30 dezembro 2020

Descontar

Descontar

in Contos de Guerra - Curso Mé­dico 1964/1970, pp. 59-65, ed. 5Livros.pt (2020)

Então ela virou-se para ele e disse-lhe assim:

– Paludismo?! Agora é tudo paludismo!

E era. As dores começaram nas pernas de repente e passado pouco tempo estavam por todo o lado, as tremuras eram muitas, não sabia se aquilo era frio ou calor. Durou um par de dias mas o pior de tudo foi a perda de apetite que se instalou. Nunca lhe tinha acontecido! Perder completamente a vontade de comer. Aprendera o termo ‘anorexia’ mas nunca imaginara o que significava senti-la. Felizmente nunca mais teve febres como aquelas e o apetite logo regressou, até hoje.

O filho de 2 anos viria a sofrer meses depois também uma crise palúdica e até teve uma convulsão na subida da febre. Além do susto, serviu para inventar a teoria de que aquela convulsão espremeu o baço e os plasmódios, apanhados na corrente pelo medicamento injetado, foram todos eliminados pois não se verificaram depois as recaídas que davam pelo nome de febres terçãs ou quartãs.

O risco maior daquelas paragens era pois o de ter febres – maior em termos de probabilidades – mas o mais temido era apanhar um tiro ou pisar uma mina quando havia deslocações por picadas entre vegetação cerrada. Por isso a ordem era de não facilitar. A estadia durante o primeiro ano no noroeste, zona de guerra, saltando cada mês de aquartelamento em aquartelamento, para substituir colegas nas suas férias, levou a que, nesse período, não firmasse amizades. Em cada mês, travava conhecimento com novos oficiais e comandantes, novos enfermeiros e maqueiros.

Certa vez, precisamente em Nambuangongo, depois de espantar o tenente-coronel por não saber jogar bridge (nem o querer aprender), recebeu a missão de ir visitar na manhã seguinte, bem cedo, um pelotão destacado a cerca de 10 km. Seriam 6 horas quando foi acordado com gritos para que se reunisse de imediato a coluna militar que estava previsto sair mais tarde. Era preciso ir socorrer uma outra coluna que fora atacada junto ao morro do Mata-Alferes. No seu imaginário, a palavra Nambuangongo já prenunciava que estar ali podia acabar mal. Lembrava-se de ler, ainda na Faculdade, cópias datilografadas da Trova do Vento que Passa, de Manuel Alegre.

Nambuangongo Meu Amor
Em Nambuangongo tu não viste nada
não viste nada nesse dia longo longo
a cabeça cortada
e a flor bombardeada
não tu não viste nada em Nambuangongo

Seria o seu batismo de fogo? A coluna de viaturas todo-o-terreno seguia à velocidade estonteante de uns 30 à hora – os sulcos cavados na picada não davam para mais. É desta?

À chegada ao local, veem-se vários militares apeados que discutem, uns riem-se, outros insultam-se. Falso alarme! Só depois de muita discussão, todos reconhecem que tinha havido uma troca de tiros entre tropas portuguesas, desencadeada por um militar ter disparado uma rajada dirigida apenas às árvores do Morro. Outros, mais adiantados, pensaram estar a ser atacados e desatou um tiroteio que só acabou quando as munições começaram a rarear e alguém conseguiu gritar mais alto um cessar-fogo. Não houve feridos, tão-pouco houve emboscada, mas o medo de não regressar acentuou-se.

Em Nambuangongo a gente pensa que não volta
cada carta é um adeus / em cada carta se morre
cada carta é um silêncio e uma revolta.
Em Lisboa na mesma / isto é / a vida corre.
E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.

Um ou dois meses antes, num aquartelamento cujo nome não foi cantado por poetas e esqueceu, tivera de fazer duas autópsias a militares apanhados na crista de uma colina, num ataque inesperado, mas a memória desse dia triste fora esmagada pela extrema ansiedade que ali viveria noutras circunstâncias. No dia da chegada, o comandante convidara para o almoço o velho administrador colonial e o seu adjunto que estava a preparar-se para lhe suceder no posto. Ambos tinham consigo as mulheres e a mais nova estava grávida com volume indicador de aproximação do fim de tempo. Todos estavam convencidos de que a criança nasceria em Luanda dado que a viagem estava programada para breve. Só que a criança não quis esperar e, certa manhã, foi obrigado a acompanhar o próximo papá num jipe que voava mais depressa que a coluna militar que devia escoltá-los até junto da parturiente. O parto lá se fez, muito contribuindo para o sucesso a serenidade da “administradora” mais velha. Feito o seu primeiro e único parto, com episiotomia e tudo, o regresso ao quartel foi adiado. Na pequena povoação desabitada, onde só viviam os administradores e havia uma pequena força militar destacada, a tarde e a noite passaram-se a ver jogos de cartas. Percebi que jogavam a dinheiro mas usavam vales escritos à mão em pedaços de papel e, se uns estavam a ganhar muito, outros estariam a perder outro tanto. As partidas sucediam-se sem pausas e parecia terem começado há várias semanas. Quando, a meio da noite, procurou verificar se a jovem mamã estaria bem e conseguiu convencer um sargento para o acompanhar, o silêncio da caminhada até à casa onde decorrera o parto, apenas quebrado por ruídos estranhos vindos do mato, agudizava a ansiedade. Terá havido alguma hemorragia? Estará bem? Sim, estavam bem – mãe radiosa, filha serena e pai exausto perguntavam, cada um à sua maneira, por que razões lhes interromperam os seus sonos. No dia seguinte, lá foram todos de avião para Luanda e nunca mais teve notícias deles. A miúda já deve ter 42 anos!

As viagens, que de cada localidade se faziam para visita médica às tropas estacionadas nas redondezas, eram feitas em pequenos aviões que também levavam correio e alguns frescos. Os Austers (conhecidos por teco-tecos) eram os mais pequenos dos pequenos. Andavam aos pares, diziam que era assim pois se um caísse o outro ficava a saber o local da queda – muito animadora esta explicação. Os pilotos gostavam muito de passageiros novatos…

Vrrruuuum! Vrrruuuum! Olhe, as mãos ficam molhadas de gasolina, é por isso que não nos deixam fumar, disse ele com uma ponta de cigarro apagada no canto da boca. O motor não vai pegar! Vrrruuum! Vrrruuuuum! Vrrruuuuuum! Lá vai ele! Aproximava-se o fim da pista pedregosa… olha, tem um murete lá ao fundo! Vrrruuuuuuuuum! Levantou!
– Ó doutor, ‘tava a ver que não conseguia!

Os Dorniers eram também pequenos mas tinha carcaça metálica, não eram de lona como os teco-tecos. Tinham piloto e copiloto. Faziam distâncias maiores e transportavam feridos para Luanda. Naquele tempo, a guerra estava num impasse. Os combates eram raros. As emboscadas tinham diminuído. As cidades estavam mais ou menos tranquilas. As matas eram “deles”. Fala-se que na Guiné a coisa está mais feia – há mísseis terra-ar que são transportados ao ombro por um só homem e já caíram alguns aviões.

É por isso que, quando há uma viagem do interior para a capital, o avião segue para ocidente até ao mar e depois segue a costa até Luanda – o mínimo de permanência sobre a terra para evitar os tais temidos mísseis.

Numa evacuação por fratura do úmero – dizia-se que havia mais feridos por acidentes com viaturas do que ferimentos de guerra – o jovem soldado tinha o seu braço muito bem imobilizado com múltiplas ligaduras que o mantinha solidário com um triângulo de tábuas. A tábua vertical estava enfaixada ao tronco e a oblíqua obrigava o braço a estar esticado e erguido com a mão um pouco mais alta do que o ombro, como mandava a figurinha do manual de primeiros socorros da Segunda Grande Guerra.

O Dornier voava suave embora ruidosamente em direção ao mar. Ao avistá-lo o médico levanta-se e metendo a cabeça entre as cabeças dos pilotos diz:

– Isto é um assalto! Vira para Lisboa!

O piloto não hesitou um segundo. Deslocou a manette de condução bruscamente para direita e para esquerda. O engraçadinho bateu com a cabeça duas vezes na dureza da carlinga e o pobre do soldado, com o repelão, desconjuntou tudo, vendo-se envolto em ligaduras lassas. O úmero, que vinha alinhado, desalinhou-se e soldado gritava de dores. O aviãozinho estabilizou, rumou rapidamente ao seu destino e ele, arrependidíssimo, procurava manter o braço partido na posição, amparando-o com as suas mãos, até o entregar à ambulância que os esperava no aeroporto. Nunca mais soube do soldado. Já deve ter mais de 60 anos.

Após um ano de zona quente, os médicos eram colocados, usualmente, em cidades mas, no seu caso, saiu-lhe uma rua no meio de Angola. Nova Gaia terá sido próspera noutros tempos pois tinha, no máximo, uma vintena de casas que ladeavam a estrada para a distante terra dos diamantes – a Diamang, uma espécie de Estado dentro Estado. Naquele ano de 1974, contudo, apenas viviam em Nova Gaia, além de uma companhia militar (cerca de 120 homens), um administrador e dois fazendeiros (que também tinham uma loja topa-a-tudo).

Havia paz, embora não fosse seguro ir para fora do perímetro da povoação, e foi possível ter a companhia da mulher e do filho. O capitão miliciano também tinha consigo a mulher e um filho. A vida corria sem novidades apesar de alguns desaguisados próprios de se estar confinado. Um alferes, cujo nome se perdeu, também tinha a companhia de sua mulher. Tinham ambos personalidades estranhas, davam-se pouco ao convívio e eram atreitos a conflitos. Nunca mais soube dele. Há de ter a sua idade, passe bem!

Os outros oficiais ficaram amigos.

Até que em abril, dia 27, chega a notícia surpreendente! Passava-se algo na Metrópole. Um golpe de Estado conduzido por militares! A incredulidade e a dúvida logo compensadas pela alegria e pela esperança. Caiu o regime! Depois dos militares, seguiu-se o levantamento popular e a emergência das forças políticas organizadas – era o rumar à liberdade e à democracia. A transformação, seguida à distância na rádio e com enorme atraso na leitura dos jornais – não havia telemóveis – provoca uma súbita politização e uma brusca compreensão dos valores em causa.

Como que caída do nada, a pergunta bateu então com mais força: que estava ali a fazer? Os três meses de Mafra tinham sido os piores da sua vida. Pedira, sem êxito, aos seus pais que não assistissem ao juramento de bandeira. Não ter proferido as palavras sacramentais não chegou para atenuar a repulsa que durou meses. Aceitar cumprir o serviço militar e ser mobilizado para o Ultramar fora uma decisão difícil depois de muitas hesitações. A alternativa era partir para o estrangeiro e recusar ativamente colaborar com uma guerra injusta. Muitos o fizeram. Porque não o fez? A noção de que não ia combater, não usaria armas, mas apenas exercer a sua profissão junto dos militares e das populações autóctones, confrontava-se com o sentimento de que ser militar era, só por si, uma derrota pessoal. Ir à guerra era ser cobarde! Que contradição! A fragilidade das suas convicções políticas, o nunca ter aderido, até então, a quaisquer grupos políticos e, afinal, a aparente generalizada aprovação social do cumprimento do serviço militar, contribuíram para o adormecimento das dúvidas durante o primeiro ano de estadia em Angola. De repente, tudo mudou! Acabou a guerra! Viva!

Apesar de nunca ter conhecido qualquer deles, nunca viverá tempo suficiente para agradecer aos Capitães de Abril.

Aqueles dois anos são para descontar.

Rosalvo Almeida, alferes miliciano médico em Angola de janeiro de 1973 a dezembro de 1974

30 novembro 2020

Dormir suavemente: Schubert, a ética e a importância de morrer bem


Dormir suavemente: Schubert, a ética e a importância de morrer bem

Dominic Wilkinson
Oxford Uehiro Centre for Practical Ethics, University of Oxford, Oxford, UK

Tradução espontânea do artigo

Resumo - As discussões éticas sobre o tratamento médico de bebés ou crianças gravemente doentes concentram-se frequentemente no “valor da vida” ou na “qualidade de vida” e no que isso pode significar. Neste artigo, olho para o outro lado da moeda – para o valor da morte e para a qualidade da morte. Em especial, vejo se existe uma boa forma de morrer, para uma criança ou um adulto, e o que isso significa em termos de cuidados médicos. Para o fazer, apelo à filosofia e à minha experiência pessoal. Contudo, farei também referência à arte, à poesia e à música. Isto deve-se, em parte, a que o tema da mortalidade é há muito pensado por artistas, bem como por filósofos e eticistas. É também porque, como veremos, poderá haver alguns paralelos úteis a estabelecer.

ver tradução completa AQUI

28 setembro 2020

Juízos de valor e argumentos de rampa escorregadia

 
01 Mar 2017, 20(1):147-150

Juízos de valor e argumentos de rampa escorregadia

Gert Helgesson, Niels Lynøe e Niklas Juth
(Stockholm Centre for Healthcare Ethics, Department of Learning, Informatics, Management and Ethics, 
Karolinska Institutet, 171 77, Stockholm, Sweden)

O ponto principal deste artigo é ligar duas ideias filosóficas diferentes, a saber, a argumentação da rampa escorregadia e os juízos de valor. Primeiramente, fazemos uma breve apresentação de cada um e, em seguida, sugerimos, apoiados por alguns dados empíricos, que os argumentos da rampa escorregadia se podem apoiar em juízos de valor. Sugerimos que quanto menos razoáveis são os argumentos da rampa escorregadio, mais fortemente podem ser influenciados por valores pessoais implícitos.

Argumentos da rampa escorregadia

Os argumentos da rampa escorregadia são geralmente baseados em estimativas do que aconteceria no futuro se uma determinada linha de conduta fosse permitida. Eles afirmam que abrir a porta para essa linha de conduta específica levará a uma série de eventos altamente provável, acabando num resultado que está muito distante do pretendido no primeiro passo dado. Esse tipo de argumento é comummente usado quando alguém se opõe a uma determinada linha de conduta (den Hartogh 2010; LaFollette 2005; Launis 2002, Launis 2010). Então, abrir a porta para essa linha de conduta específica acabará num resultado negativo, se não mesmo catastrófico – daí a queda na rampa escorregadia. Portanto, a porta nunca deve ser aberta.

Um exemplo típico deste argumento no contexto médico-ético é o argumento contra a legalização do suicídio medicamente ajudado (SMA) no final da vida. Basicamente é assim: Se o SMA for permitido, pode-se esperar que haja uma mudança contínua na aplicação dos critérios de elegibilidade, devido a uma lenta mudança nos padrões morais da sociedade influenciada por cada um dos passos dados. As consequências podem ser que mais e mais doentes serão elegíveis para SMA, cada vez mais por outras razões além daquelas que são de seu interesse – por exemplo, não apenas no final da vida ou a pedido do doente. Esse desenvolvimento, mais cedo ou mais tarde, acabará numa situação em que se tornarão comuns atrocidades na aplicação de SMA (Mishara e Weisstub 2013; Shariff 2012; Rietjens et al. 2009). Como reação a essa má prática, também diminuirá significativamente a confiança da população em geral no sistema de saúde, o que terá efeitos negativos adicionais na saúde (Juth e Lynøe 2010; Helgesson et al. 2009). A partir disso, o argumento conclui que devemos evitar legalizar o SMA. Argumentos semelhantes podem ser vistos em discussões sobre sedação paliativa e antecipação intencional da morte de doentes em iminência de morrer (Rydvall et al. 2014; Verhagen 2013; Camporesi e Boniolo 2008). A estimativa do que acontecerá com a confiança do público em geral na área de saúde, embora não seja a questão central, é uma componente comum nesses argumentos.

Se um argumento de rampa escorregadia se baseia em estimativas de eventos futuros, então, determinar até que ponto é provável que a estimativa se torne realidade é uma preocupação empírica. Às vezes, podem ser realizados estudos empíricos para comprovar as estimativas, enquanto outras vezes isso não é possível, por exemplo, se não houver situações comparáveis para recolher dados. Nestes últimos casos, o argumento torna-se irrefutável (Camporesi e Boniolo 2008).

Juízos de valor

No contexto da filosofia da ciência, as afirmações são frequentemente ditas como imbuídas de hipóteses ou imbuídas de teoria, o que significa que suposições e convicções teóricas influenciam as afirmações (Rydvall et al. 2014). Em analogia com as afirmações imbuídas de teoria, podemos falar de alegações e juízos de valor. Uma alegação factual imbuída de valor é um juízo sobre facto(s) que é influenciado por valores. A ideia geral é que um juízo factual está imbuído de valor se a pessoa que o faz não o teria feito, ou não teria enfatizado a sua relevância no mesmo grau, se a pessoa não fosse influenciada pelos seus valores.

Note-se que a ideia sobre a impregnação de valor de alegações factuais é distinta das ideias sobre conceitos normativos densos e plenos de valor. Nestes, a ideia é que eles tenham um conteúdo descritivo e, além disso, estejam carregados de valores de vontade. Por exemplo, seria estranho dizer "Ele é honesto/simpático/indulgente, mas não quero dizer com isso que haja algo de bom nele", já que honestidade, simpatia e indulgência, além de terem um conteúdo descritivo, designam algo de bom. O objetivo de argumentar que algumas afirmações factuais estão imbuídas de valor não é insistir em que elas são carregadas de valor. A impregnação de valor de afirmações factuais diz respeito à explicação por que são feitas. A explicação é que os valores influenciam as alegações factuais que são feitas (ou o quanto fortemente são enfatizadas ou defendidas), tal como as teorias podem interferir na perceção e, assim, influenciar as afirmações que são feitas.

Em contraste com as afirmações imbuídas de teoria (onde (1) a influência teorética pode ser considerada uma pré-condição para fazer afirmações significativas e (2) provavelmente a impregnação pela teoria é inevitável), a impregnação por valores das alegações factuais é evitável e distorce/perturba o juízo factual. Isso não significa negar que todas as decisões sobre o que fazer têm um componente de avaliação: tais decisões não podem ser baseadas apenas em alegações factuais. No entanto, também as nossas alegações factuais podem ser afetadas pelos nossos juízos de valor, de tal modo que, por exemplo, acreditamos em algo porque queremos que seja assim ou achamos desejável que o seja. Se não estivermos cientes da possibilidade de tais juízos factuais imbuídos de valor, podemos pensar que somos mais objetivos (ou seja, em maior medida orientados por provas nos juízos factuais, mais do que por valores próprios) do que realmente somos.

O caso de particular interesse no contexto da saúde é a impregnação de valores decorrente de valores pessoais que divergem dos valores oficiais dos serviços de saúde. Sugerimos que a impregnação de valor de alegações e juízos factuais pode ser não intencional e inconsciente, assim como consciente e intencional, em analogia com a influência potencial de suposições e convicções teóricas sobre as afirmações.

Um exemplo do que constituiria juízos factuais imbuídos de valor no cenário dos serviços de saúde são as alegações exageradas sobre o risco de aborto, ou algum outro procedimento, se o médico/enfermeiro discordar pessoalmente do procedimento ou do seu uso frequente.

Se os valores oficiais dos serviços de saúde, conforme expressos na lei e regulamentos, ou de outra forma realçados nas instituições de saúde, forem contrários aos do profissional de saúde individual – especialmente se estes últimos forem valores e convicções fortemente assumidos – então pode-se esperar que esses valores pessoais, pelo menos algumas vezes, continuarão a influenciar as perceções e os comportamentos do profissional de saúde, mas se não forem oficialmente aceites, essa influência provavelmente continuará de forma menos detetável. Em vez de declarar abertamente os seus valores, é mais provável que o profissional deixe que eles afetem o resultado, influenciando as alegações factuais que estão sobre a mesa. Novamente, esse movimento do aberto para o oculto não é necessariamente intencional ou consciente. O profissional pode até acreditar que está a agir de acordo com os valores oficiais.

O argumento da rampa escorregadia como juízo de valor

O que gostaríamos de sugerir agora é que os argumentos da rampa escorregadia às vezes baseiam-se em juízos factuais imbuídos de valores. Ou seja, a relação entre juízo factual e juízo normativo, neste contexto, não pode ser tal que uma conclusão normativa derive apenas da convicção de que as coisas se desenvolverão de uma certa maneira (tipo rampa escorregadia) se for tomada uma certa decisão. Também pode ir na direção oposta: a partir da convicção de que algo não deve ser permitido (porque é considerado errado), os juízos factuais de alguém podem ser influenciados por essa convicção, por exemplo, acreditar que haverá uma rampa escorregadia que levará a desastre se uma determinada decisão for tomada. Isso, é claro, leva-nos de volta à conclusão normativa, de forma circular.

Uma característica comum dos argumentos da rampa escorregadia, acreditamos, é que, por boas razões, têm pouca influência sobre quem ainda não está convencido da fatalidade da ação em questão e pede alguns fundamentos racionais para esse medo. Em particular, a inevitabilidade de percorrer toda a suposta série de eventos desde que é dado o primeiro passo, em muitos casos, parece ser gravemente exagerada – ao contrário, parece possível e viável parar, se recomendável, em cada uma das etapas consecutivas (evidentemente, se tem mesmo a ver com o caso em questão). Parece que os argumentos da rampa escorregadia são frequentemente usados quando parte no debate está a ficar sem bons argumentos para a sua posição. Isso encaixa bem no estilo dos juízos de valor “primeiro os valores, depois os juízos factuais”. Na medida em que os argumentos da rampa escorregadia devem ser entendidos dessa maneira, eles servem principalmente como uma racionalização de convicções de valor e convicções normativas já antes assumidas.

Lições dos estudos empíricos

Alguns estudos recentes dão contributos empíricos para o debate sobre juízos de valor e argumentação da rampa escorregadia (Juth e Lynøe 2010; Rydvall et al. 2014; Björk et al. 2016; Lindblad et al. 2009).

Num desses estudos, examinamos numa amostra aleatória de médicos suecos quais as suas atitudes em relação ao suicídio medicamente ajudado (SMA) e, noutro estudo, exploramos as atitudes de médicos suecos em relação à morte intencionalmente antecipada (MIA) de doentes na iminência de morrerem (Juth e Lynöe 2010; Rydvall et al. 2014). Além das perguntas sobre as suas atitudes, também perguntamos aos médicos o que aconteceria com a sua própria confiança nos serviços de saúde se essas práticas fossem legalizadas. Em média, cruzando os dois estudos, 61,2% (n = 627) afirmaram que a sua confiança diminuiria, 12,2% (n = 125) afirmaram que aumentaria e 26,6% (n = 273) afirmaram que não influenciaria a sua própria confiança nos serviços de saúde.

Partimos do pressuposto de que existe uma associação entre classificar a legalização do SMA ou da MIA como uma coisa errada, uma vez que tornaria essas ações legais sob certas condições especificadas, e prever que a própria confiança nos serviços de saúde diminuiria se tal legislação fosse implementada . Da mesma forma, presumimos que se a legalização a favor das duas práticas fosse considerada uma coisa boa, o médico estimaria que a sua própria confiança nos serviços de saúde aumentaria se fossem feitas essas alterações legais. Por fim, presumimos que aqueles que consideraram a legalização do SMA ou da MIA como nem boa nem errada, afirmariam que a sua própria confiança nos serviços de saúde não seria influenciada por uma mudança na legislação. Se a nossa suposição for razoável, parece claro que a maioria sugeriu que legalizar o SMA e a MIA seria uma coisa errada.

Para estudar se havia ou não correlação entre as declarações dos médicos sobre o que aconteceria com a sua própria confiança nos serviços de saúde e as suas estimativas sobre o que aconteceria com a confiança do público em geral se as duas práticas fossem legalizadas, fizemos essas perguntas com as mesmas opções de resposta em ambos os estudos. Encontramos uma boa concordância para o SMA [Kappa ponderado: 0,695 (IC 95% 0,640–0,751)] e uma concordância bastante boa para a MIA [(0,585 (IC 95% 0,492–0,678)]; a média de Kappa ponderado para ambas as práticas foi boa (0,620). Entre aqueles cuja própria confiança diminuiria (n = 627), descobrimos que 83,4% também estimaram que a confiança do público em geral diminuiria (Juth e Lynöe 2010; Rydvall et al. 2014). Vale a pena observar que, embora não se espere que a diminuição da confiança dos médicos nos serviços de saúde tenha qualquer impacto na segurança do doente, a falta de confiança dos doentes no sistema de saúde pode, de facto, ter um impacto negativo nos resultados em saúde, uma vez que pode mudar, em sentido negativo, o seu comportamento em relação aos profissionais de saúde e às recomendações de tratamento.

Deve notar-se ainda que outro estudo empírico, realizado entre a população em geral, indicou que legalizar o SMA não colocaria em risco a confiança do público em geral na saúde – pelo contrário, estimou-se que a confiança não seria influenciada ou aumentaria (Lindblad et al. 2009).

Interpretamos estes achados como uma indicação de que os valores pessoais dos médicos em relação ao SMA e à MIA tendem a afetar as suas estimativas sobre o que aconteceria com a confiança do público nos serviços de saúde se fossem legalizados. Essas estimativas factuais parecem ser independentes das atitudes pessoais dos entrevistados em relação ao SMA e à MIA, embora provavelmente não sejam. E, como vimos acima, as estimativas dos efeitos sobre a confiança do público na área de saúde são geralmente componentes importantes nos argumentos da rampa escorregadia a respeito de SMA – e também em relação à MIA.

Se essa interpretação for correta, pode-se perguntar por que os médicos fazem juízos de valor, por exemplo, em vez de simplesmente declarar os seus valores e atitudes em relação a essas práticas. Um fator de influência potencial é que se espera que os médicos ajam de forma racional e razoável, com base em evidências empíricas e em objetivos de saúde globalmente aceites. Agir com base em valores pessoais é entendido como impróprio nos serviços de saúde suecos, o que não deixa espaço para objeções de consciência (Svennerlind 2009). Mesmo assim, se os médicos querem deixar que os seus valores pessoais influenciem os resultados, os argumentos da rampa escorregadia podem ser convenientes, pois podem dar a impressão de se basearem apenas em juízos factuais e em objeções compartilhadas quanto ao desfecho catastrófico. Ao mesmo tempo, ocultam o que realmente está a acontecer.

Não estamos a sugerir neste artigo que todos os argumentos da rampa escorregadia sejam do mesmo tipo em todos os aspetos importantes. Assim, embora os juízos de valor possam estar presentes em alguns casos, podem não estar noutros. No entanto, sugerimos que, no contexto da saúde, quando ocorrem argumentos da rampa escorregadia, pode valer a pena procurar juízos de valor.

Conclusão

O cerne do que se entende por rampa escorregadia está em afirmar que uma determinada linha de conduta não deve ser adotada ou permitida, pois, uma vez dado o primeiro passo, a trajetória está traçada e teremos consequências muito negativas. Consequentemente, estes argumentos estimam que certos eventos futuros indesejáveis são inevitáveis, ou pelo menos altamente prováveis, desde que seja dado o primeiro passo infeliz nesse caminho. Neste artigo, sugerimos que tais estimativas factuais com argumentos da rampa escorregadia podem ser juízos de valor. Ou seja, as estimativas são feitas porque as pessoas que as fazem têm uma certa atitude em relação à ação em causa. Há algum fundamento para que estas estimativas dos médicos suecos sobre a confiança do público em geral nos serviços de saúde, devido a certas reformas em debate, como a legalização do SMA, tenham esta forma.

Se queremos levar a sério os argumentos da rampa escorregadia, eles devem conter estimativas razoáveis de eventos futuros com base em investigações empíricas cuidadosamente realizadas, ou pelo menos com boas razões teóricas pelas quais um certo desenvolvimento provavelmente ocorrerá. Caso contrário, existe um risco considerável de que a estimativa das consequências de uma determinada decisão ou ato seja apenas uma racionalização imbuída das próprias atitudes ou valores da pessoa.

 

Referências Björk, J., Lynöe, N., Juth, N. Empirical and philosophical analysis of physicians’ judgments of medical indications. Clinical Ethics. Accepted. Camporesi S, Boniolo G. Fearing a non-existing Minotaur? The ethical challenges of research on cytoplasmic hybrid embryos. Journal of Medical Ethics. 2008;34(11):821–825. doi: 10.1136/jme.2008.024877. den Hartogh, G. 2010. The Slippery Slope Argument. In A Companion to Bioethics, 321–332. Wiley-Blackwell. Helgesson G, Lindblad A, Thulesius H, Lynøe N. Reasoning about physician-assisted suicide: analysis of comments by physicians and the Swedish general public. Clinical Ethics. 2009;4:19–25. doi: 10.1258/ce.2008.008044. Juth N, Lynøe N. Do strong values influence estimations of future events? Journal of Medical Ethics. 2010;36(4):255–256. doi: 10.1136/jme.2009.033506. LaFollette H. Living on a slippery slope. Journal of Ethics. 2005;9(3–4):475–499. doi: 10.1007/s10892-005- 3517-x. Launis V. Human gene therapy and the slippery slope argument. Medicine, Health Care and Philosophy. 2002;5(2):169–179. doi: 10.1023/A:1016052122403. Launis V. Cosmetic neurology: Sliding down the slippery slope? Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics. 2010;19:218–229. doi: 10.1017/S096318010999048X. Lindblad A, Löfmark R, Lynøe N. Would physician-assisted suicide jeopardize trust in medical services? An empirical study of attitudes among the general public in Sweden. Scandinavian Journal of Public Health. 2009;37:260–264. doi: 10.1177/1403494808098918. Mishara BL, Weisstub DN. Premises and evidence in the rhetoric of assisted suicide and euthanasia. International Journal of Law and Psychiatry. 2013;36(5–6):427– 435. doi: 10.1016/j.ijlp.2013.09.003. Rietjens J, Rietjens AC, van der Maas PJ, et al. Two decades of research on Euthanasia from the Netherlands. What have we learnt and what questions Remain? Bioethical Inquiry. 2009;6:271–283. doi: 10.1007/s11673- 009-9172-3. Rydvall A, Juth N, Sandlund M, Lynøe N. Are physicians’ estimations of future events value-impregnated? Empirical study of double intentions when providing treatment that shorten a dying patient’s life. Medicine, Health Care and Philosophy. 2014;17(3):397–402. doi: 10.1007/s11019-014-9546-0. Svennerlind, C. 2009. Tillräknelighet i svensk rätt. (Accountability in Swedish Law.) In Tillräknelighet (Accountability). eds. Radovic, S., Anckarsäter, H., 51–106. Lund:Studentlitteratur. Shariff MJ. Assisted death and the slippery slopefinding clarity amid advocacy, convergence, and complexity. Current Oncology. 2012;19(3):143–154. doi: 10.3747/co.19.1095. Verhagen AA. The Groningen Protocol for newborn euthanasia; which way did the slippery slope tilt? Journal of Medical Ethics. 2013;39(5):293–295. doi: 10.1136/medethics-2013-101402.

22 agosto 2020

Nova Ética no lugar da antiga

 

Nova Ética no lugar da antiga
Peter Singer

Tradução espontânea, para partilha sem fins lucrativos, 
da primeira parte do Cap. 9, pp. 187-206 do livro

Rethinking Life and Death
S.t Martin’s Griffin, 1994

 Reescrever os mandamentos

  Como será a nova perspetiva ética? Escolhi cinco mandamentos da antiga ética que achamos serem falsos e mostrarei como eles precisam ser reescritos para uma nova abordagem ética da vida e da morte. Mas não quero que os cinco novos mandamentos sejam algo gravado na pedra. Na realidade, de modo algum aceito uma ética gravada na pedra. Pode haver melhores maneiras de remediar as fraquezas da ética tradicional. O título deste livro sugere uma atividade contínua: podemos repensar algo mais do que uma vez. O ponto é começar e fazê-lo com uma compreensão clara de quão fundamentado deve ser o nosso repensar.

Ver tradução completa AQUI

18 agosto 2020

Cair numa rampa escorregadia

 

Cair numa rampa escorregadia

Peter Singer

Tradução espontânea das pp. 150-156 do Cap. 7 do livro 

Rethinking Life and DeathS.t Martin’s Griffin, 1994

A objeção mais forte à legalização da eutanásia voluntária ou do suicídio medicamente ajudado é que, uma vez que comecemos a permitir que algumas pessoas matem outras, iremos escorregar numa rampa que levará a um certo tipo de assassinatos que ninguém quer. Podemos começar com controlos rígidos pensados para garantir que a eutanásia só se realize depois de um doente em situação insuportável a ter solicitado repetidamente, mas, argumenta-se, iremos gradualmente deslizar para a eutanásia em pessoas que não são capazes de a solicitar ou para pessoas que não estão a sofrer insuportavelmente, mas cuja continuidade de vida é um fardo para as suas famílias. Então, talvez, passemos à eutanásia mesmo naqueles que não a pediram, cujo tratamento consome recursos de saúde escassos que poderiam ser usados com mais eficácia noutro lugar. No final, dizem alguns opositores da legalização, chegaremos a um Estado que, como na Alemanha nazi, mata todos aqueles que considera indignos de viver.

O argumento da rampa escorregadia ajudou a persuadir o Supremo Tribunal do Canadá a decidir contra Sue Rodriguez. O juiz John Sopinka, que divulgou o veredicto da maioria, referiu que nos Países Baixos a ajuda que Sue Rodriguez estava a pedir não estaria sujeita a processo judicial. E acrescentou:

Os críticos da abordagem holandesa apresentam provas que sugerem que a eutanásia ativa involuntária (que não é permitida pelas diretrizes) está a ser praticada num grau cada vez maior. Esta tendência preocupante apoia a opinião de que um relaxamento da proibição absoluta nos leva a uma ‘rampa escorregadia’19.

São os Países Baixos um laboratório social que nos permite ver como a legalização da eutanásia voluntária nos levará a uma rampa escorregadia? O juiz Sopinka e a maioria do Supremo Tribunal do Canadá parecem pensar assim. Mas isso está certo? Qual é a prova de que a ‘eutanásia ativa involuntária’ está sendo praticada ‘em um grau cada vez maior’ nos Países Baixos? A primeira década de experiência com a eutanásia voluntária aberta numa nação moderna mostra alguma prova pela qual podemos avaliar a validade do argumento da rampa escorregadia?

Para responder a essa pergunta de uma forma que evite confusões, precisamos começar por ser específicos sobre os termos que usamos. Primeiro, o que o juiz Sopinka quis dizer com ‘eutanásia ativa involuntária’? Entre os bioeticistas, essa expressão raramente é usada visto que dizer que algo é involuntário sugere que é contrário à vontade da pessoa afetada, enquanto falar em eutanásia sugere que é uma boa morte para essa pessoa. É difícil ver como matar uma pessoa que quer continuar viva pode ser uma boa morte. Os bioeticistas geralmente referem-se à eutanásia como voluntária ou não-voluntária, usando a última expressão para referir a casos em que o doente é incapaz de expressar um desejo sobre a continuidade da vida – talvez por ser um bebé ou alguém com doença de Alzheimer avançada que não expressou nenhuma vontade antecipada sobre a eutanásia antes de deixar de ser capaz. Pode ser que o juiz Sopinka quisesse dizer ‘eutanásia ativa não-voluntária’ em vez de ‘eutanásia ativa involuntária’. Mas isso também seria ‘não permitido pelas diretrizes’. Em qualquer caso, vejamos quais são as provas de um aumento da quantidade de eutanásia não-voluntária ou involuntária nos Países Baixos.

Tanto os que acreditam que a experiência holandesa favorece o argumento da rampa escorregadia, como os que se opõe a essa opinião, extraem as suas provas do estudo realizado em 1990 para a comissão de inquérito nomeada pelo governo. Para avaliar o problema de forma adequada, precisamos examinar um pouco mais detalhadamente o que esse estudo encontrou ou não20.

O primeiro ponto importante a notar é que o estudo não estava preocupado apenas com a eutanásia voluntária e o suicídio ajudado. Os investigadores queriam pôr a eutanásia voluntária ativa no contexto de todas as decisões que os médicos sabiam poder antecipar a morte do doente. Isso inclui decisões de não-tratamento (não iniciar ou suspender tratamentos ou, por exemplo, não ressuscitar um doente cujo coração parou) e decisões de administrar medicamentos para alívio da dor e sintomas mas que os médicos sabem que podem fazer com que o doente morra mais rapidamente. Em nenhum outro país, além dos Países Baixos, essas decisões médicas foram investigadas com amplitude ou rigor comparável.

O estudo mostrou que a eutanásia ativa e o suicídio ajudado são muito menos comuns do que outras decisões médicas que sabidamente encurtam a vida ou têm o risco de encurtá-la. Um total de 48 700 mortes foram associadas a essas decisões médicas de ‘fim da vida’: 22 500 foram associadas a decisões de não iniciar ou suspender tratamentos e outras 22 500 com decisões para aliviar dor e sintomas dando medicamentos que o médico sabia que podem fazer com que os doentes morram mais rapidamente. Do restante, como já vimos, 2300 mortes foram resultado de eutanásia voluntária ativa e 400 foram suicídios medicamente ajudados. Em quase todas essas 2700 mortes, o doente estava em estado terminal, geralmente com algum tipo de cancro, e em três quartos das vezes foi estimado que o recurso a eutanásia ou a ajuda ao suicídio encurtou a vida em menos de quatro semanas. Houve cerca de três vezes mais pedidos de eutanásia ou ajuda ao suicídio do que mortes por essas causas, o que sugere que os médicos não estavam ansiosos para atender a essas solicitações e muitas vezes encontravam outras maneiras de prestar um nível aceitável de conforto.

As restantes 1000 mortes causaram a maior preocupação. Foram casos em que um médico forneceu, prescreveu ou administrou um medicamento com o propósito explícito de antecipar o fim da vida, mas sem uma solicitação explícita do doente. Embora esses 1000 casos representem apenas uma pequena fração – apenas 2% – de todas as mortes relacionadas com decisões médicas, os críticos da situação holandesa precipitaram-se sobre eles. Aqui estão, dizem eles, todas as provas de que precisamos: 1000 pessoas por ano são condenadas à morte sem o seu consentimento. Não é definitivamente uma ‘tendência preocupante’, como disse o senhor juiz Sopinka? Antes de chegarmos a essa conclusão, no entanto, há mais uns pontos a considerar. Os autores do estudo descrevem esses 1000 casos como ‘doentes que estavam perto da morte e claramente sofrendo gravemente’. O fármaco mais usado foi a morfina, sozinha ou em combinação com um sedativo. Em 600 casos, houve algum envolvimento do doente numa conversa sobre o fim da vida, embora ainda não tivesse atingido a fase de um pedido explícito. Em quase todos os casos em que não houve conversas, isso aconteceu porque o doente não estava capaz de as ter, geralmente por estar permanentemente inconsciente ou num estado de ‘consciência reduzida’. As exceções foram dois casos datados do início dos anos 1980, quando os médicos não se sentiam confortáveis a debater esses assuntos abertamente.

Assim, embora pareça haver uma quantidade limitada de eutanásias não-voluntárias praticadas nos Países Baixos em circunstâncias extremas, nenhum caso de ‘eutanásia involuntária’ veio à luz durante o período do estudo. Ninguém foi condenado à morte contra sua vontade. Em 71% dos casos, a decisão médica encurtou a vida em menos de uma semana e apenas um, dos 97 casos em que houve conversas nas entrevistas com os médicos, em mais de seis meses21.

Esses factos podem suavizar a nossa atitude quanto a haver 1000 casos em que os médicos terminaram ativamente a vida dos doentes sem os seus consentimentos explícitos. Mas mesmo se, em todos os casos em que um médico terminou a vida de um doente sem consentimento, pudéssemos aceitar que o médico estava justificado, não seria ainda verdade que isso violava as diretrizes aceites pelos tribunais? Isso não valida o argumento da rampa escorregadia ao mostrar que a eutanásia ativa não-voluntária está a ser praticada em grau crescente?

Aqui a resposta é muito clara: os números holandeses não podem mostrar uma ‘prática crescente’ de nada, porque para o mostrar que precisaríamos de números de dois ou mais anos diferentes, de preferência separados por um intervalo substancial. Não existem tais números. Os autores do estudo holandês estão, portanto, seguramente certos quando dizem, depois de discutir as tentativas de usar o seu estudo como base para o argumento da rampa escorregadia: ‘Concluímos que não há dados empíricos que possam apoiar o argumento da rampa escorregadia contra os holandeses’ 22.

Se não houver números que comparem a prática da eutanásia nos Países Baixos em épocas anteriores e posteriores, ainda podemos querer saber se os médicos holandeses acabam com a vida dos seus doentes sem um pedido explícito com mais frequência do que os médicos de outros países. De novo, contudo, não há realmente bases para dar uma resposta definitiva a esta pergunta. Lembremo-nos que as 1000 mortes em que os críticos se concentram são casos de doentes a morrer em condições de considerável sofrimento. O estudo holandês encontrou um número muito maior de casos, talvez até 8000, em que os médicos deram medicamentos mais para aliviar a dor ou os sintomas do que explicitamente para acabar com a vida, mas acelerar a morte fazia, apesar disso, parte do objetivo de administrar esses medicamentos. Dizer qual é o objetivo principal ou secundário de uma pessoa obviamente não é fácil nessas situações. (Como Kevorkian provou, quando persuadiu o júri – ou não? – de que tinha dado monóxido de carbono a Thomas Hyde, com sonda e uma máscara, para aliviar o seu sofrimento em vez de causar a morte.) Os médicos, em toda a parte, dão aos doentes que estão a morrer de doenças penosas grandes doses de morfina ou sedativos que podem encurtar as suas vidas. Fazem isso sabendo que, se a droga encurtar a vida do doente, será melhor para o doente do que continuar a sofrer. Se o Dr. Nigel Cox não tivesse sido suficientemente honesto ao registar no processo clínico o cloreto de potássio que deu a Lillian Boyes, ele nunca teria sido denunciado à polícia. Quando ele foi condenado, Ann Bastow, uma enfermeira, escreveu ao Times:

Tenho certeza de que todo o enfermeiro hospitalar experiente ajudará um médico a acabar com a vida de um doente em estado terminal, embora alguns não estejam dispostos a admitir isso. O Dr. Cox tornou-se um bode expiatório para pessoas como eu. A vergonha de tudo isso é que ele teve de ser julgado sozinho, representando milhares de médicos e enfermeiros atenciosos que cometeram exatamente o mesmo crime23.

Três estudos australianos demonstraram que a eutanásia voluntária ativa é relativamente comum naquele país, embora a lei a considere um assassinato. Num estudo com médicos em Victoria, quase metade dos que trataram doentes adultos com doenças incuráveis disseram que um doente lhes pediu que apressassem a sua morte, e 29% desses médicos disseram que haviam tomado medidas ativas para provocar a morte de um doente que o havia solicitado. Dos que o fizeram, 80% fizeram-no mais de uma vez. Um outro estudo com médicos em New South Wales deu resultados virtualmente idênticos. Um inquérito com enfermeiros australianos mostrou que 23% tiveram pedidos de um médico para se envolver numa ação que, direta e ativamente, acabaria com a vida de um doente, e 85% dos entrevistados fizeram-no. Mais de 80% fizeram-no mais de uma vez. Além disso, um pequeno número de enfermeiros – 5% – respeitou o pedido de um doente para pôr fim direto à sua vida, sem ter sido solicitado por um médico para o fazer24. Um estudo californiano com médicos de família mostrou um quadro bastante semelhante, com 23% dos médicos a fazê-lo a doentes que solicitaram que antecipasse a morte25. Com esses resultados, podemos apenas supor o quão comum é a eutanásia ativa não-voluntária na Austrália, nos EUA ou em qualquer outro país além dos Países Baixos. É mais comum nos Países Baixos do que em outros lugares? Não há razão para acreditar que seja, mas ninguém realmente sabe.

Há mais um ponto que precisa ser visto antes de deixarmos a situação holandesa e os seus críticos. Os críticos concentram- se invariavelmente nos 1000 casos em que os médicos deram fármacos com a intenção de acabar com a vida sem o consentimento explícito dos doentes. Não mencionam o número muito maior de casos em que os médicos não iniciaram ou suspenderam tratamentos que poderiam ter prolongado a vida, novamente sem o consentimento explícito do doente. Isso aconteceu em 70% dos casos de recusa ou suspensão do tratamento médico, totalizando 15 750 mortes. Em 88% desses casos, o doente não pôde ser consultado, restando 12%, ou seja 1890, em que o doente podia ser consultado mas não foi. O estudo holandês também nos diz que em quase metade do número total de casos de recusa ou suspensão de tratamentos médicos, isso foi feito com o propósito explícito de acelerar a morte. (Nos restantes, o médico ‘levou em consideração a probabilidade de o fim da vida ser antecipado’.)

Esses casos de interrupção de tratamentos também são uma parte normal da prática médica noutros países. Muitas vezes, são casos de encurtamento intencional da vida e podem acabar com a vida com a mesma certeza de dar cloreto de potássio (quando o tubo de alimentação de Tony Bland foi retirado, a sua morte era tão certa, e não menos intencional, como qualquer morte que ocorra como resultado de uma decisão médica nos Países Baixos.) Há algumas provas que sugerem que a morte após a suspensão de tratamentos é uma ocorrência comum. Já vimos isso no caso de recém-nascidos com deficiência grave. Provavelmente, é mais comum ainda em idosos. Um estudo americano sobre mortes em lares descobriu que 190 doentes tiveram febre, mas 81 deles não receberam tratamento específico para isso. Quarenta e oito desses doentes a quem o tratamento foi suspenso, morreram26.

Se não queremos que os médicos antecipem a morte dos seus doentes sem um pedido explícito, por que não nos preocupamos tanto quando isso acontece em resultado da suspensão de tratamentos como quando resulta de uma injeção? Muito possivelmente, permitir a eutanásia voluntária ativa na verdade reduz o número de doentes que os médicos permitem que morram ao suspenderem tratamentos sem o seu pedido explícito. A remoção da proibição legal e do tabu social da eutanásia voluntária ativa tem contribuído para uma atmosfera muito mais aberta sobre essas questões. Portanto, parece plausível que nos Países Baixos haja menos decisões de encurtamento de vida tomadas por médicos sem o consentimento dos seus doentes do que em outros lugares. Não sabemos se este é o caso, tudo o que podemos dizer com confiança é que não há provas em contrário.

Referências
19 Sue Rodriguez vs. The Attorney General of Canada and the Attorney General of British Columbia, Canada Supreme Court Reports, Part 4, 1993, vol. 3, p. 603.
20 In addition to the government-instigated study carried out by P.J. van der Maas and colleagues, I shall also draw for additional information on a study by G. van der Wal, ‘Euthanasie en hulp bij zelfodling door huisartsen’ [Euthanasia and assisted suicide performed by general practitioner], Rotterdam 1992; of which some findings are given in English in Euthanasia in the Netherlands: The State of the Debate, Royal Dutch Medical Association, Utrecht, February 1993. In what follows I have been much assisted by Helga Kuhse, ‘Voluntary Euthanasia and Public Policy: Some Important Distinctions and What We Can Learn From the Netherlands Experience’, a paper presented at a conference organised by the Centre for Human Bioethics, Monash University, 15 November 1993. See also Margaret Battin, ‘Voluntary Euthanasia and the Risks of Abuse: Can We Learn Anything from the Netherlands?’, Law, Medicine and Health Care, vol. 20, n.os 1 and 2, Spring-Summer 1992, pp. 133-43.
21 On this topic, in addition to Euthanasia and Other Medical Decisions Concerning the End of Life, pp. 66-7, see J.J. M van Delden, Loes Pijnenborg and Paul J. van der Maas, ‘The Remmelink Study: Two Years Late’, Hastings Center Report, vol. 23, no. 26, November- December 1993, p. 24. See also Loes Pijnenborg et al. ‘Life-Terminating Acts without Explicit Request of the Patient’, Lancet, vol. 341, 1993, pp. 1196-9.
22 ‘The Remmelink Study: Two Years Later’, p. 26.
23 Times 23 September 1992.
24 The studies are, in the order cited: Helga Kuhse and Peter Singer, ‘Doctors’ practices and attitudes regarding voluntary euthanasia’, Medical Journal of Australia, vol. 148, 1988, pp. 623-7; Peter Baume and Emma O’Malley, ‘Euthanasia: attitudes and practices of medical practitioners’, Medical Journal of Australia, vol. 161, 18 July 1994, pp. 137-64; Helga Kuhse and Peter Singer, ‘Voluntary euthanasia and the nurse: an Australian survey’, International Journal of Nursing Studies, vol. 30, no. 4, 1993, pp. 311-22.
25 Survey of California Physicians Regarding Voluntary Euthanasia for the Terminally Ill, National Hemlock Society, Los Angeles, 1988.
26 N. K. Brown and D. J. Thompson, ‘Nontreatment of fever in extended-care facilities’, New England Journal of Medicine, vol 300, 1979, pp. 1246-50; cited in Euthanasia and Other Medical Decisions Concerning the End of Life, p. 184.

Falácia da Rampa Escorregadia


Falácia da Rampa Escorregadia

tradução da entrada «slippery slope fallacy». in The Skeptic's Dictionary

A falácia da rampa escorregadia ocorre quando alguém afirma, sem apresentar qualquer prova que sustente essa afirmação, que um acontecimento, ou cadeia de acontecimentos, se seguirá à decisão de fazer algo com que não concorda. A falácia da rampa escorregadia é uma espécie de ‘petição de princípios’ [ou argumento circular – um tipo de falácia que consiste em justificar a conclusão que está a ser defendida usando a própria conclusão, com palavras um pouco diferentes]: o arguente assume que o acontecimento, ou cadeia de acontecimentos, vai ocorrer mas não mostra provas disso.

Esta falácia está habitualmente associada a um argumentum in terrorem. Quanto mais horrível for o acontecimento, ou cadeia de acontecimentos, descrito maior será a possibilidade de que essa falácia seja aceite por mentes acríticas.

O argumento da rampa escorregadia é vulgar em política quando se combate uma proposta de lei.

Por exemplo:

1. Aí estão eles! Os reguladores querem controlar as nossas vidas. Hoje, são os cigarros. Amanhã, será o nosso direito a falar livremente? O nosso direito a ler o que queremos? Onde vai isto parar? No final, os reguladores vão controlar tudo. Não haverá mais liberdade. Por isso, vote NÃO à proposta xis. Não os podemos hoje deixar regular o fumar pois eles voltarão amanhã e amanhã e amanhã…

2. O antigo senador da Califórnia John Briggs argumentou assim a propósito de uma iniciativa legislativa que proibiria os homossexuais de ensinarem nas escolas públicas do Estado: “Se a iniciativa for derrotada, então todos esses [homossexuais] serão convidados a sair do armário e a assumirem-se, portanto o que fizemos foi colocar perante os nossos filhos modelos legitimados para serem imitados. E eu acho que isso apenas pressagia um período de decadência moral neste país, o qual vai levar à concretização da profecia do general MacArthur quando afirmou que nenhuma civilização jamais sobreviveu quando caiu num período de declínio económico e de decadência moral. Certamente estamos em ambos esses períodos agora… O impulso do movimento de liberação gay é fazer com que os homens rejeitem as mulheres preferindo outro homem e as mulheres rejeitem os homens preferindo uma mulher. Bem, se prosseguirmos nisso até a sua conclusão lógica, e como cada grupo deseja se multiplicar, iremos desaparecer como país por muito tempo.”

Outros exemplos incluem o que os Democratas argumentam – os idosos serão abandonados se o Medicare for privatizado e os trabalhadores irão à falência na aposentação se puderem controlar seus próprios planos, pelo que a Segurança Social deve expandir-se e fazer investimentos em seu nome. E Sara Palin, como é sabido, opôs-se ao Obamacare porque isso levaria a fazer painéis da morte. 

20 maio 2020

Negar Ventiladores a Doentes com Covid-19 com DNR prévio não é Ético

Negar Ventiladores a Doentes com Covid-19 com DNR prévio não é Ético

Valerie Gutmann Koch (1), Susie A. Han (2)

Tradução espontânea para distribuição sem fins lucrativos do artigo original Denying Ventilators to Covid-19 Patients with Prior DNR Orders is Unethical, The Hastings Centre, 21.04.2020

Ao decidir quais os doentes com Covid-19 que devem receber ventiladores escassos, os hospitais devem ter em conta a DNR [do not resuscitate = decisão ou ordem de não ressuscitar] de uma pessoa – o desejo declarado anteriormente [NT: Entre nós, a ordem de não ressuscitar, desde que justificada por critérios clínicos válidos e sólidos, pode ser assumida pela equipa médica no contexto de evitar encarniçamento terapêutico. Neste texto, contudo, fala-se de DNR no contexto de uma decisão do próprio doente em diretivas antecipadas de vontade] de não ter uma ressuscitação cardiopulmonar (RCP) que reinicie os batimentos do coração e a respiração após uma paragem cardíaca? Isso parece irrelevante para a atribuição de um ventilador embora algumas diretrizes (existentes e propostas) para a triagem, durante uma emergência de saúde, ponham a DNR na lista de critérios para excluir doentes de receberem ventiladores ou outros cuidados de saúde que salvam vidas. Essa abordagem contraria diretamente o objetivo geralmente aceite de maximizar o número de sobreviventes e pode resultar em confusão e desconfiança pública no sistema de saúde.

Os diversos Estados em todo o país (EUA) estão a trabalhar energicamente para responder à pandemia da Covid-19, incluindo a elaboração de protocolos para alocação de ventiladores. Embora esses protocolos variem em termos de considerações clínicas e princípios éticos em que se baseiam, geralmente todos concordam em que o objetivo é salvar o máximo de vidas possível. Significativamente, a maioria dos protocolos estaduais enfatiza apenas a dependência de fatores clínicos para avaliar a probabilidade de sobrevida dos doentes.

Muitos desses planos coincidem num processo de três passos para a alocação de recursos: aplicação de critérios de exclusão, avaliação do risco de mortalidade e avaliações clínicas periódicas. Embora alguns planos propostos eliminem o passo 1, a maioria aplica critérios de exclusão para identificar doentes com alto risco de mortalidade, mesmo com tratamentos ventilatórios, para dar prioridade aos doentes com maior probabilidade de sobreviver.

Por exemplo, em 2015, o Grupo de Ação para a Vida e a Lei do Estado de Nova York emitiu Diretrizes de Alocação de Ventiladores para as instituições de saúde usarem numa pandemia de influenza se a procura de ventiladores exceder a oferta. Essas diretrizes mostraram claramente que a definição de sobrevivência “se baseia na probabilidade de sobrevivência a curto prazo de um episódio médico agudo e não se concentra em saber se o doente pode sobreviver a uma determinada doença a longo prazo (por exemplo, número de anos depois da pandemia)”. Ao elaborar e divulgar as diretrizes, o grupo de ação, os grupos de trabalho clínicos que desenvolveram o protocolo clínico para adultos e o Departamento de Saúde do Estado de Nova York consideraram – e rejeitaram por unanimidade – a inclusão de uma DNR na lista de critérios de exclusão.

Ao contrário, ao consultar decisores políticos que estão a elaborar protocolos de alocação de ventiladores específicos para a pandemia da Covid-19, vemos que algumas propostas consideram a inclusão da DNR previamente declarada por um doente como um critério de exclusão. Além disso, alguns planos regionais de triagem (por exemplo, North Texas Mass Critical Care Task Force e South Dakota Healthcare Community) incluem a DNR como critério para excluir doentes da admissão ou transferência do hospital. Mas excluir doentes com base na sua DNR está diretamente contra o objetivo geralmente aceite de maximizar o número de sobreviventes e pode resultar em confusão e desconfiança do público – agora e no futuro.

Numa instituição que enfrenta escassez de ventiladores, um doente cujo registo médico possui uma ordem de DNR veria negado o acesso à tratamentos por ventilador após a admissão num centro de tratamento de agudos, mesmo que a sua probabilidade de sobrevivência seja alta. Consideremos o exemplo hipotético de um doente que solicitou um pedido de DNR há vários anos [NT: Entre nós, uma diretiva antecipada de vontade, inclua ou não uma DNR, tem um prazo de 5 anos de validade e só pode ser usada se o subscritor estiver incapaz de decidir], antes de fazer uma cirurgia cardíaca de emergência, porque não queria realizar a RCP se algo desse errado. Recuperou totalmente dessa cirurgia, mas agora é internado no hospital devido a sintomas da Covid-19. Como o seu registo médico inclui a ordem DNR (da qual nem se lembra), ele não seria elegível para tratamentos com ventilador, mesmo que não tivesse comorbidades e as suas probabilidades de sobreviver com ventilador fossem altas.

Não nos opomos à decisão de os doentes recusarem cuidados com ventiladores e/ou de serem declarados DNR na admissão para a Covid-19. Nem objetamos, se clinicamente necessário, o estatuto geral da DNR para doentes Covid-19, se for implementado de maneira consistente e transparente. Contudo, excluir doentes com DNR conhecido de serem considerados para receber cuidados com ventilador é inerentemente problemático. Essa ordem é apenas uma decisão sobre a RCP e não se relaciona com nenhum outro tratamento. Os pedidos de DNR não são uma avaliação individual ou profissional da probabilidade de sobrevivência de um doente; em vez disso, refletem as preferências de tratamento médico do doente no contexto específico de uma decisão de aceitar a RCP.

Assim, a decisão de um doente sobre a sua DNR não é necessariamente indicativa do que escolheria quanto ao acesso a um ventilador ou a outros cuidados potencialmente salvadores de vidas e, portanto, não se constitui como uma representação confiável para a tomada de decisão autónoma de uma pessoa com Covid-19. E certamente não é indicativa da mortalidade imediata ou quase imediata dos tratamentos agressivos.

Além disso, se o foco principal hoje é, com razão, gerir a pandemia da Covid-19, negar aos doentes com vírus o acesso a tratamentos por ventilação com base apenas numa ordem DNR anterior teria enormes implicações para a tomada de decisões dos doentes no futuro e poderia minar muito a confiança do público nos seus médicos e nas instituições de saúde. Os doentes geralmente hesitam em concordar com a DNR por medo de não receberem tratamento benéfico. E existe alguma justificação para esse medo. Um estudo feito por médicos e internos mostrou que muitos pensavam que os pedidos de DNR podem ou devem ser “aplicados a uma ampla variedade de outros tratamentos” – dissuadindo, assim, os doentes e/ou seus decisores de aceitarem ordens DNR que estejam indicadas médica e/ou pessoalmente. Se os planos de alocação da Covid-19 considerarem as DNR declaradas antecipadamente um motivo para negar um ventilador a um doente, mais pessoas provavelmente se recusariam a subscrever um pedido de DNR e exigiriam o ‘façam tudo’ em qualquer circunstância – mesmo quando não for medicamente indicado – devido a receios de que mais tarde lhes fosse negado um ventilador (ou qualquer outra intervenção que lhes salve a vida).

As Diretrizes de Nova York de 2015 representam o culminar de mais de nove anos de análise, investigação e construção de consensos sobre os princípios éticos e as diretrizes de alocação de ventilador clínico. A flexibilidade deve ser incorporada nos planos de alocação de recursos escassos para permitir que os Estados, instituições e prestadores de serviços de saúde se ajustem às variadas informações clínicas. Embora louvemos qualquer iniciativa para dar orientação clara e sucinta aos prestadores de cuidados de saúde e instituições que estão confrontadas com decisões quase impossíveis de alocação de recursos, a inclusão da DNR previamente declarada como critério de exclusão nos planos de atribuição de ventiladores minará a confiança no sistema que deveria proteger a saúde da população durante esta emergência de saúde pública. ◼

Comentário Stephen P. Wood em 22 de abril de 2020 - 9:05

Esta é uma discussão importante e, concordo, decisões sobre o acesso a ventiladores são importantes e complexas. Penso que esta discussão destaca aspetos importantes desta questão, mas simplifica demais o termo DNR. O termo DNR refere-se a, no cenário de uma paragem cardíaca súbita, saber se um doente quereria ou não ter um dos vários tratamentos como intubação, ventilação mecânica, compressões torácicas e medicamentos de ressuscitação. No entanto, isso não indica que os prestadores não recorram a outras intervenções para salvar vidas, quando indicado. Embora o termo DNR seja comummente usado, geralmente refere-se a um conjunto mais amplo de declarações, mais apropriadamente denominadas diretivas antecipadas de vontade. Por exemplo, em Massachusetts, o formulário MOLST [Medical Orders for Life-Sustaining Treatment] descreve exatamente quais os procedimentos que um doente desejaria ou não. Isso inclui intubação, ventilação invasiva e não invasiva, bem como nutrição artificial e diálise. A maioria dos profissionais usaria uma DNR como ponto de partida para discussões sobre o que o doente desejaria ou não antes da necessidade de ressuscitação cardiopulmonar. Especialmente em doentes com pneumonia grave do Covid-19, é importante determinar a extensão da diretiva avançada, pois muitos doentes não só necessitam de ventilação mecânica, como também de hemodiálise, colocação da linha central e outros procedimentos invasivos. A decisão de intubar e ventilar um doente é complexa e envolve o estado do doente, comorbidades, qualidade de vida e resultado potencial. Embora a prática do prestador possa ser de considerar, vários sistemas de pontuação também estão disponíveis para avaliar possíveis resultados. A linguagem é importante, e dada a escassez potencial de recursos como ventiladores, camas de Unidades de Cuidados Intensivos e equipa para os gerir, é importante abordar essas questões com antecedência. O termo DNR é ambíguo e pode ser confuso para o público leigo. É imperativo usar o termo diretiva antecipada e ajudar o público leigo a entender o que isso implica, pois enfrentamos esta crise e outras que se podem seguir. Este artigo é importante, levanta alguns pontos excelentes e questões éticas, bem como a importância da linguagem. Obrigado.

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(1) Foi advogada sénior e consultora especial do New York State Task Force on Life and the Law e atualmente é diretora de lei e ética no MacLean Center for Clinical Medical Ethics da Universidade de Chicago e bolseira no DePaul University College of Law.
(2) Foi diretora adjunta do New York State Task Force on Life and the Law e presidente do projeto Ventilator Allocation Guidelines e atualmente é membro da Venture Catalyst.