07 março 2024

O efeito da privatização na qualidade dos cuidados de saúde

Lancet Public Health 2024; 9: e199–206

O efeito da privatização na qualidade dos cuidados de saúde
Benjamin Goodair e Aaron Reeves
Department of Social Policy and Intervention, University of Oxford, Oxford, UK

Tradução espontânea do artigo

Nos últimos 40 anos, muitos sistemas de cuidados de saúde que eram financiados ou detidos pelo Estado passaram a privatizar os seus serviços, principalmente através da externalização para o sector privado. Mas qual foi o impacto da privatização na qualidade dos cuidados de saúde? Um dos principais objetivos desta transição foi melhorar a qualidade dos cuidados de saúde através de uma maior concorrência no mercado, juntamente com os benefícios de um sector privado mais flexível e centrado no doente. No entanto, tem havido preocupações quanto ao facto de estas reformas poderem resultar em cuidados piores, em parte porque é mais fácil reduzir os custos do que aumentar a qualidade dos cuidados. Muitas destas reformas tiveram lugar há décadas e foram efetuados numerosos estudos que examinaram os seus efeitos na qualidade dos cuidados de saúde recebidos pelos doentes. Analisámos esta literatura, centrando-nos nos efeitos da externalização dos serviços de saúde em países de elevado rendimento. Verificámos que os hospitais que passaram do estatuto de propriedade pública para o estatuto de propriedade privada tendem a obter lucros mais elevados do que os hospitais públicos que não se converteram, principalmente através da admissão seletiva de doentes e da redução do número de funcionários. Verificámos também que os aumentos agregados da privatização correspondiam frequentemente a piores resultados em termos de saúde para os doentes. Muito poucos estudos avaliaram esta importante reforma e existem muitas lacunas na literatura. No entanto, com base nos dados disponíveis, a nossa análise apresenta provas que contestam as justificações para a privatização dos cuidados de saúde e conclui que o fundamento científico para uma maior privatização dos serviços de saúde é fraco.

Introdução

A privatização dos cuidados de saúde é uma política de transferência da prestação de serviços públicos para indivíduos ou empresas privadas. Muitos serviços de saúde nacionalizados têm procurado a privatização desde os anos 80, na esperança de que os mercados mistos e a inclusão de interesses do sector privado possam melhorar a qualidade dos cuidados de saúde a um custo inferior ao do sector público. Embora existam muitas formas de privatização, incluindo a transferência do financiamento do Estado para os particulares, uma forma popular de privatização é a subcontratação ou externalização de serviços.1 Nestes modelos, um serviço financiado pelo sector público mantém os poderes de decisão, mas contrata uma organização privada para prestar um serviço acordado. Embora este modelo de prestação de serviços seja intuitivamente apelativo e notavelmente popular, a sua conveniência é ainda contestada por aqueles que argumentam que os mecanismos de mercado não podem funcionar eficazmente nos sistemas de saúde.2

Os defensores da externalização de serviços para o sector privado argumentam que a responsabilidade financeira obriga as empresas privadas a garantir o bem-estar dos doentes, a procurar a inovação e a eliminar a burocracia desnecessária. Estes motivos de lucro supostamente dariam às empresas privadas uma vantagem competitiva sobre o sector público, que é frequentemente limitado por culturas e regulamentos rígidos e por poucos incentivos à inovação.3,4 Os prestadores do sector privado podem também ter efeitos concorrenciais, melhorando o desempenho de todo o sistema de saúde, uma vez que todos os prestadores são incentivados a prestar serviços de melhor qualidade se quiserem ganhar a confiança dos organismos que os contratam (especialmente quando os preços são em grande parte fixos, o que acontece frequentemente quando há um único comprador, como o governo central).5,6

No entanto, a motivação do lucro nem sempre conduz aos resultados desejados. Incentivar os prestadores privados a dar prioridade à qualidade dos cuidados de saúde é um desafio para os organismos públicos, uma vez que a qualidade pode ser difícil de verificar e de, racionalmente, ser uma prioridade. A assimetria de informação surge quando os contratantes se esforçam por identificar os níveis de qualidade e de desempenho dos prestadores.7 Os mercados competitivos podem mesmo desencorajar os prestadores de revelar informações sobre a qualidade dos serviços.8 Nesses casos, os resultados observáveis (por exemplo, o custo do serviço) podem ser considerados prioritários, especialmente quando é difícil melhorar a qualidade em relação aos concorrentes. Assim, em alguns sistemas de saúde, a relação entre a concorrência e a qualidade dos cuidados é difícil de identificar se não existirem dados fiáveis que a meçam.9 Na ausência de incentivos corretos para que os prestadores privados deem prioridade à qualidade dos cuidados, podem adotar-se políticas que façam – o que se pense serem – sacrifícios marginais na qualidade em troca de grandes reduções nos custos, como seja a redução do pessoal, a diminuição dos salários do pessoal, a escolha seletiva de doentes rentáveis, a prescrição excessiva de serviços ou a alta prematura de doentes.

As análises anteriores sobre este tema centraram-se nos efeitos da propriedade dos hospitais na qualidade de forma transversal – ou seja, comparando os resultados dos prestadores públicos e privados.10,11 Estes estudos podem ajudar-nos a compreender como os prestadores do sector privado se comportam de forma diferente dos prestadores do sector público. No entanto, estas provas não são conclusivas por duas razões. Em primeiro lugar, as análises transversais quanto à propriedade não identificam frequentemente um grupo de comparação que preste serviços semelhantes a tipos de doentes semelhantes. Mais especificamente, o sector privado trata frequentemente pessoas mais saudáveis em sistemas de saúde em que alguns serviços são prestados pelo Estado e outros pelo mercado privado. As provas sugerem que os indivíduos que acedem a cuidados de saúde privados tendem a ter mais recursos e melhor saúde.12,13 Consequentemente, ao comparar os resultados em hospitais públicos e privados, será difícil controlar o enviesamento dos doentes menos graves que são selecionados em hospitais privados e que têm melhores resultados, não devido à qualidade dos cuidados, mas devido ao estado de saúde subjacente desses doentes. O efeito da propriedade é apenas uma parte da justificação para a privatização.

Em segundo lugar, a concentração no tipo de propriedade esquece uma das principais razões para a privatização – o facto de a concorrência entre prestadores dever produzir efeitos indiretos positivos na qualidade dos cuidados prestados pelos prestadores públicos. Se a externalização funcionar como os seus defensores teorizam, os prestadores públicos melhorarão a sua qualidade de cuidados de saúde, aprendendo com os prestadores inovadores do sector privado, ou devido a uma motivação intrínseca para evitar perder contratos para o sector privado. Em teoria, a concorrência também permitirá que os contratantes sejam mais exigentes no processo de contratação. Por conseguinte, quaisquer diferenças entre prestadores públicos e privados podem ser tendenciosas e não adequadas para compreender todos os efeitos do crescimento das externalizações

A necessidade de medir tanto os efeitos da propriedade como os da concorrência é abordada nesta análise, centrando-a em estudos longitudinais que tenham grupos de comparação significativos ou que procurem ter em conta os enviesamentos e que meçam os efeitos agregados do aumento da externalização.

Métodos

Os nossos critérios de seleção e a estratégia do estudo estão resumidos mais adiante e no apêndice (p 1). Os critérios de inclusão estão listados na tabela 1. Seguimos as orientações de síntese sem meta-análise concebidas para intervenções complexas.14 Selecionámos esta abordagem porque investigar se a privatização afeta a qualidade dos cuidados de saúde requer uma análise cuidadosa de estudos quantitativos, mas a privatização é frequentemente implementada de forma fragmentada e incremental, o que significa que os estudos não são suficientemente comparáveis para uma meta-análise.

Extraímos informações sobre os dados de publicação, país do estudo, tipo de intervenção, métodos, principais conclusões, resultados, direção do efeito e tamanho das amostras. Efetuámos uma avaliação crítica de cada estudo utilizando uma ferramenta de avaliação de riscos: Cochrane ROBINS-I para estudos não aleatórios de intervenções.18 Os resultados desta avaliação do risco de viés são apresentados no apêndice (pp 2-5). Dado o pequeno número de estudos incluídos, criámos indutivamente duas categorias com base nas duas estratégias de identificação que foram utilizadas na metodologia dos artigos.

Resumo dos resultados

A nossa pesquisa permitiu obter 322 artigos, dos quais 13 foram identificados como satisfazendo os nossos critérios de inclusão após triagem e avaliação (figura 1). Encontrámos dois tipos de artigos através do nosso processo de pesquisa e triagem: os que avaliaram o efeito da conversão de hospitais públicos em privados (tabela 2) e os que realizaram regressões longitudinais a um nível ecológico sobre a variação na proporção de serviços prestados por fornecedores do sector privado (tabela 3).

Oito artigos analisaram a qualidade dos cuidados (medidos de várias formas) recebidos pelos doentes antes e depois de um hospital passar do estatuto de propriedade pública para o de propriedade privada (quadro 2). Três destes estudos eram oriundos dos EUA,19,21,26 dois da Alemanha,20,22 um da Croácia,23 um do Canadá,24 e um da Coreia do Sul.25 Metodologicamente, cinco destes artigos utilizaram modelos de diferença-em-diferenças ou modelos de regressão de efeitos fixos (que controlam as variáveis invariantes no tempo). A gama de resultados incluídos nos seus modelos era diversa, mas três centraram-se nos níveis de pessoal, um examinou a estratificação dos doentes por tipo de seguro e os restantes estudos exploraram uma série de resultados relacionados com a qualidade, tais como a carga de trabalho dos médicos e outros funcionários, o número de serviços prestados e as lesões entre os funcionários do hospital.

O tema dominante destes estudos foi o dos hospitais privados que tendiam a procurar mais eficiências financeiras, visando os doentes mais rentáveis e reduzindo os níveis de pessoal. No que se refere ao estado de saúde financeira dos doentes, os estudos concluíram que o número de doentes apoiados pelo Medicaid, por instituições de solidariedade social ou não apoiados (e, por conseguinte, considerados menos rentáveis) foi reduzido, em média, nos hospitais que passaram para o estatuto de hospitais privados com fins lucrativos.19 Não foram encontradas provas relativas ao estado de saúde dos doentes tratados após a privatização dos hospitais, o que poderia ter evidenciado o modo como a privatização afeta as desigualdades em matéria de saúde.

A maioria dos artigos concluía que a privatização dos hospitais tinha implicações negativas para a qualidade dos cuidados, embora, o que é importante, nenhum tivesse medido diretamente os resultados de saúde dos doentes. Uma exceção notável foi o único artigo que estudou a conversão dos cuidados primários, o qual constatou melhorias na forma como os doentes conseguiam as suas consultas.23

Outro grupo de estudos analisou os efeitos agregados da privatização, avaliando as alterações ao longo do tempo na externalização e alguns resultados que representam a qualidade dos cuidados (por exemplo, mortalidade evitável; quadro 3). Este grupo incluía cinco estudos. Dois destes estudos foram realizados em Inglaterra,28,30 um na Suécia,27 um em Itália,29 e um nos EUA;31 embora o estudo dos EUA fosse ligeiramente diferente, uma vez que examinou a privatização dos serviços de cuidados de saúde prestados a indivíduos na prisão. Quatro destes artigos utilizaram regressões de efeitos fixos (controlando as variáveis invariantes no tempo) e um utilizou uma conceção de séries temporais interrompidas. Três destes artigos utilizaram uma medida de mortalidade evitável ou tratável (por exemplo, mortes que deveriam ter sido evitadas com cuidados adequados), um centrou-se nas infeções por Staphylococcus aureus resistentes à meticilina e um centrou-se na mortalidade de pessoas encarceradas.

A maioria destes estudos identificou associações negativas com o aumento da externalização que correspondiam a cuidados de pior qualidade. Um estudo concluiu que uma reforma privatizadora melhorou os cuidados de saúde em toda a amostra (ou seja, 21 países), mas que os locais com os níveis mais elevados de prestação privada apresentavam uma pior qualidade dos cuidados de saúde do que as zonas com níveis mais baixos de privatização – medida em termos de hospitalizações evitáveis.27

Efeitos nos resultados de saúde

A nível ecológico, as elevadas taxas de privatização e de externalização corresponderam quase sempre a piores resultados em termos de saúde nos estudos incluídos nesta revisão. Dois artigos analisaram os níveis regionais de privatização para um país inteiro e ambos concluíram que o aumento da percentagem de externalização correspondia a taxas de mortalidade evitáveis mais elevadas do que antes da externalização.28,29 O único outro artigo que avaliou as taxas de mortalidade fê-lo em populações encarceradas e também encontrou taxas de mortalidade evitáveis mais elevadas à medida que a proporção de cuidados de saúde externalizados aumentava.31 Além disso, os serviços de limpeza externalizados correspondiam a taxas mais elevadas de infeção hospitalar do que os serviços de limpeza internos.30 Foram encontrados resultados mais matizados na Suécia, quando os resultados em termos de hospitalizações evitáveis melhoraram em todo o país após uma reforma de privatização dos cuidados primários; os resultados deste estudo não mostraram uma variação dose-resposta – ou seja, as áreas que foram reformadas primeiro ou que tiveram os maiores aumentos de prestadores privados não mostraram as maiores melhorias na qualidade dos cuidados – e este fator não é, por isso, atribuível a uma causa conhecida.27 Nenhum dos estudos desta revisão descobriu que o aumento da privatização correspondia a melhores resultados de saúde para os doentes. Nenhum dos artigos que avaliaram as conversões de hospitais incluiu resultados de saúde, uma lacuna importante na literatura identificada nesta revisão.

Efeitos no pessoal

Alguns estudos avaliaram o pessoal como uma medida intrínseca da provável qualidade dos cuidados recebidos pelos doentes ou em termos das condições de emprego do pessoal. Vários artigos mediram especificamente a diferença relativa das taxas de contratação de pessoal antes e depois da privatização dos hospitais.20-22 A Figura 2 resume os resultados identificados nestes estudos. De um modo geral, os estudos concluíram que a externalização correspondia a um menor número de efetivos por doente.20-22 O mesmo se verificou em relação ao pessoal de limpeza.30 No entanto, o efeito variava consoante o tipo de pessoal. Por exemplo, apenas os enfermeiros mais qualificados tiveram números reduzidos nos hospitais externalizados em comparação com os hospitais públicos nos EUA.21 Nos dois estudos que mediram o número de médicos, este valor não foi reduzido após a privatização, ao passo que a maioria das outras categorias de pessoal o foi.20,22

Outros artigos analisaram os resultados para os trabalhadores, tais como os salários, os contratos e a saúde dos trabalhadores. No Canadá, a externalização dos serviços de alimentação e de limpeza correspondeu a um menor número de lesões relacionadas com o trabalho e a períodos mais curtos de baixa por cada lesão relacionada com o trabalho (bem como a algumas que se mantiveram inalteradas).24 Um estudo qualitativo de acompanhamento sugeriu que a probabilidade de subnotificação destes incidentes após a privatização dificultou a interpretação dos dados e discutiu as incertezas sobre se a privatização melhorou efetivamente as condições de trabalho ou se apenas suprimiu a comunicação de dados.24 Outro artigo avaliou descritivamente as alterações na desigualdade salarial, na segurança do emprego e na carga de trabalho na Coreia do Sul, tendo encontrado piores resultados em todos estes domínios nos serviços privatizados, em comparação com os serviços não privatizados.25 No entanto, a amostra era demasiado pequena para se poderem efetuar estatísticas inferenciais.

Efeitos sobre o acesso aos cuidados de saúde

Três artigos avaliaram algumas formas de acesso aos cuidados de saúde (aqui definido como a facilidade com que os doentes podem aceder aos serviços) com resultados mistos.19,23,26 Dois artigos que avaliaram as conversões de hospitais públicos para privados nos EUA concluíram que os hospitais se tornaram menos acessíveis após a conversão, quer porque a combinação de casos mudou para doentes mais rentáveis, quer porque o número de serviços prestados foi reduzido.19,26

No entanto, a conversão das práticas de cuidados primários na Croácia para o estatuto de propriedade privada teve resultados mais positivos – os doentes começaram a receber horários de consulta mais precisos e tiveram a oportunidade de aceder aos cuidados de saúde através de novos meios, como chamadas telefónicas fora de horas.23

De um modo geral, os resultados sugerem que o acesso aos cuidados de saúde pode ser afetado de diferentes formas, com horários de marcação mais precisos e tempos de espera reduzidos em alguns casos, mas com efeitos que podem prejudicar alguns grupos, em especial aqueles cujos tratamentos têm baixos lucros para o sector privado.

Efeitos sobre os resultados financeiros

Esta análise não tentou avaliar o efeito da privatização na relação custo-eficácia, que está relacionada com a questão da qualidade dos cuidados, mas é diferente. Os estudos centrados apenas nos resultados financeiros poderão ter conclusões diferentes. No entanto, verificou-se uma tendência – entre os artigos que referiam alguma medida da qualidade dos cuidados de saúde – para o aumento das margens de lucro dos hospitais que passaram a ter fins lucrativos. No entanto, os hospitais que passaram a ter fins lucrativos tiveram, em média, um desempenho financeiro muito pior do que os hospitais públicos que permaneceram públicos. Por conseguinte, é possível que haja aqui um efeito de seleção e é necessário trabalhar mais para compreender melhor os efeitos no desempenho financeiro.

Discussão

Analisámos e resumimos as provas sobre os efeitos da externalização dos serviços de saúde na qualidade dos cuidados, concentrando-nos nos estudos que fornecem as provas mais fortes, porque utilizaram dados longitudinais que permitiram acompanhar as mudanças ao longo do tempo. Esta análise descreve reformas que frequentemente alteram a prestação de cuidados de saúde e reduzem a abrangência e a generosidade dos cuidados. Infelizmente, estes ganhos de eficiência não parecem ser benignos, uma vez que os estudos sugerem que a externalização tende a piorar os resultados em matéria de saúde. A maioria dos estudos constantes da presente análise sugere que a privatização reduz a qualidade dos cuidados e piora os resultados em termos de saúde dos doentes tratados em contextos de cuidados de saúde privatizados.

Quando os governos ponderam como responder às consequências atuais da pandemia de COVID-19 nos sistemas de saúde, bem como às respostas a longo prazo ao envelhecimento das populações e aos orçamentos limitados, podem procurar uma solução única e simples que prometa cuidados de melhor qualidade a um custo mais baixo.32,33 No entanto, as provas apresentadas nesta análise sugerem que existe o risco de os governos procurarem reduções a curto prazo em detrimento dos resultados a longo prazo, em parte porque a privatização através da externalização de serviços para o sector privado não parece proporcionar simultaneamente melhores cuidados e cuidados mais baratos.

A nossa análise também tem potencialmente implicações para os argumentos teóricos mais amplos apresentados a favor da privatização em muitos domínios. Os dados aqui compilados não correspondem às expectativas dos mercados mistos, nomeadamente de que melhorariam a qualidade através do aumento da concorrência.5,9 Os dados apresentados nesta análise não põem em causa o mecanismo teórico básico, mas sugerem antes que algumas áreas do Estado-providência, como a educação e os cuidados de saúde, podem estar estruturadas de forma a serem menos suscetíveis aos tipos de incentivos que operam noutros mercados. Por exemplo, encontrar inovações que melhorem a qualidade no sector dos cuidados de saúde pode ser mais difícil do que noutras áreas da economia, o que pode diminuir os incentivos para competir em termos de qualidade.2 A apreciação desta variação pode fazer com que os governos parem antes de prosseguir reformas dispendiosas e demoradas em sectores onde a margem para melhorias de qualidade é potencialmente pequena a curto prazo.

A presente análise centrou-se na conversão de serviços públicos em serviços prestados pelo sector privado. No entanto, este processo não é muitas vezes tão simples como a transição total para serviços privados e as formas subtis de privatização, como as parcerias público-privadas, podem ser mais difíceis de avaliar. Por exemplo, é frequentemente feita uma distinção entre organizações privadas com e sem fins lucrativos. Nos estudos incluídos nesta revisão, as transições para a prestação de serviços com fins lucrativos resultaram normalmente em maiores declínios na qualidade dos cuidados de saúde, em comparação com as transições para o estatuto de organização sem fins lucrativos, mas as transições para organizações privadas sem fins lucrativos também resultaram frequentemente em declínios na qualidade dos cuidados de saúde. Uma das razões para esta conclusão pode ser o facto de as organizações sem fins lucrativos poderem comportar-se de forma semelhante às organizações com fins lucrativos.34 Em alternativa, poderíamos ter encontrado maiores diferenças entre outras categorias de propriedade se os estudos tivessem incluído essas subcategorias, por exemplo, os prestadores de cuidados de saúde detidos por capitais privados que têm um desempenho particularmente fraco.35

Esta análise tem algumas limitações, nomeadamente o facto de nenhum estudo sobre privatização ter sido realizado num ensaio aleatório, o que significa que os resultados estão necessariamente sujeitos a potenciais enviesamentos na sua validade interna. Por exemplo, quando as alterações à legislação também alteram simultaneamente os relatórios financeiros, os sistemas de pagamento e os processos de reembolso, ou quando há uma perda de serviços que ocorre paralelamente à privatização. É muito improvável que um ensaio aleatório deste tipo seja realizado na prática e, mesmo que houvesse um governo disposto a integrar a aleatorização na implementação de uma reforma de privatização, seria difícil garantir que o processo de aleatorização não fosse violado de alguma forma. Por outras palavras, as conceções de investigação de referência que podem responder a esta questão são provavelmente muito diferentes das reformas ou intervenções a nível individual, o que deve alterar a forma como encaramos as provas aqui compiladas. A investigação resumida nesta revisão não é apenas a melhor evidência de que dispomos atualmente, mas muitos destes estudos permanecerão provavelmente entre as melhores evidências que alguma vez poderemos recolher nesta área.

Do mesmo modo, os dados apresentados na presente análise provêm de um pequeno número de países de elevado rendimento (ou seja, oito países). Os nossos resultados não se aplicam, obviamente, aos países de rendimento médio e baixo e é possível que estes processos sejam diferentes nesses contextos, especialmente quando a base para a provisão pública não tem tantos recursos como em alguns dos contextos de rendimento elevado incluídos nesta análise. Além disso, embora as revisões sistemáticas tenham como objetivo descobrir o chamado efeito real de uma intervenção, o efeito da privatização dependerá provavelmente dos contextos sociais e institucionais em que essas reformas ocorrem. Declarar que a privatização nunca funciona seria prematuro (os estudos que incluímos sugerem alguns efeitos positivos em alguns contextos específicos) e precisamos de mais investigação para compreender quando é que a externalização pode melhorar a qualidade e não apenas reduzir os custos.

Há muitas lacunas nesta análise que merecem ser investigadas. A mais óbvia é o efeito das conversões de hospitais nos resultados de saúde dos doentes, mas também existe uma grande capacidade para análises de investigação a nível ecológico sobre outros resultados para além das taxas de mortalidade. Outra lacuna é o facto de muito poucos estudos incidirem sobre outros aspetos dos cuidados de saúde para além dos cuidados hospitalares – os cuidados comunitários, primários e ambulatórios são largamente omitidos. Muitos dos estudos centram-se nos níveis de pessoal, o que é apenas um de um vasto leque de fatores que poderiam ser considerados como fazendo parte da qualidade dos cuidados de saúde prestados aos doentes, faltando particularmente as perceções do público e dos doentes sobre os serviços prestados.15,16 Os estudos não desagregam os resultados por sexo ou género e o efeito da privatização dos cuidados de saúde sobre as desigualdades na saúde é uma área importante para investigação futura. Por último, considerámos principalmente os efeitos da externalização ou da subcontratação. Existem outras formas de privatização, como a transferência do financiamento dos cuidados de saúde do Estado para os particulares, que não foram analisadas na presente análise. Um exemplo é a passagem para o financiamento privado nos EUA, através da privatização do programa Medicare, que resultou em planos mais caros, mas com efeitos pouco claros na qualidade dos cuidados de saúde.36

Conclusão

Existe apenas um pequeno número de estudos sobre o efeito da privatização na qualidade dos cuidados prestados pelos prestadores de cuidados de saúde e, no entanto, neste pequeno grupo de estudos longitudinais, encontramos um quadro bastante consistente. No mínimo, a privatização dos cuidados de saúde quase nunca teve um efeito positivo na qualidade dos cuidados. A subcontratação também não é um facto benéfico, uma vez que pode reduzir os custos, mas parece fazê-lo à custa da qualidade dos cuidados. Em termos gerais, a nossa análise fornece provas que põem em causa as justificações para a privatização dos cuidados de saúde e conclui que o apoio científico a uma maior privatização dos serviços de saúde é fraco.

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