01 novembro 2009

De quem são os dados do processo clínico?

Revista OM - outubro/novembro/2009

Houve tempos em que os médicos consideravam o processo clínico como a sua memória. Era o sítio onde guardavam as suas notas para, quando necessário, recuperar dados sobre sintomas, queixas, prescrições, exames – retratos dos «seus» doentes.

Depois, os doentes deixaram de ser «seus» e o processo clínico passou a ser a memória da equipa. Um regista a história, outro (ou o mesmo) regista os exames complementares, outro (ou o mesmo) anota as hipóteses diagnósticas e mais alguém regista prescrições, diagnósticos de alta, referenciações futuras, etc. Deixou de ser a memória do médico, passou a ser a memória da instituição.

Mas chegou o tempo em que se pensou que os dados de saúde não eram de quem os anotava mas da pessoa a quem diziam respeito (dizer respeito = referir-se a). É o tempo da autonomia, melhor, do respeito pela autonomia das pessoas que «vão ao médico». Se alguém anota algo sobre mim, eu tenho direito a saber o que consta dessas anotações – são minhas.

Este conceito de propriedade, depois de controverso, passou a natural e lógico. Os dados sobre a minha pessoa só podem ser meus. E se estão errados quero que os eliminem ou corrijam.

O princípio do respeito pela autonomia do doente, associado aos outros princípios nobres da bioética, é hoje aceite sem reservas pela generalidade dos agentes da saúde e constitui a base sólida do consentimento informado, livre e esclarecido. Se me é reconhecido o direito a decidir sobre o meu futuro, se posso aceitar ou não tratamentos que me são explicados, se posso escolher entre ser operado ou morrer com paliativos que diminuam o meu sofrer, então não entendo como podem esconder-me o que sobre mim consta dos registos clínicos.

Foi, certamente, por isso que o legislador, esse «desconhecido», contemplou na Lei n.º 12/2005 (art.º 3.º) que a «informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, resultados de análises e outros exames subsidiários, intervenções e diagnósticos, é propriedade da pessoa», embora concedendo que o «acesso à informação de saúde por parte do seu titular, ou de terceiros com o seu consentimento, é feito através de médico, com habilitação própria, escolhido pelo titular da informação».

Mais tarde, porém, esse mesmo legislador acaba por reconhecer que, se a autonomia do titular dos dados de saúde precisa de ser tutelada por um intermediário, «com habilitação própria» – o que quer que isso signifique –, tal representa uma clara limitação à dita autonomia. Pode mesmo dizer-se que é a marca de um paternalismo anacrónico. É então que surge a Lei n.º 46/ 2007 (art.º 7.º) que refere, expressamente, que a «comunicação de dados de saúde é feita por intermédio de médico se o requerente o solicitar». Ou seja, a intermediação existe mas só se eu a pedir.

Mais uma vez (por vezes demasiado tarde!) se vê que a lei segue a ética. Estranha-se, assim, o que dizem alguns (como por exemplo, Daniel Serrão na «Semana Médica») quando se manifestam contra esse conceito também preconizado no projeto de lei n.º 788 sobre os «Direitos dos doentes à informação e ao consentimento informado». É certo que este projeto mereceu críticas justas e mesmo parecer negativo do CNECV mas, na perspetiva em que aqui se discorre, houve alguma injustiça nessas apreciações. A intermediação obrigatória de médico para acesso aos meus dados clínicos é incompatível com o respeito pela minha autonomia.

Se já há lei, se já há aceitação ética, não resta aos fiéis «depositários da informação» de saúde senão assegurarem que ela não contém inexatidões e está resguardada de acessos indevidos. E, quando eu os quiser ver, não compreendo por que me será negado o direito a conhecer os meus dados clínicos, seja para tomar uma decisão com efeitos imediatos, seja para efeitos futuros.

É por estas e outras razões que urge não adiar mais a aprovação de uma legislação que, com a necessária sustentação ética, garanta aos cidadãos deste país o direito a, querendo, materializar, antecipadamente, uma vontade que deva ser respeitada, caso fiquem sem condições de a poderem expressar. Quero que a lei respeite a minha autonomia. E que seja essa interpretação do disposto na Convenção de Oviedo (Resolução da Assembleia a República n.º 1/2001, Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano Face às Aplicações da Biologia e da Medicina: Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, artigo 9.º) quando estipula que a «vontade anteriormente manifestada no tocante a uma intervenção médica por um paciente que, no momento da intervenção, não se encontre em condições de expressar a sua vontade, será tomada em conta». Será tomada em conta!

[Notas gráficas: As palavras em itálico referem-se à minha posição como cidadão. As palavras sublinhadas estão no Diário da República. As outras são escritas na condição de membro (aposentado) da Ordem dos Médicos.]

30 setembro 2009

Consentimento informado (documento-guia)


Comissão de Ética (2009-2011)

Este texto integra os principais assuntos debatidos no “SEMINÁRIO SOBRE O CONSENTIMENTO INFORMADO E O PAPEL DAS COMISSÕES DE ÉTICA PARA O SEU CORRECTO USO” organizado em 30/09/2009 pelas Comissões de Ética para a Saúde da região norte e destina-se a ser um documento de orientação, sem carácter vinculativo.

ver AQUI

01 março 2009

O direito de opção e o dever de informar

Revista OM - março/2009

Receitar um medicamento é um ato médico que representa uma certa recomendação ao doente. Tal como quando propomos uma intervenção cirúrgica ou a realização de um exame de diagnóstico, cabe-nos informar o conteúdo da nossa proposta ou recomendação.

Informar é, afinal, a condição prévia à adesão do doente e essencial à sua capacidade de decisão. Informar é não só reconhecer autonomia como respeitar essa mesma autonomia.

Muitos afirmam a sua fidelidade aos princípios da ética biomédica de Beauchamp e Childress, mas outros tantos os esquecem no quotidiano. Estes princípios – autonomia, justiça, fazer bem sem fazer mal – são preceitos fundamentais da profissão e, por isso, são a base da nossa prática.

Ao prescrever, temos, assim, o dever de explicar, tendo em atenção as capacidades do destinatário, o que estamos a propor, as suas finalidades e, quando adequado, os riscos inerentes.

Não é lícito invocar que o doente não entende – pelo contrário, quanto mais limitada a capacidade de entender, mais se impõe a necessidade de explicar.

Se existem diversas marcas comerciais de um mesmo produto mas certificadas pelas autoridades competentes, é dever do médico prescrever a marca mais barata ou, pelo menos, permitir que o doente prefira a mais barata.

Se alguém tem conhecimento de que uma marca de um determinado produto não tem a qualidade exigida, deve em consciência explicar ao doente a razão da sua rejeição. Não é lícito adotar uma posição de princípio contra todo e qualquer medicamento mais barato.

A regra geral de que uma prescrição não deve ser alterada pelo vendedor é uma garantia de que o ato médico proposto responsabiliza exclusivamente o prescritor.

Permitir que o destinatário da prescrição exerça a sua autonomia e opte por uma marca mais barata, sob garantia oficial de qualidade, é, a meu ver, uma regra que faz falta.

Defender que o médico possa, arbitrária, ideológica e preconceituosamente, impedir o doente de optar é, no mínimo, uma posição insensata.

Se eu mandasse, corrigia os dizeres do receituário oficial. Em vez de “autorizo o fornecimento ou a dispensa de um medicamento genérico”, colocava o seguinte: “expliquei os motivos por que, neste caso, não recomendo que haja opção por medicamento genérico”.

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Declaração de interesses: estou aposentado, retirado de todas as atividades clínicas e não tenho qualquer interesse nos lucros de qualquer farmácia ou no poder de qualquer associação de vendedores de medicamentos – sou consumidor. Este depoimento foi-me solicitado pela redação da revista da Ordem dos Médicos