08 novembro 2025

Vergonha e culpa

Esses médicos querem quebrar o ciclo de vergonha e culpa em Medicina.

Charlotte Huff, jornalista independente

Tradução do texto publicado em 28 de outubro de 2025

These doctors want to break the cycle of shame and blame in medicine

 A aflição que Will Bynum mais tarde reconheceu como vergonha tomou conta dele quase imediatamente.

Bynum, então no seu segundo ano de internato como médico de família, estava a terminar um longo turno quando foi chamado para um parto de emergência. Para salvar a vida do bebé, ele usou um dispositivo de vácuo, que aplica sucção para ajudar no parto rápido.

O bebé nasceu ileso. Mas a mãe sofreu um grave rasgão vaginal que exigiu uma reparação cirúrgica por um obstetra. Logo depois, Bynum retirou-se para um quarto vazio do hospital, tentando processar os seus sentimentos sobre aquela complicação inesperada.

«Eu não queria ver ninguém. Não queria que ninguém me encontrasse», disse Bynum, agora professor associado de medicina familiar na Faculdade de Medicina da Universidade Duke, na Carolina do Norte. «Foi uma reação realmente muito primitiva.»

A vergonha é uma emoção humana comum e altamente desconfortável. Nos anos que se seguiram, Bynum tornou-se uma voz de destaque entre médicos e investigadores que defendem que a intensidade do processo de formação médica pode amplificar a vergonha nos futuros médicos.

Ele agora faz parte de um trabalho emergente para ensinar o que descreve como «competência em vergonha» a estudantes de medicina e médicos em exercício. Embora a vergonha não possa ser eliminada, Bynum e os seus colegas de investigação afirmam que as competências e práticas relacionadas podem reduzir a cultura da vergonha e promover uma forma mais saudável de lidar com ela.

Sem essa abordagem, argumentam eles, os médicos do futuro não reconhecerão e não lidarão com as emoções em si mesmos e nos outros. E, assim, correm o risco de transmiti-las aos seus doentes, mesmo que inadvertidamente, o que pode piorar-lhes a saúde. Culpar os doentes pode ter um efeito contrário, disse Bynum, tornando-os defensivos e levando ao isolamento e, às vezes, ao uso de substâncias.

Culpar os doentes

O ambiente político dos EUA apresenta um obstáculo adicional à mudança da cultura da vergonha. O secretário de Saúde e Serviços Humanos, Robert F. Kennedy Jr., e outros altos funcionários da área de saúde do governo Trump acusaram publicamente o autismo, a diabetes, o transtorno de défice de atenção e hiperatividade e outras doenças crónicas, em grande parte, de serem devidas a escolhas de estilo de vida das pessoas com essas condições – ou dos seus pais.

Por exemplo, o comissário da FDA, Marty Makary, sugeriu numa entrevista à Fox News que mais casos de diabetes poderiam ser tratados com aulas de culinária, em vez de «apenas dar insulina às pessoas».

Mesmo antes da mudança política, essa atitude também se refletia nos consultórios médicos. Um estudo de 2023 descobriu que um terço dos médicos relatou sentir repulsa ao tratar doentes com diabetes tipo 2, que às vezes está associada à obesidade. Cerca de 44% consideravam que esses doentes não tinham motivação para mudar o estilo de vida, enquanto 39% disseram que eles tendiam a ser preguiçosos.

«Não gostamos de sentir vergonha. Queremos evitá-la. É muito desconfortável», disse Michael Jaeb, en­fermeiro da Universidade de Wisconsin-Madison, que realizou uma revisão de estudos relacionados, publicada em 2024. E se a fonte da vergonha for o médico, o doente pode perguntar: «Por que voltaria?» Em alguns casos, esse doente pode generalizar isso para todo o sistema de saúde.

De facto, alguns doentes, como Christa Reed, evitaram os médicos por causa disso. Reed abandonou os cuidados médicos regulares durante duas décadas, cansada de palestras relacionadas com o peso. «Quando estava grávida, disseram-me que as minhas náuseas matinais se deviam ao facto de eu ser uma mulher plus size, com excesso de peso», disse ela.

Com exceção de alguns problemas médicos urgentes, como um corte infetado, Reed evitava os profissionais de saúde. «Porque ir ao médico para uma consulta anual seria inútil», disse a fotógrafa de casamentos da região de Minneapolis, agora com 45 anos. «Eles só me diriam para perder peso.»

Então, no ano passado, uma forte dor na mandíbula levou Reed a procurar atendimento especializado. Uma medição de rotina da pressão arterial mostrou uma leitura altíssima, levando-a às urgências. «Eles disseram: ‘Não sabemos como consegue andar normalmente’», contou ela.

Desde então, Reed encontrou médicos que a apoiam e têm experiência em nutrição. A sua pressão arterial permanece controlada com medicação. Ela também está quase 45 kg abaixo do seu peso máximo e faz caminhadas, anda de bicicleta e levanta pesos para ganhar músculos.

Uma ética de trabalho «masoquista»

Savannah Woodward, psiquiatra da Califórnia, faz parte de um grupo de médicos que tenta chamar a atenção para os efeitos prejudiciais da vergonha e desenvolver estratégias para preveni-la e mitigá-la. Embora esse esforço esteja em fase inicial, ela foi corresponsável por uma sessão sobre a espiral da vergonha na reunião anual da Associação Americana de Psiquiatria, em maio.

Se os médicos não reconhecerem a vergonha em si mesmos, podem correr o risco de depressão, exaustão, dificuldades para dormir e outros efeitos em cadeia que prejudicam o atendimento ao doente, disse ela.

«Muitas vezes não falamos sobre a importância da conexão humana na medicina», disse Woodward. «Mas se o seu médico está exausto ou sente que não merece ser o seu médico, os doentes sentem isso. Eles percebem.»

Numa pesquisa realizada este ano, 37% dos estudantes finalistas relataram ter sentido constrangimentos públicos em algum momento da faculdade de medicina, e quase 20% descreveram humilhações públicas, de acordo com uma pesquisa anual da Associação Americana de Faculdades de Medicina.

Os estudantes de medicina e os médicos internos já são propensos ao perfeccionismo, juntamente com uma ética de trabalho quase «masoquista», como Woodward descreveu. Então, são sujeitos a uma série de exames e anos de formação, debaixo de um escrutínio constante e com a vida dos doentes nas suas mãos.

Durante a formação, os médicos trabalham em equipas e fazem apresentações para o corpo docente sobre os problemas de saúde de doentes e a abordagem de tratamentos recomendada. «Você tropeça nas palavras. Esquece coisas. Confunde as coisas. Fica em branco», conta Bynum. E então a vergonha aparece, diz ele, levando a outros pensamentos debilitantes, como «Não sou bom nisto. Sou um idiota. Todos à minha volta teriam feito isto muito melhor'».

No entanto, a vergonha continua a ser «uma falha na sua armadura, que não se quer mostrar», disse Karly Pippitt, médica de família da Universidade do Utah, que ensinou estudantes de medicina sobre o potencial da vergonha como parte de um curso mais amplo de ética e humanidades.

«Estás a cuidar de uma vida humana», disse ela. «Deus te livre de agir como se não fosses capaz ou de mostrar medo.»

Acabar com o ciclo da vergonha

Ao ensinar os estudantes sobre a vergonha, o objetivo é ajudar os futuros médicos a reconhecerem essa emoção em si mesmos e nos outros, para que não perpetuem o ciclo, disse Pippitt. «Se sentiu vergonha durante toda a sua formação médica, isso normaliza essa experiência», disse ela.

Acima de tudo, os médicos em formação podem trabalhar para reformular a sua mentalidade quando recebem uma nota baixa ou têm dificuldade em dominar uma nova competência, disse Woodward, psiquiatra da Califórnia. Em vez de acreditar que falharam como médicos, podem concentrar-se no que fizeram de errado e nas formas de melhorarem.

No ano passado, Bynum começou a ensinar aos médicos da Duke sobre competência em relação à ver­gonha, começando com cerca de 20 médicos internos em obstetrícia e ginecologia. Este ano, ele lançou uma iniciativa maior com o The Shame Lab, uma parceria de investigação e formação entre a Duke University e a University of Exeter, na Inglaterra, da qual ele é cofundador, para envolver cerca de 300 pessoas do Departamento de Medicina Familiar e Saúde Comunitária da Duke, incluindo professores e médicos inter­nos.

Este tipo de formação é raro entre os colegas da médica interna de obstetrícia e ginecologia da Duke, Canice Dancel. Dancel, que concluiu a formação, esforça-se agora por apoiar os estudantes à medida que aprendem competências como suturar. Ela espera que eles transmitam essa abordagem numa «reação em cadeia de gentileza mútua».

Mais de uma década depois de Bynum ter passado por aquele parto de emergência angustiante, ainda se arrepende de a vergonha o ter impedido de verificar como estava a mãe, como se costumava fazer após o parto. «Eu estava com muito medo de como ela iria reagir perante mim», disse ele.

«Foi um pouco devastador», disse ele, quando um colega lhe contou mais tarde que a mãe gostaria que ele tivesse passado por lá. «Ela tinha passado uma mensagem para me agradecer por salvar a vida do seu bebé. Se eu tivesse dado a mim mesmo a oportunidade de ouvir isso, teria ajudado muito na minha recuperação: ter sido perdoado.» <

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