06 outubro 2016

Os médicos devem ter o direito legal de recusar cuidados?

 

Reuters Health Information

Os médicos devem ter o direito legal de recusar cuidados?
Lisa Rapaport

Tradução espontânea do artigo 

Alguns médicos defendem que não deviam, por lei, agir como objetores de consciência nem de recusar serviços como a interrupção voluntária de gravidez ou a ajuda médica ao suicídio, mesmo quando tais atos conflituem com os seus valores pessoais.

Julian Savulescu, Universidade de Oxford, Reino Unido, e Udo Schuklenk, Universidade Queens, Ontário, Canadá, num artigo (*) da revista Bioethics, no passado dia 22 de setembro, defendem que isso resulta de o acesso a cuidados dever ser prioritário e os objetores de consciência poderem dificultar o acesso de doentes que têm necessidade desses cuidados.

A favor das suas posições invocam o número crescente de países em todo o mundo que discutem quanta autonomia deve ser dada aos doentes e aos médicos para tomarem decisões sobre cuidados do início e final de vida, especialmente numa época em que as novas tecnologias e a imprensa desafiam os limites das convicções pessoais e das crenças religiosas.

“Os médicos têm valores, muitas vezes profundamente arreigados, como toda a gente. No entanto, diferentemente na maioria das profissões, pode por vezes pedir-se aos médicos que ajam contra alguns dos seus valores”, disse Savulescu à Reuters Health por correio eletrónico.

“Embora existam situações em que a objeção de consciência pode ser admissível havendo uma opção alternativa ampla e prontamente disponível que permita que se preste o serviço, os médicos não devem ter tal direito legal”, afirmou Savulescu.

Os autores assinalam que, em alguns países, como a Suécia e a Finlândia, os médicos estão impedidos de se recusarem a prestar qualquer tipo de assistência médica que seja legal e podem ser despedidos se o fizerem.

Notam ainda que, noutros países, como a Austrália, Canadá, Reino Unido e USA, as leis permitem historicamente a objeção de consciência e os médicos entram na profissão com a expectativa de que não serão obrigados a prestar cuidados de saúde que colidam com as suas crenças religiosas ou convicções pessoais.

No caso da contraceção, os autores defendem que os médicos não devem ter direito legal de se recusar porque as mulheres não têm outra forma de a conseguirem. Além disso, uma vez que as mulheres querem o controlo da natalidade, o planeamento familiar é um bem social porque pode ajudar a evitar o excedente populacional.

O artigo é a refutação da defesa da objeção de consciência feita por Christopher Cowley do Colégio Universitário de Dublin publicado na revista Bioethics no ano passado. (**)

No que se refere à contraceção, Cowley defende no seu artigo que os clínicos gerais, que podem prescrever o controlo da natalidade como uma parte muito pequena da sua atividade clínica, devem ter o direito de recusar esse serviço da mesma maneira que são dispensados se tiverem uma dor de costas que os impeçam de executar determinadas tarefas.

No caso da contraceção, como da interrupção da gravidez ou do suicídio medicamente ajudado, um clínico geral que tenha objeções morais para esse serviço pode encaminhar os doentes para um prestador que não tenha objeção, refere Cowley. Desta forma, o objetor de consciência não limita necessariamente o acesso a tais cuidados de saúde.

Contudo, na sua refutação, os autores do presente artigo defendem que as pessoas que não acham que os médicos devem prescrever a contraceção não se devem tornar clínicos gerais. Em vez disso, devem escolher outra especialidade médica ou seguir uma carreira diferente.

É melhor para os doentes e para os médicos que as pessoas recebam cuidados de clínicos que atuam voluntariamente, disse Holly Fernandez Lynch, um investigador em bioética da Universidade de Harvard, Boston, não envolvido na redação do artigo.

“A profissão médica tem a responsabilidade de assegurar que existem suficientes profissionais dispostos a prestar os vários serviços que são exclusivamente seus – isso não significa necessariamente forçar os objetores de consciência, mas antes incentivar os profissionais disponíveis”, disse-nos Lynch por correio eletrónico.

Lynch acrescentou que, sempre que possível, os doentes devem apurar junto dos médicos quais os serviços que eles não fornecem, e os médicos devem revelar espontaneamente quaisquer objeções que tenham a tipos específicos de cuidados.

Por vezes, há hospitais [privados] que têm proibições religiosas contra a prestação de serviços como a interrupção voluntária da gravidez e que limitam o que os médicos podem fazer, refere Arthur Caplan, chefe de bioética no Langone Medical Center da Universidade de Nova Iorque.

Caplan, que também não é autor de qualquer dos artigos, disse-nos por correio eletrónico: “Por exemplo, quando se procura uma instituição de cuidados continuados, uma casa de repouso ou uma assistência domiciliária é crucial tentar conhecer os seus valores e práticas quanto às questões de fim de vida”. “Em todos os hospitais há uma comissão de ética e disponibilidade para analisar casos de conflito com um médico.”

Fonte: Bioethics 2016.

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(*) Julian Savulescu, Udo Schuklenk. Doctors Have no Right to Refuse Medical Assistance in Dying, Abortion or Contraception, 22 September 2016, 

Resumo - Num artigo nesta revista, Christopher Cowley argumenta que nós ‘interpretámos mal a natureza especial da medicina, bem como as motivações dos objetores de consciência’. Não o fizemos. Foi Cowley quem entendeu mal o papel dos valores pessoais na profissão médica. Nós defendemos que deve haver uma melhor proteção dos doentes face aos valores pessoais dos médicos e que deve haver restrições mais severas ao direito à objeção de consciência, particularmente em relação à morte ajudada. Defendemos que seja garantido aos doentes, que dele careçam, o acesso a serviços sujeitos a objeção de consciência, por via: (1) do fim do direito à objeção de consciência; (2) da seleção de candidatos para as principais especialidades médicas ou práticas que não têm objeções; (3) da perda da exclusividade de prestação destes serviços por parte da profissão médica.

 

(**) Christopher Cowley. A Defence of Conscientious Objection in Medicine: A Reply to Schuklenk and Savulescu, 10 December 2015

Resumo - Num recente editorial da revista Bioethics (2015), Udo Schuklenk argumenta contra a possibilidade de os médicos canadianos objetarem, por motivos de consciência, os novos procedimentos relativos à eutanásia aprovados pelo Parlamento. Nisso está de acordo com o artigo de Julian Savulescu no British Medical Journal, 2006, em que se defendia a fim da cláusula de objeção de consciência da Lei do Abortamento britânica de 1967. Ambos os autores apresentam fortes argumentos baseados na necessidade da uniformidade de serviços e nas analogias com tipos pouco recomendáveis de isenção pessoal. Neste artigo, quero defender a objeção de consciência nos sistemas de saúde com financiamentos públicos (como os do Canadá e Reino Unido), pelo menos nos casos de interrupção voluntária da gravidez e nos cuidados de fim de vida, sem menosprezar os importantes debates morais sobre a legitimidade de qualquer deles. A minha principal alegação é que Schuklenk e Savulescu interpretaram mal a natureza especial da medicina e as motivações dos objetores de consciência. Embora reconheça o ponto de Schuklenk sobre o diferente acesso a serviços lícitos em áreas rurais remotas, defendo que o serviço de saúde deve despender mais meios para proteger a objeção de consciência se quiser garantir um acesso universal.