22 agosto 2025

Planeamento antecipado de cuidados paliativos em ambulatório

BMC Palliat Care. 2025 Jan 31;24(1):31.
doi: 10.1186/s12904-025-01667-9.

Efeito da entrevista motivacional na promoção do planeamento antecipado de cuidados em doentes de cuidados paliativos em contexto ambulatório: um ensaio controlado randomizado.

 Tradução do resumo do artigo
Effect of motivational interviewing to promote advance care planning among palliative care patients in ambulatory care setting: a randomized controlled trial.

Helen Yue-Lai Chan et al.
Faculty of Medicine, The Chinese University of Hong Kong

Para ver o artigo completo original, clicar AQUI

Resumo

Contexto: Muitos doentes têm sentimentos contraditórios em relação aos cuidados em fim-de-vida, mesmo quando enfrentam condições que limitam a sua esperança de vida. A entrevista motivacional pode ser útil para ajudar os doentes a planearem antecipadamente os cuidados a receber. Este estudo teve como objetivo examinar os efeitos de um programa de planeamento antecipado dos cuidados que recorreu a entrevistas motivacionais em doentes de cuidados paliativos.

Métodos: Foi realizado um ensaio clínico randomizado de dois braços paralelos entre janeiro de 2018 e dezembro de 2019 nas clínicas de cuidados paliativos de dois hospitais. Doentes adultos recém-encaminhados para serviços de cuidados paliativos, com uma pontuação igual ou superior a 60 na Escala de Desempenho Paliativo e mentalmente capazes, foram elegíveis para o estudo. Embora todos os participantes tenham recebido cuidados paliativos como cuidados habituais, os do grupo de intervenção também receberam o programa de planeamento antecipado de cuidados através de três visitas no domicílio. O resultado primário foi a disponibilidade para discutir e documentar decisões sobre cuidados em fim-de-vida, e os resultados secundários incluíram conflito decisório, perceção de stresse e qualidade de vida.

Resultados: Foram incluídos um total de 204 participantes (idade média [DP], 74,9 [10,8]; 64,7% do sexo masculino; 80,4% com cancro). As análises por equações de estimativa generalizadas mostraram uma melhoria significativa na disponibilidade para planeamento antecipado de cuidados no grupo de intervenção, em comparação com o grupo de controlo, três meses após a alocação (interação grupo por tempo, nomeação de representante: β = 0,80; IC 95%, 0,25-1,35; p = 0,005; discussão com a família: β = 0,76; IC 95%, 0,22-1,31; p = 0,006; discussão com médicos: β = 0,86; IC 95%, 0,30-1,42; p = 0,003; documentação: β = 0,89; IC 95%, 0,36-1,41; p < 0,001). A proporção de subscritores de diretivas antecipadas, bem como de utilização de cartões de não-reanimação cardiorrespiratória, foi significativamente maior no grupo de intervenção, com um risco relativo de 3,43 (IC 95%, 1,55-7,60) e 1,16 (IC 95%, 1,04-1,28), respetivamente. O grupo de intervenção relatou mais melhorias no apoio social e no valor da vida do que o grupo de controlo, imediatamente após a intervenção. Observaram-se melhorias significativas nos conflitos decisórios e na perceção do stresse em ambos os grupos.

Conclusões: A entrevista motivacional foi eficaz no apoio aos doentes para resolver a ambivalência em relação aos cuidados em fim-de-vida, aumentando assim a sua disposição para debater e documentar as suas opções de cuidados.


19 agosto 2025

Efeméride - data incerta de 1525

Efeméride – data incerta de 1525

Foi há 500 anos que nasceu o padre Luís de Almeida (1525-1583), mercador, médico e missionário no Japão. É topónimo portuense. 

«De família de cristãos-novos, partiu para o Oriente em 1550, onde se fez comerciante e juntou valiosa fortuna. Aplicou-a com generosa munificência na transformação do modesto Hospital dos Pobres, em Oita, numa grande obra assistencial. [...] Veio a ser ordenado sacerdote em 1580.» [O Grande Livro dos Portugueses, Manuel Alves de Oliveira. Círculo de Leitores, 1990, p. 30]

Monumento ao P.e Luís de Almeida, Otemachi, cidade de Oita, Japão

foto de “The stories about cultural exchange between foreign countries and Kyushu”



02 agosto 2025

O futuro está a chegar aí

Volume 197, May 2025, 105838

 Triagem orientada por IA em departamentos de emergência: uma análise dos benefícios, dificuldades e direções futuras
Adebayo Da’Costa et al.
Department of Emergency Medicine, Medway NHS Foundation Trust, Gillingham ME7 5NY, United Kingdom

Tradução do resumo do artigo
AI-driven triage in emergency departments: A review of benefits, challenges, and future directions,
publicado em maio/2025 na revista International Journal of Medical Informatics

Resumo: Os serviços de urgência são fundamentais na prestação de cuidados imediatos, muitas vezes sob pressão devido ao excesso de doentes, à escassez de recursos e à variabilidade na priorização dos doentes. Os sistemas de triagem tradicionais, embora estruturados, dependem de avaliações subjetivas, que podem carecer de consistência durante as horas de ponta ou eventos com grande número de vítimas. Os sistemas de triagem baseados em IA apresentam uma solução promissora, automatizando a priorização dos doentes através da análise de dados em tempo real, tais como sinais vitais, histórico médico e sintomas apresentados. Esta revisão narrativa examina os principais componentes, benefícios, limitações e direções futuras dos sistemas de triagem baseados em IA nos SU.

Método: Esta revisão narrativa analisou artigos revistos por pares publicados entre 2015 e 2024, identificados através de pesquisas no PubMed, Scopus, IEEE Xplore e Google Scholar. Os resultados foram sintetizados para fornecer uma visão geral abrangente do seu potencial e limitações.

Resultados: A análise identifica benefícios substanciais da triagem orientada por IA, incluindo melhoria na priorização dos doentes, redução dos tempos de espera e otimização da alocação de recursos. No entanto, desafios como questões de qualidade dos dados, viés algorítmico, confiança dos médicos e preocupações éticas são barreiras significativas para a adoção generalizada. As direções futuras enfatizam a necessidade de refinamento dos algoritmos, integração com tecnologia vestível, capacitação dos médicos e desenvolvimento de uma estrutura ética para enfrentar esses desafios e garantir uma aplicação equitativa.

Conclusão: Os sistemas de triagem baseados em IA têm o potencial de transformar as operações dos serviços de emergência, aumentando a eficiência, melhorando os resultados dos doentes e apoiando os profissionais de saúde em contextos de alta pressão. À medida que as necessidades de cuidados de saúde continuam a crescer, estes sistemas representam uma inovação vital para o avanço dos cuidados de emergência e para enfrentar dificuldades antigas na triagem.

Para ler o artigo original completo, clicar AQUI

27 julho 2025

AMM apoia enquadramento ético


Adotada pela 229ª Sessão do Conselho da WMA, Montevideu, Uruguai, abril de 2025

(tradução espontânea para divulgação sem fins lucrativos) 

PREÂMBULO

Os pilares da Medicina, que até recentemente eram considerados inquestionáveis, como a comprovação científica, a dignidade humana e a solidariedade, estão a ser cada vez mais questionados pela expansão de ideologias e posições políticas que os rejeitam ou negam.

Neste contexto, a possibilidade de os médicos trabalharem de forma ética e respeitando as regras da profissão está ameaçada, assim como a autonomia da profissão; a intervenção da política, do sistema judicial ou das autoridades policiais no processo de cuidados está a tornar-se cada vez mais uma realidade em muitas partes do mundo.

Existe pressão sobre os médicos, que são forçados pelos seus governos a tratar reclusos doentes de forma antiética. Há também violência aberta contra o pessoal de saúde e instalações de saúde em áreas com conflitos armados e outras emergências.

A pressão exercida sobre a autonomia profissional dos médicos e sobre a sua capacidade de seguir as suas regras éticas pode ter um impacto negativo na qualidade dos cuidados prestados e, em última análise, comprometer a confiança da população na profissão.

A Associação Médica Mundial (AMM) foi fundada com o objetivo explícito de estabelecer os mais elevados padrões éticos e humanistas para a medicina em todo o mundo.

Esses padrões estão a ser desafiados por ideologias e posições políticas que rejeitam as conquistas sociais dos últimos 80 anos.

Estes elevados padrões éticos e humanistas têm, no entanto, de continuar a ser defendidos com firmeza pela profissão médica, com determinação e força.

RECOMENDAÇÕES

1.      A Associação Médica Mundial e todos os seus membros constituintes estão fortemente empenhados em defender os padrões éticos da profissão médica, tal como foram estabelecidos pela própria profissão ao longo dos últimos 80 anos.

2.      É um papel essencial da AMM e dos seus membros constituintes defender um quadro jurídico para os cuidados de saúde em todos os nossos países, que respeite as regras éticas da nossa profissão e permita o exercício da medicina em conformidade.

3.      A AMM insta os governos a garantirem a segurança e a vida dos profissionais de saúde, independentemente das circunstâncias em que se encontrem, permitindo-lhes assim cumprir o seu dever de ajudar qualquer doente necessitado e agir de acordo com os seus princípios éticos.

4.      A AMM tem a obrigação de defender ativamente a honra da profissão médica e os direitos do pessoal médico e dos doentes, sempre que estes estejam ameaçados.

5.      É dever da AMM e de todos os seus membros constituintes apoiar os médicos individualmente e as suas organizações sempre que a possibilidade de seguirem as regras éticas estabelecidas pela AMM seja ameaçada ou restringida por pressões políticas ou judiciais indevidas.

6.      A Associação Médica Mundial e todos os seus membros constituintes apoiam e promovem fortemente a medicina científica, baseada em factos, incluindo medidas terapêuticas e de saúde pública baseadas em dados comprovados.

7.      A Associação Médica Mundial apela ao respeito pela independência da investigação, em conformidade com os princípios éticos consagrados na sua Declaração de Helsínquia.l

22 julho 2025

Cuidados Paliativos em África

Ecancermedicalscience. 2019 Jul 25;13:946.

Melhorar o acesso a cuidados paliativos para doentes com cancro em África: 25 anos do Hospice Africa

Anne Merriman, Eddie Mwebesa, Ludo Zirimenya

Anne Merriman faleceu em 28 de maio de 2025 com 90 anos de idade. «Inventou um método de cuidados paliativos barato que ajuda os mais pobres a aliviar o sofrimento perto do fim». António Araújo, PÚBLICO, P2, p.23, 20.07.2025

Tradução espontânea para distribuição sem fins lucrativos do artigo

Improving access to palliative care for patients with cancer in Africa: 25 years of Hospice Africa

Para ler o artigo original, quadro, figuras e referências, clicar AQUI

Resumo

Todos os cuidados oncológicos devem visar as necessidades de toda a população, e não apenas dos poucos que chegam aos serviços curativos. O presente documento refere-se aos cuidados paliativos no Uganda e nos países atualmente conscientes da necessidade de cuidados paliativos. A Human Rights Watch declarou que os médicos que sabem que se pode controlar a dor do cancro e não o fazem ou não tomam medidas para que isso aconteça são considerados torturadores (Human Rights Watch (2009) Please, do not make us suffer more...[25]).

Ao celebrar 25 anos desde a introdução dos cuidados paliativos, será que chegou a hora de colher os frutos dos princípios que foram aplicados nas políticas e serviços pelo Governo do Uganda? Isso colocou Uganda no mesmo nível do mundo desenvolvido em termos de serviços de cuidados paliativos de nível 4b [1]. Essas políticas e serviços precisam ser promovidos junto a governos interessados na África e adaptados adequadamente às necessidades de cada país africano, com um plano para que avancem nos próximos 5 anos. Essas medidas garantirão padrões, viabilidade económica e adequação cultural.

Que os cuidados paliativos cheguem a pelo menos 50% dos doentes oncológicos que deles necessitam em África até 2023. 

Definição da OMS de cuidados paliativos

Os cuidados paliativos são uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos doentes e dos seus familiares, confrontados com os problemas associados a doenças que ameaçam a vida, através da prevenção e alívio do sofrimento, mediante a identificação precoce e avaliação e tratamento rigorosos da dor e de outros problemas físicos, psicossociais e espirituais [2]. 

Cuidados paliativos: um problema de saúde pública

Em 2007 [3,4], o cancro foi declarado um problema de saúde pública, com ênfase na escassez e no custo da quimioterapia e da radioterapia. A maioria dos doentes não tem acesso a serviços curativos.

A maior causa de sofrimento oncológico hoje, na maioria dos países africanos de rendimento médio-baixo, é a falta de acesso a qualquer forma de tratamento, onde 97% dos doentes oncológicos não têm acesso a cuidados curativos. (97% sem acesso a terapia oncológica é o caso do Uganda, que tem uma aparelho de radioterapia e serviços de oncologia que só agora chegam a vários locais. 33% dos países não têm um aparelho de radioterapia (nota: isto aparece no texto mais abaixo e tem a referência [10]) e muitos não têm oncologista, embora a quimioterapia simples seja administrada por médicos. Os doentes permanecem com dores excruciantes nas zonas rurais e nas favelas urbanas, e os familiares desamparados também sofrem. Quem se preocupa com eles? 

A necessidade de cuidados paliativos em África hoje

Os cuidados paliativos são necessários para todos aqueles que enfrentam uma doença potencialmente fatal. Isso inclui cancro, SIDA e muitas outras doenças. A incidência crescente de doenças não transmissíveis (DNT), devido ao envelhecimento da população mundial e africana, está a chamar a atenção para esta necessidade. Este artigo é dedicado às necessidades de cuidados paliativos para doentes com cancro, que, ao formar outros profissionais, lhes permite prestar cuidados paliativos a pessoas com DNT e outras doenças com risco de vida. 

Aspetos das políticas educacionais do Governo do Uganda e do Hospice Africa Uganda

Reconhecendo a falta de medicamentos para a dor intensa e o acesso limitado, devido à escassez de prescritores, sendo os médicos os únicos prescritores legais na maioria dos países, o Governo do Uganda:

1.      Acrescentou ao estatuto que permite às parteiras prescrever petidina a mulheres em trabalho de parto, a possibilidade de os enfermeiros especializados, com diploma em cuidados paliativos clínicos, prescreverem morfina legalmente desde 2003. Isto acaba de ser aprovado pelo International Narcotics Control Board no seu relatório recente [5].

2.      Permite, desde 2004, o fornecimento gratuito de morfina oral a todos os pacientes com dor intensa e prescrita por um médico autorizado.

3.      Partilha uma parceria público-privada (PPP) com o Hospice Africa Uganda (HAU) para fabricar morfina oral para todo o país desde 2011.

4.      Educação: a PPP na educação começou em 1994 com o ensino a estudantes de medicina de licenciatura, pelo que todos os médicos qualificados desde então compreendem os cuidados paliativos. Esta iniciativa foi levada a cabo entre a Universidade de Makerere e a HAU, atualmente Institute for Hospice and Palliative Care in Africa, que forma pós-graduados e profissionais de saúde até ao nível de licenciatura em cuidados paliativos africanos. Mais de 10 000 pessoas foram formadas desde 1993.

5.      Educação em África: o Departamento de Programas Internacionais da HAU formou 386 iniciadores africanos de 30 países e visitou vários desses países para ministrar formação e prestar apoio. São ministrados dois programas de cinco semanas por ano no Uganda. Estes incluem duas semanas de ensino e partilha entre países, duas semanas de visitas móveis e ensino ao domicílio e a última semana é dedicada à formação de formadores. Há um programa em inglês e outro em francês, anualmente. Os formandos vão praticar, ensinar e promover os cuidados paliativos. Continuam a receber apoio através dos seus antigos colegas. 

A idade é importante

Em muitos países africanos, os maiores de 65 anos representam menos de 4% da população [1], enquanto em alguns países do mundo desenvolvido essa faixa etária chega a 23% [6]. Mas essa pequena percentagem da enorme população africana ainda representa um número elevado. Os idosos não têm forças para mudar a sua situação. A maioria não tem pensão, nem cobertura de saúde e depende da família ou da boa vontade dos vizinhos para os ajudar. Esta geração de idosos perdeu muitos familiares devido à SIDA, nos tempos em que ainda não existiam os antirretrovirais (ARV) e mesmo agora, quando não têm acesso a eles. Assim, o apoio familiar diminuiu para eles. Além disso, poucos são aqueles que tinham VIH e sobreviveram. Muitos dessa coorte morreram antes da intervenção dos ARV. Assim, em Uganda, a percentagem de idosos está a diminuir e agora é inferior a 2% [7].

Em muitos países, as crianças representam a grande maioria da população. No Uganda, 50% da população tem menos de 15 anos e essa percentagem não cai abaixo de 40% na maioria dos países africanos mais pobres [7]. Os cancros infantis, embora baixos em percentagem, também podem ser numerosos. Muitos casos não são encaminhados das zonas rurais para os serviços de tratamento. Além disso, existe uma preferência pelos meninos em África, pelo que os meninos são levados para tratamento, enquanto as meninas são deixadas na comunidade a sofrer [8,9].

O cancro atinge todas as idades e aumenta com a idade. Está a aumentar proporcionalmente em linha com as DNT. O cancro duplicou nos países com maior incidência de VIH [10]. Os serviços curativos continuam disponíveis apenas para cerca de 5% dos doentes com cancro. Um terço dos países africanos nem sequer dispõe de um aparelho de radioterapia [11].

A maior incidência de cancro é encontrada na faixa etária dos 20 aos 50 anos: a idade fértil [12]. Muito sofrimento é encontrado, especialmente em mulheres que sofrem de cancro do colo do útero e da mama. Esse sofrimento é qualificado como «dor total», que inclui dor física, psicológica, social, económica, cultural e espiritual. O papel e o valor da mulher variam em diferentes culturas. Se uma mulher é comprada com um dote, semelhante à compra de uma vaca, ela pode ser tratada como tal e, quando adoece, é deixada de lado e negligenciada. Pelo menos a vaca pode ser abatida. O sofrimento das mulheres africanas com cancro é algo que é preciso ver para acreditar. Apesar do grave sofrimento físico, a sua maior preocupação é «o que vai acontecer aos meus filhos» [13].

Esses fatores precisam ser compreendidos e abordados nos cuidados paliativos em África. Eles variam de tribo para tribo e de país para país. 

Cuidados Paliativos em África (CPA)

Não podemos estimar a necessidade de tratamento do cancro em África sem conhecer as estatísticas relativas ao cancro. Estamos a utilizar uma fórmula simples [14] para a prevalência do cancro num país africano. Esta baseia-se na incidência do cancro nos países africanos antes da independência, que foi estimada em 0,1%. A SIDA e outras doenças virais duplicaram esta incidência para 2% e a prevalência incluirá os cancros que sobreviveram em anos anteriores (lembrando que muito poucos sobrevivem ao cancro quando o tratamento curativo é tão escasso), acrescentando mais 1%. Como os cuidados paliativos são necessários desde o diagnóstico de uma doença terminal, devem ser iniciados imediatamente, mas é claro que muitos são desconhecidos nas comunidades. A prevalência é de 0,3% da população (apenas para o cancro). Assim, por exemplo: o Uganda tem uma população de mais de 40 milhões [6]. Assim a necessidade prevista de cuidados paliativos entre os doentes com cancro é 120 000 = (40 milhões/100)x0,3.

Os serviços devem ser planeados tendo em conta a educação e a formação para satisfazer as necessidades desta estimativa para o cancro.

O quadro [15] apresenta os cálculos das necessidades dos nove países africanos que participaram no Initiators Programme para países francófonos de 2018, ministrado pelos programas internacionais da HAU. Estes valores foram estimados por todos os participantes para os seus próprios países, com base em estatísticas. Foram calculados utilizando as fórmulas para cancro e SIDA.

a.     O que são os CPA?

Os cuidados paliativos africanos são aqueles que [16]:

·         Podem prestar cuidados centrados no doente e na família.

·         Dispõem de medicação oral barata para controlar a dor e os sintomas em casa.

·         São acessíveis e sustentáveis nos países de rendimento baixo e médio, tal como recomendado pelo recente relatório da Comissão Lancet de 2018 [17] (tão baixo quanto 3 dólares americanos por morfina oral para controlo da dor para o doente médio, em cuidados de saúde domiciliários).

·         São prestados no local mais aceitável para o doente e a família (uma investigação realizada em cinco países africanos em 2003 revelou que tanto os doentes como os cuidadores preferiam morrer em casa, desde que houvesse um serviço de cuidados domiciliários adequado [18]).

·         Utilizam soluções africanas para os desafios africanos. Existem equipamentos de cuidados domiciliários acessíveis que podem ser fabricados na aldeia, desde que melhorem a qualidade de vida e a independência do doente.

·         São aceites e executados em todos os níveis de cuidados. Isto requer um serviço, educação, defesa e acompanhamento inquestionáveis.

b.     Princípios dos CPA:

1. As estatísticas de saúde pública de cada país são essenciais para estimar as necessidades dos doentes oncológicos e planear um serviço que não deixe «ninguém para trás».

2. Princípios decorrentes da nossa visão ética para África [19]:

(i)       As necessidades do doente e da família são fundamentais. Todas as decisões, quer ao nível do doente, quer ao nível das políticas, têm de ser tomadas tendo em conta o efeito que terão no doente e na sua família.

O controlo da dor e dos sintomas é essencial para que seja possível uma abordagem holística dos cuidados. A morfina oral barata é o melhor analgésico para dores intensas [20] e o mais acessível para uso em lares africanos [21].

(ii)     As equipas trabalham em harmonia para proporcionar bem-estar aos doentes e às suas famílias.

(iii)   Trabalhar em conjunto com os parceiros, em harmonia. Conscientes de que a rivalidade por fundos pode perturbar um serviço coordenado, os prestadores de cuidados paliativos trabalharão em conjunto com outros prestadores para garantir que todos sejam atendidos, sem duplicar os serviços para alguns e deixar outros para trás. O respeito, o reconhecimento mútuo e a partilha são essenciais.

c.     Trabalhar em conjunto com os parceiros de serviços:

1. O governo é essencial para que os cuidados paliativos avancem num país [22]. Por isso, deve estar envolvido desde o início, e as políticas devem ser discutidas e acompanhadas pelo Ministério da Saúde. Outros ministérios estão envolvidos na regulamentação relativa a: medicamentos de classe A, reconhecimento da especialidade e emprego de pessoal com formação em cuidados paliativos em áreas especializadas.

2. Os cuidados paliativos começam frequentemente com um serviço, de preferência uma ONG, livre de regulamentações governamentais ou outras formas de burocracia, onde se segue o espírito da autonomia até ao fim da vida dos doentes [21]. Uma vez incorporados o ethos e o espírito nos cuidados paliativos, estes podem ser transmitidos aos hospitais, para que os doentes sejam vistos como pessoas e não como doenças. As PPP seriam o caminho a seguir, com os governos a fornecer financiamento e as ONG a disponibilizar os seus conhecimentos especializados, trabalhando em conjunto para um programa abrangente que chegue a todos os que dele necessitam.

3. Deve ser prevista e criada uma associação nacional de cuidados paliativos para coordenar os serviços em todo o país, proporcionar formação médica contínua e publicações, e apoiar novas iniciativas em matéria de serviços e formação. Esta associação tornar-se-á também a principal voz junto do governo para defender o crescimento e as políticas de cuidados paliativos para todos.

4. Outros prestadores de cuidados paliativos estão incluídos. Podem surgir novos serviços especializados para diferentes doenças. As organizações de apoio à SIDA precisam de cuidados paliativos. Cada vez mais, as equipas de DNT também precisam de formação em cuidados paliativos.

d.    É essencial adaptar-se às diferentes crenças culturais e à diversidade, espiritualidade e crenças religiosas, língua, economia, estatísticas populacionais e serviços médicos. Assim, os princípios acima descritos terão de ser modificados para se adequarem à melhor forma de avançar no conhecimento de cada situação. Estes serão também adaptados às mudanças nas normas sociais de cada país, com o tempo.

e.     Por fim, é fundamental difundir os cuidados através da manutenção de uma educação de qualidade, da defesa dos direitos e da integração sustentável pelo governo. A associação de cuidados paliativos de cada país será o grupo coordenador responsável pela defesa dos direitos junto do governo, pela coordenação do intercâmbio através de reuniões e publicações, e pelo apoio às equipas em todo o país [23]. 

O papel da morfina oral em países africanos de rendimento médio-baixo

Os cuidados paliativos foram introduzidos pela primeira vez em África, no Zimbábue, em 1979. A África do Sul começou no ano seguinte. Houve então um intervalo de 10 anos até que o Nairobi Hospice começou a funcionar em 1990. O intervalo deveu-se ao facto de os países de rendimento baixo e médio não terem condições financeiras para adquirir os medicamentos necessários para o tratamento da dor intensa causada pelo cancro. Em muitos países e locais, o analgésico mais forte era o paracetamol. Apesar de uma melhoria significativa nos serviços de cuidados paliativos nos países de rendimento baixo e médio, o desenvolvimento dos cuidados paliativos ainda é limitado [24].

A morfina oral barata foi introduzida pela primeira vez em África, no Nairobi Hospice, em 1990, pela Anne Merriman, que tinha concebido esta fórmula de morfina pura e barata para utilização em cuidados domiciliários em Singapura, onde ela e enfermeiras voluntárias iniciaram o seu serviço de cuidados domiciliários. Isto permitiu aliviar a dor intensa que impedia os cuidados holísticos, respondendo às necessidades futuras, aos medos e ao sofrimento espiritual.

A disponibilidade de morfina gratuita para controlar a dor progrediu no Uganda. A morfina líquida oral produzida na HAU para todo o país é administrada gratuitamente a todos aqueles a quem é prescrita por um médico registado [21]. A prescrição por enfermeiros permitiu que os cuidados paliativos estivessem disponíveis em 90% dos distritos. 

Educação

A educação e a formação são a melhor forma de divulgar os cuidados paliativos [22]. Devem ser envidados esforços em cada país para introduzir os cuidados paliativos nos programas curriculares de enfermagem e medicina, tanto ao nível da licenciatura como da pós-graduação. A experiência clínica deve ser adquirida tanto nas comunidades como nos hospitais.

Em África, os enfermeiros são os líderes e os principais profissionais dos cuidados paliativos. A formação de farmacêuticos e outros profissionais, incluindo aqueles que trabalham nas comunidades – voluntários comunitários, cuidadores familiares, conselheiros espirituais, curandeiros tradicionais, etc. – também é necessária para prestar um serviço abrangente e amigável ao doente.

A Figura 1 mostra um caso dos Camarões de cancro da mama em fase avançada, que é um problema recorrente quando não é possível fazer o acompanhamento domiciliar. A Figura 2 mostra o aumento do número de países com cuidados paliativos, passando de 3 países em 1993, quando o Hospice Africa começou com a meta «Cuidados paliativos para todos os que precisam em África», para 35 em 2018. 

Financiamento

Encontrar financiamento é o maior desafio que a África enfrenta atualmente para levar os cuidados paliativos a todos aqueles que deles necessitam. Na verdade, alguns países africanos estão a ponderar o encerramento devido a dificuldades financeiras. Esta situação também está a afetar o Uganda, que já está a fazer cortes nos serviços prestados aos doentes e na educação.

Porquê? Tendo em conta a recessão que afeta o financiamento por parte dos doadores, estes reorganizaram as suas prioridades. Os governos e os doadores consideram os cuidados paliativos como a prioridade mais baixa na área da saúde, apesar de todos nós enfrentarmos a nossa própria morte e de aqueles que não recebem tratamento terem uma morte mais dolorosa. Além disso, vários países africanos foram colocados na lista negra devido à corrupção, mas a corrupção é omnipresente no mundo atual. O sofrimento em África é enorme.

Os doadores continuam a dar prioridade à SIDA. No entanto, as estatísticas mostram que, se a incidência do VIH for inferior a 6%, o peso dos cuidados paliativos é maior no cancro do que na SIDA [13]. A África Ocidental e do Norte têm a menor incidência de VIH. A África Austral continua a ter os níveis mais elevados, seguida pela África Oriental.

É hora de concentrar os fundos no sofrimento dos doentes africanos com cancro. Morrer é assunto de todos nós. Chegamos ao mundo nus e partimos nus. Portanto, se tem dinheiro a mais, lembre-se de que não pode levá-lo consigo! Veja o sofrimento e tenha compaixão para fazer algo a respeito. 

Conclusão

O Hospice Africa definiu o caminho a seguir para cuidados paliativos africanos adequados a cada país. Este progresso corre o risco de cessar. Isto deve-se a 1) falta de vontade política, com os cuidados aos doentes no centro de todas as decisões, incluindo a importação de morfina em pó a preços acessíveis para preparar a solução, e 2) falta de financiamento para garantir a sustentabilidade.

Ambos os obstáculos devem ser superados, defendendo e apoiando as pessoas que sofrem, bem como pela tomada de consciência do tratamento da dor total, por parte dos nossos oncologistas e outros colegas. 

Finalmente

O tamanho deste artigo não permite sugestões mais exaustivas e abrangentes. Os leitores são encaminhados para a publicação do IPRI: The State of Oncology in Africa 2015, que apresenta um relatório mais completo sobre os cuidados paliativos em África [14]. <

Para ler o artigo original, quadro, figuras e referências, clicar AQUI

19 julho 2025

Efeméride - 19 de julho de 1915

Efeméride – 19 de julho de 1915

Virgínia Faria de Moura (1915-1998), nasceu faz hoje 110 anos
engenheira civil, mulher de causas e combates

Virgínia Moura, por Manuel Dias, 1999, Largo Soares dos Reis, Porto

 «O Sol Nascente foi um periódico muito especial. A sede, a redação, a dobragem e a expedição, tudo, menos, claro, a impressão, funcionavam em nossa casa. [...] Não havia muitas mulheres a escrever, [...] colaborava sempre que podia com o pseudónimo de Maria Selma. Por essa altura escrevi “Carta a Uma Mulher Moderna”, uma tentativa para chamar as mulheres à política. [...] Em 1962, voltamos a ser presos [como o marido Lobão Vital], acusados de crimes contra segurança do Estado. Só em dezembro fomos julgados e absolvidos. [...] não deixámos nunca de trabalhar juntos [...] comícios, a guerra colonial, os presos políticos, a falta de liberdade.» [Mulher de Abril – álbum de memórias, Virgínia Moura. Ed. Avante! 1996]

15 julho 2025

Neta cientista

Cerimónia da graduação da Inês Almeida Lapa, a minha neta mais velha (22 anos), na Universidade de Manchester, após 4 anos do curso de Ciências Biomédicas. Estivemos lá com os pais, a irmã, a outra avó, o namorado e 4 amigas portuguesas do tempo do secundário - foi uma coisa liiiinda! Segue-se agora um mestrado em Roterdão e uma vida de cientista promissora. 


Na tua vida académica,
Não te vimos tropeçar,
Nunca sentimos polémica
Quando tiveste d’ optar.
 

Estudar pode ser duro,
Ser cientist’ é um sonho!
Os sonhos fazem futuro
E o teu vai ser risonho!

P’ rà tua graduação
Vamos todos d’ avião,
Alegres, lá vamos nós,

Agradecer ao zebra fish,
Mesm’ a falar english,
Dar-te beijinhos d’ avós!

11 julho 2025

Humanizar em Braga

No passado dia 4 de julho, tive o gosto e a honra de moderar uma mesa no II Seminário "Humanização em Saúde", no Hospital de Braga. Além da demonstração clara de que há cada vez mais serviços do SNS onde se trabalha a humanização, aprendi muito com as comunicações e apreciei especialmente encontrar muitos amigos e amigas.

Recordo, entre outros, o encontro com várias profissionais do Serviço Social de várias ULS com quem tive o gosto e a honra de trabalhar entre 2005 e 2008 no Gabinete de Cidadão da ARSN. 

Registo ainda um encontro que muito me sensibilizou: um investigador, cujo nome não me revelou, fez questão de me saudar discretamente para me dizer quanto estava grato pela forma como terei resolvido um problema com que se defrontou quando submeteu um projeto à Comissão de Ética do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, a que presidi entre 2013-2016.

São momentos como estes que, se nos fazem lembrar a ancianidade e a humanidade, também nos aquecem o coração. 


 

02 julho 2025

Projeto de Lei britânica sobre Adultos em Fase Terminal


 
Lei sobre Adultos em Fase Terminal (Fim da Vida) Projeto de iniciativa parlamentar

Originated in the House of Commons, Session 2024-25 // Last updated: 20 June 2025 at 17:16

Tradução espontânea para distribuição sem fins lucrativos a partir do texto extraído em 21/06/2025 daqui

UM PROJETO DE LEI PARA

permitir que adultos com doenças terminais, sob salvaguardas e proteções, solicitem e recebam assistência para pôr fim à sua própria vida e para fins conexos.

QUE SEJA PROMULGADA

por Sua Majestade o Rei, com o conselho e consentimento dos Lords Spiritual and Temporal e dos Commons, reunidos no presente Parlamento, e pela autoridade do mesmo, da seguinte forma–

Ver tradução completa AQUI ou AQUI

27 junho 2025

Suicídio Medicamente Ajudado - posição da Sociedade Italiana de Neurologia

Neurological Sciences (2025) 46:2371–2379

Neurologia e suicídio medicamente ajudado:
posição da Sociedade Italiana de Neurologia

Eugenio Pucci, Nicola Ticozzi, Giancarlo Comi, Gianluigi Mancardi, Leandro Provinciali, Alessandro Padovani, Alessandra Solari
 
Tradução espontânea de algumas partes do artigo
Neurology and physician-assisted suicide:
position of the Italian society of neurology
Para ler o artigo original completo clicar AQUI

Resumo

Esta posição explora a complexa questão do suicídio medicamente ajudado (SMA) no contexto da Neurologia. Analisa os desafios legais, éticos e clínicos que envolvem o SMA, incluindo o papel dos neurologistas na avaliação da elegibilidade com base no prognóstico, na capacidade de tomada de decisão e no estado funcional. O documento descreve o quadro jurídico italiano em matéria de SMA, na sequência de uma decisão histórica do Tribunal Constitucional de 2019, que permite o SMA em condições estritas para doentes que sofrem de doenças incuráveis. Compara também a regulamentação em matéria de SMA noutros países europeus e não europeus. A Sociedade Italiana de Neurologia (SIN) enfatiza a importância de respeitar a autonomia do doente, ao mesmo tempo que defende cuidados paliativos abrangentes. A posição da SIN é que o SMA deve ser legalizado em circunstâncias específicas, mas insiste em garantir o acesso equitativo aos serviços de cuidados paliativos antes de se considerar o SMA. Além disso, a SIN apoia a formação de neurologistas em cuidados paliativos e cuidados em fim de vida, sublinhando a necessidade de um acompanhamento cuidadoso e de regulamentação das práticas do SMA para evitar potenciais abusos éticos e legais.

[…]

O papel do neurologista

O papel do médico (neurologista, no que diz respeito às doenças neurológicas) nos casos de SMA é multifacetado, envolvendo questões clínicas, éticas e legais.

No que diz respeito ao seu papel clínico, o médico (que trabalha numa unidade do sistema nacional de saúde público) pode estar envolvido na avaliação do estado do doente e da sua elegibilidade, de acordo com o Acórdão 242/2019 do Tribunal Constitucional Italiano. Isso inclui confirmar o diagnóstico de “uma doença incurável que causa sofrimento físico ou psicológico” que o doente “considera intolerável”. O médico também tem de ter conhecimento do prognóstico do doente e de verificar que o seu sofrimento não pode ser aliviado por outros meios. Além disso, é essencial avaliar se o doente “tem plena capacidade para tomar decisões livres e informadas” e se “é mantido vivo por tratamentos de suporte vital”. Por fim, é o médico que pode avaliar se o doente seria capaz de autoadministrar o fármaco letal, o que implica, de algum modo, a manutenção da capacidade motora e da capacidade de deglutição. Dado que distúrbios mentais e/ou sofrimento psicológico e/ou défice cognitivo podem dificultar o processo de tomada de decisão, é aconselhável que o neurologista colabore com outros especialistas, tais como psiquiatras, psicólogos ou neuropsicólogos, para uma avaliação mais abrangente.

Deve garantir-se que o doente compreende plenamente as implicações da sua decisão. Isso pressupõe uma análise aprofundada da condição do doente, do seu prognóstico e das alternativas disponíveis, a fim de garantir que a sua intenção de pôr fim à própria vida seja “formulada de forma autónoma e livre”.

O médico não é obrigado a prescrever medicação letal, a menos que esteja diretamente envolvido no procedimento de SMA a pedido do doente. Essa responsabilidade recai sobre o médico designado pelo doente, a quem foi confiada essa função. O médico que ajuda na realização do SMA pode contar com o apoio de outros profissionais para preparar o ambiente adequado, o medicamento letal e o dispositivo de administração. Se o doente consentir, o médico deve procurar colaborar estreitamente com profissionais especializados em cuidados paliativos, tendo também em consideração a gestão da fase de luto.

O papel ético do médico no SMA é complexo, envolvendo um equilíbrio delicado entre respeitar a autodeterminação do doente e gerir os seus deveres profissionais e as suas convicções morais pessoais. Tem de encontrar este equilíbrio, respeitando os princípios éticos clínicos da autonomia, beneficência e não maleficência. Preservar a confidencialidade do doente é fundamental. No entanto, quando as obrigações legais ou éticas entram em conflito, os médicos devem procurar orientação de especialistas em direito e bioética. As comissões de ética locais (em italiano: comitati etici locali per la pratica clinica), que existem em algumas regiões italianas, podem desempenhar um papel significativo na abordagem destas e de outras questões e conflitos.

Envolver-se em SMA pode representar desafios profissionais, incluindo potenciais conflitos com crenças morais pessoais ou convicções éticas profissionais. Alguns médicos podem sentir angústia moral ou enfrentar críticas de colegas ou do público.

Os médicos têm de cumprir requisitos legais específicos, tais como documentar o pedido do doente, garantir que todos os critérios de elegibilidade são cumpridos e comunicar o caso às autoridades competentes. Este processo tem de ser meticulosamente documentado para evitar contestação judicial.

A prática do SMA afeta a forma como a comunidade médica em geral vê o papel dos médicos.

Atualmente, os médicos italianos são orientados pelo código de ética estabelecido pela FNOMCEO (Federazione Nazionale degli Ordini dei Medici Chirurghi e degli Odontoiatri), que afirma que “o médico, mesmo a pedido do doente, não deve praticar nem facilitar atos destinados a causar a morte do doente” (artigo 17.º do Código de Ética Médica). No entanto, na sequência do Acórdão 242/2019 do Tribunal Constitucional Italiano (TCI), existe um debate em curso sobre as implicações para o artigo 17.º do Código de Ética Médica. Para conciliar o Código com as novas realidades jurídicas, foi introduzida uma alteração que estabelece que “a livre escolha do médico de prestar assistência, com base no princípio da autodeterminação individual, na intenção de cometer suicídio [...] deve ser sempre avaliada caso a caso e implica [...] a não punibilidade do ponto de vista disciplinar”.

Os conselhos disciplinares das ordens médicas serão chamados a avaliar cada caso especificamente, para garantir que todas as condições previstas na decisão do TCI são cumpridas.

A FNOMCEO decidiu, portanto, deixar os colegas livres para agir de acordo com a lei e a sua própria consciência. Mesmo que os princípios do artigo 17.º permaneçam inalterados, a alteração indica uma mudança na proibição absoluta de atos que causem a morte a pedido do doente. Isto está em conformidade com as disposições do TCI que, fora da área delimitada, reiteraram que “criminalizar a ajuda ao suicídio não é, em si mesmo, inconstitucional [...] mas sim que tal criminalização se justifica pela necessidade de proteger o direito à vida, especialmente das pessoas mais fracas e vulneráveis [garantindo que] o sistema jurídico procura proteger essas pessoas, impedindo que terceiros interfiram numa decisão tão extrema e irreparável como o suicídio”.

A adaptação deste quadro ético às mudanças jurídicas em curso é um tema fundamental de discussão na comunidade médica italiana. Na situação atual, o Acórdão n.º 242/2019 do Tribunal Constitucional Italiano afirma que não existe “obrigação para os médicos” de prestar ajuda no SMA, deixando à consciência individual dos médicos a decisão de acatar ou não o pedido do doente. Uma vez que o SMA não impõe quaisquer obrigações aos profissionais de saúde, não deve ser necessário invocar objeção de consciência. No entanto, o TCI reconheceu que as instituições de saúde pública são obrigadas a responder aos pedidos de SMA. Não há problema quando um neurologista concorda voluntariamente em participar num SMA no âmbito da relação médico-doente. A dificuldade surge quando um neurologista é obrigado a participar em procedimentos de SMA exigidos pela sua instituição pública, como por exemplo, integrar uma comissão para verificar a elegibilidade para o SMA. Nesses casos, o neurologista pode invocar a “cláusula de consciência”, que lhe permite opor-se, com base em princípios constitucionais e códigos éticos, a situações não reguladas pela lei. No entanto, se nenhum médico do serviço público de saúde estiver disposto a participar, será criada uma situação insustentável, que impedirá o direito do doente ao SMA. O Conselho Nacional de Bioética (CNB) italiano salientou que a objeção de consciência tem de ser exercida de forma sustentável, garantindo a disponibilidade de serviços que defendam os direitos dos doentes, apesar das objeções. Este princípio pode ser aplicado de forma semelhante à “cláusula de consciência”.

[…]

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A posição da Sociedade Italiana de Neurologia (SIN) sobre o SMA (suicídio medicamente ajudado)

A SIN reconhece que as doenças neurológicas:
- São o segundo mais importante motivo para pedidos de SMA, depois do cancro, em todo o mundo
- Podem causar sofrimento intolerável (físico, psicológico e/ou existencial)
- Podem levantar dificuldades em termos de prognóstico temporal
- Podem afetar a capacidade de decisão e/ou de comunicação dos doentes
A SIN afirma que:
- Os neurologistas devem reconhecer e debater abertamente as vontades dos doentes de terem uma morte voluntária ajudada, assim como identificar fatores de risco (por ex. depressão, isolamento, capacidades limitadas) e possíveis alternativas de tratamentos.
- Os cuidados paliativos devem estar disponíveis para os doentes com doenças neurológicas e suas famílias em todas as regiões italianas e nos diversos cenários (internamento, ambulatório, domicílios)
- Os neurologistas devem reconhecer e debater abertamente os pedidos de SMA quando os melhores tratamentos (incluindo cuidados paliativos) não são eficazes ou são recusados pelo doente, especialmente aqueles que demonstram sofrimentos espiritual ou existencial
- A decisão sobre realizar ou não realizar SMA deve ser deixada ao rigoroso entendimento dos neurologistas, atuando em nome dos seus doentes
- Há necessidade urgente de uma lei italiana que garanta procedimentos seguros, transparentes e justos
- É preciso realizar uma monitorização contínua dos SMA em toda a Itália e ao longo do tempo, para evitar a ocorrência de práticas desviantes
A SIN manifesta-se a favor de:
- Programas de formação dos seus membros sobre partilha de decisões, conversas atempadas sobre fim de vida e planeamento antecipado de cuidados
- Programas de formação interdisciplinar em Neurologia e Cuidados Paliativos, sobretudo para jovens membros
- Investigação em cuidados neuropaliativos, centrados na avaliação e tratamentos de doentes com necessidades complexas e sofrimentos refratários

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