30 dezembro 2015

Entrevista a David S. Oderberg

 

Tradução espontânea, sem fins lucrativos, 
David S. Oderberg é professor de Filosofia na Universidade de Reading, Reino Unido, e tem escrito muito sobre temas de bioética, tais como aborto, eutanásia, engenharia genética, direitos dos animais e pena de morte, na perspetiva da lei natural, anti-consequencialista. É também editor da Ratio, uma revista internacional de filosofia analítica. Xavier Symons, editor adjunto de BioEdge, pediu-lhe para comentar o estado da bioética contemporânea.

Xavier Symons: Na sua opinião, quais são os principais conceitos filosóficos que os bioeticistas tendem a entender mal?

David S. Oderberg: Há muitos mal-entendidos na indústria bioética (porque tem algo de indústria), embora prefira chamar-lhes simplesmente erros ou confusões. Não creio que a maioria dos bioeticistas não compreenda aquilo em que acredita ou que recomenda nas suas posições, pois a maioria tem uma agenda óbvia, a qual consiste em acabar com tantos “tabus” quanto possível, isto é, proibições tradicionais do bom senso.

Muitas vezes, os fins justificam os meios na medida em que os bioeticistas hão de usar qualquer argumento que tenham à mão, seja bom, mau ou indiferente, para cumprir uma agenda predefinida. Nesse sentido, suponho que se pode dizer que eles entendem mal que a função do argumento, ou seja alcançar a verdade, não é chegar a uma posição previamente adotada.

Lembro-me de ter lido, há alguns anos, um relatório da Autoridade Britânica para a Fertilização Humana e o Embrião, produzida por uma mão-cheia de bioeticistas e dedicada a defender a experimentação com embriões humanos. No relatório era muito claro que os autores (muitos dos quais nunca tinha ouvido dizer que fossem filósofos de profissão) pretendiam recomendar ao governo, como moralmente permissível, a experimentação com embriões e onde usavam qualquer argumento ou “teoria” para a defender essa recomendação.

O resultado era um pouco de kantismo numa página, de utilitarismo noutra, de teoria das virtudes mais adiante e um pouco de tudo e mais alguma coisa de pensamento filosófico, sendo que a maioria era totalmente incompatível entre si, tudo misturado para alcançar uma conclusão supostamente racional que, inevitavelmente, não era mais do que um “tudo bem” à experimentação com embriões, desde que haja cuidado.

Num nível mais conceptual, tenho visto várias confusões significativas que aparecem recorrentemente. Uma é entre “matar” a doença e matar o doente, como que pudéssemos curar uma pessoa do seu problema eliminando a pessoa, por ex., pôr fim a uma dor, pondo fim ao doente. Pode fazer-se isso, assim como se pode acabar com uma dor de cabeça degolando a pessoa. Mas não pode chamar-se a isso curar ou cuidar de alguém, que são os deveres primordiais dos profissionais de saúde.

Se os bioeticistas pensam que podem “curar” alguém dos seus padecimentos pela eutanásia, então não estão realmente interessados na cura (ou cuidado), mas em algum outro objetivo.

Isso faz-me pensar na confusão entre o que é bom para uma pessoa e o que é bom para outrem, seja a sua família, a comunidade ou a sociedade no seu todo. Dado que cuidar e curar são os deveres primordiais da medicina e dos cuidados de saúde em geral, o que é melhor para alguém que não o doente nunca pode ser o objetivo primordial do profissional de saúde enquanto profissional de saúde.

A ideia de que um doente pode ser um “encargo” para a sociedade, a sua existência “perturbadora” da sua família ou a sua provação uma “avaria” do sistema de saúde, nunca pode prevalecer sobre o primordial dever de cuidar, o que significa proteger o doente e curá-lo quando possível, ou então dar tanto conforto quanto possível. Infelizmente, sob a influência malévola da indústria da bioética, há demasiados doentes que são vistos como mercadorias ou unidades de produção (não encontro tremo melhor) do sistema, tudo menos indivíduos com direito à vida, a cuidados e à dignidade.

Se tivesse de escolher uma última confusão entre muitas, seria a medicalização deliberada dos deveres normais de cuidar. O exemplo clássico é a “hidratação e alimentação artificiais”, em tempos chamada comida e água. Afinal, dar de comer a quem fome e de beber a quem tem sede era um bom e antiquado dever humano. Mas desde que os bioeticistas e os seus crentes colocados na política, na economia e na lei, o medicalizaram – na verdade, desde que se tornou na sigla HAA – este simples dever humano escondeu-se num jargão e assim podem debater friamente a “interrupção de HAA”, como se fosse um procedimento médico e não um mero jejum.

Encontra-se o mesmo tipo de distanciamento no uso de termos como “feto”, “conceptus”, “término”, “eutanásia”, “estado vegetativo”, etc. A história está cheia de exemplos.

XS: Como relaciona a área da bioética com a da filosofia moral?

Oderberg: Não há bioética sem filosofia moral. A bioética não é mais do que a aplicação grosso modo da filosofia moral, ou ética, aos problemas da vida e da morte. Nesse sentido, não se pode conceber a bioética como uma disciplina autónoma com os seus próprios peritos em princípios bioéticos sui generis.

Sim, para ser bioeticista é preciso ter conhecimentos em filosofia moral (algo que muito bioeticistas não têm) e domínio dos assuntos médicos, científicos e técnicos específicos sobre que se pronunciem. De preferência, deve ter experiência próxima desses assuntos e não ter uma mera “experiência” de torre de marfim.

Para ser bioeticista, então, é preciso ser um filósofo moral e para ser um filósofo moral é preciso ser um filósofo, capaz de distinguir os bons dos maus argumentos, de separar pensamento justificado de novidade, moda, pressão social, preconceito e políticas governamentais.

E para ser filósofo é preciso ser um ser humano, com preocupações humanas, amor pelo próximo, preocupação pela sociedade e seu futuro e, o que é o mais raro recurso, bom senso. Por outras palavras, a bioética não é o que se faz quando se arranja um emprego na filosofia “real” e se pode obter grandes verbas de fundações e grupos de reflexão [think tanks].

XS: Que tipo de nova contribuição poderia resultar para a bioética da chamada “abordagem da lei natural”?

Oderberg: Bem, a bioética da lei natural não está bem desenvolvida, apesar de ser parcialmente defendida em alguns círculos. Digamos que ser pró-vida não implica ser um bioeticista da lei natural. Tão pouco preocupar-se com os desenvolvimentos sinistros da biotecnologia ou com a “cultura da morte”.

Ser um bioeticista da lei natural significa ter um conhecimento profundo de, e respeitar, a tradição de pensamento que vem dos antigos Gregos e Romanos e que realça o papel que a natureza tem na orientação da moralidade. Só sofistas ignorantes pensam que a ética da lei natural significa que tudo o que é natural é bom ou certo e que tudo o que não é natural é mau e errado. Pelo contrário, é sobre identificar o que cumpre à nossa natureza humana, faz-nos ser o que é suposto sermos de acordo com a nossa natureza de criaturas racionais, corpóreas, contudo finitas.

Penso que podemos estar certos de que, no que se refere ao cumprimento da nossa natureza, ser assassinado geralmente não ajuda. Assim, os ataques a vidas inocentes – vidas inocentes, não à vida dos que podiam perder o ser direito devido aos danos causados a outros – estão proibidos pela lei natural, independentemente de outras considerações.

Ainda estou para ver um bom argumento para sustentar que a vida em si não é senão um meio para atingir outros bens e portanto perde o seu valor quando alguém, digamos, está em coma ou estado vegetativo persistente.

Quando chegamos a tópicos como a engenharia genética, mães de substituição, “melhoramento” humano ou qualquer outro tema bioético e a tecnologia se mostra perante os media, o que é preciso é ter à mão uma análise cuidadosa e refinada da lei natural. A orientação tem de vir do que é bom para a natureza humana individual e para a natureza humana de grupos como a família, comunidade e Estado. Mas o que é bom para um grupo de humanos depende totalmente do que mais propício à realização de todos e de cada indivíduo, pelo que sacrificar uma vida inocente para benefício de outros é errado. O que é bom para o grupo não é o mesmo que o “melhor resultado” de uma ponderação utilitária ou consequencialista dos bons e maus efeitos de alguns comportamentos.

Nesse contexto, a teoria da lei natural não pode e não tem de trabalhar no vácuo: tem de estar informada por trabalho empírico credível e autêntico sobre a natureza humana e o bem comum, tudo contrabalançado pelo bom senso. Para dar um exemplo, a automutilação que dá pelo nome de “cirurgia estética”, quando se não destina a remediar um defeito que impede a função natural do corpo humano (e talvez também funções humanas naturais como a amizade e as relações sociais), é muito provavelmente moralmente errada em qualquer caso.

Hoje, não é isso que faz uma coisa ser “antinatural”, em sentido lato, mas aquilo que é, só por si, uma inversão antinatural da devida hierarquia dos valores humanos: a elevação do aperfeiçoamento corporal acima da aceitação da inevitável imperfeição própria do tipo de criatura que somos – pôr o bem corporal acima do chamado bem psíquico.

XS: Um conjunto de eticistas católicos (Grisez, Finnis, George) tentou aplicar uma Nova Teoria da Lei Natural aos modernos problemas da bioética. Concorda com a abordagem da Nova Lei Natural?

Oderberg: Bem, no geral não estou de acordo com a abordagem, mas concordo com muitas das posições éticas, embora nem todas (nem eles defendem todos as mesmas posições éticas). A abordagem da “nova lei natural” surgiu da revolução cultural dos anos 60, quando alguns filósofos católicos, considerando muitas das posições contemporâneas e não-tradicionais de então (muitas das quais persistem), decidiram que a antiquada metafísica aristotélica-tomista já não “servia” para nada.

Nós, os modernos, por outras palavras, poderíamos ver nas conceções de Aristóteles e Tomás de Aquino (e seus seguidores) e nos seus “preconceitos” metafísicos, a perspetiva de que realmente existe uma coisa chamada natureza humana, e que da natureza humana se pode filosoficamente defender um sistema ético. Assim, a metafísica da natureza humana, assim como tudo o que a acompanha, foi lançada pela janela a favor de um foco no ponto de vista subjetivo, da primeira pessoa, na perspetiva do agente que pensa sobre o que fazer e sobre o que é bom ou mau.

Ora, como que por milagre, os teóricos da Nova Lei Natural conseguiram, pelo seu método completamente novo e até aí desconhecido, chegar a um conjunto de posições largamente coincidentes com as que pretendiam afirmar. Mesmo assim, tanto quanto posso dizer, as únicas vezes em que pareciam ter uma posição assente num argumento inatacável e talvez plausível foi quando aparentemente recorreram à tal metafísica “desatualizada” que pretendiam condenar.

Assim, a meu ver, o projeto da Nova Lei Natural é, sempre foi, um falhanço: nunca por nunca persuadiu os bioeticistas liberais a abandonar uma única das suas posições, seja sobre aborto, eutanásia, maternidade de substituição, “casamento homossexual”, ou outra qualquer. Note-se que eu não digo que a abordagem tradicional, metafisicamente orientada, seja, psicologicamente falando, mais fácil para convencer os bioeticistas liberais; mas penso que é a única que, intelectualmente falando, dá alguma esperança de o fazer.

XS: Como vê, nas próximas décadas, o rumo da bioética?

Oderberg: Bem, não seguirá uma direção nova e maravilhosa em que a ciência e a tecnologia sejam postas no seu lugar e os valores humanos autênticos voltem a dominar, em que a sociedade e o governo apenas permitam crescimentos que genuinamente beneficiem os indivíduos e o bem comum. De facto, as minhas previsões são bastante apocalípticas a esse respeito, mas não quero ir por aí.

O que digo é que o futuro da bioética está fortemente ligado ao futuro da sociedade (ou sociedades). Não é de esperar que os bioeticistas assumam a liderança da recuperação da sanidade de uma sociedade que no restante está louca. De facto, não espero que os filósofos o façam.

São as forças culturais que dirigem os desenvolvimentos futuros e, apesar de ser verdade que os bioeticistas têm estado na vanguarda, eles não são os seus condutores. Temos de olhar para a sociedade num sentido mais amplo: para onde vai? Como será, digamos, daqui a trinta anos? Responda-se a esta pergunta e saberemos o que será a bioética.

Estou mais do que ligeiramente preocupado, embora mais por causa dos meus filhos do que por mim. Se todos mantiverem os seus filhos a salvo dos efeitos da lavagem ao cérebro dos media e dos amplificadores biotecnológicos (como lhes chama o grande Wesley Smith), a bioética acabará por se mostrar muito diferente.

A Saúde em tempo de crise

A saúde em tempo de crise (um diálogo do autor consigo mesmo)

in Sobre Saúde, pp. 191-6, ed. APASD, Universidade Fernando Pessoa (2015)

 E ele virou-se para mim e disse-me assim:

– Afinal o racionamento e ou não é justo?

– Sabes, todas as perguntas podem ter várias respostas.

– Dependem do contexto, claro.

– Não te esqueças que quem quer polemizar costuma usar apenas uma face ou um aspeto da questão e, focando-se só nisso, tenta argumentar escamoteando outras perspetivas. Todas as questões podem ser analisadas de vários ângulos.

– No “caso do racionamento” trata-se, essencialmente, de saber, havendo poucos recursos, como se deve fazer para que o acesso a cuidados de saúde respeite o princípio da justiça.

– O problema é um pouco mais vasto e pode ser visto respondendo a seguinte pergunta: sendo a saúde das pessoas um bem que importa promover e os cuidados de saúde prestados (e/ou pagos) pelo Estado de acordo com as necessidades dos cidadãos, como garantir que todos tem acesso aos melhores cuidados se não há verba para os custear?

– Está bem, mas o princípio da justiça diz isso mesmo (Beauchamp, TL and Childress, JF. Principles of Biomedical Ethics. 4th ed, Oxford University Press, 1994): se os recursos são limitados (e são-no sempre), podem/devem adotar-se medidas cuja aplicação não discrimine com base em condicionalismos que não dependem da vontade das pessoas.

– A que te referes?

– É injusto que certos cuidados de saúde dispendiosos só sejam prestados a pessoas que tem maior capacidade económica, por exemplo. É insustentável que se faca depender a comparticipação estatal nos custos de certos fármacos da etnia do doente, da sua idade ou mesmo da área da sua residência. É uma questão de equidade. (Daniels, N. Equity and population health – Toward a broader Bioethics Agenda. Hastings Center Report 36, 2006 Jul-Aug: 22-35)

– Esses exemplos parecem óbvios, sobretudo nos tempos atuais e numa sociedade democrática. Deixa-me usar outro exemplo. É justo que se gastem avultadas verbas no tratamento de pessoas que não zelam pela sua própria saúde, causando dificuldades orçamentais a outros programas destinados, por exemplo, a vítimas de epidemias ou catástrofes naturais?

– Compreendo que essa é uma questão de difícil resposta, mas, do modo como a apresentas, parece que estás a sugerir que pode justificar-se um Estado policial que, antes de tratar quem precisa, classifica o doente de acordo com o grau de culpa pelas suas doenças. Seria um Estado moralista, higiénico e até eugénico com consequências que podemos antever perigosas e, portanto, injustas à partida.

– Mas se não há dinheiro...

– Se não há dinheiro, o que importa é encontrar um sistema que assegure que as decisões, pois tem de haver decisões por mais difíceis ou impopulares, sejam as mais justas que é possível.

– Lá vem a conversa da transparência…

– Absolutamente. Essa é uma condição prévia essencial. As decisões que aparecem do nada são, naturalmente, suspeitas, mesmo que sejam boas. O simples facto de ser pública a identidade de quem decide, bem como as razões por que assim se decide, condiciona positivamente a qualidade da decisão. Mas não basta que o processo de decisão seja transparente…

– Pois, pode haver malvadez transparente e não deixa de ser malvadez…

– É. A outra condição que ajuda a que se tomem medidas justas é a existência de regras previamente conhecidas e que seja possível verificar se foram seguidas.

– Referes-te ao oposto da arbitrariedade?

– Exatamente. Quando um decisor, quer a título individual ou quer o consideremos como uma entidade (como por exemplo uma comissão de farmácia hospitalar), opta por um ou por outro fármaco que é necessário disponibilizar na sua instituição, é forçoso que o faça de acordo com normativos estabelecidos, legitimamente aprovados e consensualmente aceites. E o primado da publicidade e da previsibilidade. Há de ser assim que devem fixar-se as prioridades, os critérios de admissão a certos tratamentos. E que, sendo conhecidos e fundamentados, não estão feridos de caráter discriminatório – se estiverem estabelecidos quais os critérios clínicos para as listas de espera de transplantes, por exemplo, todos compreenderão que não é só a data de inscrição que conta. Ou, noutro exemplo, não há óbice ético considerar-se que, para colocação de pontes coronárias, os não fumadores tenham prioridade quando haja igualdade de outras circunstâncias.

– Então, se há normas, não são precisas comissões – apliquem-se as normas…

– Não te esqueças que as normas, por mais perfeitas que sejam, nunca preveem todas as situações e há sempre escolhas a fazer. Não há só branco e preto, como se costuma dizer. E ainda bem que é assim. Aliás, as normas, que são adotadas em abstrato para serem aplicadas em concreto, devem/deveriam ter sempre uma cláusula que permita que, desde que devidamente fundamentadas, possa haver exceções.

– Mas isso está a um passo da arbitrariedade.

– Não, arbitrárias são as decisões que se tomam sem explicações. Falamos de razoabilidade (Mitton, CR et al. Centralized drug review processes: Are they fair? Soc Sci Med. 2006, Jul;63(1):200-11) ou de bom senso, se quiseres.

– E não temes que se abuse do recurso a exceção?

– Pode acontecer, mas chamo a tua atenção para uma outra condição-base para que o princípio da justiça seja respeitado. Refiro-me a responsabilidade.

– Responsabilidade? Não estou a perceber. Ouço frequentemente que uma coisa boa e a preservar é os juízes serem irresponsáveis quando decidem.

– Não confundas! Claro que todos os juízes tem de ter toda a liberdade para decidir, em sua consciência, o teor das sentenças proferidas e não podem ser responsabilizados pelas consequências das suas condenações ou absolvições. Embora, claro, se possam enganar e haja o direito de recurso. A responsabilidade a que me estava a referir não é do mesmo tipo, pois, quando alguém decide, a título de exceção, sobre um tratamento que custa milhares de euros por mês para ser usado numa determinada situação clínica (Bach, PB et al. In Cancer Care, Cost Matters. The New York Times, 2012, Out) mas, afinal, há um consenso científico que considera haver uma opção francamente mais barata e igualmente eficaz, o responsável por essa decisão tem de prestar contas.

Accountability – e o que queres dizer?

– É isso, mas a palavra portuguesa é também responsabilidade. Os defensores da independência técnica dos prestadores, que é uma coisa boa em si mesma, não o podem/não o devem fazer, esquecendo a correspondente responsabilidade.

– Estás a dizer que um médico que invoca uma exceção e fundamenta mal a decisão deve ser punido?

– Não excluo essa hipótese mas não te esqueças que o mesmo se aplica também a quem redija as tais normas orientadoras. Todos temos de responder pelas nossas decisões. Por outro lado, as punições em sede de apuramento de responsabilidade disciplinar profissional tem muitas cambiantes. Desde logo pode nem haver processos disciplinares para falarmos em prestação de contas – é o caso das chamadas de atenção próprias das hierarquias técnicas.

– Essas regras ou normas de que falas são muitas vezes consideradas limitadoras da liberdade técnica. Há quem receie que juízes, inspetores ou instrutores de processos de averiguações, ou mesmo jornalistas, considerem sempre que é errado tudo que não esteja contemplado nas normas, contribuindo assim para que os prescritores se tornem acríticos e as apliquem cegamente.

– É por essas e outras que se costuma dizer que isto não é fácil. Quem escolheu ser profissional de saúde – médico, enfermeiro, psicólogo ou qualquer outro – pensando que não tinha de, constantemente e para o resto das suas vidas, estar sempre a tomar decisões difíceis enganou-se.

– Esta conversa está interessante mas ainda não te referiste abertamente ao polémico Parecer n.º 64 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida que dizem que aprova o racionamento em saúde. (Parecer sobre um modelo de deliberação para financiamento do custo dos medicamentos, Parecer n.º 64/CNECV/2012)

– Esse Parecer foi, de facto, centro de uma polémica acesa mas felizmente, como sempre, as coisas acalmaram e, fora do “barulho das luzes”, começa a emergir racionalidade onde ela faltou. O que o Parecer apontou foi um modelo de apoio a decisões justas em matéria de escolhas difíceis.

– Mas não era sobre as compras de medicamentos inovadores em oncologia e outras doenças crónicas?

– Era mas não foi. Tudo começou com um pedido do Ministro da Saude (o CNECV é um órgão criado exatamente para responder a perguntas dos órgãos de soberania). Sabia-se que 14 hospitais públicos tinham decidido juntar esforços para reduzir custos na compra de certos medicamentos e que acordaram numa lista que passaria a conter os únicos medicamentos que os respetivos conselhos de administração admitiam poderem ser prescritos nas suas instituições.

– A pergunta do Ministro da Saude era para saber se essa decisão estava eticamente sustentada já que acreditava que favorecia a sustentabilidade económica do Serviço Nacional de Saúde.

– Exatamente. Contudo, o CNECV não conseguiu em tempo útil conhecer os fundamentos das escolhas terapêuticas adotadas pelos 14 hospitais. Decidiu, em alternativa a uma apreciação desses fundamentos, redigir uma proposta de modelo ético para a decisão. Considerou que, a ser seguido o modelo proposto, se garantia a justiça das medidas. Considerou, na sua perspetiva, que as administrações hospitalares, no exercício dos seus poderes de gestão, podiam/deviam fazer escolhas responsáveis desde que fossem transparentes, baseadas em pareceres técnicos conhecidos e publicitados, elaborados por pessoas conhecidas e sem conflitos de interesse. Tais escolhas deveriam, em última análise, incidir sobre os “mais baratos dos melhores” fármacos em presença no mercado e não sobre os “melhores dos mais baratos”.

– Esse modelo recebeu elogios de gestores hospitalares, não foi?

– Foi. Ao contrário dos mais altos responsáveis da Ordem dos Médicos, os gestores hospitalares que se pronunciaram consideraram que a proposta do CNECV deveria ser seguida.

– Tanto quanto me lembro, a Ordem dos Médicos não só contestou o modelo, como o considerou perverso, de tal modo que ainda se falou em averiguar se os membros médicos do CNECV deveriam ser alvo de procedimento disciplinar para que respondessem pelas suas opiniões. (Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos, Nota informativa do CNE sobre o parecer 64/2012 do CNECV. Revista da Ordem dos Médicos, 2012 Out; 134: 57-58 // Silva, JM. A ética teoriza-se, mas também se deve praticar! Revista da Ordem do Médicos, 2013 Jan-Fev;137:6-9)

– O CNECV reagiu a essas apreciações mas efetivamente não alcançou o mesmo impacto publico que os seus críticos. As ameaças de perseguição por delito de opinião acabaram esquecidas e os argumentos ficaram com quem os enunciou.

– Mas o Parecer defendia o racionamento?

– Quem o ler com isenção e livre de julgamentos preconceituosos verá que não trata de defender o racionamento. A referência a esse termo vem a propósito de se considerar que o racionamento, se tiver de ocorrer, deve ser explicito e não implícito. Explicito e “transparente, em diálogo com os cidadãos que devem ser informados (porque nada substitui a participação democrática), que mantenha intacta a confiança dos doentes nos profissionais de saúde e no SNS e maximize a responsabilidade dos decisores”. A tónica do Parecer é contra o “racionamento” no sentido aviltante de sistema de distribuição de recursos que afeta a todos independentemente das suas condições. Tudo no Parecer é a favor de um sistema racional, adaptativo, fundamentado técnica e cientificamente e… transparente (Tilburt, JC and Cassel, CK. Why the ethics of parsimonious medicine is not the ethics of rationing. JAMA. 2013 Jun 5;309(21):2212).

– Se os gestores apoiaram o modelo, quer dizerem que o aplicam?

– Não estou certo disso. Na verdade, quando, meses depois de aprovado o Parecer, se leram os critérios que os 14 hospitais assinaram, a desapontamento foi grande. Não tinham fundamento técnico ou científico conhecido ou publicitado, não se conheciam os seus autores ou interesses, não se compreendia por que se escolheram certos fármacos e não outros, a não ser com base no preço.

– Então, para ver se compreendo, nos hospitais públicos o melhor tratamento é o que é posto a disposição de quem dele necessita? As restrições orçamentais levam a que alguns não sejam tratados como deveriam ser? Havendo limitações, as escolhas que se fazem tem sustentação ética? Há equidade face à idade, local de residência, condição patológica?

– Não sei responder. Como no início deste diálogo imaginário, dir-te-ei que todas as perguntas podem ter várias respostas.

– E não podes tentar dar algumas?

– Estou certo de que, de vários modos e por várias razoes, haverá quem sofra na pele, melhor dizendo, na sua saúde, as consequências da crise. Por mais que queiramos que isso não aconteça, muitas pessoas acabam por não se tratar devidamente em consequência das dificuldades económicas que elas próprias e as instituições atravessam. Admito que algumas instituições de saúde não conseguem já dispor de meios suficientes para atender adequadamente a todas as necessidades e daí só podem resultar iniquidades. Acredito, quero acreditar, que algumas decisões, apesar de opacas, são as melhores mas este “sentimento” não serve para as isentar da tal transparência, antes pelo contrário. Entendo que um órgão consultivo como o CNECV não pode transformar-se num fiscal de boas práticas já que lhe esta cometida “apenas” a função de dar opiniões. Contudo, não poderá deixar de as dar mesmo que não lhas peçam ou nem sempre sejam seguidas ou bem interpretadas. Nesta dinâmica multifatorial, em que tantas decisões se interinfluenciam, não podemos esperar que todos compreendam todos. Apesar disso, podemos esperar que todos procurem compreender todos. Seja como for, convenhamos, há muito a fazer para alcançar melhorias no desempenho tanto das instituições como dos profissionais individualmente considerados, quando falamos do real respeito pela dignidade da pessoa doente e vulnerável. E, por maioria de razão, tudo isto é especialmente importante em tempos de crise económica e social com a dimensão da que estamos a viver em Portugal.

10 novembro 2015

A Morte da Carta do Médico

 

A Morte da Carta do Médico

Melissa Walton-Shirley

Tradução espontânea do texto 

The Death of thePhysician Letter

"O maior problema da Comunicação é a ilusão de que ela ocupa espaço." - William H. Whyte [*]

Depois de perguntar à doente porque tinha vindo, percorri seis quadros com alíneas e subalíneas, sem que nenhum de nós percebesse por que razão ela me fora encaminhada. Relidas as seis páginas daquela informação, apercebi-me de que a doente não se sentia ameaçada nem fora agredida em casa, tinha feito o teste cutâneo da tuberculose há pouco tempo e tinha sido aconselhada a fazer a vacina da pneumonia. Da lista de medicamentos presumi pelo menos algumas das suas doenças, o que, no final da consulta, confirmou que eu conservava intactas as minhas capacidades de telepatia médica. Impressionou-me que ela tivesse uma carta feita há 2 semanas, mas não percebi porquê. Deve ter durado uns 15 a 30 minutos a fazer e não mostra nada a não ser que o seu autor é um fantástico escriba.

Embora haja montes de artigos sobre as falhas de comunicação entre médicos e doentes e entre médicos e médicos em ambiente hospitalar, há poucos dados objetivos sobre o impacto dessa falha de comunicação no caso das consultas externas. Os doentes internados representam uma fração da população geral de doentes; todavia, não tenho dúvidas de que as falhas de comunicação representam custos de milhões em exames desnecessários, faltas ao trabalho e diagnósticos errados. Um dos objetivos primários do Affordable Care Act [Obamacare] era melhorar a partilha de informações, mas em vez disso criou-se uma enorme “fadiga de informação” que enche os processos clínicos de tralha inútil. Provocou a maior perturbação na comunicação entre médicos que o mundo das consultas alguma vez teve.

Antigamente (e no tempo das boas comunicações antes do Registos Clínicos Eletrónicos), eu recebia cartas como esta:

Cara Melissa,
Acompanho a D. Carlinda há 15 anos e a sua diabetes tipo 2 está finalmente sob controlo. Preocupa-me a história da sua mãe que teve um ataque cardíaco aos 65 anos. Carlinda já passou essa idade e de facto não tem novas queixas, nem dores no peito, e dá os seus passeios diários, mas devido ao seu perfil, envio-a para uma avaliação de riscos.
A propósito, envio junto um perfil lipídico que pedi para que o veja. Também tenho evitado o uso de betabloqueadores pois sofre de asma moderada. Por favor, ligue-me se precisar de mais informações.
Espero que estas sejam úteis,
Cordialmente,
RD, MD

Hoje, não há tempo para ser expressivo e há pouca motivação para ser informativo. Só quando pensamos que acabamos a grande tarefa de preencher os dados (ignorando a ridícula quantidade de tempo que isso roubou ao doente), é que nós carregamos na tecla de submissão transformando o último calhamaço do dia num complicado quebra-cabeças de informação inútil como os que os decifradores tanto gostam. Os tipos do Canal de Vendas por Cabo devem estar invejosos ao verem o tempo que gastamos a dizer a sempre mesma coisa sobre a mesma coisa.

Os clínicos são empurrados para milhões de direções diferentes. Como profissionais estamos desencorajados e desgastados, mas temos de lutar arduamente para não nos tornarmos naquilo que o nosso governo quer. Soubemos o suficiente para entrar na faculdade, sobrevivemos à dureza dos internatos, conseguimos um lugar e sabemos o que fazer para ultrapassar obstáculos que há entre nós e os cuidados aos doentes.

O modo mais eficaz de afastar a nuvem negra que cobre as comunicações entre médicos é ressuscitar a carta do médico. Não temos de escrever como o Padre António Vieira ou produzir prosas elegantes. Bastam umas linhas que contenham o essencial das nossas preocupações/dúvidas e alguns factos relevantes da história do doente. Demora pouco mais de dois minutos para que o nosso destinatário, o nosso consultor ou os nossos doentes percebam que não alinhamos nas falhas da moderna comunicação. Estes constrangimentos caíram em cima de nós sem que o permitíssemos. Com melhor comunicação podemos fazer a nossa profissão regressar aos tempos em que importava haver coordenação de pensamentos, ideias e factos e os doentes sentiam que eram, eles também, importantes.

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[*] Whyte WH. "Is anybody listening?" Fortune 1950; 42:77-83.

01 outubro 2015

Morte medicamente ajudada

 

Morte medicamente ajudada
Timothy E. Quill e Bernard Sussman, Hastings Center

Tradução espontânea do artigo Medical aid-in-dying 

 Enquadramento

A questão de saber se os doentes gravemente doentes têm direito à ajuda de um médico para acabar com o seu sofrimento, pondo fim às suas vidas, tem sido debatida desde a antiguidade. O Juramento Hipocrático sugeriu que isto estava fora das responsabilidades profissionais do médico, mas mesmo nessa altura houve um desacordo considerável. Na era moderna, há provas consistentes de uma prática secreta da morte medicamente ajudada (MMA) nos países ocidentais onde é proibida. A profissão médica e a lei tendem a olhar para o outro lado, desde que não se torne pública (“Don’t ask, don’t tell” – “Não pergunte, não diga”). Esta prática secreta foi revelada nos anos 90 quando Jack Kevorkian ajudou na morte de aproximadamente 150 doentes. Embora tenha perdido a sua licença profissional no processo (era patologista, não clínico), não foi processado com sucesso até que praticou eutanásia ativa a pedido de um doente e foi subsequentemente preso durante mais de oito anos.

Nos Estados Unidos, na maioria das jurisdições, proíbe-se os médicos de ajudar à morte seja em diplomas legais específicos, seja pela aplicação judicial de leis gerais. Tem havido tentativas de alterar a lei através de diversos métodos:

·         Petições legais federais sobre a constitucionalidade das proibições, sem vencimento, nomeadamente em dois casos no Supremo Tribunal tratados em conjunto (Washington vs. Glucksberg e Quill vs. Vacco). O Supremo Tribunal dos EUA, embora não tenha reconhecido qualquer direito constitucional à MMA, sugeriu que este assunto deveria ser decidido ao nível dos Estados.

·       Referendo estadual – enquanto vários desafios às proibições da MMA falharam, a Morte com Dignidade foi decretada no Oregon em 1997 e no Estado de Washington em 2008. Ambas as leis sobreviveram a uma variedade de recursos legais.

- Ação legislativa: Vermont (2013), Califórnia (2015), Colorado (2016), o Distrito de Colúmbia (2017), Havai (2018) e New Jersey (2019) aprovaram leis que legalizam a MMA através de iniciativas legislativas.

- Há recursos constitucionais estatais a correr em vários tribunais estaduais, mas nenhum foi bem-sucedido na sua legalização.

Persiste alguma controvérsia sobre como designar essa prática. O entendimento comum da palavra suicídio equipara-a a doença mental e comportamento irracional e a obrigação médica seria, portanto, prevenir estes atos, se possível. Os doentes prestes a morrer que veem as suas vidas serem destruídas pela doença tendem, por vezes, a considerar a morte como a única forma de escapar ao seu sofrimento e, portanto, a vê-la como um meio de autopreservação – o oposto do suicídio. Os Estados onde foi legalizado chamam-lhe agora morte ajudada por médico, ajuda médica, ou assistência médica ao morrer.

O público continua profundamente dividido sobre a questão de saber se deve permitir legalmente a MMA. Na maioria dos inquéritos, aproximadamente dois terços da população dos EUA aprovam-no como uma opção para doentes terminais com sofrimento intratável. Mas quando a questão da legalização chega a uma votação, os resultados são normalmente mais próximos de 50/50. Esta divisão reflete as tensões inerentes ao debate. Por um lado, muitas pessoas conhecem casos de sofrimento grave, mesmo com excelentes cuidados paliativos, onde a necessidade de alguma fuga previsível é mais convincente. Por outro lado, teme-se que a MMA possa ser utilizada como um desvio que evite cuidados paliativos eficazes ou como uma forma de eliminar o sofrimento de doentes vulneráveis, eliminando quem sofre. Do mesmo modo, a maioria dos médicos está a favor do acesso legal à MMA, mas apenas uns 30% estariam dispostos a prestar diretamente essa ajuda, mesmo que legalmente permitida.

Morte medicamente ajudada na prática

Os cuidados paliativos – incluindo a melhor gestão da dor e dos sintomas, o apoio psicossocial aos doentes e famílias, e assistência nas decisões difíceis – devem fazer parte do padrão de cuidados para todos as pessoas gravemente doentes.  Muitos estudos demonstraram uma lacuna significativa entre o potencial dos tratamentos paliativos no alívio do sofrimento e a prática real. Se alguém considerar a MMA, o primeiro passo deve ser que os médicos garantam que o doente está a receber o tratamento paliativo ideal. Mas mesmo com os melhores cuidados paliativos e apoio possíveis, haverá provavelmente uma pequena percentagem de casos em que os sintomas se tornam intratáveis, apesar dos esforços mais competentes para ajudar. Além disso, o sofrimento do doente não pode ser limitado ao domínio físico e deve incluir dimensões psicológicas, sociais, existenciais e espirituais. A profissão médica reconhece que esse sofrimento inaceitável existe por vezes quando os médicos falam com os doentes sobre a paragem dos suportes de vida, mas quando não há suporte de vida para parar, a profissão médica pode assumir que tanto o doente como o médico não se esforçaram o suficiente com medidas paliativas padrão. Quanto mais predomina o sofrimento não-físico, menos consenso existe sobre o direito do doente a seguramente morrer.  Em circunstâncias de sofrimento intratável, há provas de que alguns médicos nos EUA por vezes ajudam na morte dos doentes.  Isto não é facilmente estudado porque, para reconhecer a participação, o médico teria de admitir um crime na maioria das jurisdições. No entanto, vários estudos imperfeitos da prática nos EUA sugerem que, em estados onde é ilegal, a MMA pode ser responsável por cerca de 1-2% das mortes.

A prática legítima da MMA nos EUA está mais bem estudada no Oregon, onde é legal desde 1997 para doentes terminais com capacidade de decisão que têm um sofrimento inaceitável. Os dados recolhidos pelo Departamento de Saúde do Oregon mostram que a prática aumentou ao longo desse tempo de aproximadamente 1 em 1000 mortes para aproximadamente 1 em 300 mortes. Cerca de 2/3 dos doentes que recebem uma prescrição potencialmente letal morrem depois de a tomarem, enquanto cerca de um terço não toma a sua prescrição letal e morre por outras causas.  Embora a MMA seja responsável por uma percentagem relativamente pequena de mortes no Oregon, aproximadamente 1 em cada 50 doentes fala com os seus médicos sobre a opção e 1 em cada 6 fala com as suas famílias sobre a possibilidade. Sabemos também que a gestão da dor e a utilização de hospícios melhoraram no Oregon desde a aprovação da Lei de Morte com Dignidade, e existe um programa de âmbito estadual para registar as vontades dos doentes sobre reanimação cardiopulmonar e outras intervenções médicas (Patients Orders for Life Sustaining Therapy, ou POLST).

Nos Países Baixos, a MMA e a eutanásia ativa voluntária eram abertamente autorizadas durante mais de 30 anos antes de terem sido legalizadas em 2002. As práticas foram objeto de vários estudos importantes, que mostraram taxas relativamente estáveis de MMA (0,2-0,3%) e de eutanásia ativa voluntária (1,8-2,5%), bem como o aumento da informação pública ao longo do tempo (agora mais de 50%). As conclusões mais controversas têm sido um número pequeno mas persistente de "atos que terminam com a vida sem pedidos explícitos" (0,7-0,8%).  Tem havido muita discussão sobre estes casos. Os defensores argumentam que os doentes estavam em fase terminal, que estavam com um sofrimento intratável, que tinham perdido capacidade de decisão e que os seus médicos tinham agido adequadamente para acabar com o sofrimento. Os críticos sugerem que estes casos são provas claras da rampa escorregadia de uma prática fora de controlo.  Os críticos também têm visto perigos de uma rampa escorregadia na aceitação de diagnósticos psicossociais vagos (por ex. "cansado de viver") como justificação para a eutanásia ativa voluntária e MMA.  Nos Países Baixos, existe um preconceito cultural de que a responsabilidade de conter o sofrimento de um doente individual supera a obrigação de obedecer à lei nestes casos difíceis ("força maior").

Legalizar a morte medicamente ajudada

Proponentes e críticos da MMA têm diferentes razões éticas para defender as suas posições. Os principais argumentos a favor da legalização são:

A autonomia do doente. Um doente deve ter o direito de controlar as circunstâncias da sua própria morte e de determinar quanto sofrimento é demasiado.

Misericórdia. Se a dor e o sofrimento de um doente não puderem ser suficientemente aliviados com cuidados paliativos de última geração, então o médico tem a obrigação de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para aliviar esse sofrimento, até ao ponto de apressar a morte se não houver alternativas realistas aceitáveis para o doente.

Não abandono. A obrigação do médico para com o seu doente e a sua família de acompanhar o processo de morte e de ser o mais atencioso possível, prevalece sobre outras obrigações e restrições nestas circunstâncias preocupantes.

Os principais argumentos contra permitir o acesso legal ao DAP são:

Matar é um erro. Ajudar propositadamente um doente a morrer é categoricamente errado em quaisquer circunstâncias; os cuidados paliativos excelentes não incluem a MMA.

Integridade do médico. Os médicos fazem o juramento sagrado de nunca prejudicar intencionalmente um doente, e a MMA violaria as normas profissionais e minaria a confiança entre o médico e o doente.

Risco de abuso (rampa escorregadia). Permitir a MMA representa um risco demasiado elevado para os doentes vulneráveis. As suas vidas poderiam eventualmente acabar contra a sua vontade ou ainda que havendo abordagens alternativas para aliviar o sofrimento poderiam ser dispendiosas ou o sofrimento fosse difícil de tratar.

Enquanto a maioria dos clínicos experientes reconhece que há casos relativamente raros que podem justificar a MMA, há duas questões empíricas principais sobre o efeito da legalização. Será que uma abordagem aberta e regulamentada legalmente tornaria a prática da MMA mais segura, mais previsível e relativamente rara (como parece ser o caso até agora no Oregon)? Ou será que corroeria os ganhos obtidos nos cuidados paliativos e hospitalares, tornando o ambiente mais arriscado e assustador para os nossos doentes mais vulneráveis (como os casos de eutanásia involuntária e de eutanásia voluntária para uma vaga aflição psicossocial na Holanda parecem sugerir)?

Glossário da Morte Medicamente Ajudada

Morte ajudada por médico: a prática de um médico que proporciona os meios a uma pessoa com capacidade de decisão para possa terminar a sua própria vida, geralmente com uma prescrição de barbitúricos com que o doente se suicida; por vezes também chamada de suicídio ajudado por médico, ajuda médica e morte antecipada por administração pelo doente)

Eutanásia: matar sem dor ou permitir a morte de indivíduos que estão doentes ou feridos sem esperança de recuperação.

Eutanásia ativa voluntária: apressar a própria morte através do uso de fármacos ou outros meios, com a ajuda direta de um médico.

Eutanásia passiva: apressar a morte, retirando o tratamento que sustenta a vida e deixando a natureza seguir o seu curso

Eutanásia involuntária: causar ou apressar a morte de alguém que não tenha pedido ajuda para morrer, como por exemplo, um doente que perdeu a consciência e é pouco provável que a recupere ou que carece de capacidade de decisão por outras razões.

Opções de Último Recurso

Os cuidados paliativos de última geração continuam a ser o padrão de cuidados para qualquer sofrimento em fim de vida e as opções de último recurso só devem ser consideradas quando tais tratamentos são ineficazes. Não estão disponíveis bons serviços de cuidados paliativos em todos os locais; estão a ser feitos esforços para aumentar a educação e a proliferação destes serviços por grupos médicos e outros grupos profissionais, em iniciativas estaduais, sistemas inovadores de cuidados de saúde e por provedores dos doentes.

Ao considerar casos de sofrimento intratável face a excelentes cuidados paliativos, quer a MMA seja legal ou não, os clínicos devem estar plenamente conscientes das opções alternativas de "último recurso" que podem ser preferíveis e sobre as quais existe um maior consenso moral. A prescrição de medicamentos para a gestão agressiva da dor e outros sintomas, mesmo em doses que possam apressar involuntariamente a morte, tem ampla aceitação ética, legal e profissional. Esta prática pode ser justificada por razões éticas pela doutrina do duplo efeito, que defende que, embora seja errado tirar intencionalmente a vida a alguém, pode ser admissível correr o risco previsível de apressar a morte de alguém, desde que a intenção seja aliviar o sofrimento.

Outra opção de último recurso com ampla aceitação é que os doentes parem (ou não comecem) qualquer terapia potencialmente sustentadora da vida se esta não atingir o seu objetivo, mesmo que o seu objetivo na recusa de tratamento seja o de escapar ao sofrimento através de uma morte mais precoce. A decisão dos doentes de parar voluntariamente de comer e beber para escapar ao sofrimento intolerável é aceite por muitos hospícios e tem um apoio ético e legal considerável. A justificação ética para estas opções é que preservam o direito dos doentes à integridade corporal e à autodeterminação – para dizerem o que querem que aconteça ao seu próprio corpo.

Uma resposta de último recurso para alguns dos casos mais complexos e difíceis é a de os médicos sedarem um doente potencialmente ao ponto de inconsciência para permitir que a pessoa escape ao sofrimento físico, de outro modo intratável, no fim da vida. O apoio jurídico a esta prática inclui as decisões do Supremo Tribunal de 1997 em Washington v. Glucksberg e Quill v. Vacco, que reconheceram o direito a uma boa gestão da dor, mesmo que esta requeira doses que possam apressar a morte. A justificação desta prática invoca uma combinação da regra do duplo efeito e do direito à integridade física. Em julho de 2008 a Associação Médica Americana declarou que "é obrigação ética de um médico oferecer sedação paliativa até à inconsciência como opção para o alívio de sintomas intratáveis" no final da vida quando "os sintomas não podem ser diminuídos através de todos os outros meios de paliação". [NT: ver sobre sedação paliativa a Lei n.º 31/2018]

Dar aos médicos e doentes um acesso mais aberto e uma maior consciência das opções de último recurso pode ter vários efeitos benéficos. Um efeito potencial é uma maior oportunidade para os doentes obterem segundas opiniões de clínicos qualificados em cuidados paliativos para terem a certeza de que outras vias menos extremas para abordar o sofrimento aparentemente intratável foram consideradas. Outro benefício é a garantia às pessoas gravemente doentes que receiam ter sofrimentos em fim de vida de que existem algumas vias de fuga que podem ser seguidas de forma aberta e previsível. Estas outras opções de último recurso podem diminuir o desejo e a necessidade da MMA. Alguns doentes no Oregon e nos Países Baixos estão a escolher estas outras alternativas de último recurso, embora tenham acesso a MMA porque, em algumas circunstâncias, estas abordagens são mais capazes de responder às suas necessidades particulares e podem ser mais congruentes com os seus valores pessoais. Finalmente, as alternativas acrescentadas aumentam a consciência, tanto dos clínicos como da sociedade, da sua obrigação de lidar com o sofrimento intolerável quando este se lhes depara.


Timothy E. Quill, MD, é o diretor fundador do Programa de Cuidados Paliativos no Centro Médico da Universidade de  Rochester.

Bernard Sussman, MD, é membro do Programa de Cuidados Paliativos e da Divisão de Humanidades Médicas e Bioética do Centro Médico da Universidade de Rochester

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10 setembro 2015

Apagar a ideia de ocultação de dados

Apagar a ideia de ocultação de dados 
Daniel Barchi *

Tradução espontânea  do texto

Os sistemas de saúde e os médicos estão numa posição única quando estão perante registos clínicos de doentes. Precisamos de aceder à informação certa na altura certa para dispor de bons cuidados de saúde, por isso precisamos de garantir a segurança e a privacidade desses registos. O perspicaz Dr. John Hamalka (diretor de informação) refere-se a este problema assim: “Guardar, guardar, guardar e depois partilhar!” Curiosamente, desde que a tecnologia pôs os registos de doentes online e os tornou mais acessíveis, há a impressão de que os prestadores de cuidados de saúde estão a evitar essa partilha como se fosse uma estratégia de negócio.

Em 2005, a maioria dos processos clínicos estava em suporte de papel. O acesso aos dados pelos médicos apenas era possível se soubessem da sua existência e seguissem um percurso sinuoso que incluía chamadas telefónicas, faxes e correio.

Hoje em dia, quase todos os Americanos têm alguns dados em registos clínicos eletrónicos (RCE) e 80% dos consultórios médicos usam sistemas com RCE. Estes vão de simples ferramentas de documentação até plataformas de software totalmente funcionais com faturação e ligação a portais de doentes.

Um catalisador deste crescimento foi o estímulo federal de 2009 que consistiu na atribuição de 18 mil milhões de dólares pelo governo federal aos hospitais e aos médicos para incentivar a adoção de RCE e para que o seu uso aumentasse a qualidade. Infelizmente, o programa tinha poucos requisitos que permitissem a partilha de dados entre hospitais e médicos. Consequentemente, mesmo com o grande crescimento do uso de RCE, a maioria da partilha de dados pelo sistema limita-se a curtas sínteses sobre medicações, história e alergias dos doentes. Isto está longe de ser o fluxo fácil de dados indivisos que os doentes esperavam fosse o destino dos milhões despendidos pelo governo. Infelizmente, alguns legisladores estaduais e federais interpretam esta falta de interoperacionalidade como um “ocultação de dados” por parte dos sistemas e dos consultórios médicos.

De facto, nada prova que os hospitais e os médicos ocultam os registos clínicos para daí obterem ganhos. A verdade é precisamente o oposto – depois de anos a construir e aplicar RCE, os prestadores de saúde passaram a concentrar-se em melhorar a partilha de dados com os doentes e outros prestadores. No meu próprio sistema de saúde, o Yale-New Haven Health System em Connecticut, criámos um portal do doente que permite aos doentes conhecerem automaticamente os seus dados laboratoriais. Facilitamos aos médicos da comunidade, a preços subsidiados, o nosso software de RCE e o total acesso aos dados. Para encorajar o acesso total aos dados dos doentes, damos a todos os médicos do nosso Estado acesso online total e gratuito aos processos RCE dos seus doentes. Construímos interfaces para a partilha de dados de doentes com muitos consultórios médicos da nossa comunidade e já concedemos acesso eletrónico para facilitar cuidados de saúde a mais de 30.000 processos com 120 outros sistemas de saúde nos EUA e noutros países.

Não estamos sós nesta tarefa de melhorar a partilha de processos clínicos. Outros hospitais e consultórios médicos também estão a usar tecnologia e interfaces para o fazerem localmente. Alguns Estados e regiões criaram meios de troca de informação de saúde e grandes companhias de software de RCE, como Cerner, Epic, Allscripts e McKesson, construíram as suas próprias redes com os seus clientes ou permitiram a partilha de alguns dados com hospitais.

Além disso, os prestadores de saúde são incentivados a agir mais a favor da melhoria do que da partilha de dados. Os financiamentos são cada vez mais direcionados para a qualidade dos cuidados que os doentes recebem. Melhorar os resultados exige interação dos hospitais, consultórios e outros agentes; a partilha de dados entre eles é a chave.

Embora a partilha de dados não seja fácil e não tenha merecido a atenção principal dos programadores de tecnologia de cuidados de saúde na última década, os prestadores de saúde estão a trabalhar ativamente para ultrapassar os limites dos sistemas. A inovação está a chegar a todo o lado. Uma companhia chamada Apigge tem ajudado os grandes e pequenos prestadores a aceitar rapidamente módulos de extensão para exportar dados. O meu próprio sistema de saúde está a trabalhar para ajudar ao crescimento de pequenas companhias (Hugo and Patient Databank) que ajudam os doentes a descarregar os seus processos clínicos completos para os usarem ou partilharem como acharem conveniente.

Os prestadores de saúde e os defensores de doentes apoiam a ideia de que os doentes são os donos dos seus dados e têm o direito a esperar que eles sejam partilhados tão segura e facilmente quanto possível. A comunidade dos cuidados de saúde está ativamente empenhada neste objetivo e assim continuará mesmo sem novas leis.

* Daniel Barchi é o primeiro vice-presidente e diretor de informação da Faculdade de Medicina de Yale e do Yale-New Haven Health System, com orçamento de $4.0MM, 2.100 camas, 25.000 funcionários. Dirige uma equipa de 600 informáticos e especialistas em tecnologia e um projeto de RCE (Electronic Medical Record) de $300M.