30 dezembro 2010

Testamento vital (prefácio)

Prefácio in Testamento Vital – O que é? Como elaborá-lo?,

Laura Fer­reira Santos, pp. 11-2, Sextante (2010)

Escrever um prefácio não é fazer a interpretação do livro prefaciado. Tão pouco será fazer a apologia das ideias aí defendidas, nem, muito menos, fazer a crítica do seu conteúdo. Um prefácio deve ser, na minha opinião, uma breve apresentação do livro e de quem o escreveu, apontando, perante os seus potenciais leitores, razões para uma leitura atenta.

Esta obra aparece no tempo certo na medida em que está aberto um debate, de âmbito nacional, sobre o “Testamento Vital” e sobre a forma como a legislação deve ser redigida. É tempo de esse debate se alargar e de nele entrarem contributos oriundos de áreas diversificadas. O assunto é demasiado importante para ser deixado aos médicos, aos juristas ou aos eticistas do costume.

Um debate que se queira produtivo implica que o cidadão comum disponha de meios para formar a sua opinião individual e para que a opinião coletiva se vá consolidando de modo racional. Debater assuntos desta índole e sensibilidade com base em preconceitos, estreiteza de vistas ou ignorância, só pode acabar mal.

O livro adota um formato pedagógico com linguagem acessível e fundamenta-se em informações sólidas e bibliografia exaustiva. É isso a pedagogia – ciência que trata da educação dos jovens! Só alguém vindo das ciências da educação, com domínio das ferramentas académicas, com provas dadas na reflexão sobre questões da vida e da morte, poderia proporcionar-nos uma obra tão completa (e ao mesmo tempo tão concentrada) como a que temos agora ao nosso dispor.

A professora Laura Ferreira Santos consegue colocar-nos a pensar sobre este tema, não escondendo dos leitores as opiniões diversas das suas, defendendo os seus pontos de vista com clareza e com honestidade intelectual notáveis.

A futura legislação sobre o respeito pela vontade de uma pessoa (expressa de modo inequívoco e relativa a factos que podem vir a passar-se se essa pessoa ficar incapaz) será, certamente, mais justa e equilibrada se todos quantos contribuírem para a sua formulação final tiverem lido esta obra.

O respeito pela autonomia da pessoa – princípio bioético dominante, embora não absoluto – há de ser tanto maior quanto mais consciente estiverem todos os intervenientes no processo de decisão. A consciencialização destes intervenientes começa por uma atitude de abertura à compreensão do problema e pela capacidade de aceitar as consequências das suas decisões. Não são só os médicos (alguns, muitos) que necessitam de mudar o paradigma do seu exercício profissional no que se refere ao respeito pela autodeterminação dos “seus” doentes. Não basta que os juristas traduzam em lei o que os médicos discutem já que, por vezes, se limitam a tentar prevenir confrontos judiciais ou disciplinares.

É verdade que os problemas legais e os dilemas éticos relacionados com os cuidados do fim de vida não se resolvem todos, milagrosamente, com a redação, assinatura, registo e publicitação de umas Diretivas Antecipadas de Tratamento, por mais completas e bem pensadas que estas sejam (*). Todavia, com Diretivas completas e bem pensadas, havendo sustentação legal, alguns problemas encontram solução e alguns dilemas dissolvem-se.

Porto, 26 de junho de 2010

* Veja-se, por exemplo, sobre a questão da autonomia precedente, as posições contrapostas de Ronald Dworkin (in “Life Past Reason”) e de Rebecca Dresser (in “Dworkin on Dementia: Elegant Theory, Questionable Policy”), transcritas em “Bioethics, An Anthology, Edited by Helga Kuhse and Peter Singer, Blackwell Philosophy Anthologies, Second Edition, 2006”. Págs 262, 357, 365.

30 setembro 2010

Análise de projetos de investigação clínica (documento-guia)


Comissão de Ética (2006-2011)

Este texto foi debatido no “SEMINÁRIO SOBRE INVESTIGAÇÃO CLÍNICA E O PAPEL DAS COMISSÕES DE ÉTICA PARA A SAÚDE” organizado em 29/09/2010 pelas Comissões de Ética para a Saúde da região norte e destina-se a ser um documento de orientação, sem carácter vinculativo.

ver AQUI

01 abril 2010

De quem são os artigos publicados na Revista?

 Revista OM - março/abril/2010

É correto dizer-se que só não erra quem nada faz. Por isso, quando alguém erra e nos causa embaraços, muitas vezes só nos resta lamentá-lo e tentar uma “redução de danos”.

Na Revista da Ordem datada de janeiro, o meu nome apareceu erradamente como autor de um escrito e, para agravar, o texto tinha o mesmo título de um artigo meu, intitulado “De quem são os dados do processo clínico?”, publicado na edição de dezembro, e vinha acompanhado da minha fotografia.

O seu verdadeiro autor estará naturalmente incomodado mas não tanto como eu. Na verdade, ter recebido mensagens de leitores interrogando-me sobre o que eu queria dizer ou cumprimentando-me pelo que não disse, é algo… impressionante!

Não tenho vontade de responder à série de perguntas que o autor (involuntariamente anonimizado) apresenta. Mais me agradaria conhecer as suas próprias respostas!

Mas, na mesma edição, foi também publicado um artigo escrito pelo meu amigo Fernando Gomes, que reage ao meu texto de dezembro, pelo que gostaria de tecer alguns breves comentários.

Ao contrário do que possa entender-se do que escrevi, eu também concordo em que haja uma parte do processo clínico eletrónico que exerça a função de bloco de notas do médico e se destine à sua memória. A esse espaço só deverá ter acesso o seu autor e, portanto, o seu conteúdo não deverá, não poderá, ser considerado como parte dos dados clínicos da pessoa titular do processo. Consequentemente, não sendo acessíveis a outros intervenientes do tratamento ou do mero seguimento da pessoa, não sendo dados de saúde, essas anotações não são para aqui chamadas.

O que diz a lei, e note-se que a Lei n.º 46/2007, sendo a transposição de uma diretiva europeia, tem mais força do que outras e do que o Regulamento interno Código Deontológico da Ordem dos Médicos. E a lei é clara: «A comunicação de dados de saúde é feita por intermédio de médico se o requerente o solicitar.» Não diz que a comunicação de dados de saúde, quando o requente a solicitar, é feita por intermediação de médico.

Ao argumento legal, que me parece irrebatível, acrescentei o argumento ético: se não posso conhecer toda a informação, não tenho autonomia!

Acresce que receio, perante o que escreveu, que Fernando Gomes possa induzir em equívoco alguns leitores ao ligar o dever de documentação aos riscos da medicina defensiva. É preciso dizer bem alto a todos os médicos que é precisamente o contrário: só nos podemos defender se tudo estiver registado.

Finalmente, gostaria de deixar claro (porque tal é comentado com uma pontinha de crítica) que a referência, junto ao meu nome, às funções que atualmente desempenho, em situação de total independência, em dois órgãos consultivos, apenas se destina a melhor me identificar e em nada, obviamente, os compromete. A referência ao facto de me encontrar retirado do exercício profissional tem o mesmo objetivo. Estas menções destinam-se a compensar a minha apagada vida associativa – coisa que não acontece com o dirigente que se deu ao trabalho de comentar o meu artigo. Certo é que tão importante pode ser a opinião de um retirado como a de um ativo, sobretudo, como é o caso, quando ambos se respeitam há tantos anos.

01 março 2010

Um Homem a Morrer e as Escolhas de Sofia

Tradução espontânea do artigo A Dying Man and Sophie's Choices de John Carney, publicado no blogue do Center for Practical Bioethics em 02.02.2010

Quero expressar os meus sentimentos a Alicia pela morte do seu pai (*). Gostaria também de lhe apresentar desculpas a ela e, postumamente, a ele – por terem sido responsabilizados por decisões que nunca lhes deviam ter sido assacadas.

Morrer é já duro que chegue para os doentes e suas famílias, não havendo razões que justifiquem que o façamos mais difícil, colocando obstáculos mecânicos ao seu caminho. Essa não é a arte da medicina, é o desertar tecnológico. Ele morreu ligado a máquinas por que assim escolheu, pensa ela.

É isto realmente verdade? Nós, nos cuidados de saúde, contribuímos para que a sua morte fosse algo de inimaginável há algumas décadas. Não se trata de um “erro” apenas, como ela sugere, mas de um erro evitável pois um homem que está a morrer não tem de fazer as “escolhas de Sofia” (**).

Não podemos deixar que torturem uma pessoa vulnerável com base numa falsa noção de autodeterminação. Quando uma intervenção médica não pode servir o objetivo para que foi pensada, não pode aproximar-se de um padrão aceitável ou atingir uma certa meta assistencial, não deveríamos forçar a sua aplicação.

Não temos qualquer obrigação de oferecer, recomendar ou mesmo sugerir uma intervenção de que os doentes não possam beneficiar e deveríamos evitar pôr os doentes na “via mecânica para a morte”.

De certo modo, apoiar esta filha e o seu pai exige que confrontemos a inevitabilidade da sua morte com eles, de modo piedoso, honesto e ético. Sim, teria sido errado ela dizer-nos que o pai não queria ser entubado se ele o queria, mas aquela decisão não deveria condicionar todas as outras.

Cabia-lhe dizer a verdade quando perguntada acerca dos tratamentos preferidos por seu pai – especialmente atendendo aos êxitos das intervenções prévias. A nós cabe-nos assegurar que respeitamos as preferências de modo pensado e razoável.

Estamos obrigados a oferecer cuidados centrados nos doentes, não cuidados dirigidos pelo doente. A quem serviu prolongar estes seis meses de agonia? Autonomia sem tino é tão desrespeitosa do doente como o paternalismo.

Sim, Alicia, o seu papel era apoiar o seu pai e o nosso era apoiá-la a si. Você pode ter desempenhado a sua parte, mas infelizmente nós abandonámos ambos, permitindo que o nosso “apoio” produzisse incómodos impensáveis ao mesmo tempo que usávamos erradamente recursos valiosos como se fosse aceitável.

________________
Notas do tradutor
(*) Refere-se a «Um Pai Doente, uma Decisão de Vida ou Morte» (An Ill Father, a Life-or-Death Decision, de Alicia von Stamwitz, publicado no New York Times em 25.01.2010, em que a autora relata a situação que viveu ao decidir que os médicos prosseguissem tratamentos invasivos com um mínimo de possibilidade de recuperação de seu pai. Termina o artigo afirmando: «O meu pai nunca mais recuperou. Nunca mais respirou sem ajuda do ventilador mecânico, não saiu mais do hospital, foi colocado em diálise e com alimentação por sonda. Seis meses mais tarde morreu de insuficiência cardíaca. Creio que a sua decisão foi um erro. Mas foi um erro dele, não meu. O meu papel era apoiá-lo, não interessa em quê, e falar verdade por mais difícil que fosse.»
(**) A escolha de Sofia (Sophie's Choice) é um romance de William Styron publicado em 1979. Trata do dilema de "Sofia", uma mãe polaca, filha de pai antissemita, presa num campo de concentração durante a Segunda Guerra e que é forçada por um soldado nazi a escolher um de seus filhos para ser morto. Se ela se recusasse a escolher um, todos os filhos seriam mortos. (Fonte: Wikipédia)

31 janeiro 2010

Rede Nacional de Comissões de Ética

 

I Jornadas Comissão de Ética para a Investigação Clínica (Infarmed)

Janeiro de 2010

Comunicação: “Rede Nacional de Comissões de Ética”

As Comissões de Ética para a Saúde (CES), consagradas pelo DL. 97/95, têm desempenhado um papel relativamente apagado nos hospitais portugueses, e esse apagamento parece ter-se acentuado a partir da Lei 46/2004 que aprovou o regime jurídico aplicável à realização de ensaios clínicos com medicamentos de uso humano, e criou a CEIC. Em Novembro de 2008, a DGS concluiu um estudo estatístico sobre a situação das CES, contendo as respostas de um questionário a elas dirigido, o qual foi apresentado num encontro realizado no Hospital de S. João. Deste estudo, publicado no portal da DGS, pode inferir-se que os membros das CES que exercem funções no respetivo hospital não têm, maioritariamente, qualquer tempo oficialmente atribuído ao exercício desse trabalho. Verifica-se que o número de horas por mês dedicado pelos membros a tarefas da CES é muito variado (por ex.º a média para presidentes é de 10,5 h/mês, [DP 21,65] e para membros é de 4,3 h/mês [DP 2,47]). Em 2007, as CES elaboraram, em média, 18 pareceres por comissão, sendo que a maioria (34 em 64) elaborou menos de 25 pareceres, e apenas 4 ultrapassaram a centena. Os pareceres visaram sobretudo questões de ética da investigação (90,6%). A grande maioria (70,3%) das CES não elaborou pareceres por sua iniciativa. São referidas as dificuldades logísticas e a falta de iniciativas de formação específica destinadas aos membros das CES. Apenas 18,8% das CES organizaram ações de formação para profissionais de saúde em 2007. A maioria (87,5%) não tem realizado reuniões com outras comissões de ética nem partilhado pareceres com relevância ética. Para além destes dados, subsiste a convicção de que as CES são, de um modo geral pouco visíveis, os seus membros não são identificados pela generalidade dos profissionais da instituição e os órgãos diretivos, frequentemente, ignoram a sua existência ou, pelo menos, desvalorizam a sua importância. Em Março de 2009, tendo sido recentemente constituída, a CES da ARSN promoveu uma reunião com os presidentes das CES hospitalares da região, e daí resultou a realização de um Seminário dedicado ao tema do Consentimento Informado, destinado exclusivamente a membros das CES, o qual teve lugar em Setembro de 2009. Está prevista uma nova reunião de presidentes em Janeiro de 2010. A CES da ARSN passou a divulgar todos os seus documentos junto das congéneres hospitalares. Apesar das competências atribuídas pela Portaria n.º 57/2007, a Comissão Executiva da CEIC não tem conseguido «Promover a implementação e certificação de um sistema de gestão de qualidade da CEIC e das CES, bem como monitorizar a sua atividade», assim como não tem sido capaz de «Promover junto dos membros das CES a formação específica em investigação clínica». A organização destas Jornadas aponta nesse sentido e urge ponderar as estratégias para uma consequente busca dessas metas. Mais do que uma supervisão, ou uma tutela, de onde emanem “ordens vindas de cima”, potencialmente ignorantes dos circunstancialismos locais, adivinha-se como curial que haja, em simultâneo, iniciativas que promovam a criação de condições necessárias ao trabalho que se espera das CES e para o qual foram talhadas. Os passos para a criação de uma “rede interativa de CES”, de nível nacional, dificilmente serão dados por geração espontânea. A noção de rede interativa, no sentido neuronal, implica, desde logo, que haja um núcleo gerador que receba o mandato de a iniciar e de a manter. Uma “rede de CES”, assente numa plataforma digital, que pode começar por ser a simples troca de mensagens de correio eletrónico e eventualmente estender-se a meios mais sofisticados, deve ser encarada como uma oportunidade para a troca de experiências, o conhecimento mútuo das atividades e de documentos emitidos. A interatividade deveria significar também a exploração de potenciais ações de formação virtuais, sem necessidade de deslocação física. O debate sobre a própria “rede de CES”, envolvendo os seus membros, é, só por si, o embrião dessa rede mas, duvida-se que possa ser frutuoso se não forem dados sinais políticos, de nível superior – não necessariamente legislativos ou regulamentares – que cheguem aos dirigentes máximos das instituições de saúde com força suficiente para aí provocar uma necessária alteração do atual paradigma relativo à dimensão ética dos cuidados de saúde prestados. É que a Ética não está no pensamento dos gestores por não constituir, habitualmente, causa de despesas ou fonte de receitas. Na verdade, muitos pensarão que não é preciso fazer nada para que os desempenhos profissionais ou institucionais tenham o condimento ético que os transforme em algo de diferente (e melhor). Dir-se-ia que, para que tudo mudasse, importaria dar às CES o quantum de poder que as tornasse subitamente visíveis, notórias e imprescindíveis. Sendo certo que muito depende da forma como as CES e os seus membros são capazes de impor a sua existência, tudo leva a crer que não basta o voluntarismo para que a situação se modifique de modo sustentado. Não devendo a Ética ser lida como entrave à ciência, nem potenciadora de burocracias, também as comissões de ética não devem ser transformadas em órgãos de contrapoder ou oráculos possuidores da Verdade. O carácter consultivo das CES, ainda que condição prévia obrigatória para a decisão de quem de direito, não deverá deixar de se traduzir na manifestação independente, refletida e fundamentada das questões éticas em presença. A existência de CES ativas, respeitadas, visíveis, competentes, apoiadas, desburocratizadas, certamente, contribuirá para que cada profissional pense mais no que “deve” do que no que “pode” fazer, mais na “pessoa” do que na “técnica”, mais no que é “lícito” do que no que é “útil”. Os destinatários das suas prestações agradecerão.