01 janeiro 2012

Ainda sobre o valor absoluto – notícia da morte de Hipócrates

Revista OM - janeiro/2012

 Senhor Doutor Gentil Martins,

Não quero responder ao seu questionário 1 e acho que não devo sequer fazê-lo. Gostaria apenas, se me for permitido, lembrar a quem nos lê que o juramento do velho Hipócrates foi substituído pela Declaração de Genebra. Trata-se de um texto que foi adotado em 1948 pela 2.ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, de que o Senhor aliás já foi presidente, e depois sucessivamente melhorado em 1968, 1983, 1994, 2005 e 2006. O mundo não parou! O juramento aí proposto diz que “Ao ser admitido como membro da profissão médica: JURO SOLENEMENTE consagrar a minha vida ao serviço da humanidade; GUARDAREI aos meus professores o respeito e gratidão que lhes são devidos; PRATICAREI a minha profissão com consciência e dignidade; A SAÚDE DO MEU DOENTE será a minha primeira preocupação; RESPEITAREI os segredos que forem confiados, mesmo depois da morte do doente; TUDO FAREI PARA MANTER a honra e as nobres tradições da profissão médica; OS MEUS COLEGAS serão minhas irmãs e irmãos; NÃO PERMITIREI que considerações de idade, doença ou deficiência, credo, origem étnica, género, nacionalidade, filiação política, raça, orientação sexual, condição social ou qualquer outro fator se interponham entre o meu dever e o meu doente; MANTEREI o maior respeito pela vida humana; NÃO USAREI os meus conhecimentos médicos para violar direitos humanos e liberdades civis, mesmo sob ameaça; FAÇO ESTAS PROMESSAS solenemente, livremente e sob palavra de honra.2

Quando iniciei a minha profissão, em 1971, não me foi dado fazer qualquer juramento público mas não tenho dificuldade em dizer que usaria sem reservas este texto da Associação Médica Mundial para esse efeito. Contudo teria mais gosto em usar o que Louis Lasagna redigiu em 1964 e julgo ainda ser usado em muitas escolas médicas americanas: “Juro cumprir, do melhor modo que possa e saiba, esta declaração: RESPEITAREI os progressos científicos arduamente alcançados pelos médicos cujos passos seguirei e partilharei com gosto tais conhecimentos, como se fossem meus, com os que vierem depois de mim. USAREI, em prol dos doentes, todas as medidas que forem necessárias, evitando tanto o tratamento excessivo como o niilismo terapêutico. RECORDAREI que há arte na medicina, como na ciência, e que cordialidade, simpatia e compreensão podem valer mais que o bisturi do cirurgião ou o medicamento da farmácia. NÃO ME ENVERGONHAREI de dizer “não sei”, nem deixarei de pedir ajuda aos meus colegas quando outras capacidades sejam necessárias para a recuperação de um doente. RESPEITAREI a privacidade dos meus doentes, pois os seus problemas não me são revelados para que todos os conheçam. Especialmente terei todo o cuidado em matéria de vida e morte. Se puder salvar uma vida, assim farei. Mas pode acontecer que esteja nas minhas mãos perder-se uma vida – esta assustadora responsabilidade deve ser enfrentada com grande humildade e com o sentido da minha fragilidade. Acima de tudo, não pretenderei ser Deus. LEMBRAR-ME-EI que não trato um gráfico de temperaturas ou o crescimento de um cancro, mas sim um ser humano doente cuja doença pode afetar a família dessa pessoa e a sua estabilidade económica. A minha responsabilidade inclui também estes problemas, se quiser cuidar adequadamente deste doente. TENTAREI PREVENIR doenças sempre que puder, já que prevenir é melhor do que remediar. LEMBRAR-ME-EI que serei sempre um membro da sociedade com obrigações especiais para com os seres humanos meus semelhantes, tanto os sãos de corpo e espírito como os enfermos. SE NÃO VIOLAR ESTE JURAMENTO, poderei desfrutar a vida e a arte, respeitado enquanto viver e recordado com afeto depois. Possa eu agir sempre de modo a preservar as mais admiráveis tradições da minha profissão e por muito tempo sentir a alegria dos que procuram a minha ajuda.3

Seja como for, continuo a ser contra valores absolutos e fundamentalismos.
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1 Revista da Ordem dos Médicos, ano 27, n.º 127 novembro, 2011, O valor Absoluto, página 67
Li no nº de Setembro da Revista da Ordem dos Médicos um artigo de opinião do Colega Rosalvo de Almeida, com o título “O Valor Absoluto”. Como sou um dos subscritores do documento a que faz referência, não resisto à tentação de lhe fazer algumas perguntas, aguardando com muito interesse as suas respostas. 1) Quando pensa o Dr Rosalvo de Almeida que teve início a sua própria vida ? Não terá sido na junção do que, displicentemente, chama óvulo e espermatozóide, da sua mãe e do seu Pai? 2) Excluindo conceitos religiosos (que anatematiza ), políticos, filosóficos ou quaisquer outros, qual a sua dúvida científica sobre o começo da vida, desde que surgiu a FIV, nascendo depois uma criança como qualquer outra? 3) Acha, ou não, que a vida é um todo continuo (o que nunca vimos, até hoje, biologicamente, ninguém contestar )? 4) Terá reparado, ou não, que as leis de interrupção da gravidez, variam de tempo de País para País, o que demonstra não haver qualquer fundamentação científica nessa decisão? 5) Que significado atribui realmente ao Direito à Vida consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Constituição da República Portuguesa? Não será o seu respeito, desde o início até á morte natural? 5) Entende o direito á autonomia e autodeterminação como superior ao direito e valor da vida ? Concorda então com o suicídio? 6) Porque confunde a autonomia que permite recusar uma terapêutica, com a reprovável obstinação terapêutica? 7) Concorda ou não com a Eutanásia? 8) Concorda ou não com a pena de morte? 9) Seria interessante saber se o Dr. Rosalvo de Almeida fez ou não o “Juramento de Hipócrites”, no fim do seu Curso de Medicina? Será que acredita nos seus princípios? Pessoalmente acreditamos no valor da vida desde o seu início até á morte natural: por isso tenho interesse em saber, isentamente, sem manipulações ou argumentações capciosas, o que os Portugueses pensam. Para já, como disse, gostaria de conhecer as respostas do Dr. Rosalvo de Almeida, já que se candidata a integrar um movimento cívico que se oponha ao movimento cívico que deseja o Referendo (certamente teremos conceitos diferentes do que é uma verdadeira democracia...) Gentil Martins