23 julho 2017

O Dilema do Doente Capaz que Recusa Tratamentos Recomendados

 

O Dilema do Doente Capaz que Recusa Tratamentos Recomendados
Ronald W. Pies, MD

Tive o privilégio de, há pouco tempo, comentar um relato de caso muito desafiador, apresentado pelo neurologista Dr. Andrew Wilner. O caso gerou muitos comentários e perguntas de leitores do Medscape e gostaria de responder a algumas das questões então levantadas.

Recapitulemos brevemente: o caso do Dr. Wilner era sobre um homem de 30 anos de idade, oriundo dos Camarões, muito debilitado e que estava passando por complicações da SIDA, incluindo tuberculose pulmonar e gastrointestinal, retinite por citomegalovírus e toxoplasmose do sistema nervoso central. Apesar do envolvimento do sistema nervoso central, percebemos que o paciente está “no pleno uso das suas faculdades”. No entanto, tem necessitado de hospitalizações frequentes e está dependente do apoio da família para as suas necessidades diárias.

O doente aceitava tomar os medicamentos para as complicações, mas recusava a terapêutica antirretroviral por acreditar que isso revelaria o diagnóstico de SIDA à sua família – diagnóstico que ele diz representar um forte estigma no seu país. O doente diz que “preferia morrer a confessar que tinha SIDA”. Dr. Wilner disse que “aparentemente ele morrerá das complicações da SIDA se não começar o tratamento antirretroviral a curto prazo”. Além disso, o doente tem visto a sua dívida ao hospital, a qual não poderá pagar, a crescer enormemente.

Dr. Wilner perguntava, entre outras coisas, se “é eticamente exigível ao hospital tratar as complicações da SIDA neste doente, quando ele se recusa a tratar o problema subjacente (SIDA), o que iria melhorar ou eliminar tais complicações?”

A minha resposta foi um sim qualificado: O hospital tem sim uma obrigação ética de tratar as complicações do doente, mesmo que ele recuse o tratamento antirretroviral, desde que (1) o doente mantenha a sua capacidade para decidir intacta (isto é, compreenda os riscos de recusar aquele tratamento, incluindo o risco de morte), e desde que (2) continue a haver um fundamento médico adequado para prosseguir com os medicamentos “contra as complicações”.

Também respondi às perguntas do Dr. Wilner relativas ao fundamento e âmbito da autonomia do doente, notando que a vontade autónoma é apenas um dos quatro princípios éticos médicos basilares a ter em conta na equação ética – os outros são a beneficência, a não-maleficência e a justiça.

As respostas dos leitores foram profundas e por vezes impetuosas. Alguns leitores argumentaram que a objeção irrazoável do doente punha os seus médicos e o hospital num constrangimento insustentável e que o pessoal médico não deve ser forçado a prestar subsequentes tratamentos inadequados. Um leitor alegou que o princípio da “justiça” é violado pela prestação de cuidados parciais ou inadequados muito dispendiosos pelo hospital e dois leitores suscitaram preocupações quanto ao risco de o paciente contagiar a sua família com tuberculose ou infeção pelo VIH.

Pelo contrário, um leitor defendeu que a decisão autónoma do paciente deve ser respeitada e outro advertiu para o caminho perigoso da negação de tratamentos a doentes cujas doenças são, em certo sentido, “autoinfligidas”. Também houve opiniões divergentes sobre a questão de saber se os médicos devem “quebrar” a confidencialidade e informar a família do doente do seu diagnóstico – ou talvez disfarçar a medicação antirretroviral para que a família não tomasse conhecimento do diagnóstico de SIDA. (Com efeito, não é claro para mim por que razão o tratamento antirretroviral não poderia ser dispensado confidencialmente desde o princípio – mas é um assunto técnico que não quero abordar.)

Vários leitores argumentaram que a transferência do doente para um ambiente de cuidados paliativos era a opção mais adequada.

As Dificuldades da Recusa de Tratamentos

Como eticista médico, penso que raramente há uma única solução “correta” para problemas complexos quando cuidamos de doentes – e, pelo contrário, há muito debate e introspeção entre os clínicos. Penso que isso se reflete em alguns dos sentimentos fortes e das trocas de palavras mais agudas que os leitores puseram aqui. Estas divergências são uma espécie de microcosmo de discussões mais intensas e “fraturantes” que acontecem nas unidades de internamento ou nos serviços de urgência, quando confrontados com um doente do tipo que o Dr. Wilner descreveu. Como psiquiatra, penso que é importante que os clínicos estejam cientes dos fortes sentimentos negativos que doentes como este podem evocar, para que possamos processar essas reações e não “exteriorizar” a nossa compreensível ira, impotência e frustração.

Um excelente artigo do Dr. Joseph Carrese da Johns Hopkins University realça as dificuldades de lidar com uma recusa de cuidados feitas por um doente capaz [1]. Como afirma o Dr. Carrese - e como é (aparentemente) verdade no caso do Dr. Wilner – há muitas vezes um conflito irreconciliável entre “duas obrigações éticas fundamentais … (1) o dever de promover o bem-estar do doente e protegê-lo contra danos e (2) o dever de respeitar a vontade de um doente capaz”.

Como defenderam alguns leitores, existem diferentes maneiras de “sopesar” a contribuição dos quatro pilares da ética médica: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. Este último componente é especialmente problemático no caso de doente Dr. Wilner, por se estar a gastar tempo precioso, dinheiro e recursos humanos com um doente que – embora aparentemente mentalmente capaz – recusa os cuidados mais adequados. É compreensível que alguns médicos queiram resolver a situação respeitando a vontade autónoma do doente, enquanto outros questionem a “justiça” de prestar cuidados a um doente que recusa o tratamento da doença de base.

A meu ver o caso do Dr. Wilner está resumido pelo Dr. Carrese do seguinte modo [1]:

Em geral … as decisões do doente são para respeitar. Isto é verdade mesmo que as decisões do doente sejam percecionadas pelos seus médicos como “más” ou “irracionais”, a menos que haja uma ameaça de danos para terceiros, uma doença psiquiátrica inadequadamente tratada ou uma dúvida sobre a real capacidade para decidir.

Com base nas limitadas informações disponíveis, não creio que o caso em apreço cumpra qualquer destes critérios, apesar de não beneficiarmos de uma avaliação completa da “capacidade decisória” (às vezes designada como avaliação da “capacidade de tomar decisões sobre tratamentos”, embora este seja um termo legal e não clínico)

Agora, como salientaram vários leitores – no que coincidem com o Dr. Carrese – a autonomia do doente não é absoluta, independentemente de quão irracional, prejudicial ou ridículo seja o seu pedido; nem os médicos estão eticamente obrigados a prestar os cuidados que considerem violar as “boas práticas científicas ou éticas, ou a lei” [1]. Contudo não vejo uma tal violação no caso do doente do Dr. Wilner. Uma coisa seria se o doente em questão insistisse em que lhe fizessem uma lobotomia, que lhe dessem Laetrile ou que fosse exposto a raios gama. Nenhum médico responsável poderia aderir a essas manifestações de “autonomia” obviamente prejudiciais e irracionais!

Pelo contrário, é-nos dito que o doente aceita “a medicação adequada às [suas] complicações da SIDA”. A palavra-chave é “adequada”. Assim, a manifestação de autonomia do doente, na minha opinião, não é nem irracional nem prejudicial. Além disso, os medicamentos prescritos podem efetivamente prolongar a qualidade de vida do doente e reduzir o seu sofrimento ou incapacidade – embora isso não seja claro a partir das informações limitadas de que dispomos.

Quanto às medidas coercivas destinadas a forçar o doente a cumprir um tratamento ótimo recomendado, na minha opinião, isso não seria justificado ao abrigo das atuais orientações éticas ou legais, na ausência de qualquer perigo claro e presente para outrem ou de clara intenção suicida da parte do doente por causa de alguma doença psiquiátrica, como depressão major. Temos falta de dados para fundamentar qualquer um destes critérios. A única possível exceção levantada foi a questão da tuberculose. Como afirmam os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças, “os agentes de Saúde Pública podem, geralmente, isolar indivíduos com doença tuberculosa se representarem uma ameaça para a saúde pública”. Se foi estabelecida uma tal ameaça no presente caso, então pode justificar-se legalmente isolamento domiciliário ou internamento compulsivo.

Quanto ao risco de o doente vir a transmitir a sua infeção pelo VIH aos familiares, creio que a melhor forma de abordar isso não é pela revelação à família do diagnóstico de SIDA, mas sim pelo cuidadoso ensino aos cuidadores familiares das “precauções universais” no lidar com o sangue ou fluidos biológicos infetados [2].

Não restam dúvidas de que informar a família do doente do seu diagnóstico – contra a sua vontade expressa – seria tanto uma violação das atuais regras do Health Insurance Portability and Accountability Act como do princípio ético de proteger a informação confidencial do doente, na falta de autorização deste para a disponibilizar a terceiros. A confidencialidade – apesar de não ser um direito absoluto mas antes, realmente, mais um privilégio imposto por lei – não é legitimamente “quebrada” a menos que haja (1) a obrigação legal de revelar informações médicas, como, por exemplo, por intimação; ou haja (2) provas claras de dano iminente para o próprio ou terceiros, como quando acontece uma situação do tipo Tarasoff (por exemplo, um doente com perturbação psiquiátrica que ameaça lesar alguém em concreto e o médico assume o “dever de avisar” ou de tomar outras medidas para proteger o potencial alvo).

No caso do doente do Dr. Wilner, não vejo qualquer fundamentação ética para informar a sua família do diagnóstico de SIDA, contra os seus desejos. (Posso pensar de modo diferente se me aperceber, por exemplo, de que o doente está a ter sexo desprotegido com um cuidador – mas isto parece extremamente improvável, dado o estado debilitado do doente). Dito isto, se após a morte do doente os familiares descobrem que o diagnóstico de SIDA lhes tinha sido ocultado, talvez reajam indignados e até procurem reparação jurídica; assim, será prudente pela parte do hospital ter consultadoria legal ou forense sobre este ponto. Por último, embora a maioria de nós possa compreender que o impulso para “chutar” este difícil doente para fora do sistema de saúde, simplesmente dando-lhe alta sem seguimento médico adequado, isso corresponderia ao seu abandono e, na minha opinião, uma violação ética muito grave. Como nota o Dr. Carrese [1], “no caso de discordâncias médico-doente irrevogáveis, os médicos devem tomar todas as medidas necessárias para facilitar uma transferência efetiva de cuidados para outro médico”.

Uma Alternativa Possível?

Lembrei-me de uma alternativa possível. Seria o doente aceitar ir ao hospital para, digamos, injeções mensais de agentes antirretrovirais de longa duração, que poderiam resolver o dilema – desde que sua família não ficasse a par da razão para essas injeções. Mas se, por algum motivo, o doente recusar esta alternativa, transferi-lo para casa ou um lar residencial pode ser adequado, partindo do princípio de que isso satisfaz os critérios habituais para esses cuidados. Isto com a ressalva de que continua com assistência médica, que a sua medicação “contra as complicações” continua a poder ser administrada e partindo do princípio de que essas ações são ainda considerados úteis pelo médico responsável.

Entretanto, se o doente tiver de se apresentar ao Serviço de Urgência, Faith Lagay, PhD e Art Derse, MD, JD afirmam claramente: “em qualquer caso, os doentes e feridos graves que recusam tratamentos [em situações de emergência] devem receber cuidados de conforto e não ser rejeitados por causa da sua recusa.” [3]

É claro que a abordagem da equipa médica pode mudar rapidamente, se o doente estiver próximo da morte – situação em que o objetivo deve ser exclusivamente “ cuidados de conforto”, alívio da dor e do sofrimento, e apoio psicológico para o doente e para a sua família.

Agradeço a oportunidade de ter discutido este difícil e muitas vezes frustrante caso, e espero que as questões éticas principais tenham ficado esclarecidas.

Referências
1. Carrese J. Refusal of care: patients' well-being and physicians' ethical obligations. JAMA. 2006;296:691-695.
2. Rodriguez R. Protect yourself as an HIV caregiver. Everyday Health. May 13, 2009.
3. Lagay F, Derse A. Through the physician's eyes: difficult patient-physician encounters in the emergency department. Virtual Mentor. 2001;3.