30 dezembro 2015

A Saúde em tempo de crise

A saúde em tempo de crise (um diálogo do autor consigo mesmo)

in Sobre Saúde, pp. 191-6, ed. APASD, Universidade Fernando Pessoa (2015)

 E ele virou-se para mim e disse-me assim:

– Afinal o racionamento e ou não é justo?

– Sabes, todas as perguntas podem ter várias respostas.

– Dependem do contexto, claro.

– Não te esqueças que quem quer polemizar costuma usar apenas uma face ou um aspeto da questão e, focando-se só nisso, tenta argumentar escamoteando outras perspetivas. Todas as questões podem ser analisadas de vários ângulos.

– No “caso do racionamento” trata-se, essencialmente, de saber, havendo poucos recursos, como se deve fazer para que o acesso a cuidados de saúde respeite o princípio da justiça.

– O problema é um pouco mais vasto e pode ser visto respondendo a seguinte pergunta: sendo a saúde das pessoas um bem que importa promover e os cuidados de saúde prestados (e/ou pagos) pelo Estado de acordo com as necessidades dos cidadãos, como garantir que todos tem acesso aos melhores cuidados se não há verba para os custear?

– Está bem, mas o princípio da justiça diz isso mesmo (Beauchamp, TL and Childress, JF. Principles of Biomedical Ethics. 4th ed, Oxford University Press, 1994): se os recursos são limitados (e são-no sempre), podem/devem adotar-se medidas cuja aplicação não discrimine com base em condicionalismos que não dependem da vontade das pessoas.

– A que te referes?

– É injusto que certos cuidados de saúde dispendiosos só sejam prestados a pessoas que tem maior capacidade económica, por exemplo. É insustentável que se faca depender a comparticipação estatal nos custos de certos fármacos da etnia do doente, da sua idade ou mesmo da área da sua residência. É uma questão de equidade. (Daniels, N. Equity and population health – Toward a broader Bioethics Agenda. Hastings Center Report 36, 2006 Jul-Aug: 22-35)

– Esses exemplos parecem óbvios, sobretudo nos tempos atuais e numa sociedade democrática. Deixa-me usar outro exemplo. É justo que se gastem avultadas verbas no tratamento de pessoas que não zelam pela sua própria saúde, causando dificuldades orçamentais a outros programas destinados, por exemplo, a vítimas de epidemias ou catástrofes naturais?

– Compreendo que essa é uma questão de difícil resposta, mas, do modo como a apresentas, parece que estás a sugerir que pode justificar-se um Estado policial que, antes de tratar quem precisa, classifica o doente de acordo com o grau de culpa pelas suas doenças. Seria um Estado moralista, higiénico e até eugénico com consequências que podemos antever perigosas e, portanto, injustas à partida.

– Mas se não há dinheiro...

– Se não há dinheiro, o que importa é encontrar um sistema que assegure que as decisões, pois tem de haver decisões por mais difíceis ou impopulares, sejam as mais justas que é possível.

– Lá vem a conversa da transparência…

– Absolutamente. Essa é uma condição prévia essencial. As decisões que aparecem do nada são, naturalmente, suspeitas, mesmo que sejam boas. O simples facto de ser pública a identidade de quem decide, bem como as razões por que assim se decide, condiciona positivamente a qualidade da decisão. Mas não basta que o processo de decisão seja transparente…

– Pois, pode haver malvadez transparente e não deixa de ser malvadez…

– É. A outra condição que ajuda a que se tomem medidas justas é a existência de regras previamente conhecidas e que seja possível verificar se foram seguidas.

– Referes-te ao oposto da arbitrariedade?

– Exatamente. Quando um decisor, quer a título individual ou quer o consideremos como uma entidade (como por exemplo uma comissão de farmácia hospitalar), opta por um ou por outro fármaco que é necessário disponibilizar na sua instituição, é forçoso que o faça de acordo com normativos estabelecidos, legitimamente aprovados e consensualmente aceites. E o primado da publicidade e da previsibilidade. Há de ser assim que devem fixar-se as prioridades, os critérios de admissão a certos tratamentos. E que, sendo conhecidos e fundamentados, não estão feridos de caráter discriminatório – se estiverem estabelecidos quais os critérios clínicos para as listas de espera de transplantes, por exemplo, todos compreenderão que não é só a data de inscrição que conta. Ou, noutro exemplo, não há óbice ético considerar-se que, para colocação de pontes coronárias, os não fumadores tenham prioridade quando haja igualdade de outras circunstâncias.

– Então, se há normas, não são precisas comissões – apliquem-se as normas…

– Não te esqueças que as normas, por mais perfeitas que sejam, nunca preveem todas as situações e há sempre escolhas a fazer. Não há só branco e preto, como se costuma dizer. E ainda bem que é assim. Aliás, as normas, que são adotadas em abstrato para serem aplicadas em concreto, devem/deveriam ter sempre uma cláusula que permita que, desde que devidamente fundamentadas, possa haver exceções.

– Mas isso está a um passo da arbitrariedade.

– Não, arbitrárias são as decisões que se tomam sem explicações. Falamos de razoabilidade (Mitton, CR et al. Centralized drug review processes: Are they fair? Soc Sci Med. 2006, Jul;63(1):200-11) ou de bom senso, se quiseres.

– E não temes que se abuse do recurso a exceção?

– Pode acontecer, mas chamo a tua atenção para uma outra condição-base para que o princípio da justiça seja respeitado. Refiro-me a responsabilidade.

– Responsabilidade? Não estou a perceber. Ouço frequentemente que uma coisa boa e a preservar é os juízes serem irresponsáveis quando decidem.

– Não confundas! Claro que todos os juízes tem de ter toda a liberdade para decidir, em sua consciência, o teor das sentenças proferidas e não podem ser responsabilizados pelas consequências das suas condenações ou absolvições. Embora, claro, se possam enganar e haja o direito de recurso. A responsabilidade a que me estava a referir não é do mesmo tipo, pois, quando alguém decide, a título de exceção, sobre um tratamento que custa milhares de euros por mês para ser usado numa determinada situação clínica (Bach, PB et al. In Cancer Care, Cost Matters. The New York Times, 2012, Out) mas, afinal, há um consenso científico que considera haver uma opção francamente mais barata e igualmente eficaz, o responsável por essa decisão tem de prestar contas.

Accountability – e o que queres dizer?

– É isso, mas a palavra portuguesa é também responsabilidade. Os defensores da independência técnica dos prestadores, que é uma coisa boa em si mesma, não o podem/não o devem fazer, esquecendo a correspondente responsabilidade.

– Estás a dizer que um médico que invoca uma exceção e fundamenta mal a decisão deve ser punido?

– Não excluo essa hipótese mas não te esqueças que o mesmo se aplica também a quem redija as tais normas orientadoras. Todos temos de responder pelas nossas decisões. Por outro lado, as punições em sede de apuramento de responsabilidade disciplinar profissional tem muitas cambiantes. Desde logo pode nem haver processos disciplinares para falarmos em prestação de contas – é o caso das chamadas de atenção próprias das hierarquias técnicas.

– Essas regras ou normas de que falas são muitas vezes consideradas limitadoras da liberdade técnica. Há quem receie que juízes, inspetores ou instrutores de processos de averiguações, ou mesmo jornalistas, considerem sempre que é errado tudo que não esteja contemplado nas normas, contribuindo assim para que os prescritores se tornem acríticos e as apliquem cegamente.

– É por essas e outras que se costuma dizer que isto não é fácil. Quem escolheu ser profissional de saúde – médico, enfermeiro, psicólogo ou qualquer outro – pensando que não tinha de, constantemente e para o resto das suas vidas, estar sempre a tomar decisões difíceis enganou-se.

– Esta conversa está interessante mas ainda não te referiste abertamente ao polémico Parecer n.º 64 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida que dizem que aprova o racionamento em saúde. (Parecer sobre um modelo de deliberação para financiamento do custo dos medicamentos, Parecer n.º 64/CNECV/2012)

– Esse Parecer foi, de facto, centro de uma polémica acesa mas felizmente, como sempre, as coisas acalmaram e, fora do “barulho das luzes”, começa a emergir racionalidade onde ela faltou. O que o Parecer apontou foi um modelo de apoio a decisões justas em matéria de escolhas difíceis.

– Mas não era sobre as compras de medicamentos inovadores em oncologia e outras doenças crónicas?

– Era mas não foi. Tudo começou com um pedido do Ministro da Saude (o CNECV é um órgão criado exatamente para responder a perguntas dos órgãos de soberania). Sabia-se que 14 hospitais públicos tinham decidido juntar esforços para reduzir custos na compra de certos medicamentos e que acordaram numa lista que passaria a conter os únicos medicamentos que os respetivos conselhos de administração admitiam poderem ser prescritos nas suas instituições.

– A pergunta do Ministro da Saude era para saber se essa decisão estava eticamente sustentada já que acreditava que favorecia a sustentabilidade económica do Serviço Nacional de Saúde.

– Exatamente. Contudo, o CNECV não conseguiu em tempo útil conhecer os fundamentos das escolhas terapêuticas adotadas pelos 14 hospitais. Decidiu, em alternativa a uma apreciação desses fundamentos, redigir uma proposta de modelo ético para a decisão. Considerou que, a ser seguido o modelo proposto, se garantia a justiça das medidas. Considerou, na sua perspetiva, que as administrações hospitalares, no exercício dos seus poderes de gestão, podiam/deviam fazer escolhas responsáveis desde que fossem transparentes, baseadas em pareceres técnicos conhecidos e publicitados, elaborados por pessoas conhecidas e sem conflitos de interesse. Tais escolhas deveriam, em última análise, incidir sobre os “mais baratos dos melhores” fármacos em presença no mercado e não sobre os “melhores dos mais baratos”.

– Esse modelo recebeu elogios de gestores hospitalares, não foi?

– Foi. Ao contrário dos mais altos responsáveis da Ordem dos Médicos, os gestores hospitalares que se pronunciaram consideraram que a proposta do CNECV deveria ser seguida.

– Tanto quanto me lembro, a Ordem dos Médicos não só contestou o modelo, como o considerou perverso, de tal modo que ainda se falou em averiguar se os membros médicos do CNECV deveriam ser alvo de procedimento disciplinar para que respondessem pelas suas opiniões. (Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos, Nota informativa do CNE sobre o parecer 64/2012 do CNECV. Revista da Ordem dos Médicos, 2012 Out; 134: 57-58 // Silva, JM. A ética teoriza-se, mas também se deve praticar! Revista da Ordem do Médicos, 2013 Jan-Fev;137:6-9)

– O CNECV reagiu a essas apreciações mas efetivamente não alcançou o mesmo impacto publico que os seus críticos. As ameaças de perseguição por delito de opinião acabaram esquecidas e os argumentos ficaram com quem os enunciou.

– Mas o Parecer defendia o racionamento?

– Quem o ler com isenção e livre de julgamentos preconceituosos verá que não trata de defender o racionamento. A referência a esse termo vem a propósito de se considerar que o racionamento, se tiver de ocorrer, deve ser explicito e não implícito. Explicito e “transparente, em diálogo com os cidadãos que devem ser informados (porque nada substitui a participação democrática), que mantenha intacta a confiança dos doentes nos profissionais de saúde e no SNS e maximize a responsabilidade dos decisores”. A tónica do Parecer é contra o “racionamento” no sentido aviltante de sistema de distribuição de recursos que afeta a todos independentemente das suas condições. Tudo no Parecer é a favor de um sistema racional, adaptativo, fundamentado técnica e cientificamente e… transparente (Tilburt, JC and Cassel, CK. Why the ethics of parsimonious medicine is not the ethics of rationing. JAMA. 2013 Jun 5;309(21):2212).

– Se os gestores apoiaram o modelo, quer dizerem que o aplicam?

– Não estou certo disso. Na verdade, quando, meses depois de aprovado o Parecer, se leram os critérios que os 14 hospitais assinaram, a desapontamento foi grande. Não tinham fundamento técnico ou científico conhecido ou publicitado, não se conheciam os seus autores ou interesses, não se compreendia por que se escolheram certos fármacos e não outros, a não ser com base no preço.

– Então, para ver se compreendo, nos hospitais públicos o melhor tratamento é o que é posto a disposição de quem dele necessita? As restrições orçamentais levam a que alguns não sejam tratados como deveriam ser? Havendo limitações, as escolhas que se fazem tem sustentação ética? Há equidade face à idade, local de residência, condição patológica?

– Não sei responder. Como no início deste diálogo imaginário, dir-te-ei que todas as perguntas podem ter várias respostas.

– E não podes tentar dar algumas?

– Estou certo de que, de vários modos e por várias razoes, haverá quem sofra na pele, melhor dizendo, na sua saúde, as consequências da crise. Por mais que queiramos que isso não aconteça, muitas pessoas acabam por não se tratar devidamente em consequência das dificuldades económicas que elas próprias e as instituições atravessam. Admito que algumas instituições de saúde não conseguem já dispor de meios suficientes para atender adequadamente a todas as necessidades e daí só podem resultar iniquidades. Acredito, quero acreditar, que algumas decisões, apesar de opacas, são as melhores mas este “sentimento” não serve para as isentar da tal transparência, antes pelo contrário. Entendo que um órgão consultivo como o CNECV não pode transformar-se num fiscal de boas práticas já que lhe esta cometida “apenas” a função de dar opiniões. Contudo, não poderá deixar de as dar mesmo que não lhas peçam ou nem sempre sejam seguidas ou bem interpretadas. Nesta dinâmica multifatorial, em que tantas decisões se interinfluenciam, não podemos esperar que todos compreendam todos. Apesar disso, podemos esperar que todos procurem compreender todos. Seja como for, convenhamos, há muito a fazer para alcançar melhorias no desempenho tanto das instituições como dos profissionais individualmente considerados, quando falamos do real respeito pela dignidade da pessoa doente e vulnerável. E, por maioria de razão, tudo isto é especialmente importante em tempos de crise económica e social com a dimensão da que estamos a viver em Portugal.