https://doi.org/10.1093/brain/awae060
BRAIN 2024: 147;
2274–2288 | 2274
Limitação de tratamentos
de suporte vital em perturbações da consciência: ética e prática
India
A. Lissak e Michael J. Young
Department of
Neurology, Massachusetts General Hospital and Harvard Medical School, Boston,
USA
Tradução espontânea do resumo e parte
final do artigo
Limitation of life sustaining therapy in disorders of consciousness:
ethics and practice
Resumo
As
discussões clínicas sobre a continuação ou “limitação de tratamentos de suporte
vital” (LTSV) em doentes com perturbações da consciência (PdC) resultantes de lesões
cerebrais graves são difíceis e tragicamente necessárias. As diferentes
perspetivas culturais, filosóficas e religiosas contribuem para uma grande
heterogeneidade nas abordagens clínicas à LTSV, como se pode ver nas diferenças
regionais e na variabilidade entre médicos. Aqui, apresentamos uma análise
ética dos fatores que influenciam as decisões sobre LTSV em doentes com PdC.
Começamos
por apresentar o desafio clínico e ético e clarificamos a distinção entre
retirar e não iniciar tratamentos de suporte à vida. Em seguida, descrevemos
fatores relevantes que influenciam a tomada de decisão, incluindo a incerteza
diagnóstica e prognóstica, a perceção da dor, a definição de um “bom” resultado
e o papel dos médicos. Nas secções finais, exploramos a variação global na
prática da LTSV no que se refere a doentes com PdC e analisamos o impacto das
perspetivas culturais e religiosas na sua abordagem.
Compreender
e respeitar as perspetivas culturais e religiosas dos doentes e dos seus
representantes é essencial para proteger a autonomia dos doentes e promover
cuidados coerentes com os objetivos em momentos críticos da tomada de decisões
médicas que envolvem doentes em estado de coma.
[…]
Perspetivas religiosas sobre a limitação
de tratamentos de suporte vital
Dada
a sua natureza carregada de valores, os antecedentes religiosos e as crenças de
um doente ou da sua família também podem ter um peso significativo nas decisões
sobre os TSV em doentes com PdC. A identificação com um grupo religioso
específico não significa necessariamente que os doentes ou os seus familiares
subscrevam todos os princípios da sua fé, mas pode proporcionar-lhes apoio
espiritual ou orientação, designadamente no contexto de TSV.
As
perspetivas religiosas podem influenciar de várias maneiras importantes os debates
sobre os planos de cuidados em doentes com PdC. Em primeiro lugar, a
interpretação de certos textos religiosos pode fornecer orientações diretas
sobre se as LTSV são permitidas e, em caso afirmativo, em que circunstâncias
são apropriadas. Dependendo do nível de religiosidade do doente ou do seu
representante, os líderes religiosos ou conselheiros podem ser consultados,
direta ou indiretamente, durante as decisões sobre LTSV. Em segundo
lugar, as crenças religiosas ou espirituais de uma pessoa podem influenciar a
crença num poder superior, o que se pode traduzir em otimismo ou sentimentos de
esperança em relação ao potencial de recuperação do doente. Um estudo que
avaliou o papel da religião e da espiritualidade na tomada de decisões por representantes,
em contexto de LTSV, mostrou que a prática religiosa não estava associada às
preferências para o fim da vida, mas a crença em milagres estava
significativamente associada a uma menor preferência pelas decisões de não
reanimação. Em terceiro lugar, as crenças religiosas podem influenciar
as perceções sobre o valor da consciência ou o valor intrínseco da vida humana.
Por exemplo, verificou-se que as perspetivas dualistas em relação à consciência
e ao cérebro são influenciadas pelas crenças religiosas. Estas perspetivas
podem, posteriormente, ser aplicadas a conversas sobre LTSV e podem influenciar
a tomada de decisões no caso de doentes com PdC.
Verificou-se
que as crenças religiosas tanto proporcionam apoio como são fonte de conflitos
durante as discussões sobre o plano de cuidados. Dos representantes que tomaram
a decisão de adotar a LTSV, 48% mencionaram que a fé lhes proporcionou
tranquilidade durante a estadia do seu ente querido no hospital. Estudos
anteriores que avaliaram as dimensões religiosas que influenciam as discussões
pessoais sobre a LTSV revelaram que a resiliência religiosa, uma maior religiosidade
e uma identidade religiosa mais forte estavam associadas a uma maior utilização
do TSV. Curiosamente, um estudo com representantes que tomavam decisões em nome
de doentes incapazes de fazê-lo revelou que aqueles que relatavam níveis mais
elevados de religiosidade intrínseca, uma medida do compromisso religioso
pessoal, eram menos propensos a procurar TSV agressivos. Isto destaca um
potencial papel diferencial da religião no contexto das decisões sobre LTSV nos
casos em que os doentes tomam as suas próprias decisões, em comparação com os
casos em que os representantes tomam decisões em nome de um doente
incapacitado. A falha em obter e envolver as crenças religiosas e espirituais
dos doentes no contexto das discussões sobre o plano de cuidados pode comprometer
os cuidados centrados na pessoa, o que poderia limitar involuntariamente a
autonomia do doente.
A não realização de TSV foi mais prevalente do
que a retirada de TSV entre doentes de origem judaica, ortodoxa grega ou
muçulmana. Por outro lado, os doentes sem filiação religiosa ou aqueles que se
identificaram como católicos ou protestantes foram submetidos à retirada de TSV
com mais frequência do que o não-início de TSV. É de salientar que a literatura
específica sobre perspetivas agnósticas/ateístas tem sido, em geral, pouco
explorada em estudos anteriores que avaliam a importância da religião e da religiosidade
nas decisões de fim de vida na UCI. Como resultado, não está claro se, e em que
medida, as crenças agnósticas/ateístas podem influenciar especificamente as perspetivas
éticas sobre a LTSV nas PdC, sendo esta uma área que pode beneficiar de estudos
adicionais. As crenças religiosas dos médicos também podem influenciar as
práticas de LTSV. Os médicos que se declararam mais religiosos,
independentemente da sua fé religiosa, mostraram-se mais relutantes em praticar
a LTSV. Num estudo com médicos nos EUA, aqueles que eram mais religiosos
relataram que retirar o TSV era mais problemático do ponto de vista ético do
que negar o TSV. Os médicos que se identificaram como protestantes não
evangélicos ou católicos romanos eram mais propensos a aceitar essa distinção
ética, enquanto os médicos sem afiliação religiosa eram menos propensos a
fazê-lo. A preocupação do médico com as origens e alcance desta diferença pode
ajudar a preservar a autonomia do doente e reduzir conflitos em torno das
discussões sobre o plano de cuidados. Na secção abaixo, exploramos os
princípios de várias religiões importantes e as suas perspetivas sobre a LTSV,
com especial atenção para a forma como podem influenciar a tomada de decisões
no caso de doentes com PdC.
Budismo
O budismo oferece pouca orientação sobre a
permissibilidade da LTSV. Como não existe uma autoridade budista central, há
uma enorme heterogeneidade nas perspetivas em torno da permissibilidade dessa limitação.
A tradição budista geralmente proíbe o fim prematuro da vida, incluindo o
suicídio, mas a LTSV em casos de doença crítica pode ser aceitável se o doente
estiver a sofrer desnecessariamente. Isto pode ser difícil de interpretar no
contexto das PdC, em que os doentes não podem relatar o seu sofrimento ou a
validação negativa/positiva das suas vivências. A recusa de TSV é considerada
eticamente equivalente à retirada da TSV na tradição budista. Devido à crença
na vida após a morte, a LTSV em doentes que estão a sofrer pode, na verdade,
ser considerada digna de admiração em alguns casos, pois pode ajudar a
facilitar o processo de renascimento. De acordo com essa perspetiva, o processo
natural da vida, morte e renascimento não deve ser interrompido
artificialmente, e prolongar uma morte inevitável e certa pode ser visto como
uma interrupção do processo. Não é claro como esses princípios se aplicam a
doentes com PdC, em que a morte não é categoricamente inevitável. O uso de
hidratação e alimentação artificiais não é considerado essencial e, portanto, a
sua retirada ou a não administração é permitida. O uso de analgésicos e
sedativos é raro durante o processo de morte, pois uma mente clara durante a
morte é vista como desejável.
Cristianismo
Na tradição católica e em outras confissões
cristãs, a preservação da vida é geralmente considerada sagrada, mas os
princípios da futilidade e do sofrimento podem ser considerações igualmente
importantes nas discussões sobre LTSV. O
catolicismo procura encontrar um meio-termo entre dois extremos: preservar a
vida a todo o custo e desconsiderar o valor da vida humana, o que poderia
resultar numa LTSV prematura. Se um doente necessitar de medidas
extraordinárias para se manter vivo, mas essas medidas não lhe proporcionarem
quaisquer outros benefícios, é permitido retirar ou não administrar o TSV. A
ventilação mecânica em doentes em coma, em estado vegetativo persistente ou
minimamente consciente pode ser considerada uma medida extraordinária,
permitindo potencialmente a LTSV; no entanto, não existe clareza suficiente
sobre como se caracteriza a futilidade. Não existe consenso quanto ao facto de
a alimentação e hidratação artificiais serem consideradas uma medida
extraordinária. Numa declaração, o Papa João Paulo II explicou que não é
permitido retirar a alimentação artificial a doentes considerados em estado
vegetativo persistente.
Hinduísmo
Ao contrário de outras grandes religiões
mundiais, as práticas do hinduísmo não se baseiam num texto central, num cânone
ou numa doutrina específica; por conseguinte, há muito pouca orientação sobre
se e em que circunstâncias a LTSV é permitida. O conceito de Karma, uma lei
moral baseada na acumulação de méritos ao longo de vidas sucessivas, influencia
as crenças hindus sobre a vida e a morte. As intervenções agressivas perante um
prognóstico desfavorável podem interferir com o Karma e, por isso, podem não
ser recomendadas ou continuadas. Se houver capacidade para uma boa qualidade de
vida, é permitido prolongar a vida artificialmente. Retirar alimentação e hidratação
artificiais pode ser um método aceitável de LTSV; no entanto, é mais provável
que seja uma preferência individual e familiar.
Islamismo
Na tradição islâmica, a vida é considerada
sagrada. Nesse contexto, o TSV deve ser geralmente utilizado, exceto nos casos
em que o doente sofre indevidamente ou não tem hipóteses razoáveis de
recuperação. A remoção da ventilação mecânica é aceitável se a qualidade de
vida não puder ser restaurada e for mantida apenas através do uso de medidas extraordinárias.
Se a morte for considerada inevitável, a fé islâmica defende que o suporte de
vida pode ser retirado. A interrupção da alimentação e hidratação artificiais
como meio de LTSV geralmente não é permitida, pois a fome é estritamente
proibida de acordo com a fé islâmica.
Judaísmo
De
acordo com a “Halachá”, a lei judaica, a vida humana tem “valor infinito”. As
interpretações haláchicas variam consideravelmente, mas, segundo a tradição judaica,
não iniciar ou interromper TSV é considerado eticamente distinto. Não há
obrigação de administrar TSV a um doente em estado terminal ou que esteja a sofrer
de forma insuportável. Não realizar TSV é permitido nessas condições, as quais
também podem se estender a alguns doentes com PdC irreversível. Como salientou
o grande halachista Rabi Moshe Feinstein, “não somos obrigados a curar um doente
que não deseja esses tratamentos médicos, que apenas prolongam [uma] vida de
sofrimento. Em geral, quando é impossível determinar os desejos do doente (por
exemplo, quando [alguém] se encontra em estado vegetativo persistente ou em
coma, e não existem diretivas antecipadas), podemos presumir que o doente não
deseja (mais tratamento) e não há obrigação de curá-lo”. De acordo com as
tradições judaicas ortodoxas, a retirada da TSV geralmente não é permitida, a
menos que a morte, definida pela cessação dos batimentos cardíacos, ocorra
dentro de 3 dias. Intervenções consideradas um “impeditivas do processo de
morte” podem ser interrompidas; no entanto, as interpretações do que constitui
um impedimento à morte no sentido relevante são debatidas por especialistas em
ética médica judaica e autoridades rabínicas. A administração de analgésicos
para o alívio da dor durante os cuidados paliativos é permitida, mas alguns
rabinos expressaram preocupações quanto ao potencial de depressão respiratória.
Na tradição reformista, a retirada de TSV é considerada aceitável se a morte
for iminente. Exceto nos casos em que os doentes sofrem ativamente e estão em
fase terminal, o que não é sempre o caso dos doentes com PdC, considera-se
obrigatório proporcionar aos doentes apoio nutricional contínuo. As tradições
judaicas conservadoras permitem tanto a recusa como a retirada de TSV,
incluindo alimentação e hidratação artificiais, se os doentes forem
considerados “incuráveis”, o que, segundo alguns, inclui doentes em estado
vegetativo persistente.
Conclusão
Na maioria das vezes, a morte de doentes que sofrem
lesões cerebrais graves na fase aguda ocorre no contexto de Limitação de
Tratamentos de Suporte Vital (LTSV). As decisões de limitar ou continuar
tratamentos de suporte vital no contexto de perturbações de consciência (PdC)
são multidimensionais e baseiam-se em diversas considerações clínicas e éticas,
bem como em sistemas de crenças pessoais. O que é do melhor interesse de um
determinado doente depende intimamente das suas preferências, objetivos e
valores, que são profundamente pessoais e muitas vezes têm de ser intuídos
pelos seus representantes. A dificuldade de maximizar a beneficência e a não
maleficência nesse contexto é complexa e deve levar em consideração as crenças
e vivências específicas do doente, que, às vezes, podem ser difíceis de
deduzir. As crenças sobre a permissibilidade de suspender ou não iniciar
tratamentos de suporte vital são influenciadas, direta ou indiretamente, por
perspetivas e valores culturais, filosóficos ou religiosos. Através da análise
das potenciais fontes de variação nas práticas de LTSV, os médicos,
investigadores e especialistas em ética podem, durante as conversas sobre LTSV,
aperceber-se da importância de terem em conta as crenças culturais e
religiosas. Estudos adicionais que avaliem como envolver os representantes
legais e que reduzam a discordância e a incerteza na tomada de decisões são de
importância substancial. Dada a heterogeneidade das práticas de LTSV, devem ser
aplicadas salvaguardas padronizadas que previnam os riscos de preconceito, a
fim de evitar a LTSV prematura ou promover abordagens equivalentes a tratamentos
de suporte vital em contextos multiculturais, de modo a proteger a autonomia
dos doentes e promover cuidados em conformidade com objetivos definidos. <
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