20 junho 2015

Ética da Ressuscitação


Ética da Ressuscitação
Myra Christopher e Rosemary Flanigan, PhD

Tradução espontânea de The Ethics of Resuscitation

Promessas e Problemas

Desde o seu início a ressuscitação cardiopulmonar (RCP) tem dado que pensar a filósofos e bioeticistas e o Center for Practical Bioethics tem uma longa história de batalhas sob este tema.

Em 1966, a National Academy of Sciences divulgou que a massagem cardíaca fechada e a RCP deviam ser tratamentos usuais em doentes hospitalizados. Antes, a RCP era uma proposta “feita às cegas”. Durante os anos 70 e 80, o uso de RCP tornou-se mais frequente nos hospitais e expandiu-se com a associação da desfibrilhação. Em 1984, o ano em que o Center foi criado, o Johns Hopkins Hospital passou a ser o primeiro a integrar os desfibrilhadores externos automáticos nos procedimentos de ressuscitação.

A RCP foi inicialmente destinada a quem sofria paragens cardiovasculares presenciadas (i.e., quem morria de ataque cardíaco frente a alguém com conhecimentos de RCP). No final dos anos 80 e início dos anos 90, foi aplicada a quem quer que morresse nos hospitais – e os problemas surgiram. Um autor chamou-lhe uma “cedência médica”. Outro disse: “Regressar da morte tornou-se numa obsessão da medicina”. Outro ainda referiu-se à morte como um “problema recorrente”.

Decisão de Não Ressuscitar

O Center for PracticalBioethics e outros pensaram que tratar do tema das decisões de não ressuscitar (DNR) protegeria os doentes dos danos resultantes do seu uso inadequado quando tivessem poucas possibilidades de beneficiar da RCP. De um modo geral, entre esses danos estão costelas partidas, queimaduras da pele, equimoses extensas e ficar entre a vida e a morte com pouca “qualidade de vida”. Ron Stevens, MD, então diretor de Oncologia na University of Kansas, disse que a RCP era “a mais desagradável intervenção feita em medicina, esteticamente falando”. Um outro médico, um “quase fundador” do Center for Practical Bioethics, Bill Bartholome, MD, escreveu um artigo para os Annals of Internal Medicine em 1988 onde dizia: “O que precisamos é de uma nova perspetiva, um novo modo de pensar as Decisões de Não Ressuscitar (DNR). Precisamos de perceber que, na maioria das instituições de cuidados continuados e lares de idosos, os únicos supostamente bons candidatos a receber RCP são afinal os seus profissionais e as suas visitas”.

Na maior parte das vezes, as DNR eram respeitadas nos hospitais mas, quando o Medicare e os supervisores das entidades reguladoras consideraram a ressuscitação como uma medida de qualidade, os médicos passaram a hesitar em passar a escrito essas decisões, especialmente em doentes frágeis e idosos incapazes, e/ou quando as famílias pediam para “fazer tudo o que for possível”. E quando os doentes que tiveram uma DNR saíam do hospital não havia maneira de que uma DNR fosse cumprida em suas casas.

Novas Orientação e Estratégias

O Center for Practical Bioethics e outros reconheceram que a prática quase universal de tentar ressuscitar quem quer que morra num hospital era eticamente imperfeita e que não bastava, para proteger os doentes, questionar a RCP e a sua eficácia em revistas de referência e em congressos profissionais.

Em 1988, o Kansas City Regional Hospital Ethics Committee Consortium convocado pelo Center acompanhou a execução de um projeto comunitário em Hennepin County Minnesota que criou um modo de estabelecer DNR fora do ambiente hospitalar. Com os nossos prestadores de serviços médicos de emergência, hospitais locais e lares de idosos, Kansas City tornou-se a segunda comunidade no país em que os doentes nos seus domicílios podiam ter DNR que pudessem ser respeitadas. A iniciativa de Kansas City foi apresentada nos Annals of Emergency Medicine.

O Consortium também criou normas de orientação para DNR em Lares de Idosos e sobre Respeitar DNR Durante Procedimentos Invasivos. O número da primavera de 1998 do Bioethics Forum contém estas normas de orientação do Consortium. Na sequência desse trabalho, a Joint Commission (então JCAHO) solicitou ajuda ao Center para que elaborasse os seus critérios.

POLST e Mais Além

Nesse mesmo ano o Center soube do POLST (Indicações Médicas para Tratamentos de Suporte de Vida) no Oregon, que resultara de tratamentos indesejáveis e potencialmente lesivos de âmbito estadual. Em 1999, o Center publicou um breve relatório sobre a iniciativa do Oregon no Número 3 da State Initiatives in End-of-Life Care. A execução em Kansas City de um projeto do tipo POLST foi muito difícil visto que “pisava as linhas” da nossa comunidade. Hoje, o Center, de acordo com uma frente alargada de instituições prestadoras de cuidados de saúde, dirige um projeto semelhante chamado Indicações Médicas Transferíveis para Preferências dos Doentes (TPOPP). É a primeira iniciativa bi-estadual do “paradigma POLST” no país. Os materiais e recursos educacionais do TPOPP podem ser encontrados em practicalbioethics.org.

O trabalho do Center nesta área desde há muito inclui o convite a académicos de todo o país para falarem sobre as suas investigações e escreverem sobre o assunto. Em 12 de agosto de 2015, pelas 19h00, continuaremos a aprender com David Casarett, MD, presente no 21st Annual Rosemary Flanigan Lecture no St. Joseph Health Center em Kansas City, Missouri. O Dr. Casarett é professor titular na University of Pennsylvania Parelman School of Medicine e autor de Shocked: Adventures in Reviving the Recently Dead, uma história completa da Ressuscitação Cardiopulmonar (RCP).

01 junho 2015

Carta aberta sobre as Diretivas Antecipadas de Vontade

 Revista OM - junho/2015

Prezado Professor Vilaça Ramos,

Permita que, com todo o respeito que me merece a sua figura de pessoa prestigiada, sabedora e moderada, comente brevemente na Revista da OM o seu artigo sobre “As diretivas antecipadas de vontade” (DAV), publicado no número de abril e chegado a nossas casas no início de junho.

O que me move é mostrar aos nossos leitores que as coisas podem ter aspetos diferentes consoante o ângulo de que são vistas e isso não é sempre mau. Na verdade, pode ver-se, claramente visto, que a sua perspetiva é a do profissional e eu, sem deixar de o ser (ou ter sido), gostaria de pronunciar-me como cidadão que já inscreveu as suas DAV no RENTEV (registo nacional do testamento vital).

O mais importante reparo que pretendo apresentar relaciona-se com alguma inconsistência que noto na mistura de vontades que os cidadãos podem indicar: uma coisa é “recusar”, outra é “pedir”. Se se pode, certamente, afirmar que os médicos não podem realizar tudo o que os seus “doentes” pedem, e que isso não configura um consentimento informado, já recusar certos tratamentos é – sem margem para dúvida – um dissentimento (consentimento negativo) antecipado. Se posso, hoje, na posse de todas as minhas faculdades e direitos, recusar, por exemplo, uma quimioterapia, mesmo que isso não seja bem entendido por quem me trata, também poderei deixar escrito que no futuro, se não estiver em condições de expressar verbalmente a minha vontade, essa é de facto a minha vontade inultrapassável. O legislador pensou nisso e definiu um prazo para a eficácia das diretivas – cinco anos. Talvez pudesse ser menos, mas seria sempre a minha vontade.

O seu artigo e outros que sobre o assunto se pronunciaram nesta Revista pecam, na minha opinião, por esquecer que a legislação sobre as DAV não surgiu por acaso. A justificação desta lei, tal como noutros países, é antes uma necessidade histórica ou, como se diz às vezes, resulta de um avanço civilizacional. Ou seja, todos quantos exercem medicina – nomeadamente em casos de fim de vida – sabem e sentem que, se dispuserem de uma DAV, todas as suas decisões sobre futilidade se tornam mais racionais. A autonomia a que temos direito pode não ter um caráter absoluto, mas o confronto entre a minha autonomia enquanto pessoa doente e a do médico enquanto pessoa tratante não pode acabar sempre na predominância desta.

Resta uma terceira questão que não pode passar sem crítica. Ao contrário do que afirma no início do seu artigo, o caráter vinculativo das DAV, na Lei 25/2012, não tem só escapatória na objeção de consciência. P citado artigo 6.º, no n.º 1, diz «Se constar do RENTEV um documento de diretivas antecipadas de vontade, ou se este for entregue à equipa responsável pela prestação de cuidados de saúde pelo outorgante ou pelo procurador de cuidados de saúde, esta deve respeitar o seu conteúdo, sem prejuízo do disposto na presente lei. Ora, o sublinhado pode bem remeter, entre outros, para o n.º 2 do mesmo artigo, o qual menciona as situações em que as DAV não devem ser respeitadas. Além de que as considerações sobre a objeção de consciência parecem esquecer que o Código Deontológico contempla dois tipos de objeção – a de consciência (artigo 12.º) e a técnica (artigo 13.º). Se a primeira tem de ser alvo de registo prévio, a segunda é que é verdadeiramente casuística e é a que pode e deve ser invocada se a DAV não puder ser respeitada.

Poderia ainda comentar a questão da confidencialidade, mas tenho a certeza de que concorda comigo em que revelar ao próprio e/ou ao seu procurador (e escrevê-los no processo clínico por dever de documentação) os fundamentos do não respeito pela vontade antecipadamente manifestada pela pessoa, nas situações previstas na lei e no Código Deontológico, nunca poderá ser considerada uma quebra de sigilo.

Saudações colegiais.