16 fevereiro 2015

Hepatite C: para as pessoas lá em casa perceberem

Público, 16.02.2015

Quem muito criticou este parecer errou o alvo e que quem muito o elogiou, como algumas autoridades, afinal não o seguiu.


No meio do muito que se tem dito sobre o caso da hepatite C há ainda outro tanto por dizer que as pessoas lá em casa querem perceber.

A hepatite não é como a apendicite. Esta é uma infeção bacteriana aguda que mata se não for imediatamente tratada. A outra é uma infeção vírica que está muitos anos sem sintomas antes de ser diagnosticada. Nas infeções bacterianas os antibióticos são baratos, mas, dadas as quantidades que se utilizam, custam também milhões de euros. Os antivíricos são muito caros e também é preciso que sejam utilizados com critério. Os doentes não são todos iguais – alguns infetados pelo vírus da hepatite C demoram mais do que outros a ver o fígado claudicar (insuficiência hepática), endurecer (cirrose) e degenerar (cancro). Os vírus não são todos iguais – alguns têm genomas diferentes dos outros e, por isso, respondem de modo diferente aos tratamentos. Os novos tratamentos não atuam sobre a insuficiência hepática, a cirrose ou o cancro hepático. As pessoas lá em casa precisam de saber que a cura da infeção vírica não é o mesmo que a cura da doença hepática e que, por vezes, os tratamentos chegam tarde, sem que haja culpados desse atraso.

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida propôs, no seu Parecer n.º 64/2012, um modelo de decisão para o financiamento do custo dos medicamentos. As pessoas lá em casa precisam de perceber que o referido parecer apontava para a transparência como bem fundamental.

Na verdade, se os recursos financeiros são limitados, importa que, antes das decisões, as pessoas lá em casa acreditem que há critérios justos. Ou seja, não é o médico sozinho perante um doente quem deve decidir se trata com A ou com B. Tem de haver regras definidas com antecedência, elaboradas por pessoas competentes, sem interesses comerciais, e que sejam aceites por pessoas de boa-fé. O modelo do parecer do CNECV propunha que a fase clínica fosse assumida por "médicos, investigadores das ciências da vida e da saúde da área e comissões de farmácia e terapêutica em rede. [Onde] todos os envolvidos têm de fazer a respetiva declaração de conflito de interesses, de forma clara e com acesso público." Também, entre outras, havia a recomendação de que "em todos os protocolos ou normas de orientação clínica (…) o direito à exceção, devidamente fundamentada, deve estar contemplado (tal como a penalização da exceção não fundamentada)". Defendia-se a abordagem chamada “responsabilidade com razoabilidade” (“accountability for reasonableness” – para a multidão de leitores do Público viciada em termos ingleses).

As pessoas lá em casa precisam de saber que quem muito criticou este parecer errou o alvo e que quem muito o elogiou, como algumas autoridades, afinal não o seguiu. Os critérios para admissão ao novo tratamento da hepatite C, que excluiu alguns doentes, foram fixados pelo Infarmed, mas, viu-se, foi criticado pelos médicos no terreno. As pessoas lá em casa precisam perceber quem são os autores dos critérios e quais as suas declarações de interesses e não os encontram no sítio eletrónico do Infarmed. Assim como era bom saber as declarações de interesse dos críticos. Se alguns recebem verbas da farmacêutica que comercializa o antivírus a título de consultoria – o que em si não é pecado – as pessoas lá em casa precisam de saber.

Os novos tratamentos e os que ainda hão de aparecer são muitíssimo caros, mas as pessoas lá em casa precisam de saber que os seus fabricantes podem ser travados na sua ganância… quando há ganância. Por exemplo, a legislação europeia prevê a declaração de invalidade da patente de um produto quando haja motivos de saúde pública e impasse nas negociações. Infelizmente não se criaram as condições para que o CNECV, apesar de instado oficialmente em dezembro, se pronunciasse sobre a sustentabilidade ética do acionar desse mecanismo. As pessoas lá em casa precisavam de perceber por que razão isso aconteceu, pois, embora o mandato deste órgão consultivo independente tenha terminado em julho passado, enquanto outro não tomar posse, deveria ter ocorrido uma convocatória extraordinária.

Declaração de interesses: o autor foi neurologista e está aposentado, sem atividade clínica desde 2005; não tem qualquer relação com qualquer firma da indústria farmacêutica; é membro cessante do CNECV e foi correlator, com a professora Ana Sofia Carvalho, do Parecer n.º 64/2012. 

11 fevereiro 2015

Dor crónica – A Crise Invisível da Saúde Pública

 


Dor crónica – A Crise Invisível da Saúde Pública
Richard Payne

Tradução espontânea do texto 

Apelo a uma liderança moral

Sou um homem invisível. Não, não sou um fantasma como os de Edgar Allen Poe, nem sequer um desses ectoplasmas de Hollywood. Sou um homem com substância, de carne e osso, fibra e líquidos – e devo dizer que também penso. Sou invisível apenas porque as pessoas se recusam a ver-me” – Ralph Ellison

O famoso romance de Ralph Ellison, O Homem Invisível, começa com esta passagem que me faz lembrar o problema da dor crónica. O relatório do Institute of Medicine (IOM), “Combater a Dor na América”, documentou que mais de 100 milhões de americanos (quase 1 em cada 3 e, certamente, alguém que conheces ou de quem gostas) sofre de dor crónica, com um custo económico de 6 mil milhões de dólares e custos psicológicos incalculáveis. Chamamos “doença” à dor por causa dos seus profundos efeitos no cérebro e da sua intromissão em múltiplos domínios da qualidade de vida dos afetados. A comissão identificou a dor crónica como um problema de saúde pública, tendo em conta os números absolutos citados e as possibilidades de evitar que a dor aguda se transforme em dor crónica. Contudo, o relatório já tem quatro anos e, é justo dizer, não mudou o rumo das coisas como ali era pedido – “mudar o modo como se considera, vê e lida com a dor”. Por que é assim?

Porque a dor é subjetiva – e isso dificulta ser medida por testes médicos habituais – ela é frequentemente posta em dúvida. Como disse alguém, a minha dor é real e da tua duvido. Igualmente, vivemos uma grande ambivalência cultural sobre a dor. Os ícones culturais como Júlio César e Albert Schweitzer são citados por terem dito que a dor é pior do que a morte, mas há também um etos em que “o que arde, cura”. As intervenções médicas, nomeadamente os poderosos fármacos opioides como a morfina e a oxicodona, embora essenciais para lidar com a dor aguda e persistente, acarretam o custo de muitos efeitos colaterais e podem induzir dependência psicológica em algumas pessoas. As pessoas com dores e os seus médicos temem a dependência dos opioides embora não saibamos verdadeiramente qual o risco dessa dependência em pessoas que não tenham abusado de drogas ilícitas ou recreativas. Por essas e outras razões, tanto individualmente como na sociedade, preferimos ignorar o problema da dor crónica… exceto quando nos confrontamos com ela nas nossas vidas pessoais.

Então, como compaginar o imperativo moral de combater a dor e o sofrimento na nossa prática médica contemporânea, como nos dizem os códigos éticos e os juramentos profissionais? Como trazer para a luz o sofrimento invisível de tantos e como trabalhar para o aliviar? Penso que nos devemos empenhar em cinco grandes objetivos:

   1. Defendemos mais e melhor ciência para compreender a neurociência subjacente à origem e variabilidade da dor. Isto exige pressão sobre o Ministério da Saúde e outras agências nacionais para que financiem justamente estudos relacionados com os mecanismos da dor e ensaios clínicos de tratamentos da dor.

   2. Defendemos mais e melhor progresso farmacêutico, incluindo a criação de formulações dissuasoras de abuso de opioides e de novos analgésicos não-opioides. Isto exige pressão para que haja parcerias público-privadas eficazes entre a indústria farmacêutica, as universidades e as agências oficiais.

   3. Defendemos e pedimos melhor educação dos profissionais de saúde para que cumpram as suas obrigações de modo competente e tratem a dor e o sofrimento dos seus doentes. Também defendemos melhor educação pública de modo a que as pessoas com dor crónica compreendam que isso é uma doença e que não aceitem ilusões.

   4. Defendemos e pedimos melhores soluções políticas que proporcionem programas de tratamento da dor sustentáveis, centrados nos doentes e dirigidos realmente às necessidades dos doentes e dos seus cuidadores.

   5. Finalmente, precisamos da colaboração efetiva numa agenda partilhada entre especialistas em dor e especialistas em dependências para exigir cuidados abrangentes, centrados na reabilitação, dedicados à dor crónica e maior acesso a tratamentos de dependência de substâncias para as pessoas que têm o diagnóstico duplo de dor crónica e dependência.

É o que penso. O que pensas tu?