contribuições de autores de todo o mundo.

Preocupações com precisão científica ou integridade

Em alguns casos, leitores e cientistas submetem duras críticas aos métodos e, por outro lado, à precisão dos dados ou mesmo à suspeita de fraude científica. Não há dúvida de que, embora a maioria dos cientistas subscreva o princípio de relatar a verdade e nada mais que a verdade, outros, embora uma minoria, podem não aderir a este princípio.3 É uma experiência infeliz de qualquer editor enfrentar tais situações. O European Heart Journal segue as orientações inscritas nas Core Practices do COPE (Committee on Publication Ethics)e subscreve as Recomendações do Comité Internacional de Editores de Revistas Médicas (ICJME) para a Conduta, Relato, Edição e Publicação do Trabalho Académico em Revistas Médicas. É expectável que todas as partes envolvidas na publicação de conteúdos na Revista sigam estas diretrizes. Além disso, o European Heart Journal conta com a Comissão de Ética das Revistas da ESC (European Society of Cardiology) há quase uma década.8 Os editores estão muito gratos pelos conselhos inestimáveis que esta comissão deu ao longo dos anos em situações delicadas e difíceis. Infelizmente, o número de casos que tiveram de ser submetidos à Comissão de Ética das Revistas aumentou constantemente ao longo do tempo, principalmente devido a acusações por denunciantes, meios de comunicação social ou cartas ao editor. É justo dizer que o público leitor de investigação médica evoluiu, incluindo mais do que apenas investigadores e médicos, devido à disseminação global através dos meios de comunicação social e canais de notícias. Uma base tão alargada levou inevitavelmente a um processo de revisão pós-publicação mais escrutinado.

Preocupações quanto à integridade científica

Sempre que são suscitadas questões sobre a integridade científica dos manuscritos submetidos – ou mesmo daqueles já publicados – os editores do European Heart Journal, bem como os de outras revistas da ESC, recorrem à Comissão de Ética das Revistas.8 Com base nos seus conselhos, os autores são confrontados com perguntas específicas e as suas respostas avaliadas. Em muitos casos, o processo de investigação terminará nesta fase. Contudo, se tiverem sido levantadas acusações mais graves, a instituição dos autores poderá ser contactada e solicitadas mais informações e ajuda (Figura 2). Infelizmente, nem todas as universidades têm responsáveis pela conformidade ou comissões de ética que lidam com tais questões, o que torna este processo por vezes difícil, ou mesmo impossível. No entanto, o European Heart Journal tem sido bem sucedido em muitos casos ao receber toda a base de dados para reavaliação ou análise estatística independente, bem como documentos ou protocolos para posterior revisão por investigadores ou clínicos experientes.

Descrição de um caso recente

Em 14 de junho de 2019, investigadores da Universidade de Vigo em Espanha submeteram ao European Heart Journal um manuscrito com o título ‘O tratamento da hipertensão à hora de deitar diminui o risco cardiovascular: ensaio de cronoterapia Hygia’. O artigo relatava um ensaio que randomizou 19 084 doentes hipertensos (10 614 homens e 8 470 mulheres, 60,5 ± 13,7 anos de idade), em modo 1:1, que tomavam os seus medicamentos anti-hipertensores à hora de dormir (n = 9 552) ou ao acordar (n = 9 532). Os resultados foram realmente desafiantes; os autores relataram a impressionante redução de 45% no risco relativo dos principais eventos cardiovasculares se os anti-hipertensores fossem administrados à noite e não de manhã (taxa de risco ajustada 0,55, intervalo 0,50-0,61, P < 0,001). O artigo foi extensivamente revisto por cinco revisores, incluindo por um editor estatístico, todos especialistas na matéria, e finalmente foi aceite uma versão revista a 1 de outubro de 2019 e publicada online a 22 de outubro de 2019.9

Quando este artigo foi publicado, foi alvo de um intenso escrutínio por colegas interessados no campo da hipertensão, bem como na imprensa, meios de comunicação social e afins. Para alguns, os resultados foram não só surpreendentes, mas também incríveis, e a alguns olhos inacreditáveis (‘demasiado bom para ser verdade’). Como consequência, o European Heart Journal recebeu um número substancial de cartas, e-mails e comentários relativos ao ensaio Hygia. Para garantia de transparência, os editores decidiram publicar todas as reações, a menos que fossem repetidas, na secção ‘Fórum de Discussão’.10-19 Assim, o processo científico estava a funcionar da forma que deveria – os leitores de todo o mundo estavam a interagir com o artigo e procuravam compreender melhor os dados. Afinal, a mudança relatada na mortalidade poderia ter um impacto profundo no horário da medicação anti-hipertensora e eventualmente nas recomendações das Diretrizes. Depois de terem proporcionado transparência sobre a controvérsia, os editores confrontaram o principal investigador com as críticas levantadas. O Dr. Ramon Hermida respondeu em pormenor às questões em várias cartas que esclareceram algumas, mas não todas, as questões. Por conseguinte, a Comissão de Ética das Revistas recomendou contactar a instituição, especificamente o Professor Manuel Reigosa, Reitor da Universidade de Vigo em Espanha. Felizmente, ele disponibilizou-se a fornecer todos os documentos que a Comissão exigia para chegar a uma decisão justa e equilibrada.

Assim que o European Heart Journal recebeu o conjunto de dados dos doentes do ensaio Hygia e os seus resultados, o Editor Chefe pediu uma análise independente a um estatístico experiente de uma instituição de prestígio nos EUA, para evitar quaisquer conflitos de interesse. Esta análise confirmou que a avaliação estatística e a apresentação dos resultados no manuscrito eram consistentes, num grau satisfatório, com os dados fornecidos. É óbvio que a revista, o seu estatista independente e a Comissão de Ética das Revistas da ESC não puderam verificar os dados de origem, pois isso exigiria enormes recursos que estariam muito além das expectativas do processo de revisão pelos pares. No entanto, os editores recomendaram ao Reitor da Universidade de Vigo a realização de tal investigação num futuro próximo e a elaboração de um relatório sobre o seu resultado.

Outro aspeto do ensaio que foi questionado foi se se tratava verdadeiramente de um ensaio aleatório. Para o efeito, os editores exigiram documentação apropriada do protocolo e do formulário de consentimento informado do doente por parte da instituição. Como estes documentos foram redigidos em espanhol, pedimos a um investigador americano competente nessa língua que avaliasse estes documentos. Com base nos documentos, ele confirmou que os doentes, quando assinaram o seu consentimento, tinham sido devidamente informados sobre a conceção do ensaio e a necessária randomização 1:1 para cada grupo que tomava os seus medicamentos anti-hipertensores, de manhã ou à noite.

Finalmente, muitos estavam preocupados por o ensaio não ter previsto uma regra de paragem, nem os investigadores terem criado um Conselho de Dados e Segurança (DSMB = Data and Safety Board). De facto, alguns interrogavam-se porque é que o ensaio não foi interrompido mais cedo quando o efeito significativo do tratamento na hora de dormir se tornou aparente, mas continuou durante algum tempo depois de alguns resultados terem sido relatados num artigo anterior, embora com outro foco.20 Aparentemente, a Hygia era um ensaio pragmático, subfinanciado, que se baseava principalmente na documentação do historial do doente. A agregação de dados no estudo abrangeu uma década entre 2008 e 2018, complicando ainda mais o financiamento e a manutenção de uma infraestrutura robusta de ensaios clínicos durante tanto tempo. Embora algumas das operações do estudo possam ficar aquém dos padrões atuais, o diálogo com a equipa de investigação forneceu respostas satisfatórias e não houve indicações que sugerissem que o ensaio ou os dados tivessem natureza fraudulenta.

Por último, serão credíveis os benefícios surpreendentemente grandes proporcionados pela toma à noite de medicamentos anti-hipertensores? Com efeito, um efeito invulgarmente impressionante observado num ensaio não pode ser, por si só, uma prova de infração. De facto, também noutras circunstâncias, por exemplo, ensaios com inibidores da enzima conversora da angiotensina em doentes com doença arterial coronária, os resultados não eram sempre comparáveis. Por exemplo, enquanto o QUIET com quinapril foi neutro,21 o HOPE com ramipril (que, curiosamente, foi dada à noite)22 e o EUROPA com perindopril23 foram positivos e a PEACE com trandolapril foi novamente neutro.24 Assim, a ciência produz dados e resultados heterogéneos devido a diferenças na conceção, populações de doentes e medicamentos envolvidos, mas também acidentalmente e, claro, também devido as condutas desadequadas.

A prova final

De notar que a prova final da novidade, importância e fiabilidade dos resultados publicados não pode ser dada pelo processo de revisão por pares. Como Sir Karl Popper, o eminente filósofo da ciência, sublinhou na sua obra seminal intitulada ‘A Lógica da Descoberta Científica’, publicada pela primeira vez em alemão em 1934,25 existe apenas uma prova, ou seja, o teste do tempo. Enquanto durante séculos, a confirmação foi considerada o critério mais rigoroso de prova, Popper argumentou convincentemente que só a falsificação ([†]) separa o certo do errado (e o inventado do verdadeiro).26 Só as descobertas que sobrevivem ao teste do tempo podem ser consideradas importantes e convincentes.27 Na história da medicina, várias teorias foram posteriormente falsificadas e depois abandonadas.28 Assim, o caminho para a prova é longo e sinuoso – o teste do tempo leva tempo.29

O que uma revista pode e não pode fazer

As revistas através dos seus revisores, editores e membros do conselho editorial podem propiciar um processo de revisão aprofundada pelos pares, incluindo uma revisão estatística independente dos artigos submetidos, para chegarem a uma decisão sobre a sua publicação ou não. Quando surgem preocupações pós-publicação, os editores podem validar as acusações e fazer perguntas específicas aos autores e, se necessário, podem também questionar a sua instituição. Como o exemplo acima mencionado documenta, podem também efetuar uma análise estatística independente e completa da base de dados para desfazer dúvidas. Além disso, o European Heart Journal tem como política solicitar uma declaração de disponibilidade de dados junto com cada artigo submetido. Isto aumenta a confiança e a credibilidade nos ensaios clínicos, permite análises independentes e permite testar novas hipóteses. O European Heart Journal tem uma política clara em torno da disponibilidade de dados e materiais (ver https://academic.oup.com/eurheartj/pages/General_Instructions#2.9). Um repositório de dados aberto também oferece maior transparência e permite metanálises ao nível do doente. No entanto, os direitos de publicação de dados obtidos por outros devem provavelmente ser clarificados, a fim de implementar esta opção com sucesso.

Conclusão

Finalmente, no caso do exemplo acima detalhado, os editores do European Heart Journal, de acordo com a Comissão de Ética das Revista da ESC, confirmaram que não podiam documentar qualquer má conduta científica associada ao estudo ou ao seu relato e, portanto, publicaram uma Nota dos Editores sobre o ensaio Hygia, de Hermida et al., absolvendo os autores. Como sempre, continuarão a existir preocupações em relação a estas conclusões. Se os benefícios surpreendentemente grandes proporcionados pela ingestão de medicamentos anti-hipertensores à noite, em vez da toma matinal, sobreviverão ao teste do tempo, isso será confirmado ou refutado pelos ensaios em curso ([‡]). Afinal, a ciência é construída confiando que o teste do tempo permita um juízo final. n


ver referências no artigo original


(*) NT: western blot = «método de laboratório utilizado para detetar moléculas proteicas específicas de entre uma mistura de proteínas»
() NT: Ver Popper sobre o par falsificação/confirmação
() NT: Ver Cardiovascular outcomes in adults with hypertension with evening versus morning dosing of usual antihypertensives in the UK (TIME study): a prospective, randomised, open-label, blinded-endpoint clinical trial , The Lancet, volume 400, issue 10361, P1417-1425, October 22, 2022 - «A toma noturna da medicação anti-hipertensora habitual não foi diferente da toma matinal em termos de resultados cardiovasculares importantes. Os doentes podem ser aconselhados a tomar os seus medicamentos habituais conforme a sua conveniência de modo a que se minimizem quaisquer efeitos indesejáveis.»