14 abril 2020

Dois minutos de fama

  
Público, 14.04.2020

Instar os profissionais de saúde a protegerem os doentes dos abusos da Comunicação Social é urgente.

“A Entidade Reguladora para a Comunicação Social, em face do contexto de pandemia de covid-19, saúda todos os profissionais da Comunicação Social (…) que estão na linhada frente em defesa do direito à informação e da saúde pública. A ERC congratula-se com o facto de se ter verificado uma postura de grande responsabilidade e um contributo de enorme valor social por parte da Comunicação Social portuguesa, na divulgação de informação premente sobre as medidas de combate à covid-19. (…) A ERC volta a alertar para os princípios (…) 2. Proteger a identidade e a reserva da intimidade da vida privada dos doentes e respetivas famílias, o respeito pela sua dignidade mesmo post mortem, ou de pessoas suspeitas de terem contraído o vírus, abstendo-se de divulgar imagens e declarações de pessoas em estado de vulnerabilidade física, psicológica e emocional.” (Comunicado da ERC, 08/04/2020)

Todos sabemos da “atração fatal” que dois minutos de tempo de antena exercem sobre o comum dos mortais. Quando um doente faz declarações às televisões nunca há referência a que foram recolhidas com consentimento (informado sobre as suas consequências). Mas, mesmo tacitamente consentidas, é lícito recorrer a declarações de pessoas doentes? Não, o simples facto de as recolher é, per se, um abuso de posição.

Muitas vezes estes depoimentos não passam da exploração de emoções que não se destinam a informar mas a ganhar audiências junto de pessoas fragilizadas e sensibilizadas pela divulgação de desgraças alheias. 

Impedir isso não é instituir uma “lei da rolha” nem é uma ofensa à liberdade de expressão. É uma medida higiénica que talvez coubesse nas especificidades de um decreto de estado de emergência, para não dizer que deveria ser permanente. Certo é que não se espera que a maioria dos profissionais e dos proprietários dos meios de Comunicação Social facilmente compreenda e aceite tal limitação. 

Seria, assim, importante ouvir as entidades reguladoras de médicos e enfermeiros (ordens) e os órgãos consultivos do Estado pronunciarem-se, alto e bom som, sobre a sustentação ética de tais práticas. Instar os profissionais de saúde a protegerem os doentes destes abusos é urgente. Naturalmente, deveriam ter igual cuidado com as declarações vãs, sequiosas de protagonismo, dos seus próprios dirigentes, mas isso é pedir demais.

01 abril 2020

Recomendações de Ética Clínica para Admissão e Interrupção de Cuidados Intensivos em Condições Excecionais de Desequilíbrio entre as Necessidades e os Recursos Disponíveis


SIAARTI (Sociedade Italiana de Anestesiologia, Analgesia, Reanimação e Cuidados Intensivos)

Recomendações de Ética Clínica para Admissão e Interrupção de Cuidados Intensivos em Condições Excecionais de Desequilíbrio entre as Necessidades e os Recursos Disponíveis

Tradução espontânea sem fins lucrativos de Raccomandazionidi etica clinica per l’ammissione a trattamenti intensivi e per la loro sospensione, in condizioni eccezionali di squilibrio tra necessità e risorse disponibili – versão 1, publicada em 06.03.2020. Ver original AQUI

Grupo de trabalho: Marco Vergano, Guido Bertolini, Alberto Giannini, Giuseppe Gristina, Sergio Livigni, Giovanni Mistraletti, Flavia Petrini

As previsões sobre a epidemia de Coronavírus (Covid-19) atualmente em curso em algumas regiões italianas estimam um aumento de casos de insuficiência respiratória aguda (que requerem admissão em cuidados intensivos) de tal magnitude em muitos centros nas próximas semanas que haverá um enorme desequilíbrio entre as necessidades clínicas reais da população e a disponibilidade real de recursos de cuidados intensivos.

É um cenário em que podem ser exigidos critérios de acesso a cuidados intensivos (e de alta) que não são só estritamente de adequação clínica e proporcionalidade dos cuidados, mas são também inspirados por um critério tão partilhado quanto possível de justiça distributiva e alocação apropriada de recursos de saúde limitados.

Tal cenário é essencialmente comparável ao da “medicina de catástrofes”, para o qual a reflexão ética desenvolveu ao longo do tempo muitas indicações concretas para médicos e enfermeiros empenhados em escolhas difíceis.

Como uma extensão do princípio da proporcionalidade dos cuidados, a alocação num contexto de grave carência (escassez) de recursos de cuidados de saúde deve ter como objetivo garantir um tratamento intensivo aos doentes com maiores hipóteses de sucesso terapêutico: trata-se, portanto, de dar prioridade à “maior esperança de vida”.

A necessidade de cuidados intensivos deve portanto ser integrada com outros elementos de “idoneidade clínica” para os cuidados intensivos, incluindo: o tipo e gravidade da doença, a presença de comorbilidades, a deterioração de outros órgãos e sistemas e a sua reversibilidade.

Isto implica não ter necessariamente de seguir um critério de “primeiro a chegar, primeiro a ser servido” para o acesso a cuidados intensivos.

É compreensível que os prestadores de cuidados, devido à sua cultura e formação, não estejam habituados a raciocinar com critérios de triagem de máxima emergência, uma vez que a situação atual tem caraterísticas excecionais.

A disponibilidade de recursos não entra normalmente no processo de tomada de decisões e de escolha de casos individuais até os recursos se tornarem tão escassos que não seja possível tratar todos os doentes que poderiam hipoteticamente beneficiar de um tratamento clínico específico.

Está implícito que a aplicação de critérios de racionamento só pode ser justificada depois de terem sido feitos todos os esforços possíveis por todos os envolvidos (em particular as “Unidades de Crise” e os órgãos de gestão das enfermarias hospitalares) para aumentar a disponibilidade de recursos que podem ser disponibilizados (neste caso, camas de cuidados intensivos) e depois de terem sido avaliadas todas as possibilidades de transferência de doentes para centros com maior disponibilidade de recursos.

É importante que uma mudança nos critérios de acesso possa ser partilhada, tanto quanto possível, entre os prestadores envolvidos.

Os doentes e os seus familiares afetados pela aplicação dos critérios devem ser informados da natureza extraordinária das medidas em vigor, como uma questão de dever de transparência e de manutenção da confiança no serviço de saúde pública.

O objetivo das recomendações é também o de:

(A) aliviar os clínicos de alguma a responsabilidade pelas escolhas, que podem ser emocionalmente penosas, concretizadas em casos individuais;
(B) explicitar os critérios de alocação de recursos de cuidados de saúde em condições da sua extraordinária escassez.

Das informações disponíveis até à data, uma proporção substancial das pessoas diagnosticadas com infeção por Covid-19 requer apoio ventilatório devido a pneumonite intersticial caracterizada por hipoxemia grave. A doença intersticial é potencialmente reversível, mas a fase aguda pode durar vários dias.

Em contraste com os quadros mais conhecidos da Síndrome de Dificuldade Respiratória Aguda (ARDS, em inglês), com a mesma hipoxemia, as pneumonites da Covid-19 parecem ter uma complacência (compliance) pulmonar ligeiramente melhor e responder melhor às terapias de recrutamento alveolar, com pressão positiva expiratória final (PEEP, em inglês) média-alta, ciclos de pronação e óxido nítrico inalado. Tal como com os quadros mais conhecidos da ARDS habitual, estes doentes necessitam de ventilação protetora com baixa pressão motora (driving pressure).

Tudo isto implica que a intensidade dos cuidados pode ser elevada, assim como a utilização de recursos humanos.

Segundo dados das duas primeiras semanas em Itália, aproximadamente um décimo dos doentes infetados necessita de tratamento intensivo com ventilação assistida, invasiva ou não invasiva.

RECOMENDAÇÕES

1. Os critérios extraordinários de admissão e alta são flexíveis e podem ser adaptados localmente à disponibilidade de recursos, à possibilidade concreta de transferência de doentes e ao número de admissões atuais ou planeadas. Os critérios dizem respeito a todos os doentes de cuidados intensivos, não apenas aos doentes infetados com Covid-19.

2. A alocação é uma escolha complexa e muito delicada, até porque um aumento extraordinário das camas de cuidados intensivos não garantiria cuidados adequados aos doentes individuais e desviaria recursos, atenção e energia dos restantes doentes admitidos nas Unidades de Cuidados Intensivos (UCI). Também deve ser considerado o aumento previsível da mortalidade por condições clínicas não relacionadas com a atual epidemia, devido à redução da atividade cirúrgica e ambulatória eletiva e à escassez de recursos dos cuidados intensivos.

3. Poderá ser necessário pôr um limite de idade à entrada na UCI. Não se trata de fazer escolhas puramente baseadas em valores, mas de reservar recursos que podem estar em falta para aqueles que têm maior probabilidade de sobreviver e, em segundo lugar, para aqueles que podem ter mais anos de vida salva, com vista a maximizar os benefícios para o maior número de pessoas.

Num cenário de saturação total dos recursos dos cuidados intensivos, decidir manter um critério de “primeiro a chegar, primeiro a ser servido” equivaleria ainda a optar por não tratar quaisquer doentes subsequentes que seriam excluídos da UCI.

4. A presença de comorbidades e o estado funcional devem ser cuidadosamente avaliados, para além da idade. É concebível que um internamento relativamente curto em pessoas saudáveis se torne potencialmente mais longo e, portanto, mais consumidor de recursos para o serviço de saúde no caso de doentes idosos, frágeis ou com comorbidades graves.

Os critérios clínicos específicos e gerais do documento SIAARTI de 2013 sobre a falência de órgãos em fase final podem ser particularmente úteis para este fim.

Deve também ser feita referência ao documento SIAARTI sobre os critérios de admissão na UCI (Minerva Anesthesiol 2003;69(3):101-118)

5. Deve ser cuidadosamente considerada a possível presença de vontades previamente expressas pelos doentes através de qualquer diretiva antecipada sobre o tratamento e, em particular, ao que for definido (e juntamente com os prestadores de cuidados) por pessoas que já estão a passar para doença crónica através do planeamento de cuidados partilhados.

6. Para os doentes para os quais o acesso a cuidados intensivos é considerado “inadequado”, a decisão de pôr um limite aos cuidados (“teto dos cuidados”) deve, em qualquer caso, ser justificada, comunicada e documentada. O teto dos cuidados fixado antes da ventilação mecânica não deve impedir intensidades mais baixas de cuidados.

7. Qualquer juízo de inadequação do acesso a cuidados intensivos baseado unicamente em critérios de justiça distributiva (desequilíbrio extremo entre procura e disponibilidade) é justificado pela natureza extraordinária da situação.

8. No processo de decisão, se surgirem situações de particular dificuldade e incerteza, pode ser útil ter uma “segunda opinião” (possivelmente até apenas por telefone) de interlocutores particularmente experientes (por exemplo, através do Centro de Coordenação Regional).

9. Os critérios de acesso à UCI devem ser discutidos e definidos para cada doente com a maior antecedência possível, idealmente criando a tempo uma lista de doentes que serão considerados merecedores de cuidados na UCI quando ocorrer a deterioração clínica, desde que a disponibilidade nesse momento o permita.

Uma possível instrução “não intubar” deve constar do processo clínico, pronta a ser utilizada como guia se a deterioração clínica ocorrer de forma precipitada e na presença de prestadores de cuidados que não tenham participado no planeamento e não conheçam o doente.

10. A sedação paliativa em doentes hipóxicos com progressão da doença deve ser considerada necessária como expressão de boas práticas clínicas e deve seguir as recomendações existentes. Se não se espera que um período de agonia seja curto, deve ser providenciada a transferência para um ambiente não intensivo.

11. Todas as admissões em cuidados intensivos devem, em qualquer caso, ser consideradas e comunicadas como “ensaios em UCI” e, portanto, sujeitas a uma reavaliação diária da adequação, dos objetivos de tratamento e da proporcionalidade dos cuidados. No caso de um doente, admitido talvez com critérios-limite, não responder a um tratamento inicial prolongado ou se tornar gravemente complicado, a decisão de “desistência terapêutica” e de reprogramar os cuidados intensivos para cuidados paliativos - num cenário de afluxo de doentes excecionalmente elevado - não deve ser adiada.

12. A decisão de limitar os cuidados intensivos deve ser discutida e partilhada o mais colegialmente possível pela equipa de cuidados e - na medida do possível - em diálogo com o doente (e familiares), mas deve ser possível fazê-lo rapidamente. É de esperar que a necessidade de fazer tais escolhas repetidamente torne o processo de tomada de decisão em cada UCI mais robusto e mais adaptável à disponibilidade de recursos.

13. O apoio da Oxigenação por Membrana Extracorporal (ECMO, em inglês), como consumidora de recursos em comparação com uma admissão normal na UCI, em condições de entrada extraordinária, deve ser reservado para casos extremamente selecionados, esperando-se um desmame relativamente rápido. O ideal seria que fosse reservado para centros de referência de grande volume, para os quais o doente ECMO absorve proporcionalmente menos recursos do que os que seriam absorvidos num centro com menos experiência.

14. É importante “trabalhar em rede”, agregando e trocando informações entre os centros e os profissionais. Quando as condições de trabalho permitirem, no final da emergência, será importante dedicar tempo e recursos para o balanço e monitorização do possível esgotamento profissional e da angústia moral dos agentes.

15. Os efeitos nos familiares de doentes admitidos nas UCI Covid-19 também devem ser considerados, especialmente nos casos em que o doente morre no final de um período de total restrição de visitas.