30 julho 2017

Os médicos devem decidir quando é fútil manter Charlie Gard vivo?

Os médicos devem decidir quando é fútil manter Charlie Gard vivo? 
Arthur Caplan, PhD

Tradução espontânea do texto 

Muitos de vós já ouviram falar do triste e trágico caso de Charlie Gard. Trata-se de um rapazinho inglês que está no Hospital de Crianças de Great Ormond Street em Londres e que sofre de uma doença mitocondrial.

Recordemos que as mitocôndrias são umas pequenas baterias que fornecem energia que permite a divisão celular. Charlie não têm mitocôndrias normais. Infelizmente, ficou paralisado, com o cérebro mal desenvolvido. Está cego e surdo e é incapaz de respirar por si mesmo. Está em sofrimento real porque tem défices que resultam do falhanço das suas células em crescer e prosperar. Na verdade, o seu estado é muito raro. Apenas algumas dezenas de crianças nasceram até agora com esta doença. A maioria destas crianças morre porque as células estão tão lesadas que os órgãos não podem funcionar adequadamente.

Os médicos no Hospital de Crianças de Great Ormond Street trataram Charlie, mas eles acham que esgotaram todas as opções e coisas a fazer. Isso levanta uma pergunta: podem os médicos podem dizer o que é fútil, que não há nada a fazer, que fizerem tudo o que podiam; que têm de passar aos paliativos, apoiar a família, ajudar o doente em termos de controlo da dor e dar apoio emocional aos pais no caso de crianças? São os médicos quem pode dizer que não há mais a fazer?

Os médicos neste hospital de Londres tentaram fazer isso, mas a família não concordou de todo. A mãe e o pai disseram: “Não queremos abandonar Charlie; ouvimos dizer que pode haver alguns médicos nos Estados Unidos, dois tipos diferentes de médicos disseram que podem ter um tratamento que poderia beneficiar Charlie”.

O Presidente Donald Trump pronunciou-se sobre este caso e disse que se os pais querem prosseguir, deveriam ter o direito de o fazer. Até mesmo o Papa disse que os pais devem decidir até onde querem continuar com os cuidados de Charlie Gard.

Os pais conseguiram juntar uma grande quantidade de dinheiro pela Internet – quase 2 milhões de dólares. Podem com essa verba trazer os médicos até junto de Charlie. Um médico, perito em mitocôndrias da Universidade de Columbia, visitou Charlie. É possível que pudessem levar Charlie para os Estados Unidos. O Congresso dos EUA tornou Charlie e sua família residentes permanentes, porque o nosso Congresso e o Presidente sentem que se deve deixar os pais de Charlie fazer o que quiserem para tentar prolongar a vida de Charlie.

Eis um difícil impasse moral. Na Inglaterra, há mais respeito pelos médicos do que vemos nos Estados Unidos. O padrão inglês diz que se os médicos pensam que o que os pais querem fazer pode levar ao sofrimento ou dor da criança, então os pais têm de se submeter a uma tutela. Foi nomeado um tutor para Charlie e o tutor concordou com os médicos em que era hora de parar. Em seguida, os pais de Charlie foram para o tribunal e percorreram todos os escalões dos tribunais britânicos, incluindo o Supremo Tribunal do Reino Unido, e todos estiveram ao lado dos médicos. Além disso, os media internacionais chamaram a atenção para Charlie e os pais não estavam preparados para desistir; ainda queriam fazer tudo o que fosse possível.

Penso que há uma linha que os médicos devem ser capazes de desenhar que diz: atingimos a futilidade. Isso não significa abandonar o doente ou a família, mas significa interromper os esforços para tentar prolongar quaisquer tratamentos que possam estar a causar sofrimento a Charlie. Se de facto ele está a ser prejudicado, a ter dores ou qualquer tipo de sofrimento, então prosseguir tentando um longo procedimento experimental não é algo com que os médicos do hospital pediátrico de Londres têm de concordar. Nem, mesmo que os tribunais concordassem, os médicos teriam de dizer sim; nem teriam de continuar a prolongar uma vida que se transformou numa desgraça, num sofrimento.

Para mim, a questão é saber se Charlie ou qualquer doente são lesados ou prejudicados pela continuidade dos cuidados. Se o forem, então deve ser dada razão aos médicos e dizer que já se chegou ao fim, é hora de parar, é hora de passar aos paliativos, não vamos prolongar uma vida onde existe apenas o sofrimento e nada mais. Se Charlie não está a sofrer, se não estiver com dores, então eu acho que os pais têm sobretudo de continuar com os cuidados; isso também vale para quem está cuidando de um avô ou qualquer outra pessoa. Se a pessoa não está a sofrer e eles querem continuar os cuidados, é uma história diferente.

Lembremo-nos que o tutor de Charlie, os tribunais e os médicos Charlie, verdadeiros peritos neste Hospital, todos concordam em que o que os pais querem fazer não é bom para Charlie. Às vezes o amor pode cegar os pais sobre o que pode ser o melhor interesse da criança.

23 julho 2017

O Dilema do Doente Capaz que Recusa Tratamentos Recomendados

 

O Dilema do Doente Capaz que Recusa Tratamentos Recomendados
Ronald W. Pies, MD

Tive o privilégio de, há pouco tempo, comentar um relato de caso muito desafiador, apresentado pelo neurologista Dr. Andrew Wilner. O caso gerou muitos comentários e perguntas de leitores do Medscape e gostaria de responder a algumas das questões então levantadas.

Recapitulemos brevemente: o caso do Dr. Wilner era sobre um homem de 30 anos de idade, oriundo dos Camarões, muito debilitado e que estava passando por complicações da SIDA, incluindo tuberculose pulmonar e gastrointestinal, retinite por citomegalovírus e toxoplasmose do sistema nervoso central. Apesar do envolvimento do sistema nervoso central, percebemos que o paciente está “no pleno uso das suas faculdades”. No entanto, tem necessitado de hospitalizações frequentes e está dependente do apoio da família para as suas necessidades diárias.

O doente aceitava tomar os medicamentos para as complicações, mas recusava a terapêutica antirretroviral por acreditar que isso revelaria o diagnóstico de SIDA à sua família – diagnóstico que ele diz representar um forte estigma no seu país. O doente diz que “preferia morrer a confessar que tinha SIDA”. Dr. Wilner disse que “aparentemente ele morrerá das complicações da SIDA se não começar o tratamento antirretroviral a curto prazo”. Além disso, o doente tem visto a sua dívida ao hospital, a qual não poderá pagar, a crescer enormemente.

Dr. Wilner perguntava, entre outras coisas, se “é eticamente exigível ao hospital tratar as complicações da SIDA neste doente, quando ele se recusa a tratar o problema subjacente (SIDA), o que iria melhorar ou eliminar tais complicações?”

A minha resposta foi um sim qualificado: O hospital tem sim uma obrigação ética de tratar as complicações do doente, mesmo que ele recuse o tratamento antirretroviral, desde que (1) o doente mantenha a sua capacidade para decidir intacta (isto é, compreenda os riscos de recusar aquele tratamento, incluindo o risco de morte), e desde que (2) continue a haver um fundamento médico adequado para prosseguir com os medicamentos “contra as complicações”.

Também respondi às perguntas do Dr. Wilner relativas ao fundamento e âmbito da autonomia do doente, notando que a vontade autónoma é apenas um dos quatro princípios éticos médicos basilares a ter em conta na equação ética – os outros são a beneficência, a não-maleficência e a justiça.

As respostas dos leitores foram profundas e por vezes impetuosas. Alguns leitores argumentaram que a objeção irrazoável do doente punha os seus médicos e o hospital num constrangimento insustentável e que o pessoal médico não deve ser forçado a prestar subsequentes tratamentos inadequados. Um leitor alegou que o princípio da “justiça” é violado pela prestação de cuidados parciais ou inadequados muito dispendiosos pelo hospital e dois leitores suscitaram preocupações quanto ao risco de o paciente contagiar a sua família com tuberculose ou infeção pelo VIH.

Pelo contrário, um leitor defendeu que a decisão autónoma do paciente deve ser respeitada e outro advertiu para o caminho perigoso da negação de tratamentos a doentes cujas doenças são, em certo sentido, “autoinfligidas”. Também houve opiniões divergentes sobre a questão de saber se os médicos devem “quebrar” a confidencialidade e informar a família do doente do seu diagnóstico – ou talvez disfarçar a medicação antirretroviral para que a família não tomasse conhecimento do diagnóstico de SIDA. (Com efeito, não é claro para mim por que razão o tratamento antirretroviral não poderia ser dispensado confidencialmente desde o princípio – mas é um assunto técnico que não quero abordar.)

Vários leitores argumentaram que a transferência do doente para um ambiente de cuidados paliativos era a opção mais adequada.

As Dificuldades da Recusa de Tratamentos

Como eticista médico, penso que raramente há uma única solução “correta” para problemas complexos quando cuidamos de doentes – e, pelo contrário, há muito debate e introspeção entre os clínicos. Penso que isso se reflete em alguns dos sentimentos fortes e das trocas de palavras mais agudas que os leitores puseram aqui. Estas divergências são uma espécie de microcosmo de discussões mais intensas e “fraturantes” que acontecem nas unidades de internamento ou nos serviços de urgência, quando confrontados com um doente do tipo que o Dr. Wilner descreveu. Como psiquiatra, penso que é importante que os clínicos estejam cientes dos fortes sentimentos negativos que doentes como este podem evocar, para que possamos processar essas reações e não “exteriorizar” a nossa compreensível ira, impotência e frustração.

Um excelente artigo do Dr. Joseph Carrese da Johns Hopkins University realça as dificuldades de lidar com uma recusa de cuidados feitas por um doente capaz [1]. Como afirma o Dr. Carrese - e como é (aparentemente) verdade no caso do Dr. Wilner – há muitas vezes um conflito irreconciliável entre “duas obrigações éticas fundamentais … (1) o dever de promover o bem-estar do doente e protegê-lo contra danos e (2) o dever de respeitar a vontade de um doente capaz”.

Como defenderam alguns leitores, existem diferentes maneiras de “sopesar” a contribuição dos quatro pilares da ética médica: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. Este último componente é especialmente problemático no caso de doente Dr. Wilner, por se estar a gastar tempo precioso, dinheiro e recursos humanos com um doente que – embora aparentemente mentalmente capaz – recusa os cuidados mais adequados. É compreensível que alguns médicos queiram resolver a situação respeitando a vontade autónoma do doente, enquanto outros questionem a “justiça” de prestar cuidados a um doente que recusa o tratamento da doença de base.

A meu ver o caso do Dr. Wilner está resumido pelo Dr. Carrese do seguinte modo [1]:

Em geral … as decisões do doente são para respeitar. Isto é verdade mesmo que as decisões do doente sejam percecionadas pelos seus médicos como “más” ou “irracionais”, a menos que haja uma ameaça de danos para terceiros, uma doença psiquiátrica inadequadamente tratada ou uma dúvida sobre a real capacidade para decidir.

Com base nas limitadas informações disponíveis, não creio que o caso em apreço cumpra qualquer destes critérios, apesar de não beneficiarmos de uma avaliação completa da “capacidade decisória” (às vezes designada como avaliação da “capacidade de tomar decisões sobre tratamentos”, embora este seja um termo legal e não clínico)

Agora, como salientaram vários leitores – no que coincidem com o Dr. Carrese – a autonomia do doente não é absoluta, independentemente de quão irracional, prejudicial ou ridículo seja o seu pedido; nem os médicos estão eticamente obrigados a prestar os cuidados que considerem violar as “boas práticas científicas ou éticas, ou a lei” [1]. Contudo não vejo uma tal violação no caso do doente do Dr. Wilner. Uma coisa seria se o doente em questão insistisse em que lhe fizessem uma lobotomia, que lhe dessem Laetrile ou que fosse exposto a raios gama. Nenhum médico responsável poderia aderir a essas manifestações de “autonomia” obviamente prejudiciais e irracionais!

Pelo contrário, é-nos dito que o doente aceita “a medicação adequada às [suas] complicações da SIDA”. A palavra-chave é “adequada”. Assim, a manifestação de autonomia do doente, na minha opinião, não é nem irracional nem prejudicial. Além disso, os medicamentos prescritos podem efetivamente prolongar a qualidade de vida do doente e reduzir o seu sofrimento ou incapacidade – embora isso não seja claro a partir das informações limitadas de que dispomos.

Quanto às medidas coercivas destinadas a forçar o doente a cumprir um tratamento ótimo recomendado, na minha opinião, isso não seria justificado ao abrigo das atuais orientações éticas ou legais, na ausência de qualquer perigo claro e presente para outrem ou de clara intenção suicida da parte do doente por causa de alguma doença psiquiátrica, como depressão major. Temos falta de dados para fundamentar qualquer um destes critérios. A única possível exceção levantada foi a questão da tuberculose. Como afirmam os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças, “os agentes de Saúde Pública podem, geralmente, isolar indivíduos com doença tuberculosa se representarem uma ameaça para a saúde pública”. Se foi estabelecida uma tal ameaça no presente caso, então pode justificar-se legalmente isolamento domiciliário ou internamento compulsivo.

Quanto ao risco de o doente vir a transmitir a sua infeção pelo VIH aos familiares, creio que a melhor forma de abordar isso não é pela revelação à família do diagnóstico de SIDA, mas sim pelo cuidadoso ensino aos cuidadores familiares das “precauções universais” no lidar com o sangue ou fluidos biológicos infetados [2].

Não restam dúvidas de que informar a família do doente do seu diagnóstico – contra a sua vontade expressa – seria tanto uma violação das atuais regras do Health Insurance Portability and Accountability Act como do princípio ético de proteger a informação confidencial do doente, na falta de autorização deste para a disponibilizar a terceiros. A confidencialidade – apesar de não ser um direito absoluto mas antes, realmente, mais um privilégio imposto por lei – não é legitimamente “quebrada” a menos que haja (1) a obrigação legal de revelar informações médicas, como, por exemplo, por intimação; ou haja (2) provas claras de dano iminente para o próprio ou terceiros, como quando acontece uma situação do tipo Tarasoff (por exemplo, um doente com perturbação psiquiátrica que ameaça lesar alguém em concreto e o médico assume o “dever de avisar” ou de tomar outras medidas para proteger o potencial alvo).

No caso do doente do Dr. Wilner, não vejo qualquer fundamentação ética para informar a sua família do diagnóstico de SIDA, contra os seus desejos. (Posso pensar de modo diferente se me aperceber, por exemplo, de que o doente está a ter sexo desprotegido com um cuidador – mas isto parece extremamente improvável, dado o estado debilitado do doente). Dito isto, se após a morte do doente os familiares descobrem que o diagnóstico de SIDA lhes tinha sido ocultado, talvez reajam indignados e até procurem reparação jurídica; assim, será prudente pela parte do hospital ter consultadoria legal ou forense sobre este ponto. Por último, embora a maioria de nós possa compreender que o impulso para “chutar” este difícil doente para fora do sistema de saúde, simplesmente dando-lhe alta sem seguimento médico adequado, isso corresponderia ao seu abandono e, na minha opinião, uma violação ética muito grave. Como nota o Dr. Carrese [1], “no caso de discordâncias médico-doente irrevogáveis, os médicos devem tomar todas as medidas necessárias para facilitar uma transferência efetiva de cuidados para outro médico”.

Uma Alternativa Possível?

Lembrei-me de uma alternativa possível. Seria o doente aceitar ir ao hospital para, digamos, injeções mensais de agentes antirretrovirais de longa duração, que poderiam resolver o dilema – desde que sua família não ficasse a par da razão para essas injeções. Mas se, por algum motivo, o doente recusar esta alternativa, transferi-lo para casa ou um lar residencial pode ser adequado, partindo do princípio de que isso satisfaz os critérios habituais para esses cuidados. Isto com a ressalva de que continua com assistência médica, que a sua medicação “contra as complicações” continua a poder ser administrada e partindo do princípio de que essas ações são ainda considerados úteis pelo médico responsável.

Entretanto, se o doente tiver de se apresentar ao Serviço de Urgência, Faith Lagay, PhD e Art Derse, MD, JD afirmam claramente: “em qualquer caso, os doentes e feridos graves que recusam tratamentos [em situações de emergência] devem receber cuidados de conforto e não ser rejeitados por causa da sua recusa.” [3]

É claro que a abordagem da equipa médica pode mudar rapidamente, se o doente estiver próximo da morte – situação em que o objetivo deve ser exclusivamente “ cuidados de conforto”, alívio da dor e do sofrimento, e apoio psicológico para o doente e para a sua família.

Agradeço a oportunidade de ter discutido este difícil e muitas vezes frustrante caso, e espero que as questões éticas principais tenham ficado esclarecidas.

Referências
1. Carrese J. Refusal of care: patients' well-being and physicians' ethical obligations. JAMA. 2006;296:691-695.
2. Rodriguez R. Protect yourself as an HIV caregiver. Everyday Health. May 13, 2009.
3. Lagay F, Derse A. Through the physician's eyes: difficult patient-physician encounters in the emergency department. Virtual Mentor. 2001;3.

Quando os doentes recusam cuidados que salvam vidas

Quando os doentes recusamcuidados que salvam vidas

Andrew N. Wilner, MD; Ronald W. Pies, MD

O Dr. Andrew N. Wilner, colaborador da Medscape, enfrentou recentemente um problema complicado na sua prática como neurologista: vários doentes recusam tratamento médico, com grande prejuízo para a sua própria saúde e para o sistema de saúde. Um tal confronto obriga a uma sensibilidade cultural perante um tratamento específico que ensombra a ética do modo de proceder. O Dr. Wilner e o Dr. Ronald W. Pies, bioeticista e professor de psiquiatria na Faculdade de Medicina da SUNY Upstate Medical University em Syracuse, tiveram, há pouco, um debate em correio eletrónico sobre essas dúvidas éticas e sobre como lidar com elas na prática clínica.

Dr. Wilner: Recentemente, tivemos um doente internado no Serviço de Neurologia cujas vontades criaram um problema de muito difícil gestão. Eis o caso cujos detalhes foram alterados para proteger a privacidade do doente.

Um homem com 30 anos dos Camarões tem tido internamentos frequentes no hospital devido a complicações da SIDA. Tem tuberculose pulmonar e gastrointestinal, retinite por citomegalovírus e toxoplasmose do sistema nervoso central. Está debilitado e precisa do apoio da sua família para as necessidades diárias.

O doente toma os medicamentos adequados a essas complicações da SIDA. No entanto, não está disposto a receber a terapêutica antirretroviral, porque isso iria revelar à sua família que tem SIDA, o que leva a um grande estigma no seu país.

O doente diz que preferia morrer a confessar que tem a doença. E parece que vai morrer das complicações da SIDA se não iniciar o tratamento antirretroviral em breve. A sua recusa em tomar a terapia antirretroviral resultou na sua debilidade devida à SIDA, em internamentos hospitalares frequentes e uma conta hospitalar enorme que não pode pagar.

Para começar, eis algumas perguntas que nos vieram à mente ao considerar este caso:

1. O hospital está eticamente obrigado a tratar as complicações da SIDA neste doente quando ele se recusa a tratar o problema subjacente (SIDA), o qual iria melhorar ou eliminar as complicações?
2. A sociedade deve pagar os custos do tratamento deste doente?
3. Em que medida é que a autonomia do doente prevalece?
4. Em que se fundamenta o conceito de autonomia do doente?

Dr. Pies: Gostei muito deste desafiante caso e das perguntas. Num certo sentido, as perguntas são apenas uma, pois todas convergem nos princípios fundamentais da ética médica. Por conseguinte, tratarei delas como uma só pergunta com várias camadas.

Primeiro, distingamos as responsabilidades legais das éticas neste caso, embora as duas categorias normalmente se sobreponham de forma significativa. O consultor jurídico do hospital estaria em posição de aconselhar a equipa de cuidados do doente quanto às questões jurídicas neste caso; vou limitar as minhas observações às questões éticas suscitadas. Em termos muito gerais, estas reduzem-se a (1) a capacidade do doente em dar verdadeiro consentimento informado nas terríveis circunstâncias que são descritas; e (2) a responsabilidade ética do médico em defender o princípio central de beneficência face aos outros três princípios fundamentais da ética médica. (Quanto à responsabilidade ética “do hospital”, uso esse termo como o equivalente aos médicos do doente e à equipa de cuidados de saúde).

No que se refere à primeira questão, estaria especialmente interessado em saber se a toxoplasmose do sistema nervoso central afetou a capacidade do doente em tomar decisões racionais (ver adiante, “autonomia racional”). Há alguns indícios de que, por exemplo, “… distúrbios comportamentais/ mentais, como esquizofrenia, transtornos de humor, alterações de personalidade e perturbações cognitivas podem estar relacionados com a infeção por Toxoplasma gondii”. [1]

Especificamente, gostaria de perguntar o seguinte: O doente teve uma avaliação psiquiátrica para determinar a sua competência e capacidade mental para dar consentimento informado? Por exemplo, é mesmo verdade que receber tratamento antirretroviral iria necessariamente revelar o seu diagnóstico à sua família? Ou é exagerado o receio do doente? Mesmo que a família saiba da SIDA deste doente, será que o doente apenas simplesmente presume que a família não teria compreensão ou empatia, ou há uma base racional para essa crença (p. ex., “Os meus irmãos disseram muitas vezes que as pessoas com SIDA são más e merecem morrer”)? O facto de a SIDA levar a “um grande estigma no seu país” não significa necessariamente que a família do doente optaria por o afastar, recusar-lhe cuidados, etc. – embora, evidentemente, isso possa ocorrer.

Estas são questões que terão de ser exploradas e avaliadas com uma pergunta sobre a competência: “Quão realista é o medo do estigma do doente no seu contexto familiar?”

A legalidade da recusa de tratamentos que salvam vidas

Dr. Pies: Ainda mais premente, precisamos explorar o grau em que o doente compreende as consequências das suas ações e omissões. Será que compreende plenamente que quase certamente vai morrer num futuro muito próximo das complicações da SIDA se não iniciar tratamento antirretroviral a curto prazo? Ou apenas diz, em abstrato, que preferia “antes morrer do que confessar a doença”?

“Se o paciente for considerado mentalmente capaz para tomar decisões sobre cuidados médicos, então a sua vontade de recusar tratamento antirretroviral deve ser respeitada.”

Se o doente for considerado mentalmente capaz para tomar decisões sobre cuidados médicos, então a sua vontade de recusar tratamento antirretroviral deve ser respeitada. O direito de um adulto mentalmente capaz recusar tratamento, incluindo mesmo os que salvam vidas, foi explicitamente reconhecido pelo Supremo Tribunal dos EUA, em Cruzan v. Director, Mo. Dept. of Health, decidido em 1990.

Por outro lado, se o paciente se mostrar mentalmente incapaz para tomar decisões sobre cuidados médicos, com base numa cuidadosa avaliação psiquiátrica forense, então o hospital pode precisar procurar um tutor legal para que uma decisão judicial possa determinar o tratamento a prestar ao doente (as leis e regulamentações específicas neste domínio variam de Estado para Estado). Evidentemente, seria extremamente difícil obrigá-lo à toma oral de tratamentos antirretrovirais. No entanto, os injetáveis antirretrovirais de longa ação, que podem ser administrados numa base mensal ou menos frequente, poderiam ser uma opção viável no contexto de uma decisão tutelar ou judicial. [2]

Se o doente está disposto a tomar “medicamentos adequados para as complicações da SIDA…”, isso sugere que – pelo menos em certa medida – o doente manifesta um tipo limitado de autonomia racional e que o princípio da beneficência (ver adiante) provavelmente significa que o hospital está eticamente obrigado a fornecer medicações “anticomplicações”, embora elas não evitem a morte do doente e mesmo que este não possa arcar com os custos.

Dr. Wilner: O doente manteve as consultas marcadas e parecia estar na plena posse das suas faculdades, apesar da sua infeção no sistema nervoso central com toxoplasmose. A equipa médica não sentiu que ele precisasse de uma avaliação psiquiátrica da capacidade. É possível que os seus receios de exclusão da sua família por conhecerem o seu diagnóstico de SIDA sejam exagerados. No entanto, esses receios eram culturalmente apropriados e não parecia haver uma maneira fácil de testar se eram exagerados ou não, sem revelar o diagnóstico contra os seus desejos.

Dissemos ao doente que a sua recusa em tomar o tratamento antirretroviral já resultou em graves complicações da SIDA e que ele provavelmente irá morrer de SIDA se continua a recusar o tratamento. Esta informação não mudou a sua posição.

A Responsabilidade Ética do Hospital

Dr. Pies: Assim sendo, gostaria de defender que o hospital está eticamente obrigado a aliviar o sofrimento do doente e a reduzir a sua incapacidade na medida em que – e apenas nessa medida – o doente permita os cuidados a tal adequados, partindo do princípio de que o hospital tem apoio logístico e meios financeiros para o fazer: isto é, o hospital é capaz de prestar o tratamento “anticomplicação” sem entrar em falência e, portanto, sem comprometer os cuidados a outros doentes.

“A resposta depende realmente de saber se vemos os cuidados de saúde essencialmente como um produto de mercado (o modelo histórico nos Estados Unidos) ou, como na maioria dos países europeus, os vemos como um direito humano fundamental.”

Assim, vemos alguma tensão entre sistemas éticos “deontológicos” – baseados no dever – e sistemas éticos “consequencialistas” ou “utilitaristas” (“o bem maior para o maior número”). Em teoria, se um determinado hospital não tem os meios logísticos e/ou financeiros para prestar tais cuidados, na minha opinião, esse hospital está eticamente obrigado a ajudar o doente a obter esses cuidados em instalações que os tenham. (Presumo que os serviços sociais já avaliaram e procuraram todas as opções financeiras disponíveis, como o Medicaid, para este doente.)

O Dr. Wilner perguntou se a sociedade deve “pagar os custos do tratamento deste doente”. A resposta depende realmente de saber se vemos os cuidados de saúde essencialmente como um produto de mercado (o modelo histórico nos Estados Unidos) ou, como na maioria dos países europeus, os vemos como um direito humano fundamental. Esta questão continua a ser muito controversa nos Estados Unidos, como o mostra um recente debate aqui na Medscape [3] e está realmente fora do âmbito da minha resposta aqui.

Mas, mesmo se admitirmos que a saúde é um direito fundamental, temos de perguntar: quais são as limitações desse direito, e quais são as responsabilidades correlativas do doente? Por exemplo, mesmo que se aceite a ideia de que os indigentes que estão gravemente doentes ou a morrer de SIDA têm o direito de receber cuidados médicos adequados (uma posição que eu aceito), isso não significa que esses doentes têm um direito incondicional a tais cuidados – ou a qualquer tipo de atendimento que queiram, mesmo os que sejam clinicamente inadequados. Apesar de tudo, nenhum “direito” é absoluto e todos os direitos, numa sociedade livre, são contrabalançados por outros, e estão muitas vezes em tensão com direitos e obrigações concorrentes.

Dito isto, neste caso, o doente concordou em tomar medicamentos que presumivelmente têm uma relação racional com o tratamento de complicações da SIDA. Isto está muito acima da recusa de cuidados e, na minha opinião, significa que o hospital (ou outro serviço adequado) tem a responsabilidade ética de tratar o doente – mesmo em circunstâncias não-ideais como as descritas. Por analogia: se um doente mentalmente capaz, com um tumor cirurgicamente tratável, recusar a operação indicada, mas solicitar alívio sintomático medicamente comprovado para as complicações colaterais do tumor, penso que o seu médico estará eticamente obrigado a proporcionar esse alívio.

Autonomia Exagerada

Dr. Wilner: As despesas para o hospital continuam a crescer enquanto o doente recebe cuidados especiais na clínica de doenças infeciosas e é repetidamente hospitalizado. Devido às complicações da SIDA, ele ficou muito debilitado e completamente dependente da sua família para as atividades de vida diária. O seu receio de que a família o vá rejeitar aumentou efetivamente o peso dos cuidados familiares devido às complicações da SIDA. A família irá em breve muito provavelmente sentir a sua morte como um bem.

Dr. Pies: Em que se fundamenta o conceito de autonomia do paciente? Em parte, como afirma a procuradora Carol Stamatakis, [4]

O direito de recusar tratamentos médicos tem as suas raízes na lei geral do direito ao consentimento informado, na liberdade ao abrigo da 14.ª emenda, na Constituição e nas leis estaduais que regem os cuidados e tratamentos de adultos incapazes. Os tribunais partem destas fontes de autoridade para a definição do direito do doente a recusar tratamentos.

Evidentemente, o direito a recusar tratamentos médicos é apenas uma subdivisão do vasto território da “autonomia” - um termo que é objeto de análise e subdivisões. Com efeito, como Stamatakis nota, “o direito ao consentimento informado provém de noções de autonomia pessoal radicadas no direito comum”. [4]

Mas o conceito de autonomia do doente exige alguma densificação. “Autonomia” é geralmente definida como “a capacidade para funcionar de uma forma independente”. Mas, no âmbito da ética médica, seria um erro supor que a autonomia significa simplesmente “o paciente pode fazer tudo o que quer e tem o direito de exigir ou recusar qualquer tratamento que deseja” - não importando o quão irracional, autoprejudicial ou cientificamente insustentável seja a sua preferência.

“O direito ao consentimento informado provém de noções de autonomia pessoal radicadas no direito comum.”

No contexto da ética médica, invoca-se geralmente o conceito de autonomia racional. Ou seja, [5]

As decisões em matéria de cuidados de saúde e, em linguagem corrente, o nosso respeito pela autonomia do doente significam que o doente tem capacidade de agir intencionalmente, com compreensão e sem influências externas que concorram contra o agir livre e voluntário. Este princípio é a base para a prática do “consentimento informado” na relação médico/doente no que se refere a cuidados de saúde.

Além disso – e aqui estou realmente a abordar a sua quarta questão – o princípio da autonomia é sempre contrabalançado, e por vezes está em conflito, com os outros três princípios fundamentais da ética médica: beneficência, não-maleficência e justiça. Muito brevemente, estes acarretam (1) o dever de fazer bem ao doente; (2) evitar intencionalmente causar danos ou lesões ao doente, quer através de atos ou omissões; e (3) uma distribuição equitativa dos bens e serviços, ou seja, “dar a cada um o que lhe é devido”. Como afirma McCormick [5], “… temos de ponderar as exigências desses princípios, determinando qual o que tem mais peso no caso concreto”. E, como se demonstra no caso apresentado, essa é muitas vezes uma determinação complexa e difícil.

“Os médicos têm por vezes sido relegados para o papel de ‘prestadores' – essencialmente, agentes administrativos encarregados da realização dos desejos do ‘consumidor’.”

Nos últimos anos, o princípio da autonomia, a meu ver, foi desproporcionadamente elevado pelo “movimento dos consumidores” e pela sua forte insistência nos “direitos do consumidor”. Junto com esta tendência, os médicos têm por vezes sido relegados para o papel de “prestadores” – essencialmente, agentes administrativos encarregados da realização dos desejos do “consumidor”. [6] Esta tendência, na minha opinião, tem diminuído a importância dos outros três princípios de ética médica, particularmente os da beneficência e não-maleficência – por vezes em detrimento dos cuidados ao doente.

Uma “Escuta Empática” em forma de Consulta

Dr. Wilner: Gostava que houvesse um fórum hospitalar formal onde este caso pudesse ser discutido e que administradores, médicos, doentes e familiares pudessem expressar os seus pontos de vista e se alcançasse uma decisão racional sobre os objetivos a longo prazo, dos cuidados. Tal como está, o doente define as regras e os médicos seguem-nas, talvez à custa do bom senso e do bem comum.

Talvez este caso não seja diferente do do doente com epilepsia intratável que se recusa a tomar a medicação anticonvulsivante, ainda que não recuse o tratamento para pneumonia por aspiração ou fraturas ósseas resultantes de convulsões descontroladas? Felizmente, esses doentes são raros.

Dr. Pies: Em primeiro lugar, gostaria de lhe agradecer por apresentar o que é manifestamente um caso muito incómodo e sem dúvida frustrante. Posso bem compreender por que razão o pessoal clínico sente que tem pouco ou nenhum controlo sobre a situação.

Antes de responder à sua pergunta complementar, eu posso sugerir que, em casos como este, é por vezes útil envolver a comissão de ética do hospital ou um consultor de ética independente. Como se pode ver num artigo de revisão [7], as “comissões de ética ou alguns dos seus membros ajudam muitas vezes a resolver conflitos éticos e a responder a questões éticas através da realização de consultas”. Além disso, as comissões de ética podem “… promover tomadas de decisão partilhadas entre os doentes (ou seus representantes, se incapacitados para decidir) e seus clínicos”. [7]

Em princípio, este espaço pode proporcionar o tipo de fórum que procura. Isto não é sugerir que o caso em questão, mesmo que bem examinado por uma comissão de ética, seja passível de uma solução plenamente satisfatória. Claramente, o doente apresenta barreiras aos cuidados apropriados que podem simplesmente ser insuperáveis em tempo oportuno. Além disso, há razão em invocar o direito do doente à confidencialidade, o que torna muito difícil saber se os seus receios sobre sua família são realistas ou exagerados sem revelar a sua doença à família.

Agora, no que se refere à analogia entre este caso e um doente com epilepsia intratável, eu diria que as situações são grosso modo análogas, partindo do princípio de que em ambos os casos os doentes são mentalmente capazes e compreendem verdadeiramente as consequências das suas decisões para a saúde. Evidentemente, o presente caso pode implicar uma ameaça à vida mais urgente do que o caso do doente com epilepsia, mas estão envolvidos os mesmos princípios éticos: (1) o direito do doente capaz a recusar tratamentos que salvam vidas e (2) a obrigação do médico, no entanto, a prestar cuidados paliativos, destinados a atenuar a complicações da doença subjacente.

Especificamente, como médicos, não haveria justificação ética para não iniciar o tratamento da pneumonia por aspiração ou das fraturas ósseas num paciente com epilepsia intratável, com o fundamento de que o paciente recusa a medicação anticonvulsivante. Infelizmente, essas recusas geram despesas exorbitantes e frustração por parte dos cuidadores e administradores do hospital. Um consultor psiquiátrico às vezes pode fornecer uma escuta empática em tais casos, mesmo que o dilema não possa ser resolvido a contento de todos.

Acknowledgments: Dr Pies would like to thank James Dwyer, PhD, Center for Bioethics & Humanities, SUNY Upstate Medical University, for his helpful comments on an early draft of the above responses.

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