A saúde em tempo de crise (um diálogo do autor consigo mesmo)
in Sobre Saúde, pp. 191-6, ed. APASD, Universidade Fernando Pessoa (2015)
– Afinal o racionamento e ou não é justo?
– Sabes, todas as perguntas podem ter várias respostas.
– Dependem do contexto, claro.
– Não te esqueças que quem quer polemizar costuma usar
apenas uma face ou um aspeto da questão e, focando-se só nisso, tenta
argumentar escamoteando outras perspetivas. Todas as questões podem ser analisadas
de vários ângulos.
– No “caso do racionamento” trata-se, essencialmente, de
saber, havendo poucos recursos, como se deve fazer para que o acesso a cuidados
de saúde respeite o princípio da justiça.
– O problema é um pouco mais vasto e pode ser visto
respondendo a seguinte pergunta: sendo a saúde das pessoas um bem que importa
promover e os cuidados de saúde prestados (e/ou pagos) pelo Estado de acordo
com as necessidades dos cidadãos, como garantir que todos tem acesso aos
melhores cuidados se não há verba para os custear?
– Está bem, mas o princípio da justiça diz isso mesmo (Beauchamp,
TL and Childress, JF. Principles
of Biomedical Ethics. 4th ed, Oxford University Press, 1994): se os recursos são limitados (e são-no
sempre), podem/devem adotar-se medidas cuja aplicação não discrimine com base em
condicionalismos que não dependem da vontade das pessoas.
– A que te referes?
– É injusto que certos cuidados de saúde dispendiosos só
sejam prestados a pessoas que tem maior capacidade económica, por exemplo. É insustentável
que se faca depender a comparticipação estatal nos custos de certos fármacos da
etnia do doente, da sua idade ou mesmo da área da sua residência. É uma questão de equidade. (Daniels, N. Equity and population
health – Toward a broader Bioethics Agenda. Hastings Center Report 36, 2006 Jul-Aug:
22-35)
– Esses exemplos parecem óbvios, sobretudo nos tempos
atuais e numa sociedade democrática. Deixa-me usar outro exemplo. É justo que
se gastem avultadas verbas no tratamento de pessoas que não zelam pela sua própria
saúde, causando dificuldades orçamentais a outros programas destinados, por
exemplo, a vítimas de epidemias ou catástrofes naturais?
– Compreendo que essa é uma questão de difícil resposta,
mas, do modo como a apresentas, parece que estás a sugerir que pode
justificar-se um Estado policial que, antes de tratar quem precisa, classifica
o doente de acordo com o grau de culpa pelas suas doenças. Seria um Estado
moralista, higiénico e até eugénico com consequências que podemos antever
perigosas e, portanto, injustas à partida.
– Mas se não há dinheiro...
– Se não há dinheiro, o que importa é encontrar um
sistema que assegure que as decisões, pois tem de haver decisões por mais difíceis
ou impopulares, sejam as mais justas que é possível.
– Lá vem a conversa da transparência…
– Absolutamente. Essa é uma condição prévia essencial. As
decisões que aparecem do nada são, naturalmente, suspeitas, mesmo que sejam
boas. O simples facto de ser pública a identidade de quem decide, bem como as
razões por que assim se decide, condiciona positivamente a qualidade da decisão.
Mas não basta que o processo de decisão seja transparente…
– Pois, pode haver malvadez transparente e não deixa de
ser malvadez…
– É. A outra condição que ajuda a que se tomem medidas
justas é a existência de regras previamente conhecidas e que seja possível
verificar se foram seguidas.
– Referes-te ao oposto da arbitrariedade?
– Exatamente. Quando um decisor, quer a título individual
ou quer o consideremos como uma entidade (como por exemplo uma comissão de farmácia
hospitalar), opta por um ou por outro fármaco que é necessário disponibilizar
na sua instituição, é forçoso que o faça de acordo com normativos
estabelecidos, legitimamente aprovados e consensualmente aceites. E o primado
da publicidade e da previsibilidade. Há de ser assim que devem fixar-se as
prioridades, os critérios de admissão a certos tratamentos. E que, sendo conhecidos
e fundamentados, não estão feridos de caráter discriminatório – se estiverem
estabelecidos quais os critérios clínicos para as listas de espera de
transplantes, por exemplo, todos compreenderão que não é só a data de inscrição
que conta. Ou, noutro exemplo, não há óbice ético considerar-se que, para colocação
de pontes coronárias, os não fumadores tenham prioridade quando haja igualdade
de outras circunstâncias.
– Então, se há normas, não são precisas comissões –
apliquem-se as normas…
– Não te esqueças que as normas, por mais perfeitas que
sejam, nunca preveem todas as situações e há sempre escolhas a fazer. Não há só
branco e preto, como se costuma dizer. E ainda bem que é assim. Aliás, as
normas, que são adotadas em abstrato para serem aplicadas em concreto,
devem/deveriam ter sempre uma cláusula que permita que, desde que devidamente
fundamentadas, possa haver exceções.
– Mas isso está a um passo da arbitrariedade.
– Não, arbitrárias são as decisões que se tomam sem explicações.
Falamos de razoabilidade (Mitton, CR et al. Centralized
drug review processes: Are they fair? Soc Sci Med. 2006, Jul;63(1):200-11) ou de bom senso, se quiseres.
– E não temes que se abuse do recurso a exceção?
– Pode acontecer, mas chamo a tua atenção para uma outra condição-base para que o princípio da justiça seja respeitado. Refiro-me a
responsabilidade.
– Responsabilidade? Não estou a perceber. Ouço
frequentemente que uma coisa boa e a preservar é os juízes serem irresponsáveis
quando decidem.
– Não confundas! Claro que todos os juízes tem de ter
toda a liberdade para decidir, em sua consciência, o teor das sentenças
proferidas e não podem ser responsabilizados pelas consequências das suas condenações
ou absolvições. Embora, claro, se possam enganar e haja o direito de recurso. A
responsabilidade a que me estava a referir não é do mesmo tipo, pois, quando alguém
decide, a título de exceção, sobre um tratamento que custa milhares de euros
por mês para ser usado numa determinada situação clínica (Bach,
PB et al.
In
Cancer Care, Cost Matters. The New
York Times, 2012, Out) mas, afinal, há um consenso científico que considera
haver uma opção francamente mais barata e igualmente eficaz, o responsável por
essa decisão tem de prestar contas.
– Accountability
– e o
que queres dizer?
– É isso, mas a palavra portuguesa é também
responsabilidade. Os defensores da independência técnica dos prestadores, que é
uma coisa boa em si mesma, não o podem/não o devem fazer, esquecendo a correspondente
responsabilidade.
– Estás a dizer que um médico que invoca uma exceção e
fundamenta mal a decisão deve ser punido?
– Não excluo essa hipótese mas não te esqueças que o
mesmo se aplica também a quem redija as tais normas orientadoras. Todos temos
de responder pelas nossas decisões. Por outro lado, as punições em sede de apuramento
de responsabilidade disciplinar profissional tem muitas cambiantes. Desde logo
pode nem haver processos disciplinares para falarmos em prestação de contas – é o caso das chamadas de atenção próprias das hierarquias técnicas.
– Essas regras ou normas de que falas são muitas vezes
consideradas limitadoras da liberdade técnica. Há quem receie que juízes,
inspetores ou instrutores de processos de averiguações, ou mesmo jornalistas, considerem
sempre que é errado tudo que não esteja contemplado nas normas, contribuindo
assim para que os prescritores se tornem acríticos e as apliquem cegamente.
– É por essas e outras que se costuma dizer que isto não é fácil. Quem escolheu ser profissional de saúde – médico, enfermeiro, psicólogo
ou qualquer outro – pensando que não tinha de, constantemente e para o resto
das suas vidas, estar sempre a tomar decisões difíceis enganou-se.
– Esta conversa está interessante mas ainda não te
referiste abertamente ao polémico Parecer n.º 64 do Conselho Nacional de Ética
para as Ciências da Vida que dizem que aprova o racionamento em saúde. (Parecer
sobre um modelo de deliberação para financiamento do custo dos medicamentos, Parecer
n.º 64/CNECV/2012)
– Esse Parecer foi, de facto, centro de uma polémica
acesa mas felizmente, como sempre, as coisas acalmaram e, fora do “barulho das
luzes”, começa a emergir racionalidade onde ela faltou. O que o Parecer apontou
foi um modelo de apoio a decisões justas em matéria de escolhas difíceis.
– Mas não era sobre as compras de medicamentos inovadores
em oncologia e outras doenças crónicas?
– Era mas não foi. Tudo começou com um pedido do Ministro
da Saude (o CNECV é um órgão criado exatamente para responder a perguntas dos órgãos
de soberania). Sabia-se que 14 hospitais públicos tinham decidido juntar esforços
para reduzir custos na compra de certos medicamentos e que acordaram numa lista
que passaria a conter os únicos medicamentos que os respetivos conselhos de administração
admitiam poderem ser prescritos nas suas instituições.
– A pergunta do Ministro da Saude era para saber se essa decisão
estava eticamente sustentada já que acreditava que favorecia a sustentabilidade
económica do Serviço Nacional de Saúde.
– Exatamente. Contudo, o CNECV não conseguiu em tempo útil
conhecer os fundamentos das escolhas terapêuticas adotadas pelos 14 hospitais.
Decidiu, em alternativa a uma apreciação desses fundamentos, redigir uma
proposta de modelo ético para a decisão. Considerou que, a ser seguido o modelo
proposto, se garantia a justiça das medidas. Considerou, na sua perspetiva, que
as administrações hospitalares, no exercício dos seus poderes de gestão,
podiam/deviam fazer escolhas responsáveis desde que fossem transparentes,
baseadas em pareceres técnicos conhecidos e publicitados, elaborados por
pessoas conhecidas e sem conflitos de interesse. Tais escolhas deveriam, em última
análise, incidir sobre os “mais baratos dos melhores” fármacos em presença no mercado e não sobre os “melhores dos mais baratos”.
– Esse modelo recebeu elogios de gestores hospitalares, não
foi?
– Foi. Ao contrário dos mais altos responsáveis da Ordem
dos Médicos, os gestores hospitalares que se pronunciaram consideraram que a
proposta do CNECV deveria ser seguida.
– Tanto quanto me lembro, a Ordem dos Médicos não só
contestou o modelo, como o considerou perverso, de tal modo que ainda se falou
em averiguar se os membros médicos do CNECV deveriam ser alvo de procedimento
disciplinar para que respondessem pelas suas opiniões. (Conselho
Nacional Executivo da Ordem dos Médicos, Nota
informativa do CNE sobre o parecer 64/2012 do CNECV.
Revista da Ordem dos Médicos, 2012 Out; 134: 57-58 // Silva, JM. A ética teoriza-se, mas também se deve praticar! Revista
da Ordem do Médicos, 2013 Jan-Fev;137:6-9)
– O CNECV reagiu a essas apreciações mas efetivamente não
alcançou o mesmo impacto publico que os seus críticos. As ameaças de perseguição
por delito de opinião acabaram esquecidas e os argumentos ficaram com quem os
enunciou.
– Mas o Parecer defendia o racionamento?
– Quem o ler com isenção e livre de julgamentos
preconceituosos verá que não trata de defender o racionamento. A referência a
esse termo vem a propósito de se considerar que o racionamento, se tiver de ocorrer,
deve ser explicito e não implícito. Explicito e “transparente, em diálogo com os cidadãos que
devem ser informados (porque nada substitui a
participação democrática), que mantenha intacta a confiança dos doentes nos profissionais de saúde e no SNS e maximize a
responsabilidade dos decisores”. A tónica do Parecer é contra o “racionamento” no
sentido aviltante de sistema de distribuição de recursos que afeta a todos
independentemente das suas condições. Tudo no Parecer é a favor de um sistema
racional, adaptativo, fundamentado técnica e cientificamente e… transparente (Tilburt,
JC and Cassel, CK. Why the ethics of parsimonious
medicine is not the ethics of
rationing. JAMA. 2013 Jun 5;309(21):2212).
– Se os gestores apoiaram o modelo, quer dizerem que o
aplicam?
– Não estou certo disso. Na verdade, quando, meses depois
de aprovado o Parecer, se leram os critérios que os 14 hospitais assinaram, a
desapontamento foi grande. Não tinham fundamento técnico ou científico conhecido
ou publicitado, não se conheciam os seus autores ou interesses, não se
compreendia por que se escolheram certos fármacos e não outros, a não ser com
base no preço.
– Então, para ver se compreendo, nos hospitais públicos o
melhor tratamento é o que é posto a disposição de quem dele necessita? As restrições
orçamentais levam a que alguns não sejam tratados como deveriam ser? Havendo limitações,
as escolhas que se fazem tem sustentação ética? Há equidade face à idade, local
de residência, condição patológica?
– Não sei responder. Como no início deste diálogo imaginário,
dir-te-ei que todas as perguntas podem ter várias respostas.
– E não podes tentar dar algumas?
– Estou certo de que, de vários modos e por várias
razoes, haverá quem sofra na pele, melhor dizendo, na sua saúde, as consequências
da crise. Por mais que queiramos que isso não aconteça, muitas pessoas acabam por
não se tratar devidamente em consequência das dificuldades económicas que elas próprias
e as instituições atravessam. Admito que algumas instituições de saúde não
conseguem já dispor de meios suficientes para atender adequadamente a todas as
necessidades e daí só podem resultar iniquidades. Acredito, quero acreditar,
que algumas decisões, apesar de opacas, são as melhores mas este “sentimento” não
serve para as isentar da tal transparência, antes pelo contrário. Entendo que
um órgão consultivo como o CNECV não pode transformar-se num fiscal de boas
práticas já que lhe esta cometida “apenas” a função de dar opiniões. Contudo, não
poderá deixar de as dar mesmo que não lhas peçam ou nem sempre sejam seguidas
ou bem interpretadas. Nesta dinâmica multifatorial, em que tantas decisões se
interinfluenciam, não podemos esperar que todos compreendam todos. Apesar
disso, podemos esperar que todos procurem compreender todos. Seja como for,
convenhamos, há muito a fazer para alcançar melhorias no desempenho tanto das instituições
como dos profissionais individualmente considerados, quando falamos do real
respeito pela dignidade da pessoa doente e vulnerável. E, por maioria de razão,
tudo isto é especialmente importante em tempos de crise económica e social com
a dimensão da que estamos a viver em Portugal.