27 novembro 2016

Solilóquio


Amigas e Amigos, (*)

Há coisa de um ano, pensei em organizar este encontro para comemorar esta data redonda – não é todos os dias que se completam 70 anos – uma idade que, quando era jovem e via as pessoas da geração anterior alcançá-la, parecia ser muito … muito … especial.

E afinal não custa nada!

Contudo, os 70 anos continuam a ser o momento em que um tipo é atingido [PIM!] pelo limite de idade! Há quem se mantenha no seu posto até ser atingido [PAM!]. Outros, como eu, anteciparam a aposentação profissional e mudaram de vida antes de serem atingidos [PUM!].

Recordo-me de ter preparado um currículo para uma das provas da carreira hospitalar – tinha 35 anos – e de ter escrito que me considerava no meio da minha vida.

Cumprida agora a segunda metade, eis um bom motivo para comemorar, beber um copo de vinho do Porto (ou um sumo de laranja) com amigos e amigas – pessoas com quem me cruzei ao longo da minha vida.

Comemorar é, nesta altura, fazer um breve balanço e também refletir sobre o sentido da vida.

Gostava, se me permitem, de dirigir as minhas palavras às minhas adoradas netas, em especial à primeira delas – por ser a que, nos seus já maduros 13 anos, pode perceber melhor as coisas e a que tem talvez mais possibilidade de manter por mais tempo a memória deste dia.

Pois é, o teu avô está hoje muito feliz por ter aqui todos estes amigos que acharam bem vir felicitá-lo.

Estou feliz e agradecido.

Sabes, o sentido da vida, ou dito de outra forma, a vida só tem sentido quando nos sentimos felizes e vemos que os nossos amigos nos reconhecem como amigos. Mas, quando falo de vida feliz, falo de uma felicidade que ultrapassa a mera satisfação pessoal e uma desejada realização profissional, familiar ou social. E, repara bem, o sentido da vida que vale a pena ter é o que está ligado à felicidade (própria e do outro) e não ao dinheiro, ao poder ou à fama. E se falo em felicidade não digo que o caminho não tem dificuldades e ansiedades – pelo contrário.

Estão hoje aqui amigos do tempo em que andava no liceu de Braga e um pouco mais tarde no liceu da Póvoa. Continuam a ser grandes amigos desde mais ou menos a tua idade.

Estão aqui amigos do tempo da faculdade e outros com quem privei na carreira médica – na neurologia e na eletroencefalografia.

Não convidei pessoas a quem servi durante tantos anos como médico – doentes ou seus familiares – porque lhes perdi o rasto quando deixei a clínica (sem dor mas com saudade) há cerca de 12 anos mas também porque talvez não me ficasse bem fazê-lo…

Na vida fui muitas vezes escolhido para representar os meus colegas e dediquei a essas funções muito tempo – fui delegado do curso quase todos os anos da Faculdade, participei na fundação do Sindicato dos Médicos do Norte (ainda sou o sócio n.º 1), pertenci à direção regional da Ordem dos Médicos (estive uns seis anos a acompanhar a construção desde o princípio deste edifício da Casa do Médico – estão aqui amigos com quem partilhei esses tempos e essas funções).

E como me orgulho disso!

Sabes, fui também médico militar – participei na guerra colonial. Estão hoje aqui amigos feitos na tropa em Angola, nesse difícil percurso que não fui capaz de recusar.

Enquanto adolescente pertenci à Juventude Escolar Católica. Como jovem adulto militei no Partido Comunista. Em ambos os casos perdi a fé ou, como dizem alguns, perdi as féses… e não mais as voltei a encontrar.

Também estou agradecido a quem me acompanhou noutras atividades que tive – na Liga Portuguesa contra a Epilepsia e na EPI, a associação de amigos, familiares e pessoas com epilepsia, na APASD (da universidade Fernando Pessoa) e na Fundação SNS: foi onde percebi melhor o significado da solidariedade.

Fiz de técnico de eletroencefalografia, quando os não havia e depois participei no processo de criação formal da neurofisiografia enquanto profissão: foi onde descobri a interdependência e a autonomia própria das diversas carreiras da saúde.

Fiz amigos como funcionário público, quando arrumei as batas e estive na coordenação do gabinete do cidadão da ARS Norte: foi onde descobri os direitos dos doentes e o valor do serviço social na Saúde.

Depois da aposentação, se calhar ainda te lembras de ouvir falar lá em casa, dediquei uma boa parte do tempo a várias comissões de ética: foi onde descobri os deveres dos profissionais e a importância das virtudes.

Estão aqui amigos que fizeram o mesmo percurso e que tanto prezo por me terem ajudado a fazer o que devia.

Muitas vezes atrevi-me a fazer pequenas palestras e a dar umas aulas, convidado por amigos. Estão aqui alguns destinatários dessa atividade docente sempre avulsa, nunca uma vocação.

Estão também aqui estudantes, meus colegas hoje, da Faculdade de Letras onde nos últimos 2 anos e meio tenho assistido assiduamente às aulas da licenciatura em Filosofia e faltado sistematicamente aos exames. São os meus mais recentes amigos (alguns com menos 50 anos do que eu).

Ainda bem que me dispus a estudar filosofia, embora não tenha sabido aprender a filosofar – defeito meu ou da escola? – ainda assim, adquiri, tarde e más horas, umas boas bases para perceber melhor a vida e o seu sentido. Assim como percebi como são muitas as dúvidas que tenho e continuarei a ter.

Outros dos presentes são amigos feitos nos interstícios desta vida – professores, vizinhos, colaboradores, antigos “fornecedores”, leitores, outros.

A todos, todos estou grato.

Grato por estarem aqui. Alguns outros não puderam vir e alguns responderam ao convite com palavras tão bonitas e exageradas que não as posso revelar.

Queridas netas,

Queria dizer-vos que o percurso deste vosso avô não é um exemplo que tenha de ser seguido – foi uma das possibilidades e oxalá vocês no futuro possam escolher livremente percursos que vos façam felizes.

A minha vida foi sempre um bocado atípica – não foi programada nem prevista. Pode mesmo dizer-se que foi original e por isso diferente das dos meus amigos aqui presentes. É sabido que não há duas vidas verdadeiramente iguais. Falta saber se a vida de cada um é uma livre escolha ou está determinada por certas condicionantes a que não escapamos…

Nos últimos anos deu-me para intervir publicamente – escrever textos para serem publicados, participar em mesas redondas de vário tipo, fazer traduções espontâneas de textos lidos, manifestar-me aqui ou ali – e tentar influenciar os que me leem para concordarem com as minhas posições. Tenho enviado muitos mails para a RedÉtica (perto de 400 membros de comissões de ética) e para uma lista de cerca de 1700 destinatários…

Sinto que muitos concordam com o que digo e fazem-me saber disso – outros nem por isso.

Não me arrependo do que tenho feito. A meu ver, no final, o saldo é positivo.

Talvez por achar preferível parar enquanto o saldo parece positivo, ou porque receio que um dia destes me apareça alguém a perguntar “por que não te calas?”, meteu-se-me na cabeça que chegou a hora de pôr um ponto final nas minhas intervenções opinativas públicas.

Vou assim aproveitar o dia dos 70 anos para sair completamente de cena e dedicar-me somente a coisas da minha esfera muito pessoal. Porque não concretizar o velho sonho de fazer um e-dicionário toponímico ilustrado da cidade do Porto? Acho que vou tentar.

Já arrumei e cataloguei os 2780 livros lá de casa e há muitos ainda por ler – como os suscitados pelas aulas de Filosofia ou os acumulados sobre a portocidade (a qualidade de ser Porto).

E vou continuar a ler romances: afinal nós somos os livros que lemos. Acredito que é na literatura que aprendemos muito do que não vivemos.

Sabem,

Descobri que quanto mais estudava as questões filosóficas na Faculdade mais me apercebia de que sei tão pouco e como me falta competência para aprofundar os assuntos como deve ser.

É certo que a minha “esponja” cerebral já não absorve coisas como antes e, por isso, devia ter-me lembrado de estudar estas matérias mais cedo.

Obviamente, não vou deixar de refletir sobre o quotidiano, de conversar contigo quando estiveres para me aturar, de refletir sobre as interpelações dos meus amigos.

Mas o que eu queria mesmo dizer aos meus amigos é que tenho um imenso prazer em os ter como amigos.

O sentido da vida precisa que tenhamos sempre projetos para realizar e causas para abraçar, sendo que o mais importante é gostar das pessoas e que elas gostem de nós.

Julgo que pouco mais é preciso.

E, claro, em primeiro lugar está a felicidade de amar e de ser amado. Desde logo pelos nossos mais próximos – a família alargada (manos, cunhados, primos, sobrinhos e sobrinhetos) e, mais que tudo, a família nuclear: a minha amada há 46 anos (+6 de namoro), os nossos queridos “quatro” (2+2) filhos e as nossas deliciosas quatro netas.

Estou, assim, disposto a atirar-me, calado e feliz, à “terceira metade” da minha vida …

E, se não for antes, gostava que nos encontrássemos de novo daqui a 10 anos para celebrar os meus 80 anos (ou talvez os do Duque de Bragança e do Xanana Gusmão, do Donald Trump e do Bill Clinton, do Silvester Stalone e da Diane Keaton), mas também e sobretudo os 80 anos do meu herói de estimação, Lucky Luke, o cowboy solitário, mais rápido do que a própria sombra – afinal somos todos da colheita de 1946, como alguns dos presentes.

Bem hajam! Obrigado! … e Felicidades!

(*) solilóquio de Rosalvo Almeida, era para ser lido na Casa do Médico, no dia 27.11.2016.

«Aqueles que sempre serão felizes: Aqueles que, em qualquer época, buscam novas formas de existência, exploram alternativas e anseiam por novas experiências de vida, não se submetendo às formas institucionais de existência.» Miguel Real, Nova Teoria da Felicidade, p. 165, D. Quixote, 2013


Queridas Amigas e Queridos Amigos,

Antes de lerem esta mensagem prometam que não vão responder.

A sério! Não me façam sentir obrigado a comentar o que me digam… J

Há coisas que ou se fazem quando se pensou ser o momento de as fazer ou deixa de haver justificação para serem feitas noutra ocasião.

O encontro que planeei para hoje era, como todos viram, para ser feito numa data redonda (70 anos de vida) e implicava um estado de felicidade que queria partilhar convosco.

A felicidade, como todos sabem, não se dá bem com a doença mas, felizmente, a minha mulher já está em casa depois de quase uma semana com problemas circulatórios multissistémicos e recuperada de uma hemiplegia transitória coincidente com um cateterismo coronário. Esperamos que tão cedo não voltem as preocupações que tivemos agora e não posso deixar de vos agradecer do coração as mensagens (expressas ou silenciosas) que recebi de todos vós nestes dias.

Tinha planeado, no meio do “Porto com sentido” de hoje, botar faladura e referir-me à felicidade e ao sentido da vida. A felicidade ficou muito abalada. As reflexões sobre a vida que vivi mantêm-se. Por isso, transcrevo em baixo o que tinha já escrito para dizer aos presentes e enviar aos ausentes.

Serve esta mensagem também para confirmar a minha determinação em sair de cena.

Saudações, Rosalvo Almeida