27 novembro 2016

Solilóquio


Amigas e Amigos, (*)

Há coisa de um ano, pensei em organizar este encontro para comemorar esta data redonda – não é todos os dias que se completam 70 anos – uma idade que, quando era jovem e via as pessoas da geração anterior alcançá-la, parecia ser muito … muito … especial.

E afinal não custa nada!

Contudo, os 70 anos continuam a ser o momento em que um tipo é atingido [PIM!] pelo limite de idade! Há quem se mantenha no seu posto até ser atingido [PAM!]. Outros, como eu, anteciparam a aposentação profissional e mudaram de vida antes de serem atingidos [PUM!].

Recordo-me de ter preparado um currículo para uma das provas da carreira hospitalar – tinha 35 anos – e de ter escrito que me considerava no meio da minha vida.

Cumprida agora a segunda metade, eis um bom motivo para comemorar, beber um copo de vinho do Porto (ou um sumo de laranja) com amigos e amigas – pessoas com quem me cruzei ao longo da minha vida.

Comemorar é, nesta altura, fazer um breve balanço e também refletir sobre o sentido da vida.

Gostava, se me permitem, de dirigir as minhas palavras às minhas adoradas netas, em especial à primeira delas – por ser a que, nos seus já maduros 13 anos, pode perceber melhor as coisas e a que tem talvez mais possibilidade de manter por mais tempo a memória deste dia.

Pois é, o teu avô está hoje muito feliz por ter aqui todos estes amigos que acharam bem vir felicitá-lo.

Estou feliz e agradecido.

Sabes, o sentido da vida, ou dito de outra forma, a vida só tem sentido quando nos sentimos felizes e vemos que os nossos amigos nos reconhecem como amigos. Mas, quando falo de vida feliz, falo de uma felicidade que ultrapassa a mera satisfação pessoal e uma desejada realização profissional, familiar ou social. E, repara bem, o sentido da vida que vale a pena ter é o que está ligado à felicidade (própria e do outro) e não ao dinheiro, ao poder ou à fama. E se falo em felicidade não digo que o caminho não tem dificuldades e ansiedades – pelo contrário.

Estão hoje aqui amigos do tempo em que andava no liceu de Braga e um pouco mais tarde no liceu da Póvoa. Continuam a ser grandes amigos desde mais ou menos a tua idade.

Estão aqui amigos do tempo da faculdade e outros com quem privei na carreira médica – na neurologia e na eletroencefalografia.

Não convidei pessoas a quem servi durante tantos anos como médico – doentes ou seus familiares – porque lhes perdi o rasto quando deixei a clínica (sem dor mas com saudade) há cerca de 12 anos mas também porque talvez não me ficasse bem fazê-lo…

Na vida fui muitas vezes escolhido para representar os meus colegas e dediquei a essas funções muito tempo – fui delegado do curso quase todos os anos da Faculdade, participei na fundação do Sindicato dos Médicos do Norte (ainda sou o sócio n.º 1), pertenci à direção regional da Ordem dos Médicos (estive uns seis anos a acompanhar a construção desde o princípio deste edifício da Casa do Médico – estão aqui amigos com quem partilhei esses tempos e essas funções).

E como me orgulho disso!

Sabes, fui também médico militar – participei na guerra colonial. Estão hoje aqui amigos feitos na tropa em Angola, nesse difícil percurso que não fui capaz de recusar.

Enquanto adolescente pertenci à Juventude Escolar Católica. Como jovem adulto militei no Partido Comunista. Em ambos os casos perdi a fé ou, como dizem alguns, perdi as féses… e não mais as voltei a encontrar.

Também estou agradecido a quem me acompanhou noutras atividades que tive – na Liga Portuguesa contra a Epilepsia e na EPI, a associação de amigos, familiares e pessoas com epilepsia, na APASD (da universidade Fernando Pessoa) e na Fundação SNS: foi onde percebi melhor o significado da solidariedade.

Fiz de técnico de eletroencefalografia, quando os não havia e depois participei no processo de criação formal da neurofisiografia enquanto profissão: foi onde descobri a interdependência e a autonomia própria das diversas carreiras da saúde.

Fiz amigos como funcionário público, quando arrumei as batas e estive na coordenação do gabinete do cidadão da ARS Norte: foi onde descobri os direitos dos doentes e o valor do serviço social na Saúde.

Depois da aposentação, se calhar ainda te lembras de ouvir falar lá em casa, dediquei uma boa parte do tempo a várias comissões de ética: foi onde descobri os deveres dos profissionais e a importância das virtudes.

Estão aqui amigos que fizeram o mesmo percurso e que tanto prezo por me terem ajudado a fazer o que devia.

Muitas vezes atrevi-me a fazer pequenas palestras e a dar umas aulas, convidado por amigos. Estão aqui alguns destinatários dessa atividade docente sempre avulsa, nunca uma vocação.

Estão também aqui estudantes, meus colegas hoje, da Faculdade de Letras onde nos últimos 2 anos e meio tenho assistido assiduamente às aulas da licenciatura em Filosofia e faltado sistematicamente aos exames. São os meus mais recentes amigos (alguns com menos 50 anos do que eu).

Ainda bem que me dispus a estudar filosofia, embora não tenha sabido aprender a filosofar – defeito meu ou da escola? – ainda assim, adquiri, tarde e más horas, umas boas bases para perceber melhor a vida e o seu sentido. Assim como percebi como são muitas as dúvidas que tenho e continuarei a ter.

Outros dos presentes são amigos feitos nos interstícios desta vida – professores, vizinhos, colaboradores, antigos “fornecedores”, leitores, outros.

A todos, todos estou grato.

Grato por estarem aqui. Alguns outros não puderam vir e alguns responderam ao convite com palavras tão bonitas e exageradas que não as posso revelar.

Queridas netas,

Queria dizer-vos que o percurso deste vosso avô não é um exemplo que tenha de ser seguido – foi uma das possibilidades e oxalá vocês no futuro possam escolher livremente percursos que vos façam felizes.

A minha vida foi sempre um bocado atípica – não foi programada nem prevista. Pode mesmo dizer-se que foi original e por isso diferente das dos meus amigos aqui presentes. É sabido que não há duas vidas verdadeiramente iguais. Falta saber se a vida de cada um é uma livre escolha ou está determinada por certas condicionantes a que não escapamos…

Nos últimos anos deu-me para intervir publicamente – escrever textos para serem publicados, participar em mesas redondas de vário tipo, fazer traduções espontâneas de textos lidos, manifestar-me aqui ou ali – e tentar influenciar os que me leem para concordarem com as minhas posições. Tenho enviado muitos mails para a RedÉtica (perto de 400 membros de comissões de ética) e para uma lista de cerca de 1700 destinatários…

Sinto que muitos concordam com o que digo e fazem-me saber disso – outros nem por isso.

Não me arrependo do que tenho feito. A meu ver, no final, o saldo é positivo.

Talvez por achar preferível parar enquanto o saldo parece positivo, ou porque receio que um dia destes me apareça alguém a perguntar “por que não te calas?”, meteu-se-me na cabeça que chegou a hora de pôr um ponto final nas minhas intervenções opinativas públicas.

Vou assim aproveitar o dia dos 70 anos para sair completamente de cena e dedicar-me somente a coisas da minha esfera muito pessoal. Porque não concretizar o velho sonho de fazer um e-dicionário toponímico ilustrado da cidade do Porto? Acho que vou tentar.

Já arrumei e cataloguei os 2780 livros lá de casa e há muitos ainda por ler – como os suscitados pelas aulas de Filosofia ou os acumulados sobre a portocidade (a qualidade de ser Porto).

E vou continuar a ler romances: afinal nós somos os livros que lemos. Acredito que é na literatura que aprendemos muito do que não vivemos.

Sabem,

Descobri que quanto mais estudava as questões filosóficas na Faculdade mais me apercebia de que sei tão pouco e como me falta competência para aprofundar os assuntos como deve ser.

É certo que a minha “esponja” cerebral já não absorve coisas como antes e, por isso, devia ter-me lembrado de estudar estas matérias mais cedo.

Obviamente, não vou deixar de refletir sobre o quotidiano, de conversar contigo quando estiveres para me aturar, de refletir sobre as interpelações dos meus amigos.

Mas o que eu queria mesmo dizer aos meus amigos é que tenho um imenso prazer em os ter como amigos.

O sentido da vida precisa que tenhamos sempre projetos para realizar e causas para abraçar, sendo que o mais importante é gostar das pessoas e que elas gostem de nós.

Julgo que pouco mais é preciso.

E, claro, em primeiro lugar está a felicidade de amar e de ser amado. Desde logo pelos nossos mais próximos – a família alargada (manos, cunhados, primos, sobrinhos e sobrinhetos) e, mais que tudo, a família nuclear: a minha amada há 46 anos (+6 de namoro), os nossos queridos “quatro” (2+2) filhos e as nossas deliciosas quatro netas.

Estou, assim, disposto a atirar-me, calado e feliz, à “terceira metade” da minha vida …

E, se não for antes, gostava que nos encontrássemos de novo daqui a 10 anos para celebrar os meus 80 anos (ou talvez os do Duque de Bragança e do Xanana Gusmão, do Donald Trump e do Bill Clinton, do Silvester Stalone e da Diane Keaton), mas também e sobretudo os 80 anos do meu herói de estimação, Lucky Luke, o cowboy solitário, mais rápido do que a própria sombra – afinal somos todos da colheita de 1946, como alguns dos presentes.

Bem hajam! Obrigado! … e Felicidades!

(*) solilóquio de Rosalvo Almeida, era para ser lido na Casa do Médico, no dia 27.11.2016.

«Aqueles que sempre serão felizes: Aqueles que, em qualquer época, buscam novas formas de existência, exploram alternativas e anseiam por novas experiências de vida, não se submetendo às formas institucionais de existência.» Miguel Real, Nova Teoria da Felicidade, p. 165, D. Quixote, 2013


Queridas Amigas e Queridos Amigos,

Antes de lerem esta mensagem prometam que não vão responder.

A sério! Não me façam sentir obrigado a comentar o que me digam… J

Há coisas que ou se fazem quando se pensou ser o momento de as fazer ou deixa de haver justificação para serem feitas noutra ocasião.

O encontro que planeei para hoje era, como todos viram, para ser feito numa data redonda (70 anos de vida) e implicava um estado de felicidade que queria partilhar convosco.

A felicidade, como todos sabem, não se dá bem com a doença mas, felizmente, a minha mulher já está em casa depois de quase uma semana com problemas circulatórios multissistémicos e recuperada de uma hemiplegia transitória coincidente com um cateterismo coronário. Esperamos que tão cedo não voltem as preocupações que tivemos agora e não posso deixar de vos agradecer do coração as mensagens (expressas ou silenciosas) que recebi de todos vós nestes dias.

Tinha planeado, no meio do “Porto com sentido” de hoje, botar faladura e referir-me à felicidade e ao sentido da vida. A felicidade ficou muito abalada. As reflexões sobre a vida que vivi mantêm-se. Por isso, transcrevo em baixo o que tinha já escrito para dizer aos presentes e enviar aos ausentes.

Serve esta mensagem também para confirmar a minha determinação em sair de cena.

Saudações, Rosalvo Almeida

06 outubro 2016

Os médicos devem ter o direito legal de recusar cuidados?

 

Reuters Health Information

Os médicos devem ter o direito legal de recusar cuidados?
Lisa Rapaport

Tradução espontânea do artigo 

Alguns médicos defendem que não deviam, por lei, agir como objetores de consciência nem de recusar serviços como a interrupção voluntária de gravidez ou a ajuda médica ao suicídio, mesmo quando tais atos conflituem com os seus valores pessoais.

Julian Savulescu, Universidade de Oxford, Reino Unido, e Udo Schuklenk, Universidade Queens, Ontário, Canadá, num artigo (*) da revista Bioethics, no passado dia 22 de setembro, defendem que isso resulta de o acesso a cuidados dever ser prioritário e os objetores de consciência poderem dificultar o acesso de doentes que têm necessidade desses cuidados.

A favor das suas posições invocam o número crescente de países em todo o mundo que discutem quanta autonomia deve ser dada aos doentes e aos médicos para tomarem decisões sobre cuidados do início e final de vida, especialmente numa época em que as novas tecnologias e a imprensa desafiam os limites das convicções pessoais e das crenças religiosas.

“Os médicos têm valores, muitas vezes profundamente arreigados, como toda a gente. No entanto, diferentemente na maioria das profissões, pode por vezes pedir-se aos médicos que ajam contra alguns dos seus valores”, disse Savulescu à Reuters Health por correio eletrónico.

“Embora existam situações em que a objeção de consciência pode ser admissível havendo uma opção alternativa ampla e prontamente disponível que permita que se preste o serviço, os médicos não devem ter tal direito legal”, afirmou Savulescu.

Os autores assinalam que, em alguns países, como a Suécia e a Finlândia, os médicos estão impedidos de se recusarem a prestar qualquer tipo de assistência médica que seja legal e podem ser despedidos se o fizerem.

Notam ainda que, noutros países, como a Austrália, Canadá, Reino Unido e USA, as leis permitem historicamente a objeção de consciência e os médicos entram na profissão com a expectativa de que não serão obrigados a prestar cuidados de saúde que colidam com as suas crenças religiosas ou convicções pessoais.

No caso da contraceção, os autores defendem que os médicos não devem ter direito legal de se recusar porque as mulheres não têm outra forma de a conseguirem. Além disso, uma vez que as mulheres querem o controlo da natalidade, o planeamento familiar é um bem social porque pode ajudar a evitar o excedente populacional.

O artigo é a refutação da defesa da objeção de consciência feita por Christopher Cowley do Colégio Universitário de Dublin publicado na revista Bioethics no ano passado. (**)

No que se refere à contraceção, Cowley defende no seu artigo que os clínicos gerais, que podem prescrever o controlo da natalidade como uma parte muito pequena da sua atividade clínica, devem ter o direito de recusar esse serviço da mesma maneira que são dispensados se tiverem uma dor de costas que os impeçam de executar determinadas tarefas.

No caso da contraceção, como da interrupção da gravidez ou do suicídio medicamente ajudado, um clínico geral que tenha objeções morais para esse serviço pode encaminhar os doentes para um prestador que não tenha objeção, refere Cowley. Desta forma, o objetor de consciência não limita necessariamente o acesso a tais cuidados de saúde.

Contudo, na sua refutação, os autores do presente artigo defendem que as pessoas que não acham que os médicos devem prescrever a contraceção não se devem tornar clínicos gerais. Em vez disso, devem escolher outra especialidade médica ou seguir uma carreira diferente.

É melhor para os doentes e para os médicos que as pessoas recebam cuidados de clínicos que atuam voluntariamente, disse Holly Fernandez Lynch, um investigador em bioética da Universidade de Harvard, Boston, não envolvido na redação do artigo.

“A profissão médica tem a responsabilidade de assegurar que existem suficientes profissionais dispostos a prestar os vários serviços que são exclusivamente seus – isso não significa necessariamente forçar os objetores de consciência, mas antes incentivar os profissionais disponíveis”, disse-nos Lynch por correio eletrónico.

Lynch acrescentou que, sempre que possível, os doentes devem apurar junto dos médicos quais os serviços que eles não fornecem, e os médicos devem revelar espontaneamente quaisquer objeções que tenham a tipos específicos de cuidados.

Por vezes, há hospitais [privados] que têm proibições religiosas contra a prestação de serviços como a interrupção voluntária da gravidez e que limitam o que os médicos podem fazer, refere Arthur Caplan, chefe de bioética no Langone Medical Center da Universidade de Nova Iorque.

Caplan, que também não é autor de qualquer dos artigos, disse-nos por correio eletrónico: “Por exemplo, quando se procura uma instituição de cuidados continuados, uma casa de repouso ou uma assistência domiciliária é crucial tentar conhecer os seus valores e práticas quanto às questões de fim de vida”. “Em todos os hospitais há uma comissão de ética e disponibilidade para analisar casos de conflito com um médico.”

Fonte: Bioethics 2016.

__________

(*) Julian Savulescu, Udo Schuklenk. Doctors Have no Right to Refuse Medical Assistance in Dying, Abortion or Contraception, 22 September 2016, 

Resumo - Num artigo nesta revista, Christopher Cowley argumenta que nós ‘interpretámos mal a natureza especial da medicina, bem como as motivações dos objetores de consciência’. Não o fizemos. Foi Cowley quem entendeu mal o papel dos valores pessoais na profissão médica. Nós defendemos que deve haver uma melhor proteção dos doentes face aos valores pessoais dos médicos e que deve haver restrições mais severas ao direito à objeção de consciência, particularmente em relação à morte ajudada. Defendemos que seja garantido aos doentes, que dele careçam, o acesso a serviços sujeitos a objeção de consciência, por via: (1) do fim do direito à objeção de consciência; (2) da seleção de candidatos para as principais especialidades médicas ou práticas que não têm objeções; (3) da perda da exclusividade de prestação destes serviços por parte da profissão médica.

 

(**) Christopher Cowley. A Defence of Conscientious Objection in Medicine: A Reply to Schuklenk and Savulescu, 10 December 2015

Resumo - Num recente editorial da revista Bioethics (2015), Udo Schuklenk argumenta contra a possibilidade de os médicos canadianos objetarem, por motivos de consciência, os novos procedimentos relativos à eutanásia aprovados pelo Parlamento. Nisso está de acordo com o artigo de Julian Savulescu no British Medical Journal, 2006, em que se defendia a fim da cláusula de objeção de consciência da Lei do Abortamento britânica de 1967. Ambos os autores apresentam fortes argumentos baseados na necessidade da uniformidade de serviços e nas analogias com tipos pouco recomendáveis de isenção pessoal. Neste artigo, quero defender a objeção de consciência nos sistemas de saúde com financiamentos públicos (como os do Canadá e Reino Unido), pelo menos nos casos de interrupção voluntária da gravidez e nos cuidados de fim de vida, sem menosprezar os importantes debates morais sobre a legitimidade de qualquer deles. A minha principal alegação é que Schuklenk e Savulescu interpretaram mal a natureza especial da medicina e as motivações dos objetores de consciência. Embora reconheça o ponto de Schuklenk sobre o diferente acesso a serviços lícitos em áreas rurais remotas, defendo que o serviço de saúde deve despender mais meios para proteger a objeção de consciência se quiser garantir um acesso universal.

05 setembro 2016

O espantalho e outras falácias

Público, 05.09.2016

 Dizer que os cuidados paliativos conseguem evitar sempre e sempre o sofrimento da pessoa doente é ‘tomar a parte pelo todo’ – uma falácia.

No debate sobre a despenalização da ajuda à antecipação da morte quando pedida por pessoa maior de idade em sofrimento devido a doença incurável ou irreversível (defendida sem ambiguidades em artigos meus neste jornal, “O horror do absoluto” em Julho e “Em defesa dos cuidados paliativos” em Abril, assim como em textos de outros) temos visto que há quem persista em considerar que é justo condenar à prisão quem, em determinadas condições, satisfaça tais pedidos.

Tal como no passado, muitos confundem o objetivo da despenalização com a bondade do ato a despenalizar. Ou seja, posso não concordar com o recurso à interrupção voluntária de uma gravidez mas não me atribuo o direito de castigar quem o faça, em determinadas condições. No caso presente, posso não satisfazer um pedido de ajuda à antecipação da morte que me seja dirigido mas não me autorizo a punir quem o faça, em determinadas condições. Penalizar, como prevê hoje o Código Penal, proíbe mas despenalizar não obriga.

O argumentário usado pelas partes resvala frequentemente para falácias que todos devemos evitar.

Dizer que modificar uma lei para despenalizar um ato, em determinadas condições, é pôr o Estado a realizar esse ato consubstancia a conhecida falácia do ‘espantalho’ – é deturpar o argumento do adversário para ser mais fácil atacá-lo. Exagerar ou distorcer oque outrem afirma faz parecer que a própria posição é razoável, mas isso no final descredibiliza o debate racional e sério.

Perguntar se o Estado “deve promover a morte dos cidadãos que queiram pôr termo à sua vida” ou “pode decidir que vidas têm ou não dignidade” é utilizar outra falácia – a ‘pergunta capciosa’. A pergunta ardilosa tem uma presunção incluída de modo que não possa ser respondida sem sensação de culpa. Mas a resposta é claramente: não!

Se, em vez de defendermos a nossa posição, desqualificássemos o opositor à nossa proposta, estaríamos, como foi feito , a recorrer à falácia ‘ad hominem’ e perderíamos a razão.

O Estado que legisla sobre as condições em que tais atos não serão crime não está a promover o homicídio. Dizer isso é ameaçar com a falácia da ‘rampa escorregadia’.

Dizer que os cuidados paliativos conseguem evitar sempre e sempre o sofrimento da pessoa doente é ‘tomar a parte pelo todo’ – outra falácia.

Não creio que se justifique continuar a malhar em ferro frio. Os dados estão lançados. Pressente-se que, na sociedade dos nossos dias, cresce o número dos que concordam com a despenalização da morte ajudada ou suicídio assistido, em determinadas condições.

É hora de os legisladores sentirem essa mudança de perspetiva nos portugueses. Cabe, agora, aos deputados tomarem iniciativas legislativas concretas que definam as condições em que não há lugar a pena de prisão para os profissionais de saúde que, em consciência, procedam com compaixão e evitem somar sofrimento ao sofrimento. O dever de bem assistir à pessoa doente não implica o afastamento do direito à objeção de consciência.

04 setembro 2016

Doçuras ou torturas?

Doçuras ou torturas? Acabemos com as confusões das assimetrias entre consentimentos e recusas

Rob Lawlor

RESUMO – Defendo, neste artigo, que o debate das assimetrias entre consentimento e recusa é, em grande parte, obscuro (por exemplo, quando é concedido a um adolescente o direito de consentir um tratamento mas não o direito de o recusar). O meu objetivo é realçar subtilezas e ambiguidades e mostrar que não estamos a tratar apenas de uma assimetria entre consentimento e recusa. Vou mostrar que há uma série de assimetrias relevantes e não apenas a assimetria de competência. E, mesmo que nos concentremos especificamente na assimetria de competência, temos de reconhecer que ela é ambígua. Ao esclarecer estas questões, pretendo acabar com a confusão habitual deste debate, o que permite avançar numa questão até agora considerada ininteligível.

ver tradução do artigo completo AQUI

26 agosto 2016

Homo deus - história breve do amanhã

 

Esqueçam a ideologia, as mais recentes ameaças à democracia liberal vêm da tecnologia e da biociência.

John Naughton

Tradução espontânea do artigo

Forget ideology, liberal democracy’s newest threats come from technology and bioscience

As conferências Reith da BBC em 1967 foram proferidas por Edmund Leach, um antropólogo social de Cambridge. “Os homens tornaram-se como deuses”, começou por dizer Leach. “Não será tempo de compreendemos a nossa divindade? A ciência permite-nos um domínio total sobre o nosso meio ambiente e sobre o nosso destino, mas em vez de alegria sentimos, profundamente, medo”.

Isto foi há quase meio século e, no entanto, as afirmações de Leach poderiam facilmente fazer-se hoje em dia. Ele falava antes de a Internet ser constituída e muito antes de o genoma humano ter sido descodificado e, mesmo assim, a sua alegação de os homens ficarem “como deuses” parece relativamente modesta quando comparada com os recursos que a biologia molecular e computação posteriormente permitiram. A nossa cultura baseada na ciência é a mais prevalente da história e a investigação, pesquisa, desenvolvimento e crescimento prosseguem incessantemente. Embora, nos últimos tempos, pareça também ter sido perturbada por uma angústia existencial à medida que começam a ser (levemente) vislumbradas as implicações devidas ao engenho humano.

O título que Leach escolheu para a sua conferência Reith – A Runaway World assenta bem no espírito dos nossos dias. De qualquer forma, estamos também cada vez mais impacientes com um mundo que parece funcionar fora de controlo, muito (mas não exclusivamente) por tudo o que as tecnologias da informação e as ciências da vida têm tornado possível. Porém, procuramos consolo ao pensar que “sempre foi assim”: as pessoas também se alarmaram com o vapor no tempo de George Eliot e emocionaram-se com a eletricidade, o telégrafo e o telefone quando apareceram. A parte boa é que nós superamos essas tempestades tecnológicas e igualmente iremos superar estas também. A humanidade ultrapassará tudo isso.

Contudo, nos últimos cerca de cinco anos, mesmo essas cautelas e otimismo pragmático começaram a esvanecer-se. Existem várias razões para esta perda de confiança. Uma é o absoluto ritmo vertiginoso da mudança tecnológica. Outra razão é que as novas forças presentes na nossa sociedade – nomeadamente as tecnologias da informação e as ciências da vida – foram potencialmente mais longe, nas suas implicações, do que o vapor de água ou a eletricidade alguma vez foram. E, em terceiro lugar, começámos a ver surpreendentes avanços nestes domínios que nos obrigam a recalibrar as nossas expectativas.

Um exemplo clássico é da inteligência artificial, definida como a tentativa de capacitar máquinas que façam coisas que exigem inteligência quando realizadas por um humano. Há tanto tempo quanto a maioria de nós se pode lembrar, a inteligência artificial nesse sentido esteve sempre vinte anos adiantada em relação à data prevista. Talvez ainda esteja. Mas nos últimos anos vimos como a combinação da capacidade de aprendizagem das máquinas, do poder dos algoritmos, da grande potência do processamento e dos chamados “grandes” de dados pode pôr as máquinas a fazer coisas impressionantes – tradução de idiomas em tempo real, por exemplo, ou condução de automóveis com segurança através de ambientes urbanos complexos – o que parecia implausível mesmo há uma década.

E isto, por seu lado, levou ao reaparecimento de uma animada especulação sobre a possibilidade – e os riscos existenciais – da “explosão da inteligência” que seria causada pela invenção de uma máquina capaz de autoaperfeiçoamento repetitivo. Esta possibilidade foi levantada pela primeira vez em 1965 pelo criptógrafo britânico IJ Good, que famosamente escreveu: “A primeira máquina ultrainteligente é a última invenção que o homem precisa fazer, conquanto a máquina seja suficientemente dócil para nos dizer como a manter sob controlo”. Cinquenta anos mais tarde, encontramos pensadores contemporâneos como Nick Bostrom e Murray Shanahan retomando convictamente a ideia.

Há um sentimento, portanto, de que nos aproximamos de um outro “fim da história” neste momento - mas com uma diferença. No seu famoso artigo de 1989, o cientista político Francis Fukuyama defendeu que o desmoronamento do império soviético significava o fim da grande batalha ideológica entre o Oriente e o Ocidente e da “universalização da democracia liberal ocidental como forma final de governo humano”. Naquela altura, esta foi uma alegação ousada, embora não implausível. O que Fukuyama não poderia ter conhecido é que um novo desafio para a democracia liberal viria a concretizar-se e que as suas principais raízes não residem na ideologia mas na biociência e nas tecnologias da informação.

Esse é, em suma, o argumento central do novo livro de Yuval Noah Harari, Homo Deus: A Brief History of Tomorrow. De certa forma, é uma extensão lógica do seu anterior livro, Sapiens: A Brief History of Humankind, que cobria todo o arco da história humana, desde a evolução do Homo sapiens até às revoluções políticas e tecnológicas do século XXI e que merecidamente se tornou um campeão de vendas mundial.

Muitas das obras sobre as implicações da nova tecnologia focam-se demasiado na tecnologia e muito pouco no papel da sociedade na sua construção. Isso acontece em parte porque aqueles que estão interessados nestas coisas são deterministas (como os engenheiros que as criam): acreditam que a tecnologia dirige a história. E, no fundo, Hariri é também um determinista. “No início do século XXI”, escreveu ele numa passagem marcante, “o comboio do progresso está de novo saindo da estação – e será provavelmente o último comboio a deixar a estação chamada Homo sapiens. Quem perder este comboio não mais vai ter uma segunda oportunidade. Para conseguir um lugar, necessita compreender a tecnologia do século XXI e, em particular, os poderes da biotecnologia e dos algoritmos de computador”.

E continua: “Estes poderes são muito mais fortes do que o vapor e o telégrafo e não serão, de um modo geral, utilizados para a produção de alimentos, têxteis, veículos e armas. Os principais produtos do século XXI vão ser corpos, cérebros e mentes e o fosso entre aqueles que sabem como projetar organismos e cérebros e os que não sabem será maior do que o fosso entre a Inglaterra de Dickens e o Sudão de Madhi. Com efeito, será maior que o fosso entre o Sapiens e o Neandertal. No século XXI, aqueles que viajam no comboio do progresso vão obter as capacidades divinas de criação e destruição, enquanto aqueles que foram deixados para trás irão enfrentar a extinção”.

Isto assemelha-se ao determinismo dos esteroides. O que o livra do ridículo é o facto de Hariri definir a história científica e tecnológica no contexto de uma análise historicamente informada sobre como evoluiu a democracia liberal. E ele tem uma interpretação sobre como as características definidoras da ordem liberal democrática podem na verdade ser implantadas pelos espantosos conhecimentos e utensílios que temos produzido no último meio século. Embora possamos, no final, estar em desacordo com as suas conclusões, podemos pelo menos ver como chegou a elas.

De certo modo, é uma história sobre a evolução e a natureza da modernidade. Durante a maior parte da história humana, argumenta Hariri, os seres humanos acreditavam numa ordem cósmica. O seu mundo era governado por deuses omnipotentes que exerciam o seu poder de modo caprichoso e incompreensível. O melhor que se podia fazer é tentar aplacar esses terríveis poderes e obedecer (e pagar impostos) a sacerdotes que se consideravam intermediários ungidos entre os meros seres humanos e os deuses. Pode ter sido uma vida dura mas pelo menos sabia-se onde se estava e, nesse sentido, acreditavam numa ordem transcendente que dava sentido à vida humana.

Mas depois veio a ciência. Hariri defende que a história da modernidade é melhor vista como uma luta entre ciência e religião. Em teoria, ambas procuram a verdade – porém diferentes tipos de verdade. A religião estava primordialmente interessada na ordem, enquanto a ciência, como ele diz, interessou-se principalmente pelo poder – o poder que vem de compreender como e por que as coisas acontecem e nos permite curar doenças, combater as guerras e produzir alimentos, entre outras coisas.

No final de contas, pelo menos em algumas partes do mundo, a ciência triunfou: crer numa ordem transcendental foi relegado para segundo plano – ou mesmo para o caixote do lixo da história. Conforme a ciência evoluiu, conseguimos efetivamente começar a adquirir competências que em tempos pré-modernistas se pensava apenas serem próprios dos deuses (como diria Edmund Leach). Mas se Deus estava morto, como disse Nietzsche numa frase famosa, onde iriam os seres humanos encontrar sentido? “O mundo moderno”, escreve Hariri, “prometeu-nos poder sem precedentes – e a promessa foi mantida. E que dizer sobre o preço? Em troca de poder, o pacto moderno espera que desistamos do sentido. Como lidam os seres humanos com este arrepiante e exigente pedido?... Como sobrevive a moral, a beleza e mesmo a compaixão num mundo de deuses do céu ou do inferno?” A resposta, argumenta, era um novo tipo de religião: o humanismo – um sistema de crenças que “santifica a vida, a felicidade e o poder do Homo sapiens”. Então o pacto que definiu a sociedade moderna foi uma aliança entre o humanismo e a ciência em que esta permite a realização dos fins especificados por aquele.

E a nossa crise existencial pendente, como Hariri a vê, vem do facto de este compromisso estar destinado a desintegrar-se neste século. Uma das implicações inevitáveis da biociência e das tecnologias da informação (argumenta) é que irão descredibilizar-se e portanto destruir as bases sobre as quais o humanismo está construído. E uma vez que a democracia liberal está construída sobre a devoção às metas humanistas (“a vida, a liberdade e a busca da felicidade” por cidadãos que são “criaturas iguais”, como os fundadores americanos estabeleceram), então os nossos novos poderes vão destruir a democracia liberal.

De que modo? Bem, a sociedade moderna está organizada à volta de uma combinação de individualismo, direitos humanos, democracia e mercado livre. E cada uma dessas bases está sendo corroída pela ciência e tecnologia do século XXI. As ciências da vida descredibilizam o individualismo tão celebrada pela tradição humanista com investigações que sugerem que “a pessoa livre é apenas uma história inventada por um conjunto de algoritmos bioquímicos”. O mesmo acontece com a ideia que temos do livre arbítrio. As pessoas podem ter a liberdade de escolher entre alternativas mas o leque de possibilidades é determinado noutros lugares. E é porque esse leque é cada vez mais determinado por algoritmos externos, como o “capitalismo da vigilância “ praticado pela Google, a Amazon e outras, que se tornam omnipresentes – para ir direto ao assunto, as empresas da internet afinal vão saber os nossos desejos antes de nós. E assim por diante.

Aqui Hariri espraia-se num tipo de território distópico que Aldous Huxley reconheceria. Ele vê três grandes direções.

1. Os seres humanos perderão a sua utilidade económica e militar e o sistema económico deixará de lhes atribuir valor.

2. O sistema ainda dará valor aos seres humanos coletivamente mas não a indivíduos isolados.

3. O sistema dará, no entanto, valor a alguns indivíduos, “mas estes serão uma nova raça de super-homens em vez da massa da população”. Por “sistema”, ele quer dizer o novo tipo de sociedade que irá evoluir ao mesmo tempo que a biociência e as tecnologias da informação progredirão no seu atual ritmo alucinante. Como dito antes, esta sociedade basear-se-á num pacto entre religião e ciência, mas, desse modo, o humanismo será substituído por aquilo a que Hariri chama de “dadismo” – a crença de que o universo é composto por fluxos de dados e o valor de qualquer entidade ou fenómeno é determinado pela sua contribuição para o processamento de dados.

Pessoalmente, a sua ideia de dadismo não me convence: a ideologia tecnocrática em que assenta a nossa obsessão atual com os “Grandes Dados” [Big Data] acabará por se desmoronar sob o peso do seu próprio absurdo. Mas em duas outras áreas, Hariri é extremamente perspicaz. A primeira é a nossa convicção de que não podemos ser substituídos por máquinas – porque nós temos consciência e elas não podem ter – poder ser algo infantil. Não porque a consciência das máquinas seja possível mas porque, para chegarmos à distopia de Hariri, a consciência não é necessária. Precisamos de máquinas que sejam superinteligentes: a inteligência é necessária; a consciência é um extra opcional que, na maioria dos casos, seria simplesmente uma chatice. E portanto não é um empecilho ao desenvolvimento da inteligência artificial.

A segunda é que tenho a certeza de que a sua leitura do potencial da biociência é certeira. Veja-se a revista The Economist que publicou recentemente uma peça intitulada “Enganar a morte: a ciência pode prolongar a sua vida útil”. Mas as novas e empolgantes possibilidades oferecidas pela tecnologia genética serão muito dispendiosas e somente acessíveis por elites. Assim, o longo século em que a medicina teve um efeito de “nivelamento por cima” nas populações humanas, trazendo bons serviços de saúde ao alcance da maioria das pessoas, chegou ao fim. Já hoje, as pessoas ricas têm vidas mais longas e saudáveis. Num par de décadas, essa diferença passar a ser abissal.

Homo Deus é um livro excelente, cheio de ideias e reinterpretações bem pensadas acerca do que pensávamos saber sobre nós mesmos e a nossa história. Em alguns casos parece (a mim) ser ingénuo sobre o potencial das tecnologias da informação. Mas o que é realmente importante é a forma como fundamenta a especulação feita sobre ciência/tecnologia no contexto da evolução da democracia liberal.

Um ponto a favor da importância da obra de Hariri é termos de recuar muito no tempo – até 1934, de facto, o ano em que foi publicado Technics and Civilization de Lewis Mumford - para encontrar um livro com um grau de ambição e alcance comparáveis. Não é mau para um jovem historiador.



23 julho 2016

O horror do absoluto

Público, 23.07.2016

Consideremos a morte medicamente assistida (ou medicamente ajudada, em tradução mais genuína) como o conjunto excecional de ações (de prescrição e/ ou de administração) praticadas por médico, eventualmente assessorado por outros profissionais de saúde, destinadas a antecipar a morte de pessoa, maior de idade, com capacidade para decidir, afetada por doença ou lesão incurável, cujo prognóstico de sobrevida possa ser razoavelmente fixado como inferior a um ano ou que se encontre em estado de total e irreversível dependência física, que as solicita de forma livre, voluntária, assertiva e consciente, movida por sofrimento físico ou psíquico que não queira mais aceitar, ou que, se estiver fisicamente incapacitada de se manifestar, o tenha previamente feito de modo claro e expresso numa “diretiva antecipada de vontade” válida ou em instruções expressamente transmitidas por escrito a um procurador de Cuidados de Saúde credenciado.

Vejamos estes atos médicos necessários à antecipação da morte, nos termos acima referidos, como só podendo ser concretizados após o médico, a quem a pessoa se dirija pedindo ajuda à antecipação da morte, ter obtido a concordância de um segundo médico (se possível especializado na doença em causa) para conjuntamente subscreverem um documento com a identificação completa da pessoa doente e dos seus subscritores, os fundamentos da anuência, as notas clínicas relevantes (os métodos e fármacos usados, o tempo entre o início do processo e o seu desfecho, os sintomas e ocorrências adversas), assim como a data e hora da verificação do óbito, cujo original deve ficar junto ao processo clínico ou, se não houver, ficar na posse do médico assistente, devendo o duplicado ser remetido, por um dos médicos subscritores, à Direção- Geral de Saúde (que elaborará um relatório anual).

Aceitemos que, em caso de dúvidas levantadas por familiares ou membros da equipa de saúde, os dois médicos, antes de prosseguirem, têm o dever de obter a concordância de um terceiro profissional, que deverá ser psiquiatra ou psicólogo, se as dúvidas se referirem a eventual perturbação psíquica que afete a capacidade da pessoa para tomar decisões, o qual igualmente deverá subscrever o referido documento, adicionando as notas clínicas que entenda relevantes.

A cumprirem-se estas disposições, podemos afastar receios de derivas e dar por finda a atual criminalização de gestos misericordiosos ou compassivos realizados a título excecional. Os que pensam ser a vida um bem absolutamente indisponível — e que, por isso, todos quantos se atrevam a satisfazer, nestas condições, um pedido de ajuda à antecipação da morte devem ser punidos com prisão — parecem querer dizer que o sofrimento que antecede a morte “natural” tem de ser aceite em quaisquer condições. Não é preciso estudar Direito ou ter acesso a uma biblioteca para ver o horror de uma tal atitude.

15 julho 2016

Rejeição de tratamentos medicamente recomendados durante a gravidez

Rejeição de tratamentos medicamente recomendados durante a gravidez

Tradução espontânea do Parecer
American Congress of Obstetricians and Gynecologists

Resumo: Um dos cenários mais desafiantes em cuidados obstétricos acontece quando uma gestante recusa tratamentos médicos recomendados que procuram contribuir para o seu bem-estar, o bem-estar do seu feto ou de ambos. Em tais circunstâncias, a obrigação ética do obstetra-ginecologista de respeitar a autonomia da gestante pode entrar em conflito com o desejo ético de possibilitar o máximo de saúde para o feto. A adesão forçada – em alternativa a respeitar a rejeição – suscita, seriamente, importantes questões relacionadas com direitos dos doentes, respeito pela autonomia, ofensas à integridade física, divergência de competências e equidade de género. O objetivo deste documento é proporcionar aos obstetras-ginecologistas uma estratégia ética para conseguirem que a decisão da gestante de rejeitar tratamentos médicos recomendados contemple a centralidade da sua capacidade de decidir e a relação recíproca entre grávida e feto.

Ver tradução completa AQUI

30 junho 2016

Dignity - Dignité


 O conceito de dignidade e a sua utilização nos debates sobre fim-de-vida 
em Inglaterra e França

Ruth Horn (investigadora de Sociologia), Angeliki Kerasidou (investigadora de Filosofia e Teologia)

Tradução espontânea do artigo 

The Concept of Dignity and Its Use in End-of-Life Debates in England and France

Introdução

Dignidade é um conceito muito discutível. Muitos significados diferentes têm sido propostos nos debates éticos e políticos, mas não foi alcançado um consenso 1. A falta de uma definição clara de dignidade deu origem a controvérsias e confusões. Alguns autores defendem o termo 2,3,4, outros rejeitam-no por inútil em bioética 5. No entanto, a dignidade continua a ser um conceito proeminente em orientações e regulamentos internacionais de bioética. Por exemplo, a Convenção Europeia sobre os Direitos Humanos e a Biomedicina (1997) 6, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da UNESCO (1997) 7 e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005) 8, todas invocam a dignidade humana e a obrigação de a respeitar como fundamento de restrições e obrigações na prática biomédica.

O respeito pela dignidade é invocado como um dos princípios fundamentais dos debates e diretrizes morais internacionais sobre problemas de fim-de-vida. Mais especificamente, o artigo 5.º da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos e Biomedicina estabelece a obrigação de procurar o consentimento do doente para cada intervenção em saúde, o que implica o direito de recusar o tratamento, como uma forma de respeito pela dignidade e pelas liberdades individuais. A convenção é apoiada pela maioria dos países europeus, incluindo Inglaterra e França. Estes países têm a obrigação de implementar as diretivas da convenção a nível nacional. No entanto, as abordagens nacionais dessa aplicação podem diferir consideravelmente. Uma das razões para esta discrepância entre os países pode ser os diferentes significados do termo “dignidade” e as diferentes formas que o respeito pela dignidade humana podem tomar 9. Portanto, é importante explorar os diferentes significados da dignidade numa tentativa para clarificar o seu uso nos debates 10 e assim facilitar o diálogo entre países 11.

Neste artigo concentramo-nos em dois países, Inglaterra e França, e na forma como as diretrizes internacionais em matéria de respeito pela dignidade têm sido traduzidas a nível nacional. Analisamos as questões legais das práticas no fim-de-vida em Inglaterra e França e também investigamos o significado do termo “dignidade” tal como aparece nas políticas públicas e diretrizes nacionais.

Defendemos que em Inglaterra o respeito pela dignidade é essencialmente entendido como o respeito pela autonomia, enquanto em França o respeito pela dignidade é sobretudo entendido como o respeito pela humanidade, a solidariedade e a ordem pública. Concluímos que as diretrizes internacionais que invoquem termos discutíveis como “dignidade” não podem conduzir a uma harmonização de políticas e práticas a nível europeu e indicam que, para que a harmonização das políticas e práticas seja alcançada, o significado do termo tem de ser mais bem definido.

Abordagem legal das práticas de fim-de-vida em Inglaterra

Os esforços para estabelecer o respeito pela dignidade do doente já constam de documentos internacionais. Como mencionado anteriormente, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a Biomedicina salienta a obrigação de procurar o consentimento livre e esclarecido dos doentes, antes de qualquer intervenção em saúde (artigo 5.º), como elemento essencial para o respeito pela dignidade dos doentes e pelas liberdades (artigo 1.º). Além disso, a convenção obriga a que os prestadores de cuidados de saúde mostrem respeito pela dignidade e pela liberdade dos doentes, tendo em conta os seus desejos quanto aos tratamentos em fim-de-vida. No entanto, França e Inglaterra adotaram diferentes maneiras de cumprir esta obrigação, ao atribuir um estatuto jurídico diferente à vontade dos doentes que recusam tratamentos 12.

No Direito inglês, o direito de um doente recusar tratamentos baseia-se no princípio da integridade física, introduzido pela primeira vez em 1765 por William Blackstone 13. Conquanto sejam devidamente informados e tenham compreendido as consequências da sua decisão, os doentes não têm de explicar em pormenor as razões por que pretendem recusar um tratamento. Os doentes podem recusar qualquer tratamento, mesmo tratamentos para manter a sua vida, “por razões racionais, irracionais ou sem quaisquer razões” 14. No caso de doentes incapazes, são juridicamente vinculativas, no Direito inglês, as declarações antecipadas de recusa de tratamentos específicos, desde que o doente tenha compreensão suficiente da situação quando a declaração foi feita 15. Apenas nas situações em que existam dúvidas sobre a coerência e a clareza do desejo anteriormente expresso é que o tribunal pode decidir ignorar a decisão antecipada do doente que recusa tratamentos 16.

Desde a Lei da Capacidade Mental de 2005, que entrou em vigor em Inglaterra e no País de Gales em 2007, as decisões antecipadas de recusa de tratamentos escritas são também juridicamente vinculativas ao abrigo da lei, desde que certos critérios se verifiquem. A lei de 2005 introduziu as decisões antecipadas como uma forma de reforçar a autonomia dos doentes que fiquem incapazes. Na ausência de uma tal decisão antecipada, de acordo com a secção 4 da lei, o tratamento de um doente incapaz deve ser feito no seu “melhor interesse”; isto significa que o médico deve contrabalançar os benefícios clínicos com as vontades passadas e presentes da pessoa, seus sentimentos, crenças, valores e com qualquer outro fator que a pessoa teria em conta se fosse capaz de o fazer. O médico deve também ter em conta as opiniões de outras pessoas, como familiares e amigos próximos, que possam contribuir para se determinar quais seriam os melhores interesses dessa pessoa em concreto.

Abordagem legal das práticas de fim-de-vida em França

Em França, a lei sobre os direitos dos doentes [loi sur les droits des patients] de 2002 (lei n.º 2002-303) introduziu o direito à recusa de tratamentos 17. Muitos médicos franceses, no entanto, alegaram que era dúbia quanto à questão de se saber se este direito incluía o direito de interromper ou recusar tratamentos de apoio vital 18. A lei de 2005 sobre os direitos dos doentes e o fim-de-vida [loi sur les droits des patients et la fin de vie] (lei n.º 2005-370) [alteração] surgiu como uma tentativa de esclarecer esta confusão. Ficou estipulado que o doente tem o direito a recusar qualquer tratamento, incluindo nutrição e hidratação clinicamente ajudadas (Código da Saúde Pública no artigo L.1111-4) 19. Embora a lei de 2005 especifique que o médico tem de respeitar os desejos do doente, também declara que, se a recusa de tratamento puser em risco a vida do doente, o médico deve “fazer tudo o que for possível a fim de convencer o doente” a continuar o tratamento. Não é especificado o que significa “fazer tudo o que for possível”, ou quão longe o médico deve ir para convencer o doente a continuar o tratamento. “Em qualquer caso”, diz a lei, “o doente tem de repetir a sua decisão após um lapso de tempo razoável” (Código da Saúde Pública no artigo L.1111-4). Como assinala Dominique Thouvenin, estas restrições expressam ambivalência quanto ao reconhecimento subjetivo dos direitos dos doentes – isto é, no sentido do reconhecimento do doente como o verdadeiro titular do direito 20.

A relutância em confiar na escolha do doente é também evidente no estatuto jurídico das decisões antecipadas de recusa de tratamento em França. A lei de 2005 estipula que todas as doentes podem redigir um tal documento. No entanto, diferentemente da Inglaterra, as decisões prévias não são hoje juridicamente vinculativas na França. O artigo L.1111-11 do Código da Saúde Pública.  Afirma que elas “devem ser tidas em conta” pelo médico. Antes de ter em conta a decisão antecipada, o médico é aconselhado a consultar um colega, bem como o representante do doente, familiares ou amigos próximos. No entanto, é claro que é apenas o médico quem toma a decisão de interromper ou não iniciar tratamentos que mantêm a vida. Apesar de muitas tentativas nos últimos anos para reforçar os direitos dos doentes em França, um forte empenho em proteger a pessoa vulnerável e delegar responsabilidades no médico continua a ser o principal elemento na regulação das decisões de fim-de-vida 21.

Olhando para o panorama jurídico sobre práticas de fim-de-vida e decisões antecipadas em Inglaterra e França, poderá argumentar-se que, embora ambos os países estejam empenhados em proteger a dignidade do doente nos cuidados de fim-de-vida, o modo de alcançar este objetivo é diferente. Na Inglaterra, os direitos do doente parecem desempenhar um papel central, enquanto em França o dever de os médicos protegerem as pessoas vulneráveis é mais forte 22,23. É importante focar a nossa atenção na forma como o termo “dignidade” é comummente usado em relatórios de bioética e diretrizes médicas nestes dois países, pois é o apelo ao respeito pela dignidade que primordialmente condiciona decisões e políticas referentes aos tratamentos de fim-de-vida.

Dignidade no contexto inglês de fim-de-vida: políticas e diretrizes

Uma definição útil para sabermos como a dignidade é entendida no contexto médico inglês é a dada pelo Nuffield Council on Bioethics. Num relatório de 2002, o Conselho afirma que “um elemento essencial do conceito de dignidade humana é a presunção de que cada um de nós é uma pessoa cujas ações, ideias e preocupações são intrinsecamente merecedoras de respeito, pois foram escolhidas, organizadas e orientadas de um modo que faz todo o sentido de um ponto de vista puramente individual” 24. De acordo com esta definição, o valor intrínseco de uma pessoa, a sua dignidade, assenta na sua capacidade de autonomia e autodeterminação. O mesmo entendimento de dignidade é repetido pelo General Medical Council. O GMC pede aos médicos que trabalham em cuidados de fim-de-vida que “tratem os doentes como indivíduos e respeitem a sua dignidade”, ouçam e respondam às suas preocupações, dando-lhes informações de forma adequada e respeitando o seu direito a tomar as suas próprias decisões 25. Tanto para o Nuffield Council como para o GMC tratar as pessoas com dignidade é sobretudo entendido como facilitar, apoiar e promover as suas capacidades e, por extensão, o seu direito a escolherem por si mesmas e a verem as suas escolhas respeitadas.

Em 2008, “relatos confrangedores de pessoas que não eram tratadas com dignidade e respeito e (o facto de) muitas pessoas não morrerem onde escolheriam” 26 estimularam a publicação do relatório intitulado “Estratégia de Fim-de-Vida”. Embora outras facetas da dignidade, como os procedimentos com os falecidos ou o respeito pelo direito de uma pessoa a ter uma convicção religiosa, estejam mencionados na “Estratégia de Fim-de-Vida”, a importância de tratar alguém como um indivíduo com as suas escolhas e preferências permanece como a principal mensagem desse relatório 27.

Além disso, o direito do indivíduo à autodeterminação foi defendido com êxito por Lorde Donaldson de Lymington no julgamento do caso Bland:

O interesse do doente consiste no seu direito à autodeterminação…, mesmo que isso prejudique a sua saúde ou o leve à morte prematura. O interesse da sociedade é defender que toda a vida humana é sagrada e deve ser preservada, se for possível. Está bem estabelecido que, em última instância, o direito do indivíduo prevalece 28.

No contexto da cultura inglesa liberal, baseada no Direito 29, a dignidade está muitas vezes associada ao autogoverno. Os direitos dos doentes a assumirem o controlo de suas vidas e de tomarem as suas próprias decisões autónomas estão em sintonia com a tradição filosófica e política da Inglaterra. A proteção do direito individual à liberdade perante as autoridades públicas está estabelecida desde a Magna Carta em 1215. Como mencionado noutro sítio 30, este direito tem sido apoiado por importantes pensadores ingleses como John Locke, que alegou que nenhuma autoridade deveria intervir na vida privada de uma pessoa 31, e John Stuart Mill, segundo o qual uma pessoa deve ser livre para atuar de forma autónoma, enquanto não restringir a liberdade dos outros 32.

Como veremos na próxima secção, a França adota uma abordagem diferente para a dignidade. No contexto francês, a pessoa está mais integrada na sociedade e a ênfase situa-se na igualdade de direitos de todos os membros da comunidade, mais do que nos direitos individuais 33.

Dignidade no contexto francês de fim-de-vida: políticas e diretrizes

O mais antigo significado da palavra “dignidade” refere-se a um conjunto de qualidades e distinções possuído pelas pessoas da nobreza e dos quadros superiores da sociedade. Reis, ministros, bispos e médicos tinham dignidades especiais resultantes dos seus papéis e posições 34. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), aprovada na sequência da Revolução Francesa, contestou esta definição. Estendeu as dignidades a todas as pessoas independentemente da sua classe ou posto, baseando-se na ideia de que todos os seres humanos compartilham uma natureza comum e são iguais aos olhos da lei. De acordo com o artigo 6.º:

A lei é a expressão da vontade geral… Deve ser a mesma para todos, tanto a proteger como a punir. Todos os cidadãos são iguais aos olhos da lei, são igualmente elegíveis para todas as dignidades e para todos os cargos públicos e profissões, de acordo com as suas capacidades e sem outra distinção do que a das suas virtudes e talentos 35.

Como mostra Christopher McCrudden, o respeito pela igual dignidade de todos os seres humanos é central no republicanismo francês, fortemente influenciado pela noção de contrato social de Jean-Jacques Rousseau 36. O Estado republicano – que, segundo Rousseau, representa a vontade geral de cada cidadão – assume um papel especial na defesa da igualdade e garante os direitos de todos. A filosofia de Rousseau parece ter contribuído para um entendimento da dignidade mais igualitário ou comunitário. Citando Paolo G. Carozza, McCrudden aponta para os aspetos distintivos do entendimento comunitário da dignidade, o qual é conhecido por “‘mostrar mais preocupação pela igualdade e fraternidade e menos ênfase exclusiva na liberdade’ do que o que acontece nas tradições norte-americanas” 37.

Este significado particular de dignidade e o papel do Estado na proteção da dignidade dos seus cidadãos, independentemente da sua raça, idade, sexo, crenças ou condição física, ainda é percetível nos atuais debates jurídicos, éticos e políticos em França 38.

Em 1994, a dignidade foi introduzida no Direito francês como um “princípio de valor constitucional”. Foram aprovadas, nesse ano, três leis sobre bioética (dites lois de bioéthique) que regem a proteção de dados pessoais, o respeito pelo corpo humano e a doação e utilização de partes do corpo; estas leis referem-se à dignidade como um valor intrínseco a cada pessoa. Desde então, o artigo 16.º do Código Civil determinou que a lei proíbe qualquer ofensa à dignidade da pessoa e garante o respeito de todo o ser humano, desde o início da sua vida. Também desde 1995, o artigo 38.º do Código de Deontologia Médica (Code de Déontologie Médicale) salienta que é dever do médico garantir a dignidade do doente que está a morrer, sem porém antecipar intencionalmente a sua morte. Este artigo está integrado no Código da Saúde Pública (artigo L.1111-4).

Em 2000, o Conselho Nacional de Ética francês (Conseil Consultatif National d’Ethique) publicou um relatório sobre “fim-de-vida, terminar a vida, eutanásia” (fin de vie, arrêt de vie, euthanasie) em que salienta o valor intrínseco da dignidade humana, que deve ser protegida pelos médicos 39. De acordo com o Conselho, os médicos são representantes da sociedade (corps social) e o seu papel é “defender e promover os valores comuns, sem o que não haveria nem grupos nem sociedade” 40.

Há três relatórios parlamentares sobre os problemas de fim-de-vida que discutem os diferentes conceitos de dignidade nos debates sobre fim-de-vida e eutanásia 41,42,43. A dignidade pode ser entendida de um modo individualista quando indica as opiniões de cada pessoa relativamente ao valor da vida. Um relatório reconhece que muitos defensores da eutanásia utilizam esta definição de dignidade para apoiarem os seus argumentos. Num entendimento alternativo, no entanto, a noção de dignidade significa uma característica intrínseca da vida humana, uma qualidade indisponível que todos os humanos partilham e que não pode ser perdida ou diminuída. Esta é a noção de dignidade que os opositores da eutanásia geralmente invocam.

Todos os três relatórios tendem a favorecer o significado de dignidade como uma qualidade intrínseca da vida humana. Como afirma Vincent Lamanda, presidente do Supremo Tribunal de Recurso francês: “A dignidade humana não implica a liberdade de escolha entre a própria vida e a morte mas é a própria condição da liberdade… o princípio da dignidade justifica a limitação da liberdade de uma pessoa” 44.

O Conselho Nacional de Ética francês, num relatório de 2013, afirma que os diferentes significados de dignidade não são a priori opostos uns aos outros 45. Quando uma pessoa se apercebe que a sua situação é indigna, o Conselho, os poderes públicos e a sociedade deviam mobilizar-se para resolver tais situações: “a mais indigna das situações seria considerar o outro como sendo indigno porque é doente, diferente, sozinho, improdutivo, dispendioso” 46. O Conselho defende ainda que a ideia de que a dignidade da pessoa pode ser restaurada ajudando-a a morrer ofende o significado de dignidade que garante a igualdade de valor de cada ser humano, independentemente de sua condição.

O entendimento da dignidade como um valor que é intrínseco a cada ser humano, e deve ser protegido pelos poderes públicos ou representantes da sociedade, condiciona não apenas o debate mas também o direito e as políticas em matéria de práticas no fim-de-vida em França.

Dadas as diferenças no modo como a dignidade é entendida em Inglaterra e França, vale a pena olhar mais para estas duas diferentes conceções do termo.

O difícil significado de dignidade

A dignidade é muitas vezes descrita como um conceito vago 47. Nomeadamente, distinguir os conceitos de autonomia e de dignidade tem representado um desafio significativo para muitos estudiosos. Alguns autores argumentam que as duas noções se contrapõem frequentemente. Por conseguinte, porque a autonomia é muito mais fácil de definir, tem sido sugerido que o conceito de dignidade é redundante e devia ser evitado 48.

Muitos filósofos têm chamado a si a tarefa de formular o significado exato de dignidade e propuseram um certo número de diferentes definições para o termo 49,50,51,52,53,54. Há duas noções de dignidade que parecem emergir quando olhamos para os debates sobre fim-de-vida em Inglaterra e França: dignidade como o respeito para com a humanidade e dignidade como o respeito pela autonomia.

Dignidade como o respeito pela humanidade

Immanuel Kant foi o filósofo que pôs a dignidade e o respeito pelas pessoas no centro da teoria moral. Para Kant, a dignidade humana (Menschenwürde) é o valor supremo que todos os seres humanos possuem em virtude da sua humanidade – ou seja, em virtude da sua natureza racional, serem seres capazes de pensamento racional, de escolhas autónomas e de ações morais 55. São estas capacidades, inatas à natureza humana, que fazem da dignidade um valor da vida humana fundamental e indisponível. A dignidade da pessoa não pode ser nem perdida nem diminuída 56. Como nota Michael Neumann, uma pessoa “tem todo o valor e dignidade moral que pode ter… apenas por agir de acordo com princípios universais e necessários, os mesmos para todos os seres racionais” 57. É essa capacidade de autorregulação, mais do que a capacidade para perseguir objetivos individuais, que confere dignidade a todos os humanos.

Dignidade como o respeito pela humanidade é um valor que tem sido usado para defender situações em que decisões e direitos individuais estejam ameaçados. Um dos casos mais famosos em que a dignidade humana foi invocada, foi o do lançamento de anões em França. Embora Manuel Wackenheim, o anão que ganhava a vida alugando-se a si mesmo para ser atirado, tenha recorrido e até levado o caso ao Comité Internacional de Direitos Civis e Políticos, o comité contrariou-o com o fundamento de que a proibição do lançamento de anões era necessária para a proteção da dignidade humana 58.

A tendência da França para prescindir dos direitos individuais a fim de proteger a coesão social e o igualitarismo enquadra--se com um entendimento da dignidade que se reclama do respeito pela humanidade como um todo. Respeitar a dignidade significa respeitar a humanidade de cada pessoa que dela faz parte, mais do que o direito de cada indivíduo a agir de forma independente.

Dignidade como o respeito pela autonomia

É a estreita relação entre as noções de humanidade e de autonomia que deu origem ao segundo entendimento da dignidade que discutimos neste artigo: o da dignidade como o respeito pela autonomia 59.

Autonomia vem do grego palavras αυτός [autos] que significa “auto”, e νόμος [nomos] que significa “lei”. Uma pessoa autónoma é uma pessoa que decide e é responsável pelas suas ações. Kant descreveu a autonomia como a capacidade humana para reger a vida em conformidade com princípios racionais 60. Mas, segundo Kant, é a razão prática, exercida através da autonomia, que nos determina às obrigações morais para nós mesmos e para os outros 61. Para Mill, no entanto, a autonomia é a base do valor intrínseco independente da razão prática. Ele defendia que a capacidade de ser autónomo era uma das principais características que distinguia os seres humanos dos outros animais e que também conferia especial valor moral à vida humana 62.

Na teoria de Mill, a autonomia está subjacente à dignidade humana:

Aquele que permite que seja o mundo, ou parte dele, a escolher o seu plano de vida não tem necessidade de qualquer outra faculdade senão a da imitação, como fazem os macacos. Tem de usar a observação para ver, o raciocínio e o julgamento para prever, o juntar fundamentos e discernimento para decidir e, quando decide, a firmeza e o autocontrolo para manter a decisão tomada. E são muito grandes as qualidades de que precisa e que usa na conduta por si determinada, no seu próprio julgamento e sentir. É possível que se oriente por bons caminhos e se desvie de maus sem qualquer uma dessas coisas. Mas qual será o seu valor como ser humano? 63

O modelo inglês de cuidados de fim-de-vida parece ser mais a favor da perspetiva da dignidade como o respeito pela autonomia. A melhor maneira de honrar a seres humanos e mostrar o devido apreço pela sua dignidade é reconhecê-los como indivíduos autónomos e permitir-lhes que procurem alcançar os seus próprios objetivos e sonhos. Quando se trata de doentes que se aproximam do final de suas vidas, a forma adequada de lidar com eles é a que lhes permite continuarem a desenvolver as suas próprias interpretações individuais acerca que é uma boa vida até o fim e mesmo para além dela.

Conclusão

A nossa análise dos fundamentos teóricos das atitudes inglesa e francesa em relação às decisões de fim-de-vida revela uma diferença nas interpretações sobre dignidade adotadas nos dois países. No contexto inglês, dignidade é principalmente, mas não exclusivamente, entendida como o respeito pela autonomia da pessoa. Isto levou a leis e práticas que salvaguardam a autonomia decisional dos doentes e que reconhecem a primazia dos direitos individuais sobre os interesses da sociedade.

No contexto francês, dignidade parece sobretudo significar o respeito para com a humanidade. Como diz Charles Bernard Renouvier, o ideal republicano “concilia os interesses e a dignidade de cada indivíduo com os interesses e a dignidade de todos” 64. A ênfase está assim sobre o respeito pelo valor intrínseco da vida humana, qualidade inalienável que é igualmente partilhada por todos os seres humanos. A responsabilidade do Estado é preservar a ordem pública através da proteção da dignidade humana, mesmo que isso signifique limitar as liberdades individuais. Aplicadas às decisões de fim-de-vida e à relação médico-doente, as escolhas individuais dos doentes dão lugar à responsabilidade dos médicos em promoverem valores sociais, como a proteção do bem-estar dos doentes.

Proteger e respeitar a dignidade humana é central em muitas declarações e normas de orientação europeias e internacionais relativas a problemas de fim-de-vida. Dado que o papel dessas normas é o aproximar das leis às práticas em todos os países, compreender o significado contextual de conceitos centrais como a dignidade ajudará a antecipar o modo como essas orientações poderão ser aplicadas localmente.

[ver referências no original]