29 março 2024

Efeméride - 29 de março de 1809

Foi há 215 anos.

«Às oito horas da manhã do dia 29 [de março de 1809], uma Quarta-Feira de Trevas, o pânico havia-se instalado em todas a linhas defensivas da cidade, originando uma debandada geral. [...] Era a catástrofe irremediável . Não tardou que a cavalaria francesa [comandada por Soult] chegasse junto ao rio. Mais de dez mil pessoas morreram.»

Porto - da História e da Lenda, Germano Silva. Casa das Letras, 2007, p. 66

Alminhas da Ponte, por José Joaquim Teixeira Lopes, 1897, Porto, cais da Ribeira, n.º 20



25 março 2024

Os doentes estão a recorrer ao TikTok

March 22, 2024. doi:10.1001/jama.2024.1280

Os doentes estão a recorrer ao TikTok para obter informações sobre saúde
- o que os médicos precisam de saber
Samantha Anderer

Tradução espontânea do artigo
 

Quando Jenny Wu, médica, estava a começar a sua especialidade na Duke, recorria frequentemente ao TikTok para se descontrair. Mas o algoritmo da plataforma não permitia que a ginecologista-obstetra se afastasse do conteúdo sobre cuidados de saúde. No meio de vídeos sobre controlo de natalidade, deparou-se com uma tendência bizarra: mulheres a filmarem-se a si próprias durante a inserção de um dispositivo intrauterino (DIU).

“Eu via estes vídeos em que as mulheres se filmavam a colocar um DIU e pareciam estar muito desconfortáveis e a sentir muitas dores”, recordou Wu, que está agora no terceiro ano de internato na Duke University School of Medicine, numa entrevista ao JAMA. “Parecia haver uma desconexão entre o que recomendávamos como profissionais e o que as doentes queriam. O DIU é uma forma de contraceção realmente eficaz e segura, e o método de contraceção mais comum escolhido pelos próprios ginecologistas e obstetras”.

O conteúdo visto por Wu inspirou-a a realizar pesquisas sobre o tipo de informação de saúde disponível no TikTok. Embora o trabalho nesta área ainda seja limitado, os estudos de Wu e outros sugerem que a diversidade de orientações médicas está a conseguir visualizações e a criar raízes na mente dos doentes.

Eis o que é importante que os médicos saibam.

O TikTok é diferente

A informação sobre saúde está presente em todas as formas de redes sociais. Porque é que o TikTok merece uma atenção especial? Em primeiro lugar, pela sua enorme popularidade. Nos EUA, 150 milhões de pessoas estão no TikTok, de acordo com dados divulgados pela empresa no início do ano passado.

Laura Schwab-Reese, MA, PhD, professora associada do Departamento de Saúde Pública da Universidade de Purdue, diz que o TikTok também merece atenção por causa de seu algoritmo específico e do papel desproporcional de sua página “For You”.

Quando os utentes abrem o TikTok, esta página é a primeira coisa que encontram. À medida que percorre o feed, são-lhe apresentados vídeos selecionados pelo algoritmo elusivo da plataforma, que atribui uma proporção desconhecida de peso a fatores como a informação do vídeo, as definições do dispositivo ou da conta e as interações dos utilizadores. O conteúdo é genérico quando uma pessoa se junta à aplicação pela primeira vez, mas à medida que o algoritmo acompanha o envolvimento através de gostos, comentários e tempo de visualização, personaliza-se uma seleção. Quanto mais alguém responde a um determinado tipo de vídeos, maior é a probabilidade de lhe ser apresentado material semelhante.

“No Twitter, posso seguir um grupo de pessoas em quem confio e que conheço, e só verei o seu conteúdo”, disse Schwab-Reese sobre a plataforma agora conhecida como X.

Embora o X tenha uma página “For You” semelhante e o TikTok inclua um separador “Following”, Schwab-Reese sugeriu que estas características têm uma importância inversa para os utilizadores das diferentes plataformas. Como tal, observou que os utilizadores do TikTok podem estar a interagir mais frequentemente com conteúdos de autores desconhecidos.

“Se as plataformas lhe estão a mostrar o que ver ou ler, não sabe quem está a produzir o conteúdo nem porquê”, disse. “Pode estar a tentar vender algo de forma dissimulada. Pode nem sequer ser uma pessoa real. Pode ser um robô ou algo gerado por IA. Tem de processar este conteúdo de forma mais crítica do que se estiver a ver apenas informações de fontes fidedignas.”

O formato de vídeo curto também parece desempenhar um papel na popularidade da plataforma. A maioria dos TikToks, como são conhecidos os vídeos, usa a câmara frontal do telemóvel e muitas vezes apresenta um único “autor” a falar. Isso cria uma sensação de interação humana que aumenta o sentimento de conexão do espectador, disse Schwab-Reese. Funcionalidades como o Stitch e o Duet permitem que os utentes repitam vídeos com os seus próprios vídeos misturados, aumentando este sentimento de ligação.

Os TikToks variam entre um mínimo de 15 segundos e um máximo de 3 minutos. Os dados demográficos mostram que esta forma eficiente de consumir informação atrai particularmente os jovens: 41% de todos os utentes do TikTok têm entre 16 e 24 anos. (Muitas outras plataformas de redes sociais já perceberam e estão a adotar o formato do TikTok. O Instagram tem o Reels, o YouTube tem o Shorts e o Snapchat tem o Spotlight, por exemplo).

E depois há o alcance cada vez maior do TikTok.

“O número de visualizações da expressão “acne” mais do que duplicou, passando de cerca de 3 mil milhões para 6,7 mil milhões em apenas alguns meses”, afirmou Bina Kassamali, médica, do segundo ano de internato de dermatologia em Harvard, numa entrevista. “O TikTok uma plataforma com um grande alcance. E dado o seu potencial impacto, mesmo nos doentes que vemos no dia a dia, compreendemos a importância deste recurso.”

Há uma mistura de conselhos de especialistas e experiência dos doentes

Como os feeds dos utilizadores são muito específicos, pode ser difícil avaliar exatamente o que estão a ver, observou Schwab-Reese. No entanto, vários estudos analisaram os vídeos mais populares sob determinadas hashtags para tentar ter uma ideia. Os investigadores analisaram TikToks sobre autismo, diabetes, mpox, cancro da tiroide e outros tópicos médicos.

Um relatório divulgado pela empresa em dezembro refere que “o conteúdo de #Pregnancy no TikTok registou um enorme crescimento em 2023, uma vez que os autores partilham as suas experiências genuínas, respondem a perguntas e trocam dicas com outras grávidas”.

Schwab-Reese efetuou uma análise de conteúdos das experiências de saúde reprodutiva partilhadas no TikTok durante 5 meses em 2020. A maioria desses vídeos foi considerada como sendo experiências pessoais e conteúdo informativo.

Da mesma forma, um estudo sobre o conteúdo dermatológico mais visto do TikTok em 2020 concluiu que 47% dos vídeos se centravam em testemunhos de doentes e 44% em educação. Os mesmos autores realizaram outro estudo centrado especificamente no conteúdo educacional criado por dermatologistas certificados. De acordo com Kassamali, um dos autores do estudo, a maioria dos vídeos que analisaram seguia de perto as diretrizes clínicas da Academia Americana de Dermatologia. Os vídeos cobriam uma vasta gama de tópicos, como o tratamento, a empatia com o doente, o diagnóstico e a etiologia da doença.

Mas embora existam vídeos educativos de profissionais de saúde, estes não estão necessariamente a chegar ao público na mesma medida que outros conteúdos, disse Brian Southwell, PhD, cientista principal para a compreensão pública da ciência na RTI International. As pessoas que consomem passivamente conteúdos através da página “For You” do TikTok podem receber qualquer combinação de vídeos, com o algoritmo a levar os utilizadores a uma câmara de eco de informações enganosas.

“Penso que existe certamente potencial para as pessoas se relacionarem de forma produtiva”, disse Southwell, que é também professor adjunto no Departamento de Medicina da Universidade de Duke. “Mas também me preocupa o facto de os produtores mais populares não estarem necessariamente a produzir os melhores conteúdos.”

Nem tudo é incorreto

Estudos sugerem que a exatidão das informações sobre saúde no TikTok varia consoante o tema. Num estudo recente, Wu e colegas analisaram 49 vídeos com afirmações médicas sobre Pitocin, o medicamento que induz o parto. Foram classificados 84% desses conteúdos como inexatos, enganadores, incompletos ou apenas parcialmente exatos. Mas noutro estudo, descobriu-se que os TikToks mais vistos sobre o aborto medicamentoso eram muito mais fiáveis: 86% dos vídeos que apresentavam afirmações científicas e 89% dos vídeos que apresentavam informações sobre saúde pública eram, na sua maioria, corretos.

“Não me parece que tudo o que lá está seja incorreto”, disse Southwell numa entrevista. “Mas também acho que é óbvio que haverá alguns casos em que é possível as pessoas atraírem seguidores com material que é um pouco sensacionalista ou não está enraizado em provas revistas pelos pares”.

Talvez sem surpresa, a exatidão do conteúdo pode estar relacionada com as credenciais do seu autor. Um estudo dos vídeos mais populares do TikTok sobre a perturbação de défice de atenção/hiperatividade em 2021 classificou mais de metade dos vídeos como enganadores, sendo que a maioria destes conteúdos foi publicada por não profissionais de saúde. A análise também revelou que os médicos publicaram vídeos de maior qualidade e mais úteis.

O estudo de Kassamali sobre conteúdos específicos para dermatologistas sugere conclusões semelhantes. “A fiabilidade é de 97%, o que é enorme”, disse Kassamali sobre os vídeos examinados no seu estudo. Ainda assim, ela verificou que mesmo conselhos fiáveis podem ser mal interpretados quando generalizados. “Uma preocupação é o risco de simplificação excessiva ou má interpretação dos conselhos médicos. Como a plataforma valoriza a brevidade e o entretenimento, os tópicos de saúde podem ser condensados em vídeos mais curtos, mas isso pode levar a uma compreensão incompleta. E grande parte da dermatologia é individualizada para uma pessoa”.

Para além disso, Schwab-Reese salientou que pode ser mais difícil identificar verdades inequívocas no contexto da experiência dos doentes. Enquanto as falsidades científicas podem ser investigadas e refutadas, a subjetividade do envolvimento pessoal cria uma zona cinzenta.

“Não diria que se trata de informação falsa ou desinformação realmente prejudicial, mas há muitas histórias enganadoras”, disse Claire Wardle, PhD, cofundadora e codiretora do Information Futures Lab e professora de clínica na Brown School of Public Health, numa entrevista. “Não se baseia na ciência; baseia-se na experiência”.

Pode estar a influenciar as decisões dos doentes

Atualmente, não há dados publicados que associem diretamente a tomada de decisões de cuidados de saúde ao conteúdo do TikTok – e é pouco provável que isso aconteça em breve. Wardle salientou que, em qualquer estudo de comunicação, é difícil medir o impacto de um determinado fator no comportamento. Ainda assim, referiu a desinformação persuasiva como uma preocupação potencial, citando a crescente influência dos amigos e da família nas decisões, à medida que a confiança nas principais instituições diminui.

“Muitos dos que passam o dia todo no TikTok e veem as mesmas caras todos os dias, sentem que têm uma relação com essas pessoas”, disse Wardle. “Embora não tenhamos muitas provas empíricas neste momento sobre o impacto entre o conteúdo e o comportamento das pessoas, a minha preocupação é que cada vez mais pessoas estejam a tomar decisões com base no que ouvem no TikTok.”

Sinais pontuais sugerem que o TikTok pode ter alguma influência nas decisões dos doentes. No vídeo de uma utilizadora sobre a inserção do DIU, por exemplo, dois dos mais de 25 000 comentários dizem: “Vou cancelar a minha consulta” e “Sim, nunca vou fazer isso”. Atualmente, mais de 4000 vídeos na plataforma têm a etiqueta #iudinsertion.

“Muitos dos meus doentes mais jovens na clínica, os da Geração Z, não querem um DIU”, disse Wu. “O acesso que tem à informação no TikTok é muito maior do que a consulta de 15 minutos que tem com o seu médico que vê uma vez por ano. Se estiver no TikTok durante 2 horas, 3 horas por dia, e se vir alguns vídeos sobre o DIU todos os dias, isso irá influenciar a sua tomada de decisão em matéria de cuidados de saúde, não?”

Os médicos podem ser autores

Jennifer Lincoln, médica, é diretora da Providence Portland Medical Center Mother and Baby Postpartum Clinic. Também tem 2,8 milhões de seguidores no TikTok.

Ela diz que resistiu à plataforma o máximo de tempo possível. “A razão pela qual eu finalmente cedi e postei no TikTok foi porque era lá que estava o meu público”, disse Lincoln numa entrevista. “O conteúdo que eu publicava no TikTok estava a ser amplificado tão rapidamente que me apercebi de que era aqui que a mensagem tinha de ser transmitida. E é isso que a Saúde Pública é: ir onde as pessoas estão e aprender como elas consomem conteúdo.”

Lincoln refere-se aos seus vídeos como “a aula de saúde que gostaria de ter tido no liceu”. A obstetrícia-ginecologia cobre uma variedade de tópicos relacionados com a saúde reprodutiva e sexual, desde a explicação de diferentes formas de controlo de natalidade até à menstruação. Desde a decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 2022, o seu conteúdo tem-se centrado mais no aborto.

“Num mundo pós-Roe, as pessoas estão a usar o TikTok para ver como podem gerir com segurança o seu próprio aborto com pílulas abortivas”, disse Lincoln. “Quando as pessoas sentem que não podem perguntar aos seus pais ou ao seu médico, elas recorrem ao TikTok. E se virem o meu conteúdo ou o de outros ginecologistas, obstetras, parteiras ou outros prestadores de cuidados de saúde que estejam a publicar bom conteúdo, estão a obter as informações de que necessitam.”

Reconhecer o facto pode facilitar as conversas

Para o bem ou para o mal, o TikTok captou a atenção do público. Lincoln acredita que saber o que os doentes estão a ver pode ajudar a facilitar conversas importantes sobre o tratamento.

“Aos médicos, quero dizer que a grande maioria de vocês nunca vai criar conteúdos no TikTok”, disse ela. “Não há problema nenhum, mas quero que saibam que está disponível e que podem utilizá-lo para iniciar uma conversa com os vossos doentes. É uma ótima maneira de conhecer as pessoas onde elas estão e descobrir com o que estão preocupadas.”

Wu começou a aplicar esta mensagem ao seu próprio quotidiano.

Comecei a perguntar aos meus doentes: “Viu alguma coisa no TikTok?”. “Muitos dos nossos doentes respondem realmente a essa pergunta. É mais fácil ver um vídeo de 20 ou 30 segundos no TikTok do que ver os resultados da pesquisa no Google ou ver um vídeo no YouTube. Como plataforma de redes sociais, é possível ver algo que chama a atenção das pessoas. Mas quando falamos de coisas como a contraceção, é uma conversa com mais matizes e requer mais de 30 segundos para se poder dar um aconselhamento adequado”.

Além disso, Wu acredita que os vídeos das vivências dos doentes podem realçar aspetos dos cuidados médicos que são mais importantes para os doentes do que os médicos se apercebem – como o facto de a inserção do DIU poder ser dolorosa para alguns. Uma melhor consciencialização poderia levar a cuidados mais eficazes.

Southwell refere que a maior parte do público não tem tempo para se sentar e examinar artigos revistos por pares. Para ele, faz sentido que as pessoas estejam a recorrer ao TikTok.

“Penso que temos de reconhecer que não vai acabar tão cedo”, disse Southwell sobre a plataforma. “A questão é saber como podemos ajudar as pessoas a navegar e a responder às perguntas que tenham.”

A tradução em formato PDF pode ser vista AQUI

24 março 2024

Antecipar a morte deixando voluntariamente de comer e beber

Ann Fam Med 2023;21:534-544

Doentes que procuram antecipar a morte deixando voluntariamente de comer e beber: um estudo qualitativo
Eva Elizabeth Bolt

RESUMO

OBJETIVO - A paragem voluntária de comer e beber (PVCB) é um método controverso de antecipar a morte. Pouco se sabe sobre as razões e a forma como as pessoas chegam à PVCB. Este estudo avaliou os motivos dos doentes, a forma como decidem, as formas como se preparam e como envolvem outras pessoas. MÉTODOS - Realizámos um estudo qualitativo nos Países Baixos com 29 doentes; 24 iniciaram a PVCB e 19 morreram. Treze doentes foram incluídos antes ou durante a PVCB e 16 depois. Entrevistámos 17 doentes, 18 familiares e 10 prestadores de cuidados profissionais. Usámos a análise indutiva de tipo ideal para descrever as tipologias. RESULTADOS - Emergiram três grupos de doentes. O primeiro grupo (12 doentes) era constituído por pessoas idosas que sentiam a vida completa, para os quais o importante era ter controlo da situação. Preparavam-se bem para a PVCB, mas podiam ignorar a necessidade de ajuda e a carga emocional que a sua decisão poderia representar para os familiares. O segundo grupo (11 doentes) era constituído por pessoas idosas dependentes de cuidados e com má qualidade de vida. Por vezes, iniciavam a PVCB subitamente e dependiam fortemente dos prestadores de cuidados (informais) para preparar e executar o seu plano. O terceiro grupo (6 pacientes) era composto por doentes psiquiátricos com um desejo de morte de longa data, mas flutuante, a maioria dos quais era mais jovem. Muitas vezes, preparavam-se para a PVCB em segredo ou iniciavam-na sem estarem preparados. CONCLUSÕES - Os doentes que embarcam numa trajetória de PVCB são um grupo muito diversificado, com diferentes necessidades de cuidados. As orientações para os cuidados a prestar durante a PVCB devem ser aplicáveis a todos os 3 grupos.

Para ver o artigo original completo, clicar AQUI 

13 março 2024

Ajuda médica para morrer quando a morte natural não é razoavelmente previsível

Can Fam Physician 2023;69:853-8. 

Ajuda médica para morrer (AMM) quando a morte natural não é razoavelmente previsível 
Inquérito sobre as experiências dos prestadores com os doentes que fazem pedidos de tipo 2

Ellen Wiebe e Michaela Kelly *

 Resumo

Objetivo - Descrever como fazem os médicos a avaliação dos doentes que submetem pedidos de tipo 2 de ajuda médica para morrer (AMM) e como prestam a AMM a esses doentes nos primeiros 6 meses após o Canadá ter alterado, em março de 2021, a legislação pertinente no sentido de alargar o acesso à AMM.

Formato - Inquérito online com perguntas fechadas e abertas sobre a vivência dos médicos com pessoas perante doentes que fazem pedidos de AMM de tipo 2.

Contexto - Canada.

Participantes - Médicos e enfermeiros membros da Canadian Association of MAID Assessors and Providers.

Principais resultados medidos - As razões mais comuns que os doentes deram para submeter pedidos de AMM de tipo 2 e as dificuldades que os prestadores identificaram ao fazer estas avaliações.

Resultados - Vinte e três prestadores de AMM enviaram informações sobre 54 doentes que ti­nham feito pedidos entre 17 de março de 2021 e 17 de setembro de 2021. Os diagnósticos mais comuns foram síndromes de dor crónica, que afetaram 28 doentes (51,9%), e doenças crónicas complexas, como a encefalomielite miálgica (EM) ou a síndrome de fadiga crónica (SFC), que afetaram 8 doentes (14,8%). As dificuldades mais comuns relatadas pelos prestadores de cuidados estavam relacionadas com o facto de os doentes terem doenças mentais concomitantes, o que se verificou em 37 avaliações (68,5%). Em 8 casos (14,8%), os prestadores de cuidados de saúde enfrentaram dificuldade em encontrar especialistas para ajudar nas avaliações. Em 19 casos (35,2%), os prestadores consideraram que não tinham sido oferecidos aos doentes todos os tra­tamentos adequados e disponíveis e, em 9 casos (16,7%), os prestadores tiveram dificuldade em encontrar esses tratamentos para os doentes.

Conclusão - Os prestadores de AMM descreveram muitas dificuldades na sua vivência com doentes que fazem pedidos de tipo 2, incluindo a avaliação de indivíduos com doenças mentais concomitantes, a incerteza de que os doentes tinham recebido tratamentos adequados antes de procurarem a AMM e a incerteza de que os doentes tinham considerado seriamente os tratamen­tos disponíveis. Muitos prestadores sentiram-se moralmente angustiados ao tentarem equilibrar os direitos dos doentes com o que poderia ser do interesse superior dos mesmos. Isto é diferente da experiência que os prestadores têm tido com doentes que fazem pedidos de tipo 1, uma vez que a maioria destes doentes tem uma doença maligna em fase terminal ou falência de órgãos e raramente tem necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas. Esta informação pode ser utili­zada para melhorar a formação e o apoio aos médicos, uma vez que estes ajudam os doentes com pedidos de tipo 2 a acederem ao seu direito a uma morte tranquila.

Os canadianos de todo o país têm o direito à morte ajudada desde que a lei da ajuda médica para morrer (AMM) entrou em vigor a 17 de junho de 2016.1 Inicialmente, isto significava que um médico ou enfer­meiro podia prescrever ou administrar uma substância letal para pôr termo à vida de uma pessoa que solicitasse AMM e que preenchesse determinados critérios, incluindo o de ter uma doença grave e incu­rável que causasse um sofrimento insuportável, de ter capacidade para dar o seu consentimento e de a sua morte natural ser razoavelmente previsível.1 Após 5 anos e mais de 21 000 mortes ajudadas no Ca­nadá, a lei foi alterada em 17 de março de 2021, de modo a permitir que as pessoas que não tivessem uma morte natural razoavelmente previsível pudessem agora ser elegíveis para a AMM (através dos chamados pedidos de tipo 2).1,2

Esta alteração foi uma resposta a um recurso interposto no Tribunal Constitucional em que duas pessoas com deficiências argumentaram que deviam ter direito à AMM. O tribunal decidiu que o critério da morte natural razoavelmente previsível viola a secção 7 da Carta Canadiana dos Direitos e Liberdades, que protege contra as privações de vida, liberdade e segurança da pessoa, e a secção 15 da Carta, que garante o direito a igual proteção e igual benefício da lei sem discriminação.3 Esta lei alterada prorrogou tempo­rariamente a exclusão de pessoas cujas únicas condições subjacentes se enquadram no âmbito de doença mental até 17 de março de 2024, para dar tempo às províncias e territórios a prepararem-se para esses casos e dar tempo ao desenvolvimento de novos meios essenciais para avaliadores e prestadores.1 As salvaguardas para os indivíduos elegíveis para AMM através de pedidos de tipo 2 incluem a existência de um período de avaliação de 90 dias, a pessoa ter "seriamente" ponderado o recurso a meios razoáveis para alívio do seu sofrimento e os avaliadores terem conhecimentos especializados na doença que está a causar o sofrimento ou consultarem alguém com esses conhecimentos.4

Esta é uma questão importante para os médicos de família, dado que 68,1% dos casos de AMM no Canadá, em 2020, foram administrados por médicos de família e que os doentes com doenças crónicas constituem uma grande parte dos casos de medicina familiar.2 A prestação de AMM especificamente para pessoas com doenças crónicas é uma nova área da prática médica, e os avaliadores e prestadores de cuidados precisam de saber como prestar os melhores cuidados possíveis aos doentes. A 17 de setembro de 2021, os médicos canadianos tinham 6 meses de experiência com a lei recentemente alterada, pelo que nos propusemos compreender quais as dificuldades que os prestadores tinham enfrentado. A Canadian Association of MAID Assessors and Providers (CAMAP) é uma organização nacional de médicos e enfermei­ros que prestam serviços de morte ajudada. O objetivo deste estudo foi obter informações que permitam uma melhor formação dos membros da CAMAP e poder aconselhar melhor os decisores políticos sobre este assunto. Recolhemos informações dos prestadores de cuidados membros da CAMAP sobre a sua experiência com doentes que fizeram pedidos de tipo 2 nos primeiros 6 meses após a aprovação da legislação alterada.

Métodos

Enviámos e-mails aos membros da CAMAP em outubro de 2021 e pedimos-lhes que utilizassem um formulário online para enviar informações sobre as suas vivências com doentes que fizeram pedidos de AMM de tipo 2 entre 17 de março de 2021 e 17 de setembro de 2021. Estes e-mails foram enviados pelo administrador da CAMAP e repetidos duas vezes. Optámos por recrutar apenas através da CAMAP porque sabíamos, com base em trabalhos anteriores, que os membros incluem prestadores que lidam com a maioria dos casos de AMM.5-7 Além disso, todos os membros da CAMAP foram credenciados, pelo que podíamos ter a certeza de que eram prestadores canadianos de AMM.

Foram criados identificadores únicos para cada caso de doente, que os prestadores introduziram no for­mulário, e pedimos aos prestadores que excluíssem os casos em que fizeram uma avaliação mas espera­vam que outra pessoa fosse o prestador dos cuidados. O objetivo foi evitar duplicações, uma vez que não dispúnhamos de outros identificadores para as avaliações. Os casos não podiam ser associados a presta­dores ou locais específicos.

Também recolhemos informações demográficas sobre os médicos separadas das informações sobre os seus doentes, para que os doentes e os médicos não estivessem ligados na base de dados. Estas informa­ções incluíam a província em que exercem a sua atividade, a sua experiência em AMM e o facto de serem médicos ou enfermeiros (Anexo 1, disponível em CFPlus). Os dados recolhidos sobre os doentes in­cluíam a categoria de idade e os diagnósticos, mas a maioria das perguntas era sobre as dificuldades que os prestadores de cuidados enfrentavam na prestação de cuidados a estes doentes (Anexo 2, disponível em CFPlus).

Os dados dos formulários foram exportados para um ficheiro de dados (SPSS, versão 27) para análise. Foram efetuadas análises descritivas dos dados quantitativos para determinar as principais dificuldades enfrentadas pelos prestadores na avaliação dos doentes com pedidos de tipo 2 e na prestação de AMM a que se qualificavam. Ambos os autores leram todos os comentários e escolheram os que captavam melhores informações para incluir neste relatório.

Resultados

Vinte e três prestadores de AMM enviaram informações sobre avaliações de 54 doentes de tipo 2 (in­cluindo 21 doentes que receberam AMM) durante o período de 6 meses. Estes prestadores incluíam 2 enfermeiros e 21 médicos que exerciam a sua atividade em 6 províncias e 1 território canadianos. Eram, na sua maioria, prestadores experientes que tinham avaliado um total de 112 doentes com pedidos de tipo 2 e tinham dado AMM a 33 desses doentes. Dos 23 participantes, 8 já tinham proporcionado AMM a mais de 100 doentes (ao abrigo da elegibilidade de tipo e 1 e 2) desde 2016.

Dos 54 doentes avaliados, 8 (14,8%) tinham menos de 30 anos, 22 (40,7%) tinham entre 30 e 59 anos, 21 (38,9%) tinham entre 60 e 79 anos e 3 (5,6%) tinham 80 anos ou mais. Quinze (27,8%) identificaram-se como homens, 35 (64,8%) como mulheres e 4 (7,4%) como mulheres trans. Os diagnósticos mais comuns foram as síndromes de dor crónica, que afetaram 28 doentes (51,9%), incluindo fibromialgia, síndrome de sensibilização central e dor neuropática crónica. A encefalomielite miálgica (EM), também designada por síndrome de fadiga crónica (SFC), ocorreu em 8 doentes (14,8%). Outros diagnósticos neurológicos incluíram traumatismo cranioencefálico, doença de Parkinson e esclerose múltipla; 1 pessoa tinha tetraplegia. Muitos tinham vários diagnósticos.

Os prestadores referiram que os sintomas como a dor (47 doentes, 87,0%) e a perda da capacidade de fazer coisas aprazíveis ou significativas (47 doentes, 87,0%) foram as razões mais comuns que os doentes deram para solicitar AMM (Tabela 1).

As dificuldades mais comuns relatadas pelos prestadores estavam relacionados com doenças mentais concomitantes em 37 doentes (68,5%); destes, 14 (25,9%) também enfrentaram dificuldades na avaliação da capacidade (Tabela 2). Os comentários dos prestadores incluíram o seguinte:

Inicialmente, as alucinações somáticas estavam a afetar a capacidade, mas melhoraram com uma mudança de antipsicótico [medicação].

Perturbações da personalidade muito presentes e que tornam difíceis as interações com os doen­tes.

Aparentemente, a ansiedade estava na origem de muitas razões para recusar intervenções que poderiam ter sido úteis, pelo que a capacidade de recusar essas intervenções estava em causa para mim.

Preocupava-me com a sua depressão.

Na altura em que a avaliei, a sua doença mental estava sob excelente controlo e não contribuía para o seu pedido de AMM. Isto tinha sido um problema com um avaliador anterior que tinha recusado a elegibilidade com base na falta de capacidade devido, em parte, ao sofrimento mental.

Os prestadores acreditavam que não tinham sido oferecidos a 19 doentes (35,2%) todos os tratamentos adequados e disponíveis para as suas doenças antes de apresentarem os pedidos de AMM, e os prestado­res tiveram dificuldade em encontrar esses tratamentos para 9 doentes (16,7%):

Durante a COVID, muitos serviços e tratamentos não estavam disponíveis ou os períodos de espera eram muito longos.

A sua principal sintomatologia relacionada com [o seu pedido de AMM] era a dor. A clínica ou o especialista em dor crónica mais próximo fica a 1,5 horas de distância e a doente não conduzia.

Para 18 doentes (33,3%), os prestadores indicaram que a vulnerabilidade dos doentes e os determinantes sociais da saúde constituíam desafios:

Esta doente tinha vários problemas sociais que a tornavam vulnerável. A sua saúde poderia ter sido muito melhor se tivesse um lugar para viver que fosse acessível [e] seguro e tivesse instalações para cozinhar. Além disso, não tinha uma alimentação adequada.

Ele é indígena e eu receava que a sua experiência de racismo sistémico tivesse interferido com a sua capacidade de aceitar tratamentos.

A doente estava a sentir-se isolada devido à COVID e à perda do marido; dificuldade inicial em discernir se [a doente] estava a lidar com a perda [ou] com o luto versus o desejo informado de AMM devido à dor.

Em 12 doentes (22,2%), os prestadores tiveram dificuldade em avaliar se os doentes tinham "considerado seriamente" os tratamentos adequados:4

Já tinha a certeza de que queria a AMM, pelo que não estava disposta a considerar outras opções (novos medicamentos, infusões, terapia, etc.). Não estava recetiva ao aconselhamento. Foi inflex­ível e disse que a única coisa que consideraria seria a AMM.

Em 8 doentes (14,8%), os prestadores descreveram dificuldade em encontrar alguém com conhecimentos especializados para ajudar na avaliação:

Eu precisava de um psiquiatra, mas isso significava que o doente tinha de se deslocar [para receber esses cuidados].

Havia apenas um [especialista] na [cidade] e não o quiseram consultar.

O especialista não respondeu a muitos pedidos de contacto.

Três dos 54 doentes (5,6%) foram considerados inelegíveis para a AMM e não foram concluídas as ava­liações de 5 doentes. As razões pelas quais os doentes foram considerados inelegíveis para a AMM in­cluíram a falta de capacidade, não terem uma "condição grave e incurável" e não estarem num estado avançado de declínio de capacidade.4

Oito prestadores apresentaram comentários gerais sobre a sua experiência e algumas sugestões:

Estes [casos de doentes] são extremamente complicados. Os seus casos devem ser analisados por uma equipa multidisciplinar para saber atempadamente se são ou não elegíveis para o pedido de tipo 2. A equipa precisa de um gabinete dedicado, pessoal administrativo de apoio, um assistente social competente e diligente, [e] médicos e enfermeiros dedicados.

Muitos doentes jovens, muitos deles com doenças mentais graves concomitantes; a doença física funciona como uma "porta de entrada" ao abrigo da legislação atual para permitir a AMM quando a doença mental é o verdadeiro motivo do pedido.

O tempo associado à avaliação destes doentes é enorme.

É um pesadelo suficientemente desafiante que torna improvável a minha participação em muitos mais [casos], se é que haverá algum.

Não foram pedidos comentários positivos aos prestadores, mas um prestador disse que "lhe agradava poder ajudar [o doente]". Embora não tenha sido perguntado aos prestadores se estavam dispostos a continuar a fazer avaliações e a facultar a AMM aos doentes que fazem pedidos de tipo 2, dois disseram que não estavam.

Discussão

Os inquiridos deram informações sobre a sua experiência com 54 doentes que fizeram pedidos de tipo 2 nos primeiros 6 meses após a aprovação da lei alterada. Os diagnósticos mais comuns dos doentes foram síndromes de dor crónica. As dificuldades que os prestadores referiram com mais frequência foram a avaliação de doentes com doenças mentais concomitantes, aos quais ainda não tinha sido oferecido tratamento adequado ou para os quais os determinantes sociais da saúde tinham influenciado os seus pedidos de AMM.

Os requerentes da decisão judicial que levou à alteração da lei foram Jean Truchon, que sofria de paralisia cerebral espástica com triplegia desde o nascimento, e Nicole Gladu, que vivia há décadas com uma deficiência causada por poliomielite.8 Na nossa amostra de 54 avaliações de doentes, havia apenas 1 pes­soa com uma deficiência física de longa duração causada por tetraplegia. A maioria dos doentes tinha síndromes de dor crónica ou uma doença crónica complexa (EM ou SFC). Muitos tinham múltiplos diagnósticos, incluindo doenças mentais concomitantes. Este facto contribuiu para as dificuldades que os prestadores enfrentaram e para a quantidade de tempo necessário para realizar estas avaliações. Muitos inquiridos indicaram que não estavam preparados para a quantidade de tempo que cada caso implicava.

Os médicos de família veem frequentemente doentes com dor crónica e a prevalência de dor crónica clinicamente significativa é de aproximadamente 23% em todo o mundo.9,10 A transição da dor aguda para a dor crónica envolve alterações fisiopatológicas distintas no sistema nervoso periférico e central.11 A fadiga crónica é observada na EM ou SFC e em muitas síndromes pós-infeciosas, como a doença de Lyme crónica e a síndrome COVID longa, com uma prevalência de EM ou SFC estimada em cerca de 1,4% da população canadiana.12-14 Estas síndromes de dor e fadiga são difíceis de tratar e as clínicas mul­tidisciplinares especializadas não são facilmente acessíveis devido aos custos e às longas listas de espera. Este facto aumenta o dilema que os avaliadores e prestadores de AMM enfrentam ao avaliar se um doente considerou seriamente tratamentos razoáveis para aliviar o seu sofrimento. Além disso, não temos a cer­teza de como os pedidos de AMM destes doentes afetaram os seus médicos de família habituais, uma vez que não os incluímos especificamente neste estudo.

Na decisão Truchon vs. Canadá, a Juíza Christine Baudouin escreveu que o Tribunal considera que, para um médico que trabalhe na área da ajuda médica para morrer, uma pessoa vulnerável deve ser definida como uma pessoa incapaz de dar o seu consentimento, que depende de outros para tomar decisões sobre os seus cuidados ou que pode ser vítima de pressão ou abuso.15

Para 33,3% dos doentes do nosso estudo, os prestadores consideraram a avaliação da vulnerabilidade um desafio, mas discutiram a vulnerabilidade em termos de desvantagem social (por exemplo, habitação pre­cária, falta de transportes, dificuldades financeiras), racismo sistémico e solidão – não em termos de pres­são ou abuso. Assim, os conceitos de vulnerabilidade variam e precisam de ser mais bem definidos.

Muitos comentários dos prestadores sugeriram que, por vezes, se esforçavam por ter a certeza de que tinham sido oferecidos aos doentes os melhores tratamentos, que qualquer rejeição do tratamento era racional e não estava relacionada com a doença mental concomitante e que as doenças eram verdadeira­mente "incuráveis". Esta luta pode ser interpretada através de um enquadramento ético, uma vez que os prestadores estavam a equilibrar o respeito pela autonomia com o facto de não causarem danos no con­texto dos determinantes sociais da saúde, da vulnerabilidade dos doentes e da indisponibilidade de deter­minados tratamentos.

Este facto contrasta com a experiência de avaliadores e prestadores de AMM relatadas em estudos ante­riores envolvendo doentes com pedidos de AMM de tipo 1, em que encontrar este equilíbrio pareceu menos complexo e causou menos angústia aos prestadores.7,16 Os decisores políticos devem estar cientes de que os avaliadores e prestadores de AMM necessitarão de apoio para lidar com a complexidade dos pedidos de tipo 2. Isto exigirá centros de coordenação da AMM bem financiados, com acesso a assistentes sociais, psiquiatras e outros especialistas. Os médicos de família que não são prestadores de AMM tam­bém podem enfrentar desafios semelhantes ao tentarem garantir que os doentes que fazem pedidos de tipo 2 tenham tido acesso a tratamentos adequados.

Limitações

A amostra do nosso estudo foi limitada a apenas 23 prestadores que deram informações sobre 54 doentes que efetuaram pedidos de tipo 2 nos primeiros 6 meses após a alteração da lei da AMM. Recolhemos dados apenas a partir de breves inquéritos online e recrutámos membros da CAMAP. Concentrámo-nos nas dificuldades que os prestadores enfrentaram e não perguntámos especificamente sobre os aspetos positivos desta alteração legal, uma vez que o nosso objetivo era conhecer o desenvolvimento dos ade­quados treino e apoios. A investigação futura deve recorrer a entrevistas para obter informações mais aprofundadas e deve explorar as vivências para além dos primeiros 6 meses. Será importante perguntar sobre os aspetos positivos, bem como sobre a forma como outros aspetos da lei alterada, como o período de espera de 90 dias, alteraram as práticas. A investigação futura deve também explorar as perspetivas dos médicos de família que não são avaliadores ou prestadores de AMM para compreender a sua ex­periência com pessoas com doenças crónicas que solicitam AMM.

Conclusão

Este relatório dos primeiros casos com a ajuda médica para morrer em pessoas cuja morte natural não era razoavelmente previsível proporciona uma visão dos temas em que o ensino e o apoio adicionais poderiam beneficiar os avaliadores. As dificuldades que enfrentaram incluíram lidar com doenças mentais concomitantes e ter dificuldade em certificar-se de que os doentes tinham recebido os melhores trata­mentos e tinham considerado seriamente os tratamentos disponíveis. No entanto, os inquiridos esforça­ram-se por equilibrar os imperativos éticos de respeitar a autonomia dos doentes e de não os prejudicar. Esta informação pode ajudar os educadores a ensinar os seus alunos sobre a AMM e a informar os decisores políticos sobre o reforço dos apoios aos médicos na ajuda aos doentes com pedidos de AMM de tipo 2.

________________________

* A Dr.ª Ellen Wiebe é Professora Clínica no Departamento de Clínica Familiar da Faculdade de Medicina da Universidade da Colúmbia Britânica em Vancouver. Michaela Kelly é estudante de medicina na Universidade da Colúmbia Britânica.

Ver referências no artigo original AQUI

Descarregar a tradução em formato PDF d'AQUI

08 março 2024

Era bonito vê-la pensar

 
Paula Coutinho (1941-2022)

Neste Dia Internacional da Mulher, a RTP transmitiu o documentário "Era bonito vê-la pensar", que pode agora ser visto AQUI. O vídeo fora apresentado em 2023 simultaneamente no Hospital de Santo António, no I3S - Instituto de Investigação e Inovação em Saúde e no Hospital de S. Sebastião, por ocasião d
o primeiro aniversário do seu falecimento. Para este último lugar, preparei o texto seguinte que acabei por não ler todo visto o documentário referir tudo o que pudesse dizer. Fica aqui só para memória futura,

Conheci a Paula Coutinho em 1975 – há 48 anos! Estava a começar o internato complementar no Santo António e ela tinha acabado de chegar da Suíça, de onde trazia o título de Chefe de Clínica. Era a Especialista mais nova do Serviço, tinha já uma aura de competência.  

Devo-lhe muito. Devo-lhe, desde logo, a forma como me ensinou os primeiros passos na Neurologia. Com 5 anos de diferença de idade, a “chefe”, a breve prazo, possibili­tou que nos tratássemos por tu, mas isso nunca foi obstáculo a que me repreendesse quando era preciso.

Numa época de grande efervescência política em que me envolvi intensamente como representante eleito pelos internos na direção do Hospital e na direção do Internato Médico, senti sempre a sua empatia e apoio.

Recordo, em especial, a visita de trabalho que fizemos, com Corino de Andrade, a 4 ilhas dos Açores, durante três semanas em 1977. O “patrão”, já aposentado, fazia as honras com as autoridades de saúde locais, a Paula examinava proficientemente os doen­tes de Machado-Joseph (confirmados ou suspeitos), enquanto eu anotava as observações e esboçava as árvores genealógicas, aprendia o rigor da avaliação clínica e a cordialidade dos contactos, levava as malas e conduzia os carros. Uma experiência inesquecível! Via-se como Corino de Andrade estimava a Paula como a uma filha sabedora e promissora.

Participámos na redação do primeiro Programa do Internato Geral, ainda em 1976. Participámos também na redação do Guia de Diagnóstico de Morte Cerebral, publicado em 1998 na “Acta Médica Portuguesa”. A Paula sempre demonstrou, sem necessidade de o alardear, uma consistência ética e uma sensatez exemplares, tanto ao nível profissional como pessoal.

A minha vida profissional decorreu durante mais de 20 anos (1979-2001) noutras paragens, até que, por seu convite, voltei a trabalhar sob a sua orientação no Hospital da Feira. Assisti, neste novo hospital, ao modo como fazia a supervisão clínica dos serviços da área médica de forma inovadora e eficaz, com gestão comum de camas, com uma justa avaliação de desempenhos. Deixara para trás a docência universitária pré-graduada do ICBAS mas manteve uma efetiva atividade académica, orientando doutorandos e publicando os resultados das suas investigações.

Depois da aposentação, almoçávamos todos os meses, juntando de cada vez um terceiro conviva. Testemunho o quanto lhe agradava esse convívio e como, quando começou a tropeçar nas armadilhas da memória, conseguia elegantemente disfarçar as conversas com esses amigos e amigas.

Perdê-la do convívio foi como perder a minha irmã mais velha, eu que só tive irmãos rapazes. O luto, dizem, também se desfaz na recordação e, por isso, deixem-me felicitar a Sociedade Portuguesa das Doenças do Movimento por celebrar desta forma a memória da Paula Coutinho. Obrigado.

07 março 2024

O efeito da privatização na qualidade dos cuidados de saúde

Lancet Public Health 2024; 9: e199–206

O efeito da privatização na qualidade dos cuidados de saúde
Benjamin Goodair e Aaron Reeves
Department of Social Policy and Intervention, University of Oxford, Oxford, UK

Tradução espontânea do artigo

Nos últimos 40 anos, muitos sistemas de cuidados de saúde que eram financiados ou detidos pelo Estado passaram a privatizar os seus serviços, principalmente através da externalização para o sector privado. Mas qual foi o impacto da privatização na qualidade dos cuidados de saúde? Um dos principais objetivos desta transição foi melhorar a qualidade dos cuidados de saúde através de uma maior concorrência no mercado, juntamente com os benefícios de um sector privado mais flexível e centrado no doente. No entanto, tem havido preocupações quanto ao facto de estas reformas poderem resultar em cuidados piores, em parte porque é mais fácil reduzir os custos do que aumentar a qualidade dos cuidados. Muitas destas reformas tiveram lugar há décadas e foram efetuados numerosos estudos que examinaram os seus efeitos na qualidade dos cuidados de saúde recebidos pelos doentes. Analisámos esta literatura, centrando-nos nos efeitos da externalização dos serviços de saúde em países de elevado rendimento. Verificámos que os hospitais que passaram do estatuto de propriedade pública para o estatuto de propriedade privada tendem a obter lucros mais elevados do que os hospitais públicos que não se converteram, principalmente através da admissão seletiva de doentes e da redução do número de funcionários. Verificámos também que os aumentos agregados da privatização correspondiam frequentemente a piores resultados em termos de saúde para os doentes. Muito poucos estudos avaliaram esta importante reforma e existem muitas lacunas na literatura. No entanto, com base nos dados disponíveis, a nossa análise apresenta provas que contestam as justificações para a privatização dos cuidados de saúde e conclui que o fundamento científico para uma maior privatização dos serviços de saúde é fraco.

Introdução

A privatização dos cuidados de saúde é uma política de transferência da prestação de serviços públicos para indivíduos ou empresas privadas. Muitos serviços de saúde nacionalizados têm procurado a privatização desde os anos 80, na esperança de que os mercados mistos e a inclusão de interesses do sector privado possam melhorar a qualidade dos cuidados de saúde a um custo inferior ao do sector público. Embora existam muitas formas de privatização, incluindo a transferência do financiamento do Estado para os particulares, uma forma popular de privatização é a subcontratação ou externalização de serviços.1 Nestes modelos, um serviço financiado pelo sector público mantém os poderes de decisão, mas contrata uma organização privada para prestar um serviço acordado. Embora este modelo de prestação de serviços seja intuitivamente apelativo e notavelmente popular, a sua conveniência é ainda contestada por aqueles que argumentam que os mecanismos de mercado não podem funcionar eficazmente nos sistemas de saúde.2

Os defensores da externalização de serviços para o sector privado argumentam que a responsabilidade financeira obriga as empresas privadas a garantir o bem-estar dos doentes, a procurar a inovação e a eliminar a burocracia desnecessária. Estes motivos de lucro supostamente dariam às empresas privadas uma vantagem competitiva sobre o sector público, que é frequentemente limitado por culturas e regulamentos rígidos e por poucos incentivos à inovação.3,4 Os prestadores do sector privado podem também ter efeitos concorrenciais, melhorando o desempenho de todo o sistema de saúde, uma vez que todos os prestadores são incentivados a prestar serviços de melhor qualidade se quiserem ganhar a confiança dos organismos que os contratam (especialmente quando os preços são em grande parte fixos, o que acontece frequentemente quando há um único comprador, como o governo central).5,6

No entanto, a motivação do lucro nem sempre conduz aos resultados desejados. Incentivar os prestadores privados a dar prioridade à qualidade dos cuidados de saúde é um desafio para os organismos públicos, uma vez que a qualidade pode ser difícil de verificar e de, racionalmente, ser uma prioridade. A assimetria de informação surge quando os contratantes se esforçam por identificar os níveis de qualidade e de desempenho dos prestadores.7 Os mercados competitivos podem mesmo desencorajar os prestadores de revelar informações sobre a qualidade dos serviços.8 Nesses casos, os resultados observáveis (por exemplo, o custo do serviço) podem ser considerados prioritários, especialmente quando é difícil melhorar a qualidade em relação aos concorrentes. Assim, em alguns sistemas de saúde, a relação entre a concorrência e a qualidade dos cuidados é difícil de identificar se não existirem dados fiáveis que a meçam.9 Na ausência de incentivos corretos para que os prestadores privados deem prioridade à qualidade dos cuidados, podem adotar-se políticas que façam – o que se pense serem – sacrifícios marginais na qualidade em troca de grandes reduções nos custos, como seja a redução do pessoal, a diminuição dos salários do pessoal, a escolha seletiva de doentes rentáveis, a prescrição excessiva de serviços ou a alta prematura de doentes.

As análises anteriores sobre este tema centraram-se nos efeitos da propriedade dos hospitais na qualidade de forma transversal – ou seja, comparando os resultados dos prestadores públicos e privados.10,11 Estes estudos podem ajudar-nos a compreender como os prestadores do sector privado se comportam de forma diferente dos prestadores do sector público. No entanto, estas provas não são conclusivas por duas razões. Em primeiro lugar, as análises transversais quanto à propriedade não identificam frequentemente um grupo de comparação que preste serviços semelhantes a tipos de doentes semelhantes. Mais especificamente, o sector privado trata frequentemente pessoas mais saudáveis em sistemas de saúde em que alguns serviços são prestados pelo Estado e outros pelo mercado privado. As provas sugerem que os indivíduos que acedem a cuidados de saúde privados tendem a ter mais recursos e melhor saúde.12,13 Consequentemente, ao comparar os resultados em hospitais públicos e privados, será difícil controlar o enviesamento dos doentes menos graves que são selecionados em hospitais privados e que têm melhores resultados, não devido à qualidade dos cuidados, mas devido ao estado de saúde subjacente desses doentes. O efeito da propriedade é apenas uma parte da justificação para a privatização.

Em segundo lugar, a concentração no tipo de propriedade esquece uma das principais razões para a privatização – o facto de a concorrência entre prestadores dever produzir efeitos indiretos positivos na qualidade dos cuidados prestados pelos prestadores públicos. Se a externalização funcionar como os seus defensores teorizam, os prestadores públicos melhorarão a sua qualidade de cuidados de saúde, aprendendo com os prestadores inovadores do sector privado, ou devido a uma motivação intrínseca para evitar perder contratos para o sector privado. Em teoria, a concorrência também permitirá que os contratantes sejam mais exigentes no processo de contratação. Por conseguinte, quaisquer diferenças entre prestadores públicos e privados podem ser tendenciosas e não adequadas para compreender todos os efeitos do crescimento das externalizações

A necessidade de medir tanto os efeitos da propriedade como os da concorrência é abordada nesta análise, centrando-a em estudos longitudinais que tenham grupos de comparação significativos ou que procurem ter em conta os enviesamentos e que meçam os efeitos agregados do aumento da externalização.

Métodos

Os nossos critérios de seleção e a estratégia do estudo estão resumidos mais adiante e no apêndice (p 1). Os critérios de inclusão estão listados na tabela 1. Seguimos as orientações de síntese sem meta-análise concebidas para intervenções complexas.14 Selecionámos esta abordagem porque investigar se a privatização afeta a qualidade dos cuidados de saúde requer uma análise cuidadosa de estudos quantitativos, mas a privatização é frequentemente implementada de forma fragmentada e incremental, o que significa que os estudos não são suficientemente comparáveis para uma meta-análise.

Extraímos informações sobre os dados de publicação, país do estudo, tipo de intervenção, métodos, principais conclusões, resultados, direção do efeito e tamanho das amostras. Efetuámos uma avaliação crítica de cada estudo utilizando uma ferramenta de avaliação de riscos: Cochrane ROBINS-I para estudos não aleatórios de intervenções.18 Os resultados desta avaliação do risco de viés são apresentados no apêndice (pp 2-5). Dado o pequeno número de estudos incluídos, criámos indutivamente duas categorias com base nas duas estratégias de identificação que foram utilizadas na metodologia dos artigos.

Resumo dos resultados

A nossa pesquisa permitiu obter 322 artigos, dos quais 13 foram identificados como satisfazendo os nossos critérios de inclusão após triagem e avaliação (figura 1). Encontrámos dois tipos de artigos através do nosso processo de pesquisa e triagem: os que avaliaram o efeito da conversão de hospitais públicos em privados (tabela 2) e os que realizaram regressões longitudinais a um nível ecológico sobre a variação na proporção de serviços prestados por fornecedores do sector privado (tabela 3).

Oito artigos analisaram a qualidade dos cuidados (medidos de várias formas) recebidos pelos doentes antes e depois de um hospital passar do estatuto de propriedade pública para o de propriedade privada (quadro 2). Três destes estudos eram oriundos dos EUA,19,21,26 dois da Alemanha,20,22 um da Croácia,23 um do Canadá,24 e um da Coreia do Sul.25 Metodologicamente, cinco destes artigos utilizaram modelos de diferença-em-diferenças ou modelos de regressão de efeitos fixos (que controlam as variáveis invariantes no tempo). A gama de resultados incluídos nos seus modelos era diversa, mas três centraram-se nos níveis de pessoal, um examinou a estratificação dos doentes por tipo de seguro e os restantes estudos exploraram uma série de resultados relacionados com a qualidade, tais como a carga de trabalho dos médicos e outros funcionários, o número de serviços prestados e as lesões entre os funcionários do hospital.

O tema dominante destes estudos foi o dos hospitais privados que tendiam a procurar mais eficiências financeiras, visando os doentes mais rentáveis e reduzindo os níveis de pessoal. No que se refere ao estado de saúde financeira dos doentes, os estudos concluíram que o número de doentes apoiados pelo Medicaid, por instituições de solidariedade social ou não apoiados (e, por conseguinte, considerados menos rentáveis) foi reduzido, em média, nos hospitais que passaram para o estatuto de hospitais privados com fins lucrativos.19 Não foram encontradas provas relativas ao estado de saúde dos doentes tratados após a privatização dos hospitais, o que poderia ter evidenciado o modo como a privatização afeta as desigualdades em matéria de saúde.

A maioria dos artigos concluía que a privatização dos hospitais tinha implicações negativas para a qualidade dos cuidados, embora, o que é importante, nenhum tivesse medido diretamente os resultados de saúde dos doentes. Uma exceção notável foi o único artigo que estudou a conversão dos cuidados primários, o qual constatou melhorias na forma como os doentes conseguiam as suas consultas.23

Outro grupo de estudos analisou os efeitos agregados da privatização, avaliando as alterações ao longo do tempo na externalização e alguns resultados que representam a qualidade dos cuidados (por exemplo, mortalidade evitável; quadro 3). Este grupo incluía cinco estudos. Dois destes estudos foram realizados em Inglaterra,28,30 um na Suécia,27 um em Itália,29 e um nos EUA;31 embora o estudo dos EUA fosse ligeiramente diferente, uma vez que examinou a privatização dos serviços de cuidados de saúde prestados a indivíduos na prisão. Quatro destes artigos utilizaram regressões de efeitos fixos (controlando as variáveis invariantes no tempo) e um utilizou uma conceção de séries temporais interrompidas. Três destes artigos utilizaram uma medida de mortalidade evitável ou tratável (por exemplo, mortes que deveriam ter sido evitadas com cuidados adequados), um centrou-se nas infeções por Staphylococcus aureus resistentes à meticilina e um centrou-se na mortalidade de pessoas encarceradas.

A maioria destes estudos identificou associações negativas com o aumento da externalização que correspondiam a cuidados de pior qualidade. Um estudo concluiu que uma reforma privatizadora melhorou os cuidados de saúde em toda a amostra (ou seja, 21 países), mas que os locais com os níveis mais elevados de prestação privada apresentavam uma pior qualidade dos cuidados de saúde do que as zonas com níveis mais baixos de privatização – medida em termos de hospitalizações evitáveis.27

Efeitos nos resultados de saúde

A nível ecológico, as elevadas taxas de privatização e de externalização corresponderam quase sempre a piores resultados em termos de saúde nos estudos incluídos nesta revisão. Dois artigos analisaram os níveis regionais de privatização para um país inteiro e ambos concluíram que o aumento da percentagem de externalização correspondia a taxas de mortalidade evitáveis mais elevadas do que antes da externalização.28,29 O único outro artigo que avaliou as taxas de mortalidade fê-lo em populações encarceradas e também encontrou taxas de mortalidade evitáveis mais elevadas à medida que a proporção de cuidados de saúde externalizados aumentava.31 Além disso, os serviços de limpeza externalizados correspondiam a taxas mais elevadas de infeção hospitalar do que os serviços de limpeza internos.30 Foram encontrados resultados mais matizados na Suécia, quando os resultados em termos de hospitalizações evitáveis melhoraram em todo o país após uma reforma de privatização dos cuidados primários; os resultados deste estudo não mostraram uma variação dose-resposta – ou seja, as áreas que foram reformadas primeiro ou que tiveram os maiores aumentos de prestadores privados não mostraram as maiores melhorias na qualidade dos cuidados – e este fator não é, por isso, atribuível a uma causa conhecida.27 Nenhum dos estudos desta revisão descobriu que o aumento da privatização correspondia a melhores resultados de saúde para os doentes. Nenhum dos artigos que avaliaram as conversões de hospitais incluiu resultados de saúde, uma lacuna importante na literatura identificada nesta revisão.

Efeitos no pessoal

Alguns estudos avaliaram o pessoal como uma medida intrínseca da provável qualidade dos cuidados recebidos pelos doentes ou em termos das condições de emprego do pessoal. Vários artigos mediram especificamente a diferença relativa das taxas de contratação de pessoal antes e depois da privatização dos hospitais.20-22 A Figura 2 resume os resultados identificados nestes estudos. De um modo geral, os estudos concluíram que a externalização correspondia a um menor número de efetivos por doente.20-22 O mesmo se verificou em relação ao pessoal de limpeza.30 No entanto, o efeito variava consoante o tipo de pessoal. Por exemplo, apenas os enfermeiros mais qualificados tiveram números reduzidos nos hospitais externalizados em comparação com os hospitais públicos nos EUA.21 Nos dois estudos que mediram o número de médicos, este valor não foi reduzido após a privatização, ao passo que a maioria das outras categorias de pessoal o foi.20,22

Outros artigos analisaram os resultados para os trabalhadores, tais como os salários, os contratos e a saúde dos trabalhadores. No Canadá, a externalização dos serviços de alimentação e de limpeza correspondeu a um menor número de lesões relacionadas com o trabalho e a períodos mais curtos de baixa por cada lesão relacionada com o trabalho (bem como a algumas que se mantiveram inalteradas).24 Um estudo qualitativo de acompanhamento sugeriu que a probabilidade de subnotificação destes incidentes após a privatização dificultou a interpretação dos dados e discutiu as incertezas sobre se a privatização melhorou efetivamente as condições de trabalho ou se apenas suprimiu a comunicação de dados.24 Outro artigo avaliou descritivamente as alterações na desigualdade salarial, na segurança do emprego e na carga de trabalho na Coreia do Sul, tendo encontrado piores resultados em todos estes domínios nos serviços privatizados, em comparação com os serviços não privatizados.25 No entanto, a amostra era demasiado pequena para se poderem efetuar estatísticas inferenciais.

Efeitos sobre o acesso aos cuidados de saúde

Três artigos avaliaram algumas formas de acesso aos cuidados de saúde (aqui definido como a facilidade com que os doentes podem aceder aos serviços) com resultados mistos.19,23,26 Dois artigos que avaliaram as conversões de hospitais públicos para privados nos EUA concluíram que os hospitais se tornaram menos acessíveis após a conversão, quer porque a combinação de casos mudou para doentes mais rentáveis, quer porque o número de serviços prestados foi reduzido.19,26

No entanto, a conversão das práticas de cuidados primários na Croácia para o estatuto de propriedade privada teve resultados mais positivos – os doentes começaram a receber horários de consulta mais precisos e tiveram a oportunidade de aceder aos cuidados de saúde através de novos meios, como chamadas telefónicas fora de horas.23

De um modo geral, os resultados sugerem que o acesso aos cuidados de saúde pode ser afetado de diferentes formas, com horários de marcação mais precisos e tempos de espera reduzidos em alguns casos, mas com efeitos que podem prejudicar alguns grupos, em especial aqueles cujos tratamentos têm baixos lucros para o sector privado.

Efeitos sobre os resultados financeiros

Esta análise não tentou avaliar o efeito da privatização na relação custo-eficácia, que está relacionada com a questão da qualidade dos cuidados, mas é diferente. Os estudos centrados apenas nos resultados financeiros poderão ter conclusões diferentes. No entanto, verificou-se uma tendência – entre os artigos que referiam alguma medida da qualidade dos cuidados de saúde – para o aumento das margens de lucro dos hospitais que passaram a ter fins lucrativos. No entanto, os hospitais que passaram a ter fins lucrativos tiveram, em média, um desempenho financeiro muito pior do que os hospitais públicos que permaneceram públicos. Por conseguinte, é possível que haja aqui um efeito de seleção e é necessário trabalhar mais para compreender melhor os efeitos no desempenho financeiro.

Discussão

Analisámos e resumimos as provas sobre os efeitos da externalização dos serviços de saúde na qualidade dos cuidados, concentrando-nos nos estudos que fornecem as provas mais fortes, porque utilizaram dados longitudinais que permitiram acompanhar as mudanças ao longo do tempo. Esta análise descreve reformas que frequentemente alteram a prestação de cuidados de saúde e reduzem a abrangência e a generosidade dos cuidados. Infelizmente, estes ganhos de eficiência não parecem ser benignos, uma vez que os estudos sugerem que a externalização tende a piorar os resultados em matéria de saúde. A maioria dos estudos constantes da presente análise sugere que a privatização reduz a qualidade dos cuidados e piora os resultados em termos de saúde dos doentes tratados em contextos de cuidados de saúde privatizados.

Quando os governos ponderam como responder às consequências atuais da pandemia de COVID-19 nos sistemas de saúde, bem como às respostas a longo prazo ao envelhecimento das populações e aos orçamentos limitados, podem procurar uma solução única e simples que prometa cuidados de melhor qualidade a um custo mais baixo.32,33 No entanto, as provas apresentadas nesta análise sugerem que existe o risco de os governos procurarem reduções a curto prazo em detrimento dos resultados a longo prazo, em parte porque a privatização através da externalização de serviços para o sector privado não parece proporcionar simultaneamente melhores cuidados e cuidados mais baratos.

A nossa análise também tem potencialmente implicações para os argumentos teóricos mais amplos apresentados a favor da privatização em muitos domínios. Os dados aqui compilados não correspondem às expectativas dos mercados mistos, nomeadamente de que melhorariam a qualidade através do aumento da concorrência.5,9 Os dados apresentados nesta análise não põem em causa o mecanismo teórico básico, mas sugerem antes que algumas áreas do Estado-providência, como a educação e os cuidados de saúde, podem estar estruturadas de forma a serem menos suscetíveis aos tipos de incentivos que operam noutros mercados. Por exemplo, encontrar inovações que melhorem a qualidade no sector dos cuidados de saúde pode ser mais difícil do que noutras áreas da economia, o que pode diminuir os incentivos para competir em termos de qualidade.2 A apreciação desta variação pode fazer com que os governos parem antes de prosseguir reformas dispendiosas e demoradas em sectores onde a margem para melhorias de qualidade é potencialmente pequena a curto prazo.

A presente análise centrou-se na conversão de serviços públicos em serviços prestados pelo sector privado. No entanto, este processo não é muitas vezes tão simples como a transição total para serviços privados e as formas subtis de privatização, como as parcerias público-privadas, podem ser mais difíceis de avaliar. Por exemplo, é frequentemente feita uma distinção entre organizações privadas com e sem fins lucrativos. Nos estudos incluídos nesta revisão, as transições para a prestação de serviços com fins lucrativos resultaram normalmente em maiores declínios na qualidade dos cuidados de saúde, em comparação com as transições para o estatuto de organização sem fins lucrativos, mas as transições para organizações privadas sem fins lucrativos também resultaram frequentemente em declínios na qualidade dos cuidados de saúde. Uma das razões para esta conclusão pode ser o facto de as organizações sem fins lucrativos poderem comportar-se de forma semelhante às organizações com fins lucrativos.34 Em alternativa, poderíamos ter encontrado maiores diferenças entre outras categorias de propriedade se os estudos tivessem incluído essas subcategorias, por exemplo, os prestadores de cuidados de saúde detidos por capitais privados que têm um desempenho particularmente fraco.35

Esta análise tem algumas limitações, nomeadamente o facto de nenhum estudo sobre privatização ter sido realizado num ensaio aleatório, o que significa que os resultados estão necessariamente sujeitos a potenciais enviesamentos na sua validade interna. Por exemplo, quando as alterações à legislação também alteram simultaneamente os relatórios financeiros, os sistemas de pagamento e os processos de reembolso, ou quando há uma perda de serviços que ocorre paralelamente à privatização. É muito improvável que um ensaio aleatório deste tipo seja realizado na prática e, mesmo que houvesse um governo disposto a integrar a aleatorização na implementação de uma reforma de privatização, seria difícil garantir que o processo de aleatorização não fosse violado de alguma forma. Por outras palavras, as conceções de investigação de referência que podem responder a esta questão são provavelmente muito diferentes das reformas ou intervenções a nível individual, o que deve alterar a forma como encaramos as provas aqui compiladas. A investigação resumida nesta revisão não é apenas a melhor evidência de que dispomos atualmente, mas muitos destes estudos permanecerão provavelmente entre as melhores evidências que alguma vez poderemos recolher nesta área.

Do mesmo modo, os dados apresentados na presente análise provêm de um pequeno número de países de elevado rendimento (ou seja, oito países). Os nossos resultados não se aplicam, obviamente, aos países de rendimento médio e baixo e é possível que estes processos sejam diferentes nesses contextos, especialmente quando a base para a provisão pública não tem tantos recursos como em alguns dos contextos de rendimento elevado incluídos nesta análise. Além disso, embora as revisões sistemáticas tenham como objetivo descobrir o chamado efeito real de uma intervenção, o efeito da privatização dependerá provavelmente dos contextos sociais e institucionais em que essas reformas ocorrem. Declarar que a privatização nunca funciona seria prematuro (os estudos que incluímos sugerem alguns efeitos positivos em alguns contextos específicos) e precisamos de mais investigação para compreender quando é que a externalização pode melhorar a qualidade e não apenas reduzir os custos.

Há muitas lacunas nesta análise que merecem ser investigadas. A mais óbvia é o efeito das conversões de hospitais nos resultados de saúde dos doentes, mas também existe uma grande capacidade para análises de investigação a nível ecológico sobre outros resultados para além das taxas de mortalidade. Outra lacuna é o facto de muito poucos estudos incidirem sobre outros aspetos dos cuidados de saúde para além dos cuidados hospitalares – os cuidados comunitários, primários e ambulatórios são largamente omitidos. Muitos dos estudos centram-se nos níveis de pessoal, o que é apenas um de um vasto leque de fatores que poderiam ser considerados como fazendo parte da qualidade dos cuidados de saúde prestados aos doentes, faltando particularmente as perceções do público e dos doentes sobre os serviços prestados.15,16 Os estudos não desagregam os resultados por sexo ou género e o efeito da privatização dos cuidados de saúde sobre as desigualdades na saúde é uma área importante para investigação futura. Por último, considerámos principalmente os efeitos da externalização ou da subcontratação. Existem outras formas de privatização, como a transferência do financiamento dos cuidados de saúde do Estado para os particulares, que não foram analisadas na presente análise. Um exemplo é a passagem para o financiamento privado nos EUA, através da privatização do programa Medicare, que resultou em planos mais caros, mas com efeitos pouco claros na qualidade dos cuidados de saúde.36

Conclusão

Existe apenas um pequeno número de estudos sobre o efeito da privatização na qualidade dos cuidados prestados pelos prestadores de cuidados de saúde e, no entanto, neste pequeno grupo de estudos longitudinais, encontramos um quadro bastante consistente. No mínimo, a privatização dos cuidados de saúde quase nunca teve um efeito positivo na qualidade dos cuidados. A subcontratação também não é um facto benéfico, uma vez que pode reduzir os custos, mas parece fazê-lo à custa da qualidade dos cuidados. Em termos gerais, a nossa análise fornece provas que põem em causa as justificações para a privatização dos cuidados de saúde e conclui que o apoio científico a uma maior privatização dos serviços de saúde é fraco.

 Ver Tabelas, Figuras e Referências no artigo original AQUI