03 outubro 2025

História e desafios da demência


História e Desafios da Demência

Jesse F. Ballenger
Tradução espontânea do artigo
History and the Challenges of Dementia 8
parte do relatório especial
Living with Dementia: Learning from Cultural Narratives of Aging Societies 8
Hastings Center, setembro de 2025

 

Uma das grandes ironias de uma condição cujo sintoma mais temido é a perda da memória é que o debate popular e profissional sobre ela ocorre com muito pouca consciência da sua história. A demência tem sido amplamente discutida como um problema médico que, com o envelhecimento da população em todo o mundo, ameaça sobrecarregar as instituições de saúde e de assistência social e desestruturar a vida social. Muito tem sido escrito sobre os aspetos biológicos, clínicos e epidemiológicos da demência. Foram identificadas e discutidas questões sociais e políticas graves, por vezes apocalípticas, e dezenas de livros foram publicados explicando tudo isso ao grande público e proporcionando conselhos práticos para doentes e suas famílias. No entanto, na sua maioria, o debate público sobre a demência tem sido superficial e desavisado. As suposições nas quais se baseiam as ideias contemporâneas sobre a demência e as nossas respostas raramente foram reconhecidas, muito menos revistas no discurso popular. A história pode ser a base para uma discussão mais crítica e informada sobre a demência, mostrando que atitudes e ideias muitas vezes consideradas naturais e inevitáveis são, na verdade, historicamente contingentes, moldadas por circunstâncias sociais e culturais específicas. A história pode recuperar um sentido de possibilidade, mostrando que as coisas nem sempre foram como são agora – e que podem muito bem ser diferentes no futuro.

   A narrativa cultural dominante sobre a demência gira em torno de várias ideias-chave: que a demência é causada por doenças específicas, como a de Alzheimer, que podem ser independentes do envelhecimento; que a demência constitui uma ameaça existencial tanto para a sociedade (porque a prevalência crescente da demência ameaça sobrecarregar os sistemas de saúde e de assistência social) como para os indivíduos (porque ataca e destrói os atributos e capacidades essenciais que constituem a identidade); e que a única solução significativa para os desafios da demência reside no desenvolvimento de tratamentos eficazes, especialmente farmacológicos.1 Uma perspetiva histórica rigorosa levanta interrogações sobre cada uma destas ideias.

Demência e envelhecimento no passado distante

Talvez não haja afirmação mais importante para a narrativa cultural dominante sobre a demência do que a de que ela é causada por uma série de condições patológicas que podem ser diferenciadas do envelhecimento normal. Agências governamentais fidedignas e organizações sem fins lucrativos que lidam com a demência sempre incluem declarações proeminentes como esta da Associação de Alzheimer: “O maior fator de risco conhecido para a doença de Alzheimer e outras demências é o aumento da idade, mas esses distúrbios não são uma parte normal do envelhecimento. Embora a idade aumente o risco, ela não é uma causa direta da doença de Alzheimer.”2 Mas, durante a maior parte da história, a ideia de que a demência poderia ser claramente separada do envelhecimento teria parecido estranha. Embora a escassez de estudos sobre a demência nas sociedades antigas torne provisório qualquer argumento sobre como as sociedades do passado distante a consideravam, penso que vale a pena esboçar algumas possibilidades.

   É um equívoco comum pensar que, como a esperança média de vida ao nascer nas sociedades pré-industriais era de quarenta anos ou menos, poucas pessoas chegavam à velhice e, portanto, doenças associadas à idade, como a demência, eram praticamente desconhecidas. Na verdade, a baixa esperança de vida ao nascer na era pré-industrial era principalmente resultado das taxas muito altas de mortalidade infantil. Portanto, embora seja certamente verdade que houve um aumento na longevidade desde a segunda metade do século XX, não era incomum que as pessoas vivessem até uma idade avançada nas sociedades do passado distante.

   Não está claro o que isso possa significar para a demência. Os poucos estudos existentes sobre a prevalência da demência em sociedades pré-industriais chegam a conclusões diferentes. O arqueólogo Martin Smith e os seus colegas defendem que, embora a prevalência da demência seja significativamente menor do que nas sociedades modernas, ela deve ter afetado um número muito significativo de pessoas em períodos anteriores. Criando modelos de estruturas populacionais pré-industriais com base em registos escritos e restos mortais, Smith et al. aplicam as taxas contemporâneas de demência para estimar, por exemplo, que havia 9700 pessoas com demência na Roma Imperial no século I d.C. e cerca de 2000 pessoas na Londres do século XIV.3 Em contrapartida, o gerontologista biológico Caleb Finch e o historiador Stanley Brustein pesquisaram registos escritos na Grécia e Roma antigas e encontraram referências frequentes ao declínio cognitivo, mas poucas descrições de demência avançada. Eles concluem que o comprometimento cognitivo leve pode ter sido comum, mas que a demência avançada era relativamente desconhecida no mundo antigo, e argumentam que as toxinas ambientais associadas à industrialização são a causa provável do aumento dramático da demência observado na era moderna.4

   Em última análise, pode simplesmente não haver dados suficientes para determinar com certeza a prevalência da demência em sociedades do passado distante. No entanto, uma afirmação mais modesta parece razoável: os sintomas do declínio cognitivo associado à idade, se não a própria demência, têm sido amplamente reconhecidos ao longo da história e as atitudes em relação ao declínio cognitivo parecem diferentes da narrativa cultural dominante sobre a demência hoje em dia. Os estudiosos encontraram, em textos médicos, jurídicos e literários em praticamente todas as sociedades humanas, descrições de sintomas que hoje provavelmente seriam considerados sinais de demência.5 Mas antes do século XX, esses textos geralmente não tentavam separar a demência da ampla gama de perdas físicas e mentais debilitantes associadas ao envelhecimento. Em vez disso, a deterioração cognitiva era incluída numa longa lista de enfermidades e perdas que frequentemente acompanhavam o envelhecimento, e não era necessariamente considerada a pior delas. Em The Coming of Age, Simone de Beauvoir identificou “The Instructions of Ptahhotep”, escritas no Egito por volta de 2500 a.C., como a primeira descrição conhecida da velhice na tradição ocidental. Ela começa com um lamento sobre as aflições da velhice: “Ele fica mais fraco a cada dia; seus olhos ficam turvos, seus ouvidos surdos... O poder de sua mente diminui e hoje não consegue se lembrar como foi ontem. Todos os seus ossos doem... [O] paladar desaparece.” Ela argumenta que “esta lista infeliz das enfermidades da velhice [seria] repetida século após século, e é importante enfatizar a permanência deste tema”.6 Este tipo de litania das perdas do envelhecimento é repetido por inúmeros autores, talvez mais notoriamente por Shakespeare em As You Like It: a “segunda infância e mero esquecimento, sem dentes, sem olhos, sem paladar, sem tudo”.7 Note-se que, nestas linhas, Shakespeare, tal como inúmeros escritores antes e depois dele, incluiu a perda da capacidade cognitiva (“segunda infância e mero esquecimento”) como apenas uma das muitas perdas dolorosas associadas ao envelhecimento (“sem dentes, sem olhos, sem paladar, sem tudo”).

   Para os leitores contemporâneos, acostumados a pensar na demência como resultado de uma doença específica, o aparecimento de sintomas como perda de memória numa lista indiferenciada de problemas físicos associados à idade parecerá uma curiosidade arcaica. Talvez ainda mais difícil de entender seja a indiferença estoica com que tais sintomas eram frequentemente recebidos antes do século XX. Por exemplo, no livro de 2001 The Forgetting: Alzheimer’s: Portrait of an Epidemic, o jornalista David Shenk descreve com espanto como, na década de 1870, o brilhante ensaísta e poeta americano Ralph Waldo Emerson, então com mais de 70 anos, aceitou serenamente a sua deterioração cognitiva. Emerson consultou um médico apenas uma vez por causa da sua memória gravemente debilitada e nada, evidentemente, resultou disso. Nem Emerson nem ninguém à sua volta pensou em tratar a sua perda de memória, nem considerou isso uma doença. Quando um amigo perguntou sobre a sua saúde, Emerson respondeu: “Muito bem; perdi as minhas faculdades mentais, mas estou perfeitamente bem”. Para Shenk, essa atitude em relação à demência é trágica e peculiar.8 Mas, embora seja compreensível a tendência de descartar ideias e atitudes sobre a demência do passado distante como curiosidades históricas trágicas, devemos aceitar a possibilidade de que podemos aprender com a forma como as sociedades do passado respondiam à demência, por mais diferentes que fossem das nossas. De qualquer forma, para encontrar o tipo de temor que passamos a considerar como a atitude natural em relação à demência, devemos olhar para a história recente.

O conceito moderno de demência

O trabalho dos psiquiatras alemães Alois Alzheimer e Emil Kraepelin, na transição para o século XX, é frequentemente invocado como a base do conceito moderno de demência. Mas o seu trabalho não marcou uma rotura acentuada com a longa tradição de ver a demência como parte do envelhecimento. É verdade que o seu trabalho estabeleceu as características clínicas e as estruturas patológicas que ainda hoje definem a doença de Alzheimer, a forma mais prevalente de demência. Mas Alzheimer e Kraepelin não estavam interessados na demência como um problema grave numa sociedade em envelhecimento, como poderíamos imaginar hoje. Eles estavam principalmente interessados em colocar a psiquiatria numa base científica sólida, estabelecendo entidades patológicas com características clínicas claras que pudessem ser correlacionadas com patologias cerebrais distintas.9 A demência parecia uma candidata promissora, pois parecia estar associada a lesões claras e distintas no cérebro. No entanto, a sua associação com o envelhecimento tornava o seu estatuto como doença altamente ambíguo. Kraepelin acabou por categorizar os casos raros de demência que ocorriam antes dos sessenta e cinco anos como “doença de Alzheimer”, distintos do grupo muito maior de casos senis que lhe pareciam mais uma variante extrema da deterioração normal associada ao envelhecimento do que uma doença.10 Apesar do grande avanço na compreensão da neuropatologia da demência, a conceção de Kraepelin sobre a doença de Alzheimer tinha muito em comum com a visão tradicional de que a deterioração física e mental era, até certo ponto, normal na velhice. A demência foi, assim, deixada numa espécie de limbo nosológico. Se classificada como doença de Alzheimer, era interessante, mas demasiado rara para atrair muita atenção além de um pequeno círculo de especialistas; se considerada como demência senil, a sua prevalência era significativa, mas a sua associação com o envelhecimento significava que era de pouco interesse para a maioria dos investigadores da medicina e psiquiatria convencionais. Como resultado, a demência atraía relativamente pouco interesse entre a maioria dos psiquiatras e neurologistas.

   Isso mudou no final da década de 1970, quando uma coligação de investigadores, familiares e decisores políticos se reuniu nos Estados Unidos com o objetivo de aumentar a consciencialização pública sobre a demência e obter apoio governamental para a investigação. A sua estratégia girava em torno de reformular a demência em idosos como parte de um processo de doença, em vez de uma parte normal do envelhecimento. Essa afirmação de que a demência é uma síndrome clínica causada por uma doença específica tem sido repetida em editoriais e declarações consensuais com tanta frequência que pode parecer um simples fato da natureza. Mas, se lermos mais profundamente a literatura científica sobre a reformulação da demência senil como uma doença, encontramos um debate não resolvido (e talvez irresolúvel). Em termos científicos, podem ser apresentados argumentos razoáveis em ambos os sentidos. Por um lado, uma vez que os sintomas clínicos e a patologia cerebral associada à doença de Alzheimer e à demência senil eram essencialmente idênticos, era razoável considerá-los como uma única entidade. Por outro lado, uma vez que se sabia que todas as alterações cerebrais associadas à demência se desenvolviam no cérebro de todos os idosos, era razoável considerar a demência senil como uma variante extrema do envelhecimento normal e a demência que ocorria em idades significativamente mais jovens como algo diferente (a conceção original da doença de Alzheimer). No final da década de 1970 e na década de 1980, esse debate não resolvido refletiu-se no termo “demência senil do tipo Alzheimer”, usado para descrever a demência que ocorria com prevalência crescente após os 65 anos. O termo afirma uma entidade unificada em torno de uma patologia cerebral comum e preserva a antiga distinção entre a ocorrência comum de demência em idades mais avançadas. O termo “doença de Alzheimer” ainda era reservado para os casos relativamente raros que ocorriam mais cedo na vida.11

   Mas, por razões políticas pragmáticas, o termo “doença de Alzheimer” passou a ser cada vez mais utilizado para descrever a demência, independentemente da idade em que ocorria. Incluir a demência senil na categoria da doença de Alzheimer significava que ela já era um grande problema, afetando um milhão ou mais de pessoas, e que se tornaria um problema enorme nas décadas seguintes, com o envelhecimento da geração baby boom. Denominar a categoria unificada de “Alzheimer” em vez de “demência senil” reforçou que não se tratava “apenas de envelhecimento”, mas de uma entidade patológica com uma base patológica bem estabelecida no cérebro, digna de um enorme esforço de investigação sobre a sua causa e cura.12 Esta formulação foi feita de forma mais famosa e contundente pelo neurologista Robert Katzman num editorial de 1976 chamado “The Prevalence and Malignancy of Alzheimer Disease: A Major Killer”.13 Publicado na revista Archives of Neurology da American Medical Association, o artigo é amplamente reconhecido como a publicação que, mais do que qualquer outra, tornou a demência uma questão pública importante. A relevância política da reconceptualização da demência senil não passou despercebida por Katzman. Ao relembrar o seu trabalho num simpósio da Fundação Ciba sobre investigação do envelhecimento, em 1988, ele explicou: “Passei vários anos a tentar convencer as pessoas de que a doença de Alzheimer é uma doença, e não simplesmente o que costumava ser chamado de ‘senilidade’ ou ‘demência senil’. E houve um progresso maravilhoso na investigação. Na minha opinião, isso deve-se ao facto de as pessoas agora considerarem a doença de Alzheimer como uma doença.”14

A demência como ameaça existencial

A análise histórica acima sugere que a reconceptualização da doença de Alzheimer foi tanto uma afirmação política quanto científica. Parte do poder dessa afirmação foi a segunda ideia na narrativa cultural dominante sobre a demência – que ela representa uma ameaça existencial para a sociedade e para o indivíduo. Como vimos na secção anterior, os defensores da doença de Alzheimer frequentemente se envolviam no que os críticos descreveram como uma espécie de demografia apocalíptica, na qual a prevalência crescente da demência associada ao envelhecimento da população é caracterizada como uma “bomba-relógio demográfica” ou “tsunami prateado” que destruirá o sistema de saúde, a menos que um tratamento eficaz seja encontrado.15

   Ainda mais salientes do que essas alegações sobre uma catástrofe económica iminente são as descrições da doença de Alzheimer e de distúrbios semelhantes como as piores de todas as doenças, porque destroem a própria identidade das pessoas que afetam. No discurso popular de defesa da investigação e dos cuidados da doença de Alzheimer, as pessoas com demência são comumente retratadas como se já não estivessem realmente presentes, como estranhos assustadores para os seus entes queridos, como invólucros vazios ou mesmo zombies. Embora possa parecer perverso questionar o sofrimento das pessoas que enfrentam as terríveis perdas causadas pela demência, estas representações profundamente estigmatizantes e desmoralizantes das pessoas com demência merecem um escrutínio crítico.

   Como defendi no meu livro Self, Senility, and Alzheimer’s Disease in Modern America, embora a demência sempre tenha sido entendida como implicando perdas, a ansiedade específica em torno da sua ameaça à identidade pode ser atribuída à preocupação com a construção da identidade que surgiu no início da modernidade e se aprofundou nos séculos XIX e XX.16 No século XVI, a ideia tradicional de que os indivíduos eram dotados por Deus de traços essenciais e definidores foi sendo substituída pela ideia de que os indivíduos criavam-se a si mesmos através das escolhas conscientes e engenhosas que faziam ao longo da vida.17 Esta nova ênfase na autocriação foi acompanhada por uma ansiedade acrescida em relação à velhice em geral e à demência em particular. À medida que a ascensão do capitalismo liberal nos séculos XVIII e XIX minava as hierarquias tradicionais que proporcionavam fontes estáveis, embora restritivas, de identidade, a individualidade tornou-se mais problemática. A identidade tornou-se mais um projeto do que um estatuto atribuído, e a velhice tornou-se cada vez mais um local de ansiedade cultural sobre a identidade que se levou uma vida inteira a criar, ameaçando desmoronar-se e desaparecer à medida que a demência destruía a capacidade de criar uma narrativa pessoal coerente e coesa. Essa ansiedade cultural foi medicalizada no contexto das preocupações do século XX com o envelhecimento e a passagem à reforma numa economia industrial. Os trabalhadores idosos, com seus corpos e cérebros em deterioração, poderiam acompanhar as exigências da produção industrial e da gestão burocrática complexa? Após a Segunda Guerra Mundial, à medida que a aposentadoria se tornou uma fase aceitável da vida, apoiada por um sistema misto de previdência social pública e pensões privadas, a ansiedade passou a ser sobre o que os idosos fariam com seu tempo livre repentinamente abundante. Será que o facto de serem privados do envolvimento significativo com o mundo proporcionado pelo trabalho resultaria numa deterioração das suas capacidades cognitivas? Os programas sociais para idosos eram frequentemente justificados com o argumento de que evitariam um aumento catastrófico da demência senil. No geral, as expectativas de uma velhice produtiva e gratificante aumentaram durante a segunda metade do século XX. Nesse contexto, a ideia de que a deterioração mental poderia ser uma parte normal do envelhecimento parecia cada vez mais insustentável, e os investigadores geriátricos e gerontológicos procuraram identificar a demência como um estado patológico do envelhecimento, que, segundo eles, normalmente não deveria ser caracterizado por nenhuma perda significativa das capacidades cognitivas. A reconceptualização da doença de Alzheimer descrita na secção anterior foi o exemplo mais significativo disso.18

   No entanto, isso não diminuiu a estigmatização da demência e a ansiedade em relação ao envelhecimento. Nas campanhas altamente visíveis e eficazes dos media e do lobby do Congresso, organizadas em torno da reconceptualização da doença de Alzheimer, os seus defensores aumentaram a consciência pública e o financiamento para a doença de Alzheimer, explorando a ansiedade profundamente enraizada em relação à senilidade e à identidade. As perdas pessoais associadas à demência foram retratadas como tão globais e irrevogáveis que levantaram a questão de se as pessoas que sofrem dessa doença ainda podem ser consideradas pessoas. Na lógica dessa narrativa cultural dominante sobre a demência, as políticas destinadas a melhorar os cuidados e os tratamentos das pessoas com demência eram tardias, pois esses indivíduos já haviam sido privados de sua identidade. Embora admitissem que deveriam ser feitas algumas concessões para melhorar a situação das pessoas com demência e dos seus cuidadores, os defensores da doença de Alzheimer afirmavam veementemente que a ameaça existencial à sociedade tornava absolutamente prioritário encontrar meios eficazes para tratar, se não curar ou prevenir, a demência.19

Neoliberalismo, política de demência e o domínio da agência farmacêutica

Se o contexto histórico essencial para compreender o surgimento da demência como uma questão pública importante na década de 1980 foi, não apenas o envelhecimento da população, mas também as ansiedades profundamente enraizadas sobre a coerência e a estabilidade do eu na sociedade capitalista moderna, então o neoliberalismo é o contexto histórico essencial para compreender as políticas e as agendas de investigação que se desenvolveram desde então. “Neoliberalismo” é um termo controverso, definido e utilizado de várias maneiras. Mas há um amplo consenso no sentido de que descreve com precisão um conjunto de ideias e políticas que enfatizam a liberdade individual, a desregulamentação, a redução do Estado social, a livre iniciativa privada e a expansão dos valores e práticas do capitalismo de mercado livre para todos os aspetos da sociedade. Como argumentam Daniel George e Peter White-house, “uma visão neoliberal do mundo incorpora a lógica de mercado em todas as dimensões das nossas vidas... Tudo se torna uma mercadoria em potencial.” 20 A demência tornou-se uma questão pública importante na década de 1980, justamente quando o neoliberalismo estava a tornar-se a abordagem dominante para as políticas económicas e sociais nos Estados Unidos e no Reino Unido e estava a remodelar profundamente a pesquisa académica como um todo, e essa confluência distorceu as agendas da investigação e das políticas que surgiram para enfrentar os desafios da demência.

   Na narrativa cultural dominante sobre a demência, a busca por um tratamento ou cura é apresentada em termos heroicos. A investigação científica sobre a demência deve orientar-se para a descoberta de intervenções que beneficiem significativamente os doentes e as suas famílias. Mas a investigação médica académica foi reformulada com a aprovação da Lei Bayh-Dole em 1980, que permitiu às universidades reivindicar direitos de propriedade intelectual sobre os produtos da investigação financiada pelo governo federal.21 O resultado foi uma enorme injeção de dinheiro privado das indústrias farmacêutica e de dispositivos médicos na medicina académica. Embora a ligação direta da investigação académica aos mercados financeiros tivesse como objetivo aumentar a inovação e facilitar a translação da investigação em intervenções médicas eficazes, também criou o potencial para corrupção e conflito de interesses.22 O envolvimento da medicina e dos mercados era uma preocupação generalizada, mas tornou-se especialmente grave quando a investigação sobre a doença de Alzheimer surgiu, há cerca de treze anos, no centro de um dos maiores escândalos de abuso de informação privilegiada da história dos Estados Unidos.23

   É claro que nem toda a investigação sobre Alzheimer é corrupta. A maior parte da investigação é conduzida de boa-fé, com a intenção de desenvolver tratamentos que realmente ajudem os pacientes. Mas o investimento maciço e de alto risco em empreendimentos farmacêuticos vinculou o campo da Alzheimer ao mesmo tipo de práticas e pressões financeiras que levaram a repetidos escândalos e a ciclos perturbadores de expansão e recessão em toda a economia. Embora as questões éticas em torno dos casos de má conduta sejam obviamente sérias, a questão mais importante é a forma como a investigação sobre a doença de Alzheimer, desde a década de 1980, está orientada para um modelo de rentabilidade a curto prazo através dos mercados financeiros. Não é preciso duvidar que os líderes farmacêuticos e os investigadores científicos que eles financiam estejam genuinamente empenhados na ideia de desenvolver produtos que tratem ou previnam eficazmente a doença de Alzheimer para se preocupar com o poder das forças de mercado para distorcer a investigação e a regulamentação.

   Essas preocupações estão no centro da controvérsia em torno de vários medicamentos para remoção de amiloide recentemente licenciados pela Food and Drug Administration dos EUA (FDA) para o tratamento da demência em estágio inicial. Desde meados da década de 1990, a hipótese amiloide, que sugere que a neurodegeneração na doença de Alzheimer é causada pelo excesso da proteína beta-amiloide, que causa a formação de placas no cérebro, tem sido o ponto focal das estratégias de desenvolvimento de medicamentos. Depois de vários medicamentos para remoção de amiloide terem falhado nos ensaios clínicos, a FDA aprovou o aducanumab em 2021, embora nenhum membro do painel consultivo de especialistas convocado para avaliar os dados dos ensaios clínicos do medicamento tenha considerado que havia provas suficientes de eficácia.24 Dois outros medicamentos para remoção de amiloide, o lecanemab e o donanemab, atingiram os seus objetivos nos ensaios clínicos. O lecanemab foi aprovado pela FDA em 2023 e o donanemab em 2024. Mas muitos líderes de opinião proeminentes na área de Alzheimer continuam céticos; o efeito desses medicamentos é tão pequeno que eles podem não proporcionar nenhum benefício percetível aos doentes, mas apresentam riscos significativos e são muito caros.25

   Parte da fundamentação para aprovar esses medicamentos, apesar das objeções, foi a necessidade de incentivar as empresas farmacêuticas a continuarem a investir no desenvolvimento de medicamentos para Alzheimer, pois esse investimento inevitavelmente levaria a tratamentos eficazes. Mas, como a pesquisa e o desenvolvimento farmacêuticos são orientados para o mercado de ações, o impacto final de um novo medicamento pode parecer secundário. O dinheiro será ganho de qualquer maneira. Independentemente de os medicamentos atuais proporcionarem ou não benefícios significativos aos doentes, ao saber quando comprar e quando vender, os investidores experientes terão feito fortunas; e ao saber onde investir o seu tempo e como vender os seus conhecimentos, os investigadores experientes terão construído carreiras.

   Além disso, a ênfase neoliberal em abordagens orientadas para o mercado favorece os tratamentos farmacêuticos, porque são facilmente comercializados e apoiados pelas operações de marketing e distribuição de grandes companhias. Como argumenta o médico, especialista em ética e investigador clínico Jason Karlawish no seu livro The Problem of Alzheimer’s: How Science, Culture, and Politics Turned a Rare Disease into a Crisis and What We Can Do about It, “uma intervenção eficaz não é um tratamento, a menos que tenha um plano de negócios”. Os inibidores da colinesterase, a geração anterior de medicamentos licenciados para Alzheimer, nunca mostraram mais do que um benefício modesto para os doentes, e muitos investigadores de Alzheimer argumentaram que eles eram inúteis. Mas “por um tempo, os inibidores da colinesterase tiveram um modelo de negócios robusto que começou com financiamento privado e público para pesquisas para descobri-los e testá-los, seguido por uma revisão regulatória de seus benefícios e malefícios. O mais importante foi um sistema altamente coordenado e organizado para promover a sua prescrição”. E assim, tornaram-se medicamentos de grande sucesso. Karlawish contrasta-os com duas intervenções comportamentais destinadas a treinar e apoiar cuidadores que, em ensaios clínicos, mostraram claramente uma melhora significativa tanto para os doentes quanto para seus cuidadores.26 Um editorial que acompanhou a publicação dos estudos na revista Annals of Internal Medicine defendeu que “a magnitude do benefício e a qualidade das provas que apoiam essas intervenções excedem consideravelmente as das terapias [medicamentosas] atualmente aprovadas para demência”.27 Mas as intervenções comportamentais são mais difíceis de comercializar, por isso as empresas têm demonstrado pouco interesse nelas. Na falta de um plano de negócios, poucos doentes e cuidadores beneficiam delas, por mais clara que seja a prova da sua eficácia. “As intervenções comportamentais..., com exceção do apoio financeiro do National Institute on Aging, das fundações e agências estaduais, não tinham um sistema para divulgá-las, promovê-las ou mantê-las”, observa Karlawish. “É essa disparidade entre os dois sistemas — um financeiramente robusto, o outro fragmentado e descoordenado — que está no cerne da crise da doença de Alzheimer.” 28

Para uma história diferente

Quais são as lições da história em relação à demência? Primeiro, que algumas coisas que parecem naturais e inevitáveis dentro da narrativa cultural dominante sobre a demência podem, na verdade, ser historicamente contingentes, refletindo as atitudes e ideias de um determinado tempo e lugar. Segundo, que alguns aspetos do contexto histórico contemporâneo levantam sérias questões sobre a ênfase na busca por um tratamento farmacêutico e uma cura, e que o envolvimento da indústria de pesquisa com os mercados financeiros cria um conflito de interesses estrutural. Por fim, ao adotar uma abordagem mais crítica e historicamente informada em relação à demência, podemos acabar por contestar o domínio de valores políticos e sociais, como o individualismo e a eficiência económica, que têm impulsionado a narrativa cultural dominante sobre a demência e a ênfase no desenvolvimento de comprimidos que possam ser facilmente comercializados e vendidos.

   Para enfrentar os desafios da demência, precisamos incorporar e encontrar novos valores na vulnerabilidade, na interdependência e no bem comum, além de desenvolver e financiar intervenções sociais e comportamentais que apoiem diretamente tanto os doentes como os seus cuidadores. Essa transformação ajudar-nos-á a enfrentar não apenas o desafio da demência, mas também uma ampla gama de desafios sociais, económicos e ambientais que a humanidade enfrenta neste momento histórico. A história recorda-nos que outro mundo é possível. E necessário. <

Ver as referências no artigo original AQUI


28 setembro 2025

Efeméride – 28 de setembro de 1542

                                           

João Rodrigues Cabrilho, por António Pacheco, 1989, Montalegre

Foi há 483 anos que Cabrilho, topónimo portuense, descobriu a Califórnia 
«Considerando que João Rodrigues Cabrilho, natural de Portugal, descobriu a Califórnia a 28 de setembro de 1542, entrando no porto de San Diego; Considerando que o referido descobrimento foi um acontecimento de importância mundial e o seu aniversário uma data de particular interesse para o povo do Estado da Califórnia, resolveu o Senado, reunido em Assembleia, o seguinte: É o povo do Estado da Califórnia convidado a comemorar o Dia Cabrilho, a 28 de setembro de cada ano, por meio de cerimónias patrióticas apropriadas.» [Os Descobrimentos Portugueses – VI, Obras Completas, vol. 26, Jaime Cortesão. Livros Horizonte, 1978, p. 1479] 

14 setembro 2025

Como apoiar pessoas com Alzheimer

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 A Associação Alzheimer inglesa diz o óbvio, mas traduzi e divulguei aos meus amigos. 

Também está AQUI.

‘Apoiar alguém com demência apresenta desafios únicos que podem parecer esmagadores.’

Hollie, nossa consultora da Linha de Apoio à Demência, partilha as suas orientações para famílias que cuidam de um ente querido com demência:

Recebemos milhares de chamadas para a nossa linha de apoio à demência todos os meses e sabemos que o período antes, durante e após o diagnóstico é particularmente difícil para as famílias.

Aqui estão as nossas principais dicas para apoiar um ente querido com demência:

1. Reafirme que eles continuam a ser quem são

‘A demência pode abalar a confiança de uma pessoa. Mostre-lhe que ainda a vê como a pessoa que sempre foi e concentre-se no que ela ainda consegue fazer e em como ainda pode contribuir.’

2. Tente entender as mudanças no comportamento

‘Tente descobrir por que estão incomodados e tranquilize-os o máximo possível. Use persuasão gentil sempre que puder, distraia-os ou mude o assunto da conversa.’

3. Mantenha relações com a família e a comunidade

‘É importante tentar manter as relações existentes. Participe em grupos sociais, atividades comunitárias ou visite cafés para pessoas com demência, onde poderá interagir com outras pessoas que enfrentam desafios semelhantes.’

4. Adapte o seu modo de falar

‘Seja paciente e use frases curtas e simples. Mantenha contacto visual e use comunicação não verbal, como sorrisos e gestos físicos. Mas nunca use linguagem infantil ou paternalista.’

5. Dê prioridade ao seu próprio bem-estar

‘Procure ajuda e apoio - seja através de amigos e familiares, grupos locais de apoio à demência e/ou profissionais de saúde e assistência social. Todos precisam de pausas regulares para recarregar as baterias e continuar a fazer as coisas que gostam.’

Se apoia ou já apoiou alguém que vive com demência, o que acrescentaria a esta lista?

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https://alzheimerportugal.org/

https://www.alzheimers.org.uk/

https://www.alzheimer-europe.org/

04 setembro 2025

Eficácia clínica e relação custo-benefício dos cuidados domiciliares

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Os conteúdos gerados por IA podem estar incorretos. 

Eficácia clínica e relação custo-benefício de uma intervenção de promoção da saúde domiciliar para idosos com fragilidade leve na Inglaterra: um ensaio clínico multicêntrico, de grupos paralelos, randomizado e controlado

Tradução do resumo do artigo

Clinical and cost-effectiveness of a home-based health promotion intervention for older people with mild frailty in England: a multicentre, parallel-group, randomised controlled trial

Kate Walters et al. (Research Department of Primary Care and Population Health)

Para ver o artigo original completo clicar AQUI

Resumo

Contexto - A promoção da saúde para pessoas com fragilidade leve tem o potencial de melhorar os resultados de saúde, mas esses serviços são escassos na prática. Criámos uma intervenção personalizada, domiciliar, de mudança de comportamento e promoção da saúde (HomeHealth) e avaliámos a sua eficácia clínica e a relação custo-benefício na manutenção do funcionamento independente nas atividades da vida diária em idosos com fragilidade leve.

Métodos - Este foi um ensaio clínico individual, multicêntrico, de grupos paralelos, aleatório e controlado, realizado na Inglaterra. Os participantes foram recrutados principalmente em clínicas de medicina geral em três áreas diferentes da Inglaterra (região norte do Tamisa, em Londres, leste e norte de Hertfordshire, oeste de Yorkshire). Os participantes eram indivíduos residentes na comunidade, inscritos em clínicas de medicina geral, com 65 anos ou mais, com fragilidade leve (pontuação 5 na CFS), com expectativa de vida superior a 6 meses e com capacidade para consentir a participação. Excluímos adultos residentes em lares de idosos ou casas de repouso, aqueles com fragilidade moderada a grave ou sem fragilidade, aqueles que recebiam cuidados paliativos e aqueles já em tratamento (por exemplo, recebendo uma intervenção continuada semelhante do setor voluntário ou serviço comunitário). Os participantes elegíveis foram aleatoriamente distribuídos 1:1 para a intervenção HomeHealth ou para o tratamento habitual. A HomeHealth é uma intervenção de promoção da saúde multifacetada realizada pelo setor voluntário em casa, em seis sessões ao longo de 6 meses. O resultado primário foi o funcionamento independente (avaliado usando o Índice de Barthel modificado [IB]) aos 12 meses. As avaliações dos resultados foram mascaradas e analisadas por intenção de tratar, utilizando modelos lineares mistos. Os custos incrementais e os anos de vida ajustados pela qualidade (QALYs) foram calculados utilizando regressão aparentemente não relacionada e bootstrapping (*). O ensaio está registado no registo ISRCTN (ISRCTN54268283).

Resultados - Recrutámos 388 participantes entre 8 de janeiro de 2021 e 2 de julho de 2022 (idade média de 81 anos, DP 6,5; 249 (64%) eram mulheres e 139 (36%) eram homens). 195 participantes foram aleatoriamente designados para o HomeHealth e 193 para o tratamento habitual. O acompanhamento médio foi de 363 dias (IQR 356-370) no grupo HomeHealth e 362 dias (IQR 355-373) no grupo de tratamento habitual. O HomeHealth não melhorou as pontuações da IB aos 12 meses (diferença média 0,250, IC 95% -0,932 a 1,432). O HomeHealth foi superior ao tratamento habitual, com uma estimativa pontual negativa para os custos incrementais (-796 £; IC 95% -2016 a 424) e uma estimativa pontual positiva para os QALYs incrementais (0,009, -0,021 a 0,039). Houve 55 eventos adversos graves no grupo HomeHealth e 85 no grupo de tratamento habitual; nenhum deles estava relacionado com a intervenção.

Interpretação - A HomeHealth é uma intervenção segura com elevada probabilidade de ser economicamente eficaz, impulsionada por uma redução nas admissões hospitalares não planeadas. A HomeHealth deve ser considerada como uma intervenção de promoção da saúde para idosos com fragilidade leve. <

 

(*) NT: bootstrapping - técnica de reamostragem usada para estimar a precisão de uma estatística (como a média ou o desvio padrão) e construir intervalos de confiança, útil quando a distribuição teórica de uma estatística é complexa ou desconhecida.

29 agosto 2025

Efeméride - 29 de agosto de 1970

Morreira, Braga, 29 de agosto de 1970
Foi há 55 anos, depois de 6 anos de namoro!
Ninguém nos reconhece :: ela mais baixa, eu mais largo.

28 agosto 2025

Autonomia em Obstetrícia

 

Wilkinson D, et al. J Med Ethics 2025;51:588–592. 
doi:10.1136/jme-2024-110503

 Mesa redonda sobre ética: escolha e autonomia em obstetrícia

Dominic Wilkinson1,2,3,4,5, Safoora Teli6, Claire Litchfield1, Anna Madeley7, Brenda Kelly1, Lawrence Impey1,8, Rebecca CH Brown2, Elselijn Kingma9, Helen Lynne Turnham1

 Tradução do artigo

Ethics round table: choice and autonomy in obstetrics

Para ver o artigo original, afiliações e referências, clicar AQUI

 

 Resumo

As decisões sobre como e onde dar à luz são extremamente importantes para as mulheres grávidas. Existem normas éticas muito fortes que defendem que a autonomia das mulheres deve ser respeitada e que os planos relativos ao parto devem ser personalizados. No entanto, na prática, parecem existir desafios profundos para respeitar as escolhas das mulheres durante a gravidez e o parto. As escolhas acarretam riscos e consequências – para a mulher e para o seu filho; também potencialmente para os seus cuidadores e para outras mulheres.

O que significa respeitar a autonomia das mulheres em obstetrícia? Como devem os profissionais de saúde responder à recusa de tratamento ou a pedidos de cuidados fora das diretrizes normais? Quais são os limites éticos da autonomia? Neste painel de discussão sobre ética clínica, utentes de serviços, parteiras, obstetras, filósofos e especialistas em ética respondem a dois casos hipotéticos retirados de cenários da vida real.

 Casos [trata-se de casos hipotéticos, embora baseados na experiência clínica dos autores.]

Caso 1

Felicity tem 44 anos e está à espera do seu primeiro filho. Tem antecedentes de ansiedade e depressão e um índice de massa corporal elevado, de 40. A gravidez tem decorrido sem complicações, embora se estime que o bebé seja grande (acima do percentil 95).

Hoje, está com 39 semanas de gestação. Foi-lhe proposta a indução do parto às 40 semanas, devido à idade materna.

Felicity deseja o mínimo de intervenção durante o parto. Ela recusa o registo contínuo da frequência cardíaca fetal e gostaria de usar uma piscina de parto para o trabalho de parto e o parto. Não deseja epidural para alívio da dor.

Na consulta de hoje, Felicity não aceita a proposta de indução do parto. Ouviu dizer que a indução aumenta a probabilidade de intervenções, incluindo cesarianas de emergência, e está preocupada com a hiperestimulação e/ou com o facto de simplesmente não funcionar e “acabar” por fazer uma cesariana na mesma.

Como deve a equipa de maternidade de Felicity responder à sua recusa dos cuidados recomendados? 

Caso 2

Rose tem 37 anos. Está grávida de 39 semanas, na sua segunda gravidez. A sua primeira experiência de parto foi muito traumática. Anteriormente, teve um parto rápido, chegando à unidade de obstetrícia com 8 cm de dilatação, mas foi transferida para a sala de partos devido ao progresso lento na segunda fase. Foi submetida a uma cesariana de emergência após uma tentativa falhada de parto com fórceps e uma hemorragia grave de 1800 ml. A recuperação do parto foi prolongada e muito dolorosa, e o seu filho ficou com uma pequena marca por cima do olho.

Esta gravidez tem corrido sem complicações, exceto uma anemia que foi tratada com injeções de ferro e a sua hemoglobina está agora dentro dos valores normais, em 105 g/l.

Rose está preocupada com o parto iminente. Achou o parto anterior assustador; não sabia o que estava a acontecer e pensou que ia morrer. Desta vez, gostaria de ter o seu bebé em casa e solicitou um parto domiciliar. Se isso não for possível com o apoio da equipa de parteiras, prefere dar à luz espontaneamente a ser forçada a ir para o hospital. Diz que não dará permissão para o uso de fórceps ou cesariana em nenhuma circunstância.

Como deve a equipa de maternidade de Rose responder ao seu pedido de parto em casa, que pode estar associado a riscos significativos?

Safoora Teli                                      Experiência vivida / perspetiva da utente

Para a maioria das pessoas, optar por dar à luz “fora das diretrizes” não é uma decisão leviana. Pode haver experiências significativas e pesquisas extensas por trás dessa posição. Por ser um caminho não convencional e, às vezes, difícil, que pode envolver desacordo da família, também pode gerar conflitos, com expectativas de ter que “convencer” a equipa clínica e até mesmo considerar desligar-se dela.

   Nestes cenários, a equipa tem o ensejo de desfazer a ideia de que são adversários e afirmar a sua posição como profissionais de confiança que oferecem uma rede de segurança durante a gravidez, o parto e mais além.

   O poder final de decisão sobre o parto pertence à pessoa. Ao ganhar coragem para sair “das diretrizes”, Rose e Felicity já reconheceram isso. As equipas também devem reconhecer claramente essa autonomia, demonstrando assim o seu significado e a sua abordagem centrada na pessoa.

   Toda a interação deve começar com empatia. Assim, as equipas devem estar sempre cientes das sensibilidades relacionadas com o bem-estar mental de ambas as mulheres. A interação que parece conflituosa pode aumentar os níveis de stresse, o que não é benéfico na gravidez avançada e também pode desencadear uma resposta de luta ou fuga, levando-as ao afastamento.

   É fundamental que a equipa não use táticas de intimidação, pois isso não é uma base sólida para a tomada de decisões. A Rose teve uma experiência traumática no hospital e sente-se insegura e vulnerável. Qualquer informação sobre os riscos potenciais da sua situação deve ser transmitida com sensibilidade. A conversa deve começar com a validação da sua experiência passada. Em seguida, qualquer menção aos riscos deve ser feita depois de a equipa ter reiterado o seu objetivo principal de apoiá-la para que tenha um parto seguro e sem stresse.

   Idealmente, Rose deveria ter recebido apoio psicológico após o seu primeiro parto. Pode não ser aconselhável revisitar o seu trauma nesta fase, mas a equipa deve disponibilizar recursos e ferramentas adequados para apoiar a sua saúde mental. Podem usar perguntas abertas para avaliar os seus valores, por exemplo, se ela consideraria ir para a maternidade numa fase mais precoce ou mais tardia do trabalho de parto desta vez. Se ela estiver decidida a ter um parto em casa, outras considerações poderiam ser exploradas, como continuar a aumentar os seus níveis de ferro e colocar um cateter. Ela aceitou a injeção de ferro, o que indica uma aceitação de intervenções para uma necessidade existente.

   Embora a equipa esteja focada em mitigar os riscos, dadas as incertezas, existe uma margem de variabilidade; os exames de crescimento nem sempre são precisos, e mães mais velhas ou com índice de massa corporal mais elevado nem sempre têm partos mais complicados. Da mesma forma, a indução pode realmente levar a uma cascata de intervenções. Como mãe pela primeira vez, não há indícios prévios de como será a experiência de parto de Felicity. Existe uma possibilidade real de que tudo corra bem. De qualquer forma, se ela se sentir ignorada e pressionada, irá lembrar-se disso e, tal como Rose, carregará esse peso consigo, o que poderá desencadear ansiedade e depressão, afetando a sua saúde pós-parto, o seu percurso como mãe e as futuras gravidezes.

   Cada indivíduo é único e deve ser encorajado a fazer um plano de parto de acordo com as suas necessidades. Ela deve sentir que a sua voz é fundamental no processo de tomada de decisão, não em suposições baseadas apenas em categorias nas quais se enquadra o seu perfil. Se a equipa der apoio positivo e a defender sem a rotular ou descartar, isso criará uma base de confiança. Se for necessária alguma intervenção não planeada, as sugestões da equipa serão vistas como uma extensão desse apoio e serão mais bem-vindas.

   As equipas devem concentrar-se no que Rose e Felicity estão dispostas a aceitar e não nas suas recusas. Felicity está feliz por estar num ambiente clínico e é mais provável que aceite as intervenções necessárias se estiver satisfeita com a sua equipa. Rose não quer estar no hospital, mas está disposta a ter parteiras no parto em casa. Se sentir empatia da sua equipa, é mais provável que confie nelas e considere a transferência para o hospital, se lhe for recomendado.

   Pressionar as mulheres na tomada de decisões sobre o parto é desmotivador e leva a traumas duradouros e desconfiança nos cuidados de maternidade. Por outro lado, se em cada fase do processo elas se sentirem ouvidas e apoiadas para fazerem as suas próprias escolhas, a experiência será satisfatória e capacitante.

Claire Litchfield, Anna Madeley               Perspetiva das parteiras

Embora as diretrizes e o ensino atuais incentivem as parteiras a respeitar e apoiar escolhas não normativas em relação ao parto, é discutível que elas realmente sintam isso na prática. Algumas parteiras relataram sentir medo de sanções e/ou culpa caso ocorram resultados adversos que poderiam ser evitados. Existe o potencial de dano moral quando as parteiras se deparam com situações físicas angustiantes que ultrapassam os limites do seu âmbito profissional.

   No caso 1, as parteiras que apoiam Felicity podem sentir-se em conflito entre apoiar as escolhas e o seu papel fundamental de otimizar os processos fisiológicos normais.1 Atualmente, não há orientações para parteiras que desejam recusar-se a atender mulheres que fazem escolhas de parto não normativas, e isso pode ser um tema para discussão e debate no futuro.

   Algumas organizações do Serviço Nacional de Saúde proporcionam aconselhamento sobre opções de parto, geralmente com uma parteira consultora, possivelmente numa clínica dedicada a opções de parto, onde podem ser elaborados planos detalhados. Estes planos proporcionam às parteiras assistentes um apoio organizacional explícito. Muitos planos procuram mitigar os riscos ou maximizar a segurança, o que pode envolver negociação com as mulheres. Por exemplo, as parteiras podem propor um acesso intravenoso a Rose (caso 2) durante o trabalho de parto e a administração de medicamentos imediatamente após o parto para reduzir a probabilidade de hemorragia. As clínicas de opções de parto são recomendadas pelo National Institute for Health and Care Excellence (NICE) para prestarem aconselhamento às mulheres que solicitam parto por cesariana sem indicação clínica2; no entanto, na prática, também são utilizadas para planear os cuidados para aquelas que fazem outras escolhas não normativas.

   Se as organizações não disponibilizam clínicas ou planeamento de opções de parto, as parteiras podem sentir-se pessoalmente mais expostas e experimentar sentimentos intensos de medo. Quando as parteiras trabalham em organizações que não disponibilizam recursos de apoio a partos domiciliares ou equipas de parteiras, ou que dão prioridade a critérios rigorosos/conformidades com orientações clínicas, pode ser praticamente impossível que as parteiras atendam mulheres que optam por cuidados não normativos e respeitem as condições do seu cargo. Isso pode efetivamente forçar as mulheres a explorar alternativas, como cuidados de maternidade privados, parto livre ou de aceitação reticente.

   Do ponto de vista jurídico e regulamentar, os médicos são obrigados a prestar cuidados centrados na pessoa, mesmo quando os cuidados recomendados são recusados ou não estão previstos nas diretrizes clínicas. O apoio às mulheres no seu direito de recusar aspetos dos cuidados que lhes são prestados ou de fazer escolhas difíceis está explicitamente refletido nos códigos de conduta profissional dos médicos.1,3 Estes códigos protegem os médicos de ações regulamentares e judiciais, desde que sejam respeitados os princípios fundamentais do consentimento informado e da tomada de decisão apoiada. As mulheres também são protegidas por precedentes legais e instrumentos estatutários para terem a gravidez e o parto da forma e no local que desejarem. Essas proteções incluem a escolha com quem, em que medida os cuidados perinatais são aceites (na totalidade, em parte ou não), e, finalmente, e mais importante, a capacidade de não serem obrigadas a ceder a autonomia corporal em relação à preferência do prestador de cuidados por ações ou escolhas, apenas pelo facto de discordarem de uma decisão ou de a sua decisão ser considerada arriscada, irracional ou que coloca a si própria ou ao feto em perigo.[Re MB (Medical Treatment) [1997] EWCA Civ 3093, 1997; St George’s Healthcare NHS Trust v SR v Collins and others ex parte S, 1998] Os casos apresentados aos tribunais europeus e nacionais reforçam estes direitos e sublinham a necessidade de proteger, através de práticas dinâmicas para obter o consentimento informado e a presunção de capacidade mental, salvo prova em contrário, a necessidade de proteger a autonomia através da capacidade de exercer a escolha e o controlo. Estas questões são importantes para as mulheres4-6 que informam a tomada de decisões imediatas e subsequentes, quer se trate de recusar os cuidados recomendados, de se retirar completamente dos cuidados ou de fazer escolhas cada vez mais não normativas. A dicotomia entre os direitos legais à escolha, à agência e à autonomia e as ações e restrições institucionais na prestação de cuidados destinados a influenciar o cumprimento está bem documentada,7 assim como as consequências dessas escolhas para a tomada de decisões futuras e continuadas.8 Estas questões reforçam a natureza do desafio para as parteiras na facilitação de escolhas complexas centradas na pessoa, especialmente no contexto de escolhas não normativas, como representado por este par de casos.

Brenda Kelly, Lawrence Impey                 Perspetiva obstétrica

Uma pessoa tem o direito moral e legal de recusar intervenções médicas e cuidados, e os cuidadores têm o dever de cuidar dela da melhor forma possível, desde que os cuidados sejam aceites. Cuidados eficazes envolvem ouvir as preocupações do doente, interagir e construir confiança.

   É fundamental compreender as razões por trás do plano de parto e trabalho de parto de uma pessoa, incluindo as suas esperanças e medos. É importante avaliar a sua compreensão dos riscos associados ao desvio dos cuidados recomendados durante a gravidez e o parto, o nível de risco que consideram aceitável e os resultados que mais valorizam. O processo de tomada de decisão envolve frequentemente compromissos entre o que a mãe considera ideal para si, quer esteja relacionado com o bem-estar físico ou psicológico, e os riscos associados para o bebé. Apresentar as melhores provas disponíveis de forma compreensível e aplicável é fundamental para uma tomada de decisão baseada em provas.

   A previsão de riscos em eventos normais da vida, como o parto, é imprecisa, e muitas intervenções podem ser necessárias para prevenir um único resultado adverso, como um nado-morto. Um espaço respeitoso e psicologicamente seguro para conversar pode ajudar a evitar o abandono dos cuidados de maternidade, o que pode, sem querer, aumentar as taxas de natimortalidade. Intervenções como a indução do parto privilegiam muitas vezes a saúde do feto em detrimento da saúde da mãe e podem causar traumas físicos e psicológicos à mãe, afetando o seu bem-estar a longo prazo.

   Felicity corre um risco aumentado de nado-morto além das 40 semanas de gestação, e particularmente entre as 41 e 42 semanas, principalmente devido à sua idade. Embora a sua gravidez não tenha tido até agora complicações, este risco é reduzido, mas não eliminado. A probabilidade absoluta de um nado-morto é baixa, cerca de 1 em 100. Embora a indução do parto não aumente o risco de cesariana, ela medicaliza a experiência do parto e pode torná-la menos positiva para a mulher. Não induzir o parto aumenta ligeiramente o risco absoluto de natimortalidade e também deve ser reconhecido pela utente que o avanço da gestação numa mãe primípara de 44 anos pode aumentar a probabilidade de complicações no parto, como sofrimento fetal, mesmo que o parto comece naturalmente, comprometendo potencialmente a sua experiência de parto.

   O anterior parto traumático de Rose influencia as suas decisões atuais sobre a gravidez. Trabalhar com Rose para otimizar a sua experiência de parto pode ajudar a reconstruir o seu bem-estar psicológico. Ela tem pelo menos 70% de hipóteses de ter um parto vaginal sem complicações, dado o progresso do seu trabalho de parto anterior. Um parto em casa, se devidamente apoiado, pode oferecer-lhe a melhor hipótese de uma experiência positiva, uma vez que provavelmente se sentiria mais relaxada. No entanto, o trabalho de parto e o parto podem ser imprevisíveis. Rose tem 1 em 200 de hipóteses de a cicatriz uterina de uma cesariana anterior se romper durante o trabalho de parto. Se isso ocorrer em casa, há mais de 50% de hipóteses de um nado-morto, com risco significativo para a sua vida devido a hemorragia interna. Seria necessária uma transferência urgente para o hospital, a fim de maximizar a segurança para ela e para o seu bebé.

   Embora manter a esperança seja importante para o bem-estar psicológico de Rose, é fundamental conversar e chegar a um acordo sobre um plano de contingência para possíveis complicações, incluindo quando e por que uma transferência para o hospital seria recomendada. É essencial determinar se ela concordaria com a transferência seguindo o conselho dos seus cuidadores. Essas conversas podem ser profundamente perturbadoras para Rose, exigindo apoio adicional à saúde mental e conversas de acompanhamento. Se decidir ter um parto em casa, Rose tem de ser apoiada, pois o afastamento dos cuidados médicos e o parto livre acarretam riscos muito maiores. Cuidar dela em casa exigirá recursos e poderá traumatizar ainda mais a Rose e os seus cuidadores em caso de emergência, pois a ajuda deles seria limitada. Quaisquer diretivas antecipadas contra a intervenção devem ser revistas em caso de emergência em casa.

   O debate sobre opções de parto não normativas requer formação, empatia, experiência e tempo, envolvendo frequentemente várias consultas. As necessidades de outros doentes e profissionais também têm de ser consideradas, uma vez que dedicar tempo e recursos a um doente pode comprometer os cuidados prestados a outros, criando potencialmente conflitos num cenário de recursos limitados. Nem todos os profissionais se sentem suficientemente experientes ou psicologicamente seguros para prestar cuidados de parto fora das diretrizes-padrão. Experiências traumáticas para os profissionais podem afetar a sua capacidade de cuidar de outras mães no futuro.

   Em resumo, equilibrar os direitos e preferências das mães com o dever de cuidar requer uma comunicação sensata e respeitosa, além de compreensão dos riscos associados. É essencial criar um contexto favorável à tomada de decisões informadas e ao planeamento de contingências, mesmo quando se trata de escolhas de parto não normativas. Essa abordagem garante o bem-estar tanto da mãe quanto dos cuidadores, minimizando traumas e maximizando experiências positivas de parto.

Rebecca CH Brown, Elselijn Kingma                 Perspetiva filosófica

Os casos acima referidos podem, compreensivelmente, ser considerados preocupantes pelos profissionais de saúde. Isso não significa que os princípios éticos fundamentais deixem de se aplicar. Pelo contrário: eles são essenciais para considerar a melhor forma de apoiar alguém que deseja agir “fora das diretrizes”. [Unpublished Kingma, E. (2021) Toelichting Ethische Aspecten Verloskundige Zorvragen Buiten de Richtlijn.]

   As grávidas, tal como qualquer outro adulto com capacidade de discernimento, mantêm o seu direito quase absoluto de recusar tratamento médico.9 No contexto da maternidade, a autonomia reveste-se de especial importância e, ao mesmo tempo, corre um risco particular de ficar comprometida. É de especial importância uma vez que os cuidados de maternidade (1) envolvem partes do corpo socialmente sensíveis e (2) visam frequentemente promover a saúde de um (o bebé) em detrimento de outro (a mãe).10 Existe um risco particular de comprometer a autonomia das pessoas em trabalho de parto, uma vez que muitas vezes esta não é devidamente respeitada.10-12 O papel dos profissionais de cuidados de maternidade na facilitação da tomada de decisões não é coagir, persuadir ou manipular as pessoas para que façam a escolha “correta”, mas sim permitir que a pessoa grávida tome decisões genuinamente autónomas.

   Um elemento fundamental para isso é construir confiança, em vez de miná-la. Isso requer comunicação solidária, disposição para levar a sério as preocupações da pessoa grávida e garantia consistente de que o seu direito de decidir o que será feito sempre será respeitado.

   Mas em casos “fora das diretrizes”, como os discutidos aqui, os profissionais de saúde muitas vezes estão preocupados com o risco para a mãe e o bebé. De que forma os profissionais de saúde podem cumprir melhor as suas obrigações éticas e profissionais de prestar cuidados seguros e justos nesses casos, respeitando ao mesmo tempo a autonomia das mulheres e construindo confiança?

   A proposta de diretrizes holandesas, baseada em extensas análises éticas, recomenda que os prestadores de cuidados tomem as medidas descritas na Caixa 1:

   Podemos aplicar isto tanto à Felicity como à Rose. Em ambos os casos, o profissional de saúde deve dedicar tempo para identificar as preocupações subjacentes (passo 1). Por que é que a Felicity quer intervenções mínimas? Quais são as crenças, valores e preocupações subjacentes? Somente com uma compreensão adequada destes aspetos é que o profissional de saúde pode dar informações precisas, relevantes e imparciais sobre os prós e contras da indução (passo 2). Pode expressar preocupação com a decisão de Felicity se achar que isso é necessário, mas apenas deixando claro que respeitará a escolha de Felicity e fará o possível para cuidar dela e do seu bebé em qualquer cenário (passo 3). Se Felicity continuar a preferir não induzir, o profissional de saúde e Felicity devem elaborar um plano de cuidados para os cuidados mais seguros possíveis, consistentes com os valores e preocupações de Felicity. Isto deve passar, por exemplo, pelo diálogo sobre em que fase a Felicity consideraria a indução, quando esta decisão pode ser rediscutida, as suas preferências em relação à auscultação intermitente (dada a sua posição contra a monitorização contínua da frequência cardíaca fetal) e assim por diante (passo 5). O plano deve ser claramente escrito e comunicado ao resto da equipa que está (ou provavelmente estará) envolvida nos seus cuidados.

 

Caixa 1 - Recomendações para os profissionais de saúde na resposta a pedidos de cuidados fora das directrizes15

1.      Aborde o pedido (ou recusa) com a mente aberta, tomando cuidado para identificar as preocupações subjacentes. Muitas vezes, as preocupações podem ser retiradas ou atenuadas no contexto de uma boa comunicação.

2.      Dê informações relevantes e imparciais. Isso pode incluir procurar corrigir crenças falsas e informar (com sensatez) a grávida de que não recomenda o que ela está a propor.

3.      Trabalhe com a grávida para identificar a versão mais segura de um plano de cuidados consistente com os seus desejos. Implemente esse plano, envolvendo toda a equipa de cuidados.

4.      Deixe claro que a grávida pode sempre mudar de ideias e verifique regularmente se o plano precisa de ser alterado (mas não com tanta frequência que constitua intimidação ou pressão, ou que prejudique a confiança).

5.      Registe cuidadosamente no processo clínico que o plano se desvia das recomendações médicas e porquê, bem como tudo o que foi acordado. Isto serve para proteger o profissional de saúde e facilitar a colaboração da equipa.

    Para Rose, também, o ponto de partida tem de compreender as suas crenças e valores fundamentais (passo 1). Dada a experiência negativa anterior de Rose, será particularmente importante construir confiança e tranquilizá-la de que não será sujeita a intervenções sem o seu consentimento.13,14 O profissional de saúde responsável por Rose precisará garantir que ela seja informada (de forma sensata e não forçada) sobre os riscos associados ao seu tipo de parto, como rotura uterina, e que ela prefere esses riscos aos associados a ambientes alternativos de parto (passo 2). Ao elaborar um plano de cuidados (passo 3), a execução cuidadosa dos passos 1 e 2 pode abrir caminhos anteriormente indisponíveis, como uma unidade de obstetrícia paralela ou a auscultação intermitente. Este plano pode ser revisto e alterado conforme apropriado (passo 4) e deve ser partilhado com toda a equipa de cuidados (passo 5). Quando os membros da equipa tiverem reservas, eles devem ser tranquilizados de que as preferências e valores de Rose foram cuidadosamente considerados e os riscos que ela enfrenta lhe foram explicados. E também que, ao apoiar um parto domiciliar assistido (em oposição a um parto livre), eles estão a proporcionar os melhores e mais seguros cuidados possíveis para Rose e seu bebé.15

   Casos como os de Felicity e Rose podem ser preocupantes para os profissionais de saúde. O “sucesso” no planeamento dos cuidados para essas mulheres não deve ser medido pela extensão em que elas podem ser persuadidas a cumprir os cuidados recomendados. Em vez disso, deve concentrar-se em facilitar decisões autónomas e informadas e em usar a experiência das equipas de cuidados para fornecer os melhores cuidados possíveis para a mãe e o bebé, de acordo com essas decisões.

Dominic JC Wilkinson, Helen Turnham            Ética clínica

Os comentários acima já exploraram muitas das considerações éticas importantes sobre os casos. Além disso, se levados à nossa comissão de ética clínica, o nosso objetivo seria ajudar os clínicos a identificar e separar várias dúvidas éticas distintas.

Autonomia e recursos

Os dois casos apresentados neste artigo representam duas formas distintas pelas quais podem surgir desafios à autonomia. A primeira (como no caso 1) é quando os doentes recusam o tratamento oferecido. A segunda (caso 2) é quando os doentes solicitam opções que os profissionais de saúde não aprovam ou não disponibilizam.

   Uma resposta ética padrão a tais desafios distingue entre autonomia negativa e o direito absoluto dos doentes de recusar tratamento, versus autonomia positiva e a falta de direito dos doentes de exigir tratamento (particularmente quando os recursos são escassos ou quando isso terá um impacto negativo no atendimento a outros doentes). Mas, como fica claro na discussão anterior, na prática, as linhas entre autonomia positiva e negativa podem ser difusas. A recusa de opções de tratamento também pode afetar os recursos e outros doentes, porque esses doentes podem precisar de monitoramento adicional ou formas alternativas de cuidados. E (como no segundo caso) os pedidos de tratamento podem coincidir com a recusa de outros tratamentos. Como Rose não está disposta a dar à luz no hospital, é errado os médicos compararem as opções de parto no hospital ou em casa. As opções realistas para ela são o parto assistido em casa ou o parto livre, muito mais arriscado.

   Mencionámos um limite potencial à autonomia do doente – o da escassez de recursos médicos, incluindo físicos (salas de cirurgia, espaço para partos), humanos (tempo da equipa) e financeiros. Mas, embora as limitações de recursos sejam uma consideração eticamente importante, são difíceis de aplicar a casos individuais. Isso deve-se a várias razões. Primeiro, ao contrário das decisões sobre o fornecimento de medicamentos caros ou órgãos para transplante, a alocação não é necessariamente uma escolha entre uma coisa ou outra, mas sim quanto de um recurso deve ser oferecido. E pode ser muito difícil traçar uma linha não arbitrária. Em segundo lugar, fornecer o recurso desejado pode ser viável para um doente individual e não levará necessariamente a um compromisso no atendimento a outros doentes. O problema pode surgir quando tais casos ocorrem repetidamente, pois isso pode comprometer a prestação de cuidados a outras pessoas. Mas pode ser problemático negar às mulheres o acesso a opções de tratamento que estariam disponíveis para outras mulheres com base nisso (por exemplo, a opção de parto em casa ou cesariana). Não se trata simplesmente de uma questão de saber se um recurso está disponível, se há evidências que apoiem uma escolha ou mesmo se é “economicamente viável”. A verdadeira questão é se o benefício (por exemplo, em termos de respeitar as escolhas da mulher em relação ao parto) é suficiente para justificar o fornecimento do recurso solicitado. Mas essa é uma questão muito mais complicada.

Mulher versus feto

Em seguida, um constrangimento geral à autonomia do doente é a possibilidade de uma escolha prejudicar outra pessoa. As escolhas sobre o parto que não se enquadram em diretrizes podem ser consideradas particularmente difíceis devido ao potencial de danos ao feto ou à futura criança. É importante notar que os comentários acima não se detêm nessa questão específica. Isso porque, pelo menos no contexto do Reino Unido, os direitos da mulher de tomar decisões sobre o seu próprio corpo e sobre o parto prevalecem sobre as considerações relativas ao bem-estar da criança. Isso não significa que a preocupação com a futura criança seja eticamente irrelevante.16 Na maioria dos casos, essas preocupações estarão na mente da mulher. Elas provavelmente também sustentarão as recomendações das parteiras e dos obstetras. No entanto, devemos deixar claro que esse fator não deve limitar ou restringir as escolhas de Felicity ou Rose. Não se justificaria forçar Felicity a induzir o parto ou Rose a dar à luz no hospital.

   No entanto, pode ser muito importante conversar abertamente sobre as preocupações com os danos ao feto/futuro filho. Isso porque alguns médicos podem ter sido formados ou trabalhado em outras partes do mundo que limitam a autonomia das mulheres em prol da criança. É importante ajudá-los a entender como a abordagem pode ser diferente em países como o Reino Unido. Podemos também explorar se as escolhas de uma mulher entrariam em conflito com os valores e crenças pessoais dos médicos. Dar aos médicos a oportunidade de refletir sobre os seus próprios valores pode ajudar a aliviar o sofrimento moral. Também pode indicar opções que estão disponíveis para eles, incluindo apoiar a escolha da mulher, apesar da sua discordância pessoal,17 ou a opção de objeção de consciência (quando há outros médicos disponíveis para apoiar a mulher nos seus cuidados) <