01 junho 2015

Carta aberta sobre as Diretivas Antecipadas de Vontade

 Revista OM - junho/2015

Prezado Professor Vilaça Ramos,

Permita que, com todo o respeito que me merece a sua figura de pessoa prestigiada, sabedora e moderada, comente brevemente na Revista da OM o seu artigo sobre “As diretivas antecipadas de vontade” (DAV), publicado no número de abril e chegado a nossas casas no início de junho.

O que me move é mostrar aos nossos leitores que as coisas podem ter aspetos diferentes consoante o ângulo de que são vistas e isso não é sempre mau. Na verdade, pode ver-se, claramente visto, que a sua perspetiva é a do profissional e eu, sem deixar de o ser (ou ter sido), gostaria de pronunciar-me como cidadão que já inscreveu as suas DAV no RENTEV (registo nacional do testamento vital).

O mais importante reparo que pretendo apresentar relaciona-se com alguma inconsistência que noto na mistura de vontades que os cidadãos podem indicar: uma coisa é “recusar”, outra é “pedir”. Se se pode, certamente, afirmar que os médicos não podem realizar tudo o que os seus “doentes” pedem, e que isso não configura um consentimento informado, já recusar certos tratamentos é – sem margem para dúvida – um dissentimento (consentimento negativo) antecipado. Se posso, hoje, na posse de todas as minhas faculdades e direitos, recusar, por exemplo, uma quimioterapia, mesmo que isso não seja bem entendido por quem me trata, também poderei deixar escrito que no futuro, se não estiver em condições de expressar verbalmente a minha vontade, essa é de facto a minha vontade inultrapassável. O legislador pensou nisso e definiu um prazo para a eficácia das diretivas – cinco anos. Talvez pudesse ser menos, mas seria sempre a minha vontade.

O seu artigo e outros que sobre o assunto se pronunciaram nesta Revista pecam, na minha opinião, por esquecer que a legislação sobre as DAV não surgiu por acaso. A justificação desta lei, tal como noutros países, é antes uma necessidade histórica ou, como se diz às vezes, resulta de um avanço civilizacional. Ou seja, todos quantos exercem medicina – nomeadamente em casos de fim de vida – sabem e sentem que, se dispuserem de uma DAV, todas as suas decisões sobre futilidade se tornam mais racionais. A autonomia a que temos direito pode não ter um caráter absoluto, mas o confronto entre a minha autonomia enquanto pessoa doente e a do médico enquanto pessoa tratante não pode acabar sempre na predominância desta.

Resta uma terceira questão que não pode passar sem crítica. Ao contrário do que afirma no início do seu artigo, o caráter vinculativo das DAV, na Lei 25/2012, não tem só escapatória na objeção de consciência. P citado artigo 6.º, no n.º 1, diz «Se constar do RENTEV um documento de diretivas antecipadas de vontade, ou se este for entregue à equipa responsável pela prestação de cuidados de saúde pelo outorgante ou pelo procurador de cuidados de saúde, esta deve respeitar o seu conteúdo, sem prejuízo do disposto na presente lei. Ora, o sublinhado pode bem remeter, entre outros, para o n.º 2 do mesmo artigo, o qual menciona as situações em que as DAV não devem ser respeitadas. Além de que as considerações sobre a objeção de consciência parecem esquecer que o Código Deontológico contempla dois tipos de objeção – a de consciência (artigo 12.º) e a técnica (artigo 13.º). Se a primeira tem de ser alvo de registo prévio, a segunda é que é verdadeiramente casuística e é a que pode e deve ser invocada se a DAV não puder ser respeitada.

Poderia ainda comentar a questão da confidencialidade, mas tenho a certeza de que concorda comigo em que revelar ao próprio e/ou ao seu procurador (e escrevê-los no processo clínico por dever de documentação) os fundamentos do não respeito pela vontade antecipadamente manifestada pela pessoa, nas situações previstas na lei e no Código Deontológico, nunca poderá ser considerada uma quebra de sigilo.

Saudações colegiais.