30 dezembro 2015

Entrevista a David S. Oderberg

 

Tradução espontânea, sem fins lucrativos, 
David S. Oderberg é professor de Filosofia na Universidade de Reading, Reino Unido, e tem escrito muito sobre temas de bioética, tais como aborto, eutanásia, engenharia genética, direitos dos animais e pena de morte, na perspetiva da lei natural, anti-consequencialista. É também editor da Ratio, uma revista internacional de filosofia analítica. Xavier Symons, editor adjunto de BioEdge, pediu-lhe para comentar o estado da bioética contemporânea.

Xavier Symons: Na sua opinião, quais são os principais conceitos filosóficos que os bioeticistas tendem a entender mal?

David S. Oderberg: Há muitos mal-entendidos na indústria bioética (porque tem algo de indústria), embora prefira chamar-lhes simplesmente erros ou confusões. Não creio que a maioria dos bioeticistas não compreenda aquilo em que acredita ou que recomenda nas suas posições, pois a maioria tem uma agenda óbvia, a qual consiste em acabar com tantos “tabus” quanto possível, isto é, proibições tradicionais do bom senso.

Muitas vezes, os fins justificam os meios na medida em que os bioeticistas hão de usar qualquer argumento que tenham à mão, seja bom, mau ou indiferente, para cumprir uma agenda predefinida. Nesse sentido, suponho que se pode dizer que eles entendem mal que a função do argumento, ou seja alcançar a verdade, não é chegar a uma posição previamente adotada.

Lembro-me de ter lido, há alguns anos, um relatório da Autoridade Britânica para a Fertilização Humana e o Embrião, produzida por uma mão-cheia de bioeticistas e dedicada a defender a experimentação com embriões humanos. No relatório era muito claro que os autores (muitos dos quais nunca tinha ouvido dizer que fossem filósofos de profissão) pretendiam recomendar ao governo, como moralmente permissível, a experimentação com embriões e onde usavam qualquer argumento ou “teoria” para a defender essa recomendação.

O resultado era um pouco de kantismo numa página, de utilitarismo noutra, de teoria das virtudes mais adiante e um pouco de tudo e mais alguma coisa de pensamento filosófico, sendo que a maioria era totalmente incompatível entre si, tudo misturado para alcançar uma conclusão supostamente racional que, inevitavelmente, não era mais do que um “tudo bem” à experimentação com embriões, desde que haja cuidado.

Num nível mais conceptual, tenho visto várias confusões significativas que aparecem recorrentemente. Uma é entre “matar” a doença e matar o doente, como que pudéssemos curar uma pessoa do seu problema eliminando a pessoa, por ex., pôr fim a uma dor, pondo fim ao doente. Pode fazer-se isso, assim como se pode acabar com uma dor de cabeça degolando a pessoa. Mas não pode chamar-se a isso curar ou cuidar de alguém, que são os deveres primordiais dos profissionais de saúde.

Se os bioeticistas pensam que podem “curar” alguém dos seus padecimentos pela eutanásia, então não estão realmente interessados na cura (ou cuidado), mas em algum outro objetivo.

Isso faz-me pensar na confusão entre o que é bom para uma pessoa e o que é bom para outrem, seja a sua família, a comunidade ou a sociedade no seu todo. Dado que cuidar e curar são os deveres primordiais da medicina e dos cuidados de saúde em geral, o que é melhor para alguém que não o doente nunca pode ser o objetivo primordial do profissional de saúde enquanto profissional de saúde.

A ideia de que um doente pode ser um “encargo” para a sociedade, a sua existência “perturbadora” da sua família ou a sua provação uma “avaria” do sistema de saúde, nunca pode prevalecer sobre o primordial dever de cuidar, o que significa proteger o doente e curá-lo quando possível, ou então dar tanto conforto quanto possível. Infelizmente, sob a influência malévola da indústria da bioética, há demasiados doentes que são vistos como mercadorias ou unidades de produção (não encontro tremo melhor) do sistema, tudo menos indivíduos com direito à vida, a cuidados e à dignidade.

Se tivesse de escolher uma última confusão entre muitas, seria a medicalização deliberada dos deveres normais de cuidar. O exemplo clássico é a “hidratação e alimentação artificiais”, em tempos chamada comida e água. Afinal, dar de comer a quem fome e de beber a quem tem sede era um bom e antiquado dever humano. Mas desde que os bioeticistas e os seus crentes colocados na política, na economia e na lei, o medicalizaram – na verdade, desde que se tornou na sigla HAA – este simples dever humano escondeu-se num jargão e assim podem debater friamente a “interrupção de HAA”, como se fosse um procedimento médico e não um mero jejum.

Encontra-se o mesmo tipo de distanciamento no uso de termos como “feto”, “conceptus”, “término”, “eutanásia”, “estado vegetativo”, etc. A história está cheia de exemplos.

XS: Como relaciona a área da bioética com a da filosofia moral?

Oderberg: Não há bioética sem filosofia moral. A bioética não é mais do que a aplicação grosso modo da filosofia moral, ou ética, aos problemas da vida e da morte. Nesse sentido, não se pode conceber a bioética como uma disciplina autónoma com os seus próprios peritos em princípios bioéticos sui generis.

Sim, para ser bioeticista é preciso ter conhecimentos em filosofia moral (algo que muito bioeticistas não têm) e domínio dos assuntos médicos, científicos e técnicos específicos sobre que se pronunciem. De preferência, deve ter experiência próxima desses assuntos e não ter uma mera “experiência” de torre de marfim.

Para ser bioeticista, então, é preciso ser um filósofo moral e para ser um filósofo moral é preciso ser um filósofo, capaz de distinguir os bons dos maus argumentos, de separar pensamento justificado de novidade, moda, pressão social, preconceito e políticas governamentais.

E para ser filósofo é preciso ser um ser humano, com preocupações humanas, amor pelo próximo, preocupação pela sociedade e seu futuro e, o que é o mais raro recurso, bom senso. Por outras palavras, a bioética não é o que se faz quando se arranja um emprego na filosofia “real” e se pode obter grandes verbas de fundações e grupos de reflexão [think tanks].

XS: Que tipo de nova contribuição poderia resultar para a bioética da chamada “abordagem da lei natural”?

Oderberg: Bem, a bioética da lei natural não está bem desenvolvida, apesar de ser parcialmente defendida em alguns círculos. Digamos que ser pró-vida não implica ser um bioeticista da lei natural. Tão pouco preocupar-se com os desenvolvimentos sinistros da biotecnologia ou com a “cultura da morte”.

Ser um bioeticista da lei natural significa ter um conhecimento profundo de, e respeitar, a tradição de pensamento que vem dos antigos Gregos e Romanos e que realça o papel que a natureza tem na orientação da moralidade. Só sofistas ignorantes pensam que a ética da lei natural significa que tudo o que é natural é bom ou certo e que tudo o que não é natural é mau e errado. Pelo contrário, é sobre identificar o que cumpre à nossa natureza humana, faz-nos ser o que é suposto sermos de acordo com a nossa natureza de criaturas racionais, corpóreas, contudo finitas.

Penso que podemos estar certos de que, no que se refere ao cumprimento da nossa natureza, ser assassinado geralmente não ajuda. Assim, os ataques a vidas inocentes – vidas inocentes, não à vida dos que podiam perder o ser direito devido aos danos causados a outros – estão proibidos pela lei natural, independentemente de outras considerações.

Ainda estou para ver um bom argumento para sustentar que a vida em si não é senão um meio para atingir outros bens e portanto perde o seu valor quando alguém, digamos, está em coma ou estado vegetativo persistente.

Quando chegamos a tópicos como a engenharia genética, mães de substituição, “melhoramento” humano ou qualquer outro tema bioético e a tecnologia se mostra perante os media, o que é preciso é ter à mão uma análise cuidadosa e refinada da lei natural. A orientação tem de vir do que é bom para a natureza humana individual e para a natureza humana de grupos como a família, comunidade e Estado. Mas o que é bom para um grupo de humanos depende totalmente do que mais propício à realização de todos e de cada indivíduo, pelo que sacrificar uma vida inocente para benefício de outros é errado. O que é bom para o grupo não é o mesmo que o “melhor resultado” de uma ponderação utilitária ou consequencialista dos bons e maus efeitos de alguns comportamentos.

Nesse contexto, a teoria da lei natural não pode e não tem de trabalhar no vácuo: tem de estar informada por trabalho empírico credível e autêntico sobre a natureza humana e o bem comum, tudo contrabalançado pelo bom senso. Para dar um exemplo, a automutilação que dá pelo nome de “cirurgia estética”, quando se não destina a remediar um defeito que impede a função natural do corpo humano (e talvez também funções humanas naturais como a amizade e as relações sociais), é muito provavelmente moralmente errada em qualquer caso.

Hoje, não é isso que faz uma coisa ser “antinatural”, em sentido lato, mas aquilo que é, só por si, uma inversão antinatural da devida hierarquia dos valores humanos: a elevação do aperfeiçoamento corporal acima da aceitação da inevitável imperfeição própria do tipo de criatura que somos – pôr o bem corporal acima do chamado bem psíquico.

XS: Um conjunto de eticistas católicos (Grisez, Finnis, George) tentou aplicar uma Nova Teoria da Lei Natural aos modernos problemas da bioética. Concorda com a abordagem da Nova Lei Natural?

Oderberg: Bem, no geral não estou de acordo com a abordagem, mas concordo com muitas das posições éticas, embora nem todas (nem eles defendem todos as mesmas posições éticas). A abordagem da “nova lei natural” surgiu da revolução cultural dos anos 60, quando alguns filósofos católicos, considerando muitas das posições contemporâneas e não-tradicionais de então (muitas das quais persistem), decidiram que a antiquada metafísica aristotélica-tomista já não “servia” para nada.

Nós, os modernos, por outras palavras, poderíamos ver nas conceções de Aristóteles e Tomás de Aquino (e seus seguidores) e nos seus “preconceitos” metafísicos, a perspetiva de que realmente existe uma coisa chamada natureza humana, e que da natureza humana se pode filosoficamente defender um sistema ético. Assim, a metafísica da natureza humana, assim como tudo o que a acompanha, foi lançada pela janela a favor de um foco no ponto de vista subjetivo, da primeira pessoa, na perspetiva do agente que pensa sobre o que fazer e sobre o que é bom ou mau.

Ora, como que por milagre, os teóricos da Nova Lei Natural conseguiram, pelo seu método completamente novo e até aí desconhecido, chegar a um conjunto de posições largamente coincidentes com as que pretendiam afirmar. Mesmo assim, tanto quanto posso dizer, as únicas vezes em que pareciam ter uma posição assente num argumento inatacável e talvez plausível foi quando aparentemente recorreram à tal metafísica “desatualizada” que pretendiam condenar.

Assim, a meu ver, o projeto da Nova Lei Natural é, sempre foi, um falhanço: nunca por nunca persuadiu os bioeticistas liberais a abandonar uma única das suas posições, seja sobre aborto, eutanásia, maternidade de substituição, “casamento homossexual”, ou outra qualquer. Note-se que eu não digo que a abordagem tradicional, metafisicamente orientada, seja, psicologicamente falando, mais fácil para convencer os bioeticistas liberais; mas penso que é a única que, intelectualmente falando, dá alguma esperança de o fazer.

XS: Como vê, nas próximas décadas, o rumo da bioética?

Oderberg: Bem, não seguirá uma direção nova e maravilhosa em que a ciência e a tecnologia sejam postas no seu lugar e os valores humanos autênticos voltem a dominar, em que a sociedade e o governo apenas permitam crescimentos que genuinamente beneficiem os indivíduos e o bem comum. De facto, as minhas previsões são bastante apocalípticas a esse respeito, mas não quero ir por aí.

O que digo é que o futuro da bioética está fortemente ligado ao futuro da sociedade (ou sociedades). Não é de esperar que os bioeticistas assumam a liderança da recuperação da sanidade de uma sociedade que no restante está louca. De facto, não espero que os filósofos o façam.

São as forças culturais que dirigem os desenvolvimentos futuros e, apesar de ser verdade que os bioeticistas têm estado na vanguarda, eles não são os seus condutores. Temos de olhar para a sociedade num sentido mais amplo: para onde vai? Como será, digamos, daqui a trinta anos? Responda-se a esta pergunta e saberemos o que será a bioética.

Estou mais do que ligeiramente preocupado, embora mais por causa dos meus filhos do que por mim. Se todos mantiverem os seus filhos a salvo dos efeitos da lavagem ao cérebro dos media e dos amplificadores biotecnológicos (como lhes chama o grande Wesley Smith), a bioética acabará por se mostrar muito diferente.