23 outubro 2025
Efeméride - data incerta de 1525
13 outubro 2025
Filosofia na Neurologia
Do Cérebro ao Ser: Reintegrar
a
Filosofia na Educação em Neurologia
por Eduardo Boiteux Uchôa
Cavalcanti
Clínica Externa de
Neurologia, Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação, Brasília, Brasil
Tradução espontânea do resumo do artigo
From
Brain to Being: Reintegrating
Philosophy Into Neurology
Education
Neurology:
Education | Volume 4, Number 3 | September 2025
Vale a pena ler o artigo original: clicar AQUI
Resumo
Os neurologistas enfrentam cada vez mais situações clínicas marcadas por ambiguidade diagnóstica, complexidade ética e distúrbios que desafiam os conceitos tradicionais de consciência, personalidade e atuação. No entanto, a maioria dos programas de formação em neurologia continua focada no conhecimento biomédico e nas competências procedimentais, oferecendo uma preparação limitada para estes aspetos profundos e muitas vezes carregados de moralidade dos cuidados de saúde. Esta lacuna educacional pode comprometer o raciocínio clínico, a sensibilidade ética e a formação de uma identidade profissional reflexiva. Esta análise propõe a integração de três domínios sub-representados, mas essenciais – epistemologia, ética e filosofia da mente – na educação em Neurologia. Guiado pelo modelo de desenvolvimento curricular de seis etapas de Kern, o artigo descreve estratégias baseadas em factos e informadas pela teoria para incorporar competências filosóficas na formação pós-graduada. A epistemologia apoia o raciocínio diagnóstico por meio de uma visão metacognitiva, reconhecimento de vieses e tolerância à ambiguidade. A educação ética fortalece o julgamento moral e a comunicação em cenários que envolvem avaliação de capacidade, cuidados de fim de vida e intervenções neurotecnológicas. A filosofia da mente oferece clareza conceptual para a compreensão de distúrbios da consciência, neurodegeneração e alterações da personalidade. As estratégias curriculares incluem sessões de análise narrativa (narrative debriefings), exames clínicos objetivos estruturados em ética, seminários interdisciplinares e ensino reflexivo à beira do leito, todos os quais podem ser incorporados em estágios clínicos relevantes, como em unidades de cuidados intensivos neurológicos (UCI) e em neurologia cognitiva. Os objetivos de aprendizagem estão alinhados com os objetivos do Conselho de Acreditação para Educação Médica de Pós-Graduação e são apoiados por ferramentas de avaliação validadas, incluindo rubricas de escrita reflexiva, avaliações éticas estruturadas e medidas de tolerância à ambiguidade. As barreiras à sua aplicação, incluindo a preparação do corpo docente e as restrições curriculares, são abordadas através do desenvolvimento do corpo docente, modelos de ensino conjunto e integração modular. Ao reformular a Filosofia como uma competência clínica, em vez de um enriquecimento teórico, esta análise apresenta uma abordagem pragmática e voltada para o futuro da educação em Neurologia. A incorporação do raciocínio filosófico na formação melhora a precisão do diagnóstico, o compromisso ético e os cuidados centrados no doente. A integração da filosofia na educação em neurologia não é uma veneração do passado, mas um complemento voltado para o futuro, proporcionando uma estrutura humanista para orientar o raciocínio clínico e a identidade profissional numa era moldada pela inteligência artificial e pelas neurotecnologias. l
03 outubro 2025
História e desafios da demência
Jesse F. Ballenger
Tradução espontânea do artigo
History and the Challenges of Dementia 8
parte do relatório
especial
Living
with Dementia: Learning from Cultural Narratives of Aging Societies 8
Hastings Center, setembro de 2025
Uma das grandes ironias de uma condição cujo sintoma mais temido é a perda da memória é que o debate popular e profissional sobre ela ocorre com muito pouca consciência da sua história. A demência tem sido amplamente discutida como um problema médico que, com o envelhecimento da população em todo o mundo, ameaça sobrecarregar as instituições de saúde e de assistência social e desestruturar a vida social. Muito tem sido escrito sobre os aspetos biológicos, clínicos e epidemiológicos da demência. Foram identificadas e discutidas questões sociais e políticas graves, por vezes apocalípticas, e dezenas de livros foram publicados explicando tudo isso ao grande público e proporcionando conselhos práticos para doentes e suas famílias. No entanto, na sua maioria, o debate público sobre a demência tem sido superficial e desavisado. As suposições nas quais se baseiam as ideias contemporâneas sobre a demência e as nossas respostas raramente foram reconhecidas, muito menos revistas no discurso popular. A história pode ser a base para uma discussão mais crítica e informada sobre a demência, mostrando que atitudes e ideias muitas vezes consideradas naturais e inevitáveis são, na verdade, historicamente contingentes, moldadas por circunstâncias sociais e culturais específicas. A história pode recuperar um sentido de possibilidade, mostrando que as coisas nem sempre foram como são agora – e que podem muito bem ser diferentes no futuro.
A
narrativa cultural dominante sobre a demência gira em torno de várias
ideias-chave: que a demência é causada por doenças específicas, como a de
Alzheimer, que podem ser independentes do envelhecimento; que a demência
constitui uma ameaça existencial tanto para a sociedade (porque a prevalência
crescente da demência ameaça sobrecarregar os sistemas de saúde e de
assistência social) como para os indivíduos (porque ataca e destrói os atributos
e capacidades essenciais que constituem a identidade); e que a única solução
significativa para os desafios da demência reside no desenvolvimento de
tratamentos eficazes, especialmente farmacológicos.1 Uma perspetiva
histórica rigorosa levanta interrogações sobre cada uma destas ideias.
Demência
e envelhecimento no passado distante
Talvez
não haja afirmação mais importante para a narrativa cultural dominante sobre a
demência do que a de que ela é causada por uma série de condições patológicas
que podem ser diferenciadas do envelhecimento normal. Agências governamentais
fidedignas e organizações sem fins lucrativos que lidam com a demência sempre
incluem declarações proeminentes como esta da Associação de Alzheimer: “O maior
fator de risco conhecido para a doença de Alzheimer e outras demências é o
aumento da idade, mas esses distúrbios não são uma parte normal do
envelhecimento. Embora a idade aumente o risco, ela não é uma causa direta da
doença de Alzheimer.”2 Mas, durante a maior parte da história, a
ideia de que a demência poderia ser claramente separada do envelhecimento teria
parecido estranha. Embora a escassez de estudos sobre a demência nas sociedades
antigas torne provisório qualquer argumento sobre como as sociedades do passado
distante a consideravam, penso que vale a pena esboçar algumas possibilidades.
É um equívoco comum pensar que, como a
esperança média de vida ao nascer nas sociedades pré-industriais era de
quarenta anos ou menos, poucas pessoas chegavam à velhice e, portanto, doenças
associadas à idade, como a demência, eram praticamente desconhecidas. Na
verdade, a baixa esperança de vida ao nascer na era pré-industrial era
principalmente resultado das taxas muito altas de mortalidade infantil.
Portanto, embora seja certamente verdade que houve um aumento na longevidade
desde a segunda metade do século XX, não era incomum que as pessoas vivessem até uma
idade avançada nas sociedades do passado distante.
Não está claro o que isso possa significar
para a demência. Os poucos estudos existentes sobre a prevalência da demência
em sociedades pré-industriais chegam a conclusões diferentes. O arqueólogo
Martin Smith e os seus colegas defendem que, embora a prevalência da demência
seja significativamente menor do que nas sociedades modernas, ela deve ter
afetado um número muito significativo de pessoas em períodos anteriores.
Criando modelos de estruturas populacionais pré-industriais com base em
registos escritos e restos mortais, Smith et al. aplicam as taxas
contemporâneas de demência para estimar, por exemplo, que havia 9700 pessoas
com demência na Roma Imperial no século I d.C. e cerca de 2000 pessoas na Londres do século XIV.3 Em
contrapartida, o gerontologista biológico Caleb Finch e o historiador Stanley
Brustein pesquisaram registos escritos na Grécia e Roma antigas e encontraram
referências frequentes ao declínio cognitivo, mas poucas descrições de demência
avançada. Eles concluem que o comprometimento cognitivo leve pode ter sido
comum, mas que a demência avançada era relativamente desconhecida no mundo
antigo, e argumentam que as toxinas ambientais associadas à industrialização
são a causa provável do aumento dramático da demência observado na era moderna.4
Em última análise, pode simplesmente não
haver dados suficientes para determinar com certeza a prevalência da demência
em sociedades do passado distante. No entanto, uma afirmação mais modesta
parece razoável: os sintomas do declínio cognitivo associado à idade, se não a
própria demência, têm sido amplamente reconhecidos ao longo da história e as
atitudes em relação ao declínio cognitivo parecem diferentes da narrativa
cultural dominante sobre a demência hoje em dia. Os estudiosos encontraram, em
textos médicos, jurídicos e literários em praticamente todas as sociedades
humanas, descrições de sintomas que hoje provavelmente seriam considerados
sinais de demência.5 Mas antes do século XX, esses textos geralmente
não tentavam separar a demência da ampla gama de perdas físicas e mentais
debilitantes associadas ao envelhecimento. Em vez disso, a deterioração
cognitiva era incluída numa longa lista de enfermidades e perdas que
frequentemente acompanhavam o envelhecimento, e não era necessariamente
considerada a pior delas. Em The Coming of Age, Simone de Beauvoir
identificou “The Instructions of Ptahhotep”, escritas no Egito por volta
de 2500 a.C., como a primeira descrição conhecida da velhice na tradição
ocidental. Ela começa com um lamento sobre as aflições da velhice: “Ele fica
mais fraco a cada dia; seus olhos ficam turvos, seus ouvidos surdos... O poder
de sua mente diminui e hoje não consegue se lembrar como foi ontem. Todos os
seus ossos doem... [O] paladar desaparece.” Ela argumenta que “esta lista
infeliz das enfermidades da velhice [seria] repetida século após século, e é
importante enfatizar a permanência deste tema”.6 Este tipo de
litania das perdas do envelhecimento é repetido por inúmeros autores, talvez
mais notoriamente por Shakespeare em As You Like It: a “segunda infância
e mero esquecimento, sem dentes, sem olhos, sem paladar, sem tudo”.7
Note-se que, nestas linhas, Shakespeare, tal como inúmeros escritores antes e
depois dele, incluiu a perda da capacidade cognitiva (“segunda infância e mero
esquecimento”) como apenas uma das muitas perdas dolorosas associadas ao
envelhecimento (“sem dentes, sem olhos, sem paladar, sem tudo”).
Para os
leitores contemporâneos, acostumados a pensar na demência como resultado de uma
doença específica, o aparecimento de sintomas como perda de memória numa lista
indiferenciada de problemas físicos associados à idade parecerá uma curiosidade
arcaica. Talvez ainda mais difícil de entender seja a indiferença estoica com
que tais sintomas eram frequentemente recebidos antes do século XX. Por exemplo, no livro
de 2001 The Forgetting: Alzheimer’s: Portrait of an Epidemic, o
jornalista David Shenk descreve com espanto como, na década de 1870, o
brilhante ensaísta e poeta americano Ralph Waldo Emerson, então com mais de 70
anos, aceitou serenamente a sua deterioração cognitiva. Emerson consultou um
médico apenas uma vez por causa da sua memória gravemente debilitada e nada,
evidentemente, resultou disso. Nem Emerson nem ninguém à sua volta pensou em
tratar a sua perda de memória, nem considerou isso uma doença. Quando um amigo
perguntou sobre a sua saúde, Emerson respondeu: “Muito bem; perdi as minhas
faculdades mentais, mas estou perfeitamente bem”. Para Shenk, essa atitude em
relação à demência é trágica e peculiar.8 Mas, embora seja
compreensível a tendência de descartar ideias e atitudes sobre a demência do
passado distante como curiosidades históricas trágicas, devemos aceitar a
possibilidade de que podemos aprender com a forma como as sociedades do passado
respondiam à demência, por mais diferentes que fossem das nossas. De qualquer
forma, para encontrar o tipo de temor que passamos a considerar como a atitude
natural em relação à demência, devemos olhar para a história recente.
O
conceito moderno de demência
O
trabalho dos psiquiatras alemães Alois Alzheimer e Emil Kraepelin, na transição
para o século XX, é frequentemente
invocado como a base do conceito moderno de demência. Mas o seu trabalho não
marcou uma rotura acentuada com a longa tradição de ver a demência como parte
do envelhecimento. É verdade que o seu trabalho estabeleceu as características
clínicas e as estruturas patológicas que ainda hoje definem a doença de
Alzheimer, a forma mais prevalente de demência. Mas Alzheimer e Kraepelin não
estavam interessados na demência como um problema grave numa sociedade em
envelhecimento, como poderíamos imaginar hoje. Eles estavam principalmente
interessados em colocar a psiquiatria numa base científica sólida,
estabelecendo entidades patológicas com características clínicas claras que
pudessem ser correlacionadas com patologias cerebrais distintas.9 A
demência parecia uma candidata promissora, pois parecia estar associada a
lesões claras e distintas no cérebro. No entanto, a sua associação com o
envelhecimento tornava o seu estatuto como doença altamente ambíguo. Kraepelin
acabou por categorizar os casos raros de demência que ocorriam antes dos
sessenta e cinco anos como “doença de Alzheimer”, distintos do grupo muito
maior de casos senis que lhe pareciam mais uma variante extrema da deterioração
normal associada ao envelhecimento do que uma doença.10 Apesar do
grande avanço na compreensão da neuropatologia da demência, a conceção de
Kraepelin sobre a doença de Alzheimer tinha muito em comum com a visão
tradicional de que a deterioração física e mental era, até certo ponto, normal
na velhice. A demência foi, assim, deixada numa espécie de limbo nosológico. Se
classificada como doença de Alzheimer, era interessante, mas demasiado rara
para atrair muita atenção além de um pequeno círculo de especialistas; se
considerada como demência senil, a sua prevalência era significativa, mas a sua
associação com o envelhecimento significava que era de pouco interesse para a
maioria dos investigadores da medicina e psiquiatria convencionais. Como
resultado, a demência atraía relativamente pouco interesse entre a maioria dos
psiquiatras e neurologistas.
Isso mudou no final da década de 1970,
quando uma coligação de investigadores, familiares e decisores políticos se
reuniu nos Estados Unidos com o objetivo de aumentar a consciencialização
pública sobre a demência e obter apoio governamental para a investigação. A sua
estratégia girava em torno de reformular a demência em idosos como parte de um
processo de doença, em vez de uma parte normal do envelhecimento. Essa
afirmação de que a demência é uma síndrome clínica causada por uma doença
específica tem sido repetida em editoriais e declarações consensuais com tanta
frequência que pode parecer um simples fato da natureza. Mas, se lermos mais
profundamente a literatura científica sobre a reformulação da demência senil
como uma doença, encontramos um debate não resolvido (e talvez irresolúvel). Em
termos científicos, podem ser apresentados argumentos razoáveis em ambos os
sentidos. Por um lado, uma vez que os sintomas clínicos e a patologia cerebral
associada à doença de Alzheimer e à demência senil eram essencialmente
idênticos, era razoável considerá-los como uma única entidade. Por outro lado,
uma vez que se sabia que todas as alterações cerebrais associadas à demência se
desenvolviam no cérebro de todos os idosos, era razoável considerar a demência
senil como uma variante extrema do envelhecimento normal e a demência que
ocorria em idades significativamente mais jovens como algo diferente (a
conceção original da doença de Alzheimer). No final da década de 1970 e na
década de 1980, esse debate não resolvido refletiu-se no termo “demência senil
do tipo Alzheimer”, usado para descrever a demência que ocorria com prevalência
crescente após os 65 anos. O termo afirma uma entidade unificada em torno de
uma patologia cerebral comum e preserva a antiga distinção entre a ocorrência
comum de demência em idades mais avançadas. O termo “doença de Alzheimer” ainda
era reservado para os casos relativamente raros que ocorriam mais cedo na vida.11
Mas, por
razões políticas pragmáticas, o termo “doença de Alzheimer” passou a ser cada
vez mais utilizado para descrever a demência, independentemente da idade em que
ocorria. Incluir a demência senil na categoria da doença de Alzheimer
significava que ela já era um grande problema, afetando um milhão ou mais de
pessoas, e que se tornaria um problema enorme nas décadas seguintes, com o
envelhecimento da geração baby boom. Denominar a categoria unificada de “Alzheimer”
em vez de “demência senil” reforçou que não se tratava “apenas de
envelhecimento”, mas de uma entidade patológica com uma base patológica bem
estabelecida no cérebro, digna de um enorme esforço de investigação sobre a sua
causa e cura.12 Esta formulação foi feita de forma mais famosa e
contundente pelo neurologista Robert Katzman num editorial de 1976 chamado “The
Prevalence and Malignancy of Alzheimer Disease: A Major Killer”.13
Publicado na revista Archives of Neurology da American Medical
Association, o artigo é amplamente reconhecido como a publicação que, mais
do que qualquer outra, tornou a demência uma questão pública importante. A
relevância política da reconceptualização da demência senil não passou
despercebida por Katzman. Ao relembrar o seu trabalho num simpósio da Fundação
Ciba sobre investigação do envelhecimento, em 1988, ele explicou: “Passei
vários anos a tentar convencer as pessoas de que a doença de Alzheimer é uma
doença, e não simplesmente o que costumava ser chamado de ‘senilidade’ ou ‘demência
senil’. E houve um progresso maravilhoso na investigação. Na minha opinião,
isso deve-se ao facto de as pessoas agora considerarem a doença de Alzheimer
como uma doença.”14
A
demência como ameaça existencial
A
análise histórica acima sugere que a reconceptualização da doença de Alzheimer
foi tanto uma afirmação política quanto científica. Parte do poder dessa
afirmação foi a segunda ideia na narrativa cultural dominante sobre a demência –
que ela representa uma ameaça existencial para a sociedade e para o indivíduo.
Como vimos na secção anterior, os defensores da doença de Alzheimer
frequentemente se envolviam no que os críticos descreveram como uma espécie de
demografia apocalíptica, na qual a prevalência crescente da demência associada
ao envelhecimento da população é caracterizada como uma “bomba-relógio
demográfica” ou “tsunami prateado” que destruirá o sistema de saúde, a menos
que um tratamento eficaz seja encontrado.15
Ainda mais salientes do que essas alegações
sobre uma catástrofe económica iminente são as descrições da doença de
Alzheimer e de distúrbios semelhantes como as piores de todas as doenças,
porque destroem a própria identidade das pessoas que afetam. No discurso
popular de defesa da investigação e dos cuidados da doença de Alzheimer, as
pessoas com demência são comumente retratadas como se já não estivessem
realmente presentes, como estranhos assustadores para os seus entes queridos,
como invólucros vazios ou mesmo zombies. Embora possa parecer perverso
questionar o sofrimento das pessoas que enfrentam as terríveis perdas causadas
pela demência, estas representações profundamente estigmatizantes e
desmoralizantes das pessoas com demência merecem um escrutínio crítico.
Como defendi no meu livro Self, Senility,
and Alzheimer’s Disease in Modern America, embora a demência sempre tenha
sido entendida como implicando perdas, a ansiedade específica em torno da sua
ameaça à identidade pode ser atribuída à preocupação com a construção da
identidade que surgiu no início da modernidade e se aprofundou nos séculos XIX e XX.16 No século XVI, a ideia tradicional de
que os indivíduos eram dotados por Deus de traços essenciais e definidores foi
sendo substituída pela ideia de que os indivíduos criavam-se a si mesmos
através das escolhas conscientes e engenhosas que faziam ao longo da vida.17
Esta nova ênfase na autocriação foi acompanhada por uma ansiedade acrescida em
relação à velhice em geral e à demência em particular. À medida que a ascensão
do capitalismo liberal nos séculos XVIII e XIX minava as hierarquias tradicionais que
proporcionavam fontes estáveis, embora restritivas, de identidade, a
individualidade tornou-se mais problemática. A identidade tornou-se mais um
projeto do que um estatuto atribuído, e a velhice tornou-se cada vez mais um
local de ansiedade cultural sobre a identidade que se levou uma vida inteira a
criar, ameaçando desmoronar-se e desaparecer à medida que a demência destruía a
capacidade de criar uma narrativa pessoal coerente e coesa. Essa ansiedade
cultural foi medicalizada no contexto das preocupações do século XX com o envelhecimento e a passagem
à reforma numa economia industrial. Os trabalhadores idosos, com seus corpos e
cérebros em deterioração, poderiam acompanhar as exigências da produção
industrial e da gestão burocrática complexa? Após a Segunda Guerra Mundial, à
medida que a aposentadoria se tornou uma fase aceitável da vida, apoiada por um
sistema misto de previdência social pública e pensões privadas, a ansiedade
passou a ser sobre o que os idosos fariam com seu tempo livre repentinamente
abundante. Será que o facto de serem privados do envolvimento significativo com
o mundo proporcionado pelo trabalho resultaria numa deterioração das suas
capacidades cognitivas? Os programas sociais para idosos eram frequentemente
justificados com o argumento de que evitariam um aumento catastrófico da
demência senil. No geral, as expectativas de uma velhice produtiva e
gratificante aumentaram durante a segunda metade do século XX. Nesse contexto, a ideia
de que a deterioração mental poderia ser uma parte normal do envelhecimento
parecia cada vez mais insustentável, e os investigadores geriátricos e
gerontológicos procuraram identificar a demência como um estado patológico do
envelhecimento, que, segundo eles, normalmente não deveria ser caracterizado
por nenhuma perda significativa das capacidades cognitivas. A reconceptualização
da doença de Alzheimer descrita na secção anterior foi o exemplo mais
significativo disso.18
No
entanto, isso não diminuiu a estigmatização da demência e a ansiedade em
relação ao envelhecimento. Nas campanhas altamente visíveis e eficazes dos media
e do lobby do Congresso, organizadas em torno da reconceptualização da
doença de Alzheimer, os seus defensores aumentaram a consciência pública e o
financiamento para a doença de Alzheimer, explorando a ansiedade profundamente
enraizada em relação à senilidade e à identidade. As perdas pessoais associadas
à demência foram retratadas como tão globais e irrevogáveis que levantaram a
questão de se as pessoas que sofrem dessa doença ainda podem ser consideradas
pessoas. Na lógica dessa narrativa cultural dominante sobre a demência, as
políticas destinadas a melhorar os cuidados e os tratamentos das pessoas com
demência eram tardias, pois esses indivíduos já haviam sido privados de sua
identidade. Embora admitissem que deveriam ser feitas algumas concessões para
melhorar a situação das pessoas com demência e dos seus cuidadores, os
defensores da doença de Alzheimer afirmavam veementemente que a ameaça
existencial à sociedade tornava absolutamente prioritário encontrar meios
eficazes para tratar, se não curar ou prevenir, a demência.19
Neoliberalismo,
política de demência e o domínio da agência farmacêutica
Se
o contexto histórico essencial para compreender o surgimento da demência como
uma questão pública importante na década de 1980 foi, não apenas o
envelhecimento da população, mas também as ansiedades profundamente enraizadas
sobre a coerência e a estabilidade do eu na sociedade capitalista moderna,
então o neoliberalismo é o contexto histórico essencial para compreender as
políticas e as agendas de investigação que se desenvolveram desde então. “Neoliberalismo”
é um termo controverso, definido e utilizado de várias maneiras. Mas há um
amplo consenso no sentido de que descreve com precisão um conjunto de ideias e
políticas que enfatizam a liberdade individual, a desregulamentação, a redução
do Estado social, a livre iniciativa privada e a expansão dos valores e
práticas do capitalismo de mercado livre para todos os aspetos da sociedade.
Como argumentam Daniel George e Peter White-house, “uma visão neoliberal do
mundo incorpora a lógica de mercado em todas as dimensões das nossas vidas...
Tudo se torna uma mercadoria em potencial.” 20 A demência tornou-se
uma questão pública importante na década de 1980, justamente quando o
neoliberalismo estava a tornar-se a abordagem dominante para as políticas
económicas e sociais nos Estados Unidos e no Reino Unido e estava a remodelar
profundamente a pesquisa académica como um todo, e essa confluência distorceu
as agendas da investigação e das políticas que surgiram para enfrentar os
desafios da demência.
Na narrativa cultural dominante sobre a
demência, a busca por um tratamento ou cura é apresentada em termos heroicos. A
investigação científica sobre a demência deve orientar-se para a descoberta de
intervenções que beneficiem significativamente os doentes e as suas famílias.
Mas a investigação médica académica foi reformulada com a aprovação da Lei
Bayh-Dole em 1980, que permitiu às universidades reivindicar direitos de
propriedade intelectual sobre os produtos da investigação financiada pelo
governo federal.21 O resultado foi uma enorme injeção de dinheiro
privado das indústrias farmacêutica e de dispositivos médicos na medicina
académica. Embora a ligação direta da investigação académica aos mercados
financeiros tivesse como objetivo aumentar a inovação e facilitar a translação
da investigação em intervenções médicas eficazes, também criou o potencial para
corrupção e conflito de interesses.22 O envolvimento da medicina e
dos mercados era uma preocupação generalizada, mas tornou-se especialmente
grave quando a investigação sobre a doença de Alzheimer surgiu, há cerca de
treze anos, no centro de um dos maiores escândalos de abuso de informação
privilegiada da história dos Estados Unidos.23
É claro que nem toda a investigação sobre
Alzheimer é corrupta. A maior parte da investigação é conduzida de boa-fé, com
a intenção de desenvolver tratamentos que realmente ajudem os pacientes. Mas o
investimento maciço e de alto risco em empreendimentos farmacêuticos vinculou o
campo da Alzheimer ao mesmo tipo de práticas e pressões financeiras que levaram
a repetidos escândalos e a ciclos perturbadores de expansão e recessão em toda
a economia. Embora as questões éticas em torno dos casos de má conduta sejam
obviamente sérias, a questão mais importante é a forma como a investigação
sobre a doença de Alzheimer, desde a década de 1980, está orientada para um
modelo de rentabilidade a curto prazo através dos mercados financeiros. Não é
preciso duvidar que os líderes farmacêuticos e os investigadores científicos
que eles financiam estejam genuinamente empenhados na ideia de desenvolver
produtos que tratem ou previnam eficazmente a doença de Alzheimer para se
preocupar com o poder das forças de mercado para distorcer a investigação e a
regulamentação.
Essas preocupações estão no centro da
controvérsia em torno de vários medicamentos para remoção de amiloide
recentemente licenciados pela Food and Drug Administration dos EUA (FDA)
para o tratamento da demência em estágio inicial. Desde meados da década de
1990, a hipótese amiloide, que sugere que a neurodegeneração na doença de
Alzheimer é causada pelo excesso da proteína beta-amiloide, que causa a
formação de placas no cérebro, tem sido o ponto focal das estratégias de
desenvolvimento de medicamentos. Depois de vários medicamentos para remoção de amiloide
terem falhado nos ensaios clínicos, a FDA aprovou o aducanumab em 2021, embora
nenhum membro do painel consultivo de especialistas convocado para avaliar os
dados dos ensaios clínicos do medicamento tenha considerado que havia provas
suficientes de eficácia.24 Dois outros medicamentos para remoção de amiloide,
o lecanemab e o donanemab, atingiram os seus objetivos nos ensaios clínicos. O
lecanemab foi aprovado pela FDA em 2023 e o donanemab em 2024. Mas muitos
líderes de opinião proeminentes na área de Alzheimer continuam céticos; o
efeito desses medicamentos é tão pequeno que eles podem não proporcionar nenhum
benefício percetível aos doentes, mas apresentam riscos significativos e são
muito caros.25
Parte da fundamentação para aprovar esses
medicamentos, apesar das objeções, foi a necessidade de incentivar as empresas
farmacêuticas a continuarem a investir no desenvolvimento de medicamentos para
Alzheimer, pois esse investimento inevitavelmente levaria a tratamentos
eficazes. Mas, como a pesquisa e o desenvolvimento farmacêuticos são orientados
para o mercado de ações, o impacto final de um novo medicamento pode parecer
secundário. O dinheiro será ganho de qualquer maneira. Independentemente de os medicamentos
atuais proporcionarem ou não benefícios significativos aos doentes, ao saber
quando comprar e quando vender, os investidores experientes terão feito
fortunas; e ao saber onde investir o seu tempo e como vender os seus
conhecimentos, os investigadores experientes terão construído carreiras.
Além
disso, a ênfase neoliberal em abordagens orientadas para o mercado favorece os
tratamentos farmacêuticos, porque são facilmente comercializados e apoiados
pelas operações de marketing e distribuição de grandes companhias. Como
argumenta o médico, especialista em ética e investigador clínico Jason
Karlawish no seu livro The Problem of Alzheimer’s: How Science, Culture, and
Politics Turned a Rare Disease into a Crisis and What We Can Do about It, “uma
intervenção eficaz não é um tratamento, a menos que tenha um plano de negócios”.
Os inibidores da colinesterase, a geração anterior de medicamentos licenciados
para Alzheimer, nunca mostraram mais do que um benefício modesto para os
doentes, e muitos investigadores de Alzheimer argumentaram que eles eram
inúteis. Mas “por um tempo, os inibidores da colinesterase tiveram um modelo de
negócios robusto que começou com financiamento privado e público para pesquisas
para descobri-los e testá-los, seguido por uma revisão regulatória de seus
benefícios e malefícios. O mais importante foi um sistema altamente coordenado
e organizado para promover a sua prescrição”. E assim, tornaram-se medicamentos
de grande sucesso. Karlawish contrasta-os com duas intervenções comportamentais
destinadas a treinar e apoiar cuidadores que, em ensaios clínicos, mostraram
claramente uma melhora significativa tanto para os doentes quanto para seus
cuidadores.26 Um editorial que acompanhou a publicação dos
estudos na revista Annals of Internal Medicine defendeu que “a magnitude
do benefício e a qualidade das provas que apoiam essas intervenções excedem
consideravelmente as das terapias [medicamentosas] atualmente aprovadas para
demência”.27 Mas as intervenções comportamentais são mais
difíceis de comercializar, por isso as empresas têm demonstrado pouco interesse
nelas. Na falta de um plano de negócios, poucos doentes e cuidadores beneficiam
delas, por mais clara que seja a prova da sua eficácia. “As intervenções
comportamentais..., com exceção do apoio financeiro do National Institute on
Aging, das fundações e agências estaduais, não tinham um sistema para
divulgá-las, promovê-las ou mantê-las”, observa Karlawish. “É essa disparidade
entre os dois sistemas — um financeiramente robusto, o outro fragmentado e
descoordenado — que está no cerne da crise da doença de Alzheimer.” 28
Para
uma história diferente
Quais
são as lições da história em relação à demência? Primeiro, que algumas coisas
que parecem naturais e inevitáveis dentro da narrativa cultural dominante sobre
a demência podem, na verdade, ser historicamente contingentes, refletindo as
atitudes e ideias de um determinado tempo e lugar. Segundo, que alguns aspetos
do contexto histórico contemporâneo levantam sérias questões sobre a ênfase na
busca por um tratamento farmacêutico e uma cura, e que o envolvimento da
indústria de pesquisa com os mercados financeiros cria um conflito de
interesses estrutural. Por fim, ao adotar uma abordagem mais crítica e
historicamente informada em relação à demência, podemos acabar por contestar o
domínio de valores políticos e sociais, como o individualismo e a eficiência
económica, que têm impulsionado a narrativa cultural dominante sobre a demência
e a ênfase no desenvolvimento de comprimidos que possam ser facilmente
comercializados e vendidos.
Para enfrentar os desafios da demência,
precisamos incorporar e encontrar novos valores na vulnerabilidade, na
interdependência e no bem comum, além de desenvolver e financiar intervenções
sociais e comportamentais que apoiem diretamente tanto os doentes como os seus
cuidadores. Essa transformação ajudar-nos-á a enfrentar não apenas o desafio da
demência, mas também uma ampla gama de desafios sociais, económicos e
ambientais que a humanidade enfrenta neste momento histórico. A história
recorda-nos que outro mundo é possível. E necessário. <
Ver as referências no artigo original AQUI
28 setembro 2025
Efeméride – 28 de setembro de 1542
João Rodrigues Cabrilho, por António Pacheco, 1989, Montalegre
«Considerando que João Rodrigues Cabrilho, natural de Portugal, descobriu a Califórnia a 28 de setembro de 1542, entrando no porto de San Diego; Considerando que o referido descobrimento foi um acontecimento de importância mundial e o seu aniversário uma data de particular interesse para o povo do Estado da Califórnia, resolveu o Senado, reunido em Assembleia, o seguinte: É o povo do Estado da Califórnia convidado a comemorar o Dia Cabrilho, a 28 de setembro de cada ano, por meio de cerimónias patrióticas apropriadas.» [Os Descobrimentos Portugueses – VI, Obras Completas, vol. 26, Jaime Cortesão. Livros Horizonte, 1978, p. 1479]
14 setembro 2025
Como apoiar pessoas com Alzheimer
Também está AQUI.
‘Apoiar alguém com demência apresenta desafios únicos que podem parecer esmagadores.’
Hollie, nossa consultora da Linha de Apoio à Demência, partilha as suas orientações para famílias que cuidam de um ente querido com demência:
Recebemos milhares de chamadas para a nossa linha de apoio à demência todos os meses e sabemos que o período antes, durante e após o diagnóstico é particularmente difícil para as famílias.
Aqui estão as nossas principais dicas para apoiar um ente querido com demência:
1. Reafirme que eles continuam a ser quem são
‘A demência pode abalar a confiança de uma pessoa. Mostre-lhe que ainda a vê como a pessoa que sempre foi e concentre-se no que ela ainda consegue fazer e em como ainda pode contribuir.’
2. Tente entender as mudanças no comportamento
‘Tente descobrir por que estão incomodados e tranquilize-os o máximo possível. Use persuasão gentil sempre que puder, distraia-os ou mude o assunto da conversa.’
3. Mantenha relações com a família e a comunidade
‘É importante tentar manter as relações existentes. Participe em grupos sociais, atividades comunitárias ou visite cafés para pessoas com demência, onde poderá interagir com outras pessoas que enfrentam desafios semelhantes.’
4. Adapte o seu modo de falar
‘Seja paciente e use frases curtas e simples. Mantenha contacto visual e use comunicação não verbal, como sorrisos e gestos físicos. Mas nunca use linguagem infantil ou paternalista.’
5. Dê prioridade ao seu próprio bem-estar
‘Procure ajuda e apoio - seja através de amigos e familiares, grupos locais de apoio à demência e/ou profissionais de saúde e assistência social. Todos precisam de pausas regulares para recarregar as baterias e continuar a fazer as coisas que gostam.’
Se apoia ou já apoiou alguém que vive com demência, o que acrescentaria a esta lista?
***
https://alzheimerportugal.org/
04 setembro 2025
Eficácia clínica e relação custo-benefício dos cuidados domiciliares
Eficácia clínica e relação custo-benefício de uma intervenção de promoção da saúde domiciliar para
idosos com fragilidade leve na Inglaterra: um ensaio clínico multicêntrico, de
grupos paralelos, randomizado e controlado
Tradução
do resumo do artigo
Clinical and cost-effectiveness of a
home-based health promotion intervention for older people with mild frailty in
England: a multicentre, parallel-group, randomised controlled trial
Kate Walters et al. (Research
Department of Primary Care and Population Health)
Para
ver o artigo original completo clicar AQUI
Resumo
Contexto - A promoção da saúde para pessoas com
fragilidade leve tem o potencial de melhorar os resultados de saúde, mas esses
serviços são escassos na prática. Criámos uma intervenção personalizada,
domiciliar, de mudança de comportamento e promoção da saúde (HomeHealth) e
avaliámos a sua eficácia clínica e a relação custo-benefício na manutenção do
funcionamento independente nas atividades da vida diária em idosos com
fragilidade leve.
Métodos - Este foi um ensaio clínico individual,
multicêntrico, de grupos paralelos, aleatório e controlado, realizado na
Inglaterra. Os participantes foram recrutados principalmente em clínicas de
medicina geral em três áreas diferentes da Inglaterra (região norte do Tamisa,
em Londres, leste e norte de Hertfordshire, oeste de Yorkshire). Os
participantes eram indivíduos residentes na comunidade, inscritos em clínicas
de medicina geral, com 65 anos ou mais, com fragilidade leve (pontuação 5 na CFS),
com expectativa de vida superior a 6 meses e com capacidade para consentir a
participação. Excluímos adultos residentes em lares de idosos ou casas de
repouso, aqueles com fragilidade moderada a grave ou sem fragilidade, aqueles
que recebiam cuidados paliativos e aqueles já em tratamento (por exemplo,
recebendo uma intervenção continuada semelhante do setor voluntário ou serviço
comunitário). Os participantes elegíveis foram aleatoriamente distribuídos 1:1
para a intervenção HomeHealth ou para o tratamento habitual. A HomeHealth é uma
intervenção de promoção da saúde multifacetada realizada pelo setor voluntário
em casa, em seis sessões ao longo de 6 meses. O resultado primário foi o
funcionamento independente (avaliado usando o Índice de Barthel modificado [IB])
aos 12 meses. As avaliações dos resultados foram mascaradas e analisadas por
intenção de tratar, utilizando modelos lineares mistos. Os custos incrementais
e os anos de vida ajustados pela qualidade (QALYs) foram calculados
utilizando regressão aparentemente não relacionada e bootstrapping (*).
O ensaio está registado no registo ISRCTN
(ISRCTN54268283).
Resultados - Recrutámos 388 participantes entre 8 de
janeiro de 2021 e 2 de julho de 2022 (idade média de 81 anos, DP 6,5; 249 (64%)
eram mulheres e 139 (36%) eram homens). 195 participantes foram aleatoriamente
designados para o HomeHealth e 193 para o tratamento habitual. O acompanhamento
médio foi de 363 dias (IQR
356-370) no grupo HomeHealth e 362 dias (IQR 355-373) no grupo de tratamento
habitual. O HomeHealth não melhorou as pontuações da IB aos 12 meses (diferença
média 0,250, IC 95% -0,932 a 1,432). O HomeHealth foi superior ao tratamento
habitual, com uma estimativa pontual negativa para os custos incrementais (-796
£; IC 95% -2016 a 424) e uma estimativa pontual positiva para os QALYs
incrementais (0,009, -0,021 a 0,039). Houve 55 eventos adversos graves no grupo
HomeHealth e 85 no grupo de tratamento habitual; nenhum deles estava
relacionado com a intervenção.
Interpretação - A HomeHealth é uma intervenção segura
com elevada probabilidade de ser economicamente eficaz, impulsionada por uma
redução nas admissões hospitalares não planeadas. A HomeHealth deve ser
considerada como uma intervenção de promoção da saúde para idosos com
fragilidade leve. <
(*)
NT: bootstrapping - técnica de reamostragem usada para estimar a
precisão de uma estatística (como a média ou o desvio padrão) e construir
intervalos de confiança, útil quando a
distribuição teórica de uma estatística é complexa ou desconhecida.
29 agosto 2025
Efeméride - 29 de agosto de 1970
28 agosto 2025
Autonomia em Obstetrícia
Dominic Wilkinson1,2,3,4,5, Safoora
Teli6, Claire Litchfield1, Anna Madeley7, Brenda
Kelly1, Lawrence Impey1,8, Rebecca CH Brown2, Elselijn
Kingma9, Helen Lynne Turnham1
Ethics round table: choice and autonomy in obstetrics
Para ver o artigo
original, afiliações e referências, clicar AQUI
Resumo
As
decisões sobre como e onde dar à luz são extremamente importantes para as
mulheres grávidas. Existem normas éticas muito fortes que defendem que a
autonomia das mulheres deve ser respeitada e que os planos relativos ao parto
devem ser personalizados. No entanto, na prática, parecem existir desafios
profundos para respeitar as escolhas das mulheres durante a gravidez e o parto.
As escolhas acarretam riscos e consequências – para a mulher e para o seu
filho; também potencialmente para os seus cuidadores e para outras mulheres.
O
que significa respeitar a autonomia das mulheres em obstetrícia? Como devem os
profissionais de saúde responder à recusa de tratamento ou a pedidos de cuidados
fora das diretrizes normais? Quais são os limites éticos da autonomia? Neste
painel de discussão sobre ética clínica, utentes de serviços, parteiras, obstetras,
filósofos e especialistas em ética respondem a dois casos hipotéticos retirados
de cenários da vida real.
Caso 1
Felicity tem 44 anos e está à espera do
seu primeiro filho. Tem antecedentes de ansiedade e depressão e um índice de
massa corporal elevado, de 40. A gravidez tem decorrido sem complicações,
embora se estime que o bebé seja grande (acima do percentil 95).
Hoje, está com 39 semanas de gestação.
Foi-lhe proposta a indução do parto às 40 semanas, devido à idade materna.
Felicity deseja o mínimo de intervenção
durante o parto. Ela recusa o registo contínuo da frequência cardíaca fetal e
gostaria de usar uma piscina de parto para o trabalho de parto e o parto. Não
deseja epidural para alívio da dor.
Na consulta de hoje, Felicity não aceita a
proposta de indução do parto. Ouviu dizer que a indução aumenta a probabilidade
de intervenções, incluindo cesarianas de emergência, e está preocupada com a
hiperestimulação e/ou com o facto de simplesmente não funcionar e “acabar” por
fazer uma cesariana na mesma.
Como deve a equipa de maternidade de Felicity responder à sua recusa dos cuidados recomendados?
Caso 2
Rose tem 37 anos. Está grávida de 39
semanas, na sua segunda gravidez. A sua primeira experiência de parto foi muito
traumática. Anteriormente, teve um parto rápido, chegando à unidade de
obstetrícia com 8 cm de dilatação, mas foi transferida para a sala de partos
devido ao progresso lento na segunda fase. Foi submetida a uma cesariana de
emergência após uma tentativa falhada de parto com fórceps e uma hemorragia
grave de 1800 ml. A recuperação do parto foi prolongada e muito dolorosa, e o
seu filho ficou com uma pequena marca por cima do olho.
Esta gravidez tem corrido sem
complicações, exceto uma anemia que foi tratada com injeções de ferro e a sua
hemoglobina está agora dentro dos valores normais, em 105 g/l.
Rose está preocupada com o parto iminente.
Achou o parto anterior assustador; não sabia o que estava a acontecer e pensou
que ia morrer. Desta vez, gostaria de ter o seu bebé em casa e solicitou um
parto domiciliar. Se isso não for possível com o apoio da equipa de parteiras,
prefere dar à luz espontaneamente a ser forçada a ir para o hospital. Diz que
não dará permissão para o uso de fórceps ou cesariana em nenhuma circunstância.
Como deve a equipa de maternidade de Rose
responder ao seu pedido de parto em casa, que pode estar associado a riscos
significativos?
Safoora Teli Experiência vivida / perspetiva da utente
Para
a maioria das pessoas, optar por dar à luz “fora das diretrizes” não é uma
decisão leviana. Pode haver experiências significativas e pesquisas extensas
por trás dessa posição. Por ser um caminho não convencional e, às vezes,
difícil, que pode envolver desacordo da família, também pode gerar conflitos,
com expectativas de ter que “convencer” a equipa clínica e até mesmo considerar
desligar-se dela.
Nestes cenários, a equipa tem o ensejo de
desfazer a ideia de que são adversários e afirmar a sua posição como
profissionais de confiança que oferecem uma rede de segurança durante a gravidez,
o parto e mais além.
O poder final de decisão sobre o parto
pertence à pessoa. Ao ganhar coragem para sair “das diretrizes”, Rose e Felicity
já reconheceram isso. As equipas também devem reconhecer claramente essa
autonomia, demonstrando assim o seu significado e a sua abordagem centrada na
pessoa.
Toda a interação deve começar com empatia.
Assim, as equipas devem estar sempre cientes das sensibilidades relacionadas
com o bem-estar mental de ambas as mulheres. A interação que parece conflituosa
pode aumentar os níveis de stresse, o que não é benéfico na gravidez avançada e
também pode desencadear uma resposta de luta ou fuga, levando-as ao afastamento.
É fundamental que a equipa não use táticas
de intimidação, pois isso não é uma base sólida para a tomada de decisões. A Rose
teve uma experiência traumática no hospital e sente-se insegura e vulnerável.
Qualquer informação sobre os riscos potenciais da sua situação deve ser
transmitida com sensibilidade. A conversa deve começar com a validação da sua
experiência passada. Em seguida, qualquer menção aos riscos deve ser feita
depois de a equipa ter reiterado o seu objetivo principal de apoiá-la para que
tenha um parto seguro e sem stresse.
Idealmente, Rose deveria ter recebido apoio
psicológico após o seu primeiro parto. Pode não ser aconselhável revisitar o
seu trauma nesta fase, mas a equipa deve disponibilizar recursos e ferramentas
adequados para apoiar a sua saúde mental. Podem usar perguntas abertas para
avaliar os seus valores, por exemplo, se ela consideraria ir para a maternidade
numa fase mais precoce ou mais tardia do trabalho de parto desta vez. Se ela
estiver decidida a ter um parto em casa, outras considerações poderiam ser
exploradas, como continuar a aumentar os seus níveis de ferro e colocar um
cateter. Ela aceitou a injeção de ferro, o que indica uma aceitação de
intervenções para uma necessidade existente.
Embora a equipa esteja focada em mitigar os
riscos, dadas as incertezas, existe uma margem de variabilidade; os exames de
crescimento nem sempre são precisos, e mães mais velhas ou com índice de massa
corporal mais elevado nem sempre têm partos mais complicados. Da mesma forma, a
indução pode realmente levar a uma cascata de intervenções. Como mãe pela
primeira vez, não há indícios prévios de como será a experiência de parto de Felicity.
Existe uma possibilidade real de que tudo corra bem. De qualquer forma, se ela
se sentir ignorada e pressionada, irá lembrar-se disso e, tal como Rose,
carregará esse peso consigo, o que poderá desencadear ansiedade e depressão,
afetando a sua saúde pós-parto, o seu percurso como mãe e as futuras
gravidezes.
Cada indivíduo é único e deve ser encorajado
a fazer um plano de parto de acordo com as suas necessidades. Ela deve sentir
que a sua voz é fundamental no processo de tomada de decisão, não em suposições
baseadas apenas em categorias nas quais se enquadra o seu perfil. Se a equipa
der apoio positivo e a defender sem a rotular ou descartar, isso criará uma
base de confiança. Se for necessária alguma intervenção não planeada, as
sugestões da equipa serão vistas como uma extensão desse apoio e serão mais
bem-vindas.
As equipas devem concentrar-se no que Rose e
Felicity estão dispostas a aceitar e não nas suas recusas. Felicity está feliz
por estar num ambiente clínico e é mais provável que aceite as intervenções
necessárias se estiver satisfeita com a sua equipa. Rose não quer estar no
hospital, mas está disposta a ter parteiras no parto em casa. Se sentir empatia
da sua equipa, é mais provável que confie nelas e considere a transferência
para o hospital, se lhe for recomendado.
Pressionar as mulheres na tomada de decisões
sobre o parto é desmotivador e leva a traumas duradouros e desconfiança nos
cuidados de maternidade. Por outro lado, se em cada fase do processo elas se
sentirem ouvidas e apoiadas para fazerem as suas próprias escolhas, a
experiência será satisfatória e capacitante.
Claire Litchfield, Anna Madeley Perspetiva das parteiras
Embora
as diretrizes e o ensino atuais incentivem as parteiras a respeitar e apoiar
escolhas não normativas em relação ao parto, é discutível que elas realmente
sintam isso na prática. Algumas parteiras relataram sentir medo de sanções e/ou
culpa caso ocorram resultados adversos que poderiam ser evitados. Existe o
potencial de dano moral quando as parteiras se deparam com situações físicas
angustiantes que ultrapassam os limites do seu âmbito profissional.
No caso 1, as parteiras que apoiam Felicity
podem sentir-se em conflito entre apoiar as escolhas e o seu papel fundamental
de otimizar os processos fisiológicos normais.1 Atualmente, não há
orientações para parteiras que desejam recusar-se a atender mulheres que fazem
escolhas de parto não normativas, e isso pode ser um tema para discussão e
debate no futuro.
Algumas organizações do Serviço Nacional de
Saúde proporcionam aconselhamento sobre opções de parto, geralmente com uma
parteira consultora, possivelmente numa clínica dedicada a opções de parto,
onde podem ser elaborados planos detalhados. Estes planos proporcionam às
parteiras assistentes um apoio organizacional explícito. Muitos planos procuram
mitigar os riscos ou maximizar a segurança, o que pode envolver negociação com
as mulheres. Por exemplo, as parteiras podem propor um acesso intravenoso a Rose
(caso 2) durante o trabalho de parto e a administração de medicamentos
imediatamente após o parto para reduzir a probabilidade de hemorragia. As
clínicas de opções de parto são recomendadas pelo National Institute for
Health and Care Excellence (NICE) para prestarem aconselhamento às mulheres
que solicitam parto por cesariana sem indicação clínica2; no
entanto, na prática, também são utilizadas para planear os cuidados para
aquelas que fazem outras escolhas não normativas.
Se as organizações não disponibilizam
clínicas ou planeamento de opções de parto, as parteiras podem sentir-se pessoalmente
mais expostas e experimentar sentimentos intensos de medo. Quando as parteiras
trabalham em organizações que não disponibilizam recursos de apoio a partos
domiciliares ou equipas de parteiras, ou que dão prioridade a critérios rigorosos/conformidades
com orientações clínicas, pode ser praticamente impossível que as parteiras
atendam mulheres que optam por cuidados não normativos e respeitem as condições
do seu cargo. Isso pode efetivamente forçar as mulheres a explorar
alternativas, como cuidados de maternidade privados, parto livre ou de aceitação
reticente.
Do ponto de vista jurídico e regulamentar,
os médicos são obrigados a prestar cuidados centrados na pessoa, mesmo quando
os cuidados recomendados são recusados ou não estão previstos nas diretrizes
clínicas. O apoio às mulheres no seu direito de recusar aspetos dos cuidados
que lhes são prestados ou de fazer escolhas difíceis está explicitamente
refletido nos códigos de conduta profissional dos médicos.1,3 Estes
códigos protegem os médicos de ações regulamentares e judiciais, desde que
sejam respeitados os princípios fundamentais do consentimento informado e da
tomada de decisão apoiada. As mulheres também são protegidas por precedentes
legais e instrumentos estatutários para terem a gravidez e o parto da forma e
no local que desejarem. Essas proteções incluem a escolha com quem, em que
medida os cuidados perinatais são aceites (na totalidade, em parte ou não), e,
finalmente, e mais importante, a capacidade de não serem obrigadas a ceder a
autonomia corporal em relação à preferência do prestador de cuidados por ações
ou escolhas, apenas pelo facto de discordarem de uma decisão ou de a sua
decisão ser considerada arriscada, irracional ou que coloca a si própria ou ao
feto em perigo.[Re MB
(Medical Treatment) [1997] EWCA Civ 3093, 1997; St George’s Healthcare NHS
Trust v SR v Collins and others ex parte S, 1998] Os casos apresentados
aos tribunais europeus e nacionais reforçam estes direitos e sublinham a
necessidade de proteger, através de práticas dinâmicas para obter o
consentimento informado e a presunção de capacidade mental, salvo prova em
contrário, a necessidade de proteger a autonomia através da capacidade de
exercer a escolha e o controlo. Estas questões são importantes para as mulheres4-6
que informam a tomada de decisões imediatas e subsequentes, quer se trate de
recusar os cuidados recomendados, de se retirar completamente dos cuidados ou
de fazer escolhas cada vez mais não normativas. A dicotomia entre os direitos
legais à escolha, à agência e à autonomia e as ações e restrições
institucionais na prestação de cuidados destinados a influenciar o cumprimento
está bem documentada,7 assim como as consequências dessas escolhas
para a tomada de decisões futuras e continuadas.8 Estas questões
reforçam a natureza do desafio para as parteiras na facilitação de escolhas
complexas centradas na pessoa, especialmente no contexto de escolhas não
normativas, como representado por este par de casos.
Brenda Kelly, Lawrence Impey Perspetiva obstétrica
Uma
pessoa tem o direito moral e legal de recusar intervenções médicas e cuidados,
e os cuidadores têm o dever de cuidar dela da melhor forma possível, desde que
os cuidados sejam aceites. Cuidados eficazes envolvem ouvir as preocupações do
doente, interagir e construir confiança.
É fundamental compreender as razões por trás
do plano de parto e trabalho de parto de uma pessoa, incluindo as suas
esperanças e medos. É importante avaliar a sua compreensão dos riscos
associados ao desvio dos cuidados recomendados durante a gravidez e o parto, o
nível de risco que consideram aceitável e os resultados que mais valorizam. O
processo de tomada de decisão envolve frequentemente compromissos entre o que a
mãe considera ideal para si, quer esteja relacionado com o bem-estar físico ou
psicológico, e os riscos associados para o bebé. Apresentar as melhores provas
disponíveis de forma compreensível e aplicável é fundamental para uma tomada de
decisão baseada em provas.
A previsão de riscos em eventos normais da
vida, como o parto, é imprecisa, e muitas intervenções podem ser necessárias
para prevenir um único resultado adverso, como um nado-morto. Um espaço
respeitoso e psicologicamente seguro para conversar pode ajudar a evitar o
abandono dos cuidados de maternidade, o que pode, sem querer, aumentar as taxas
de natimortalidade. Intervenções como a indução do parto privilegiam muitas
vezes a saúde do feto em detrimento da saúde da mãe e podem causar traumas
físicos e psicológicos à mãe, afetando o seu bem-estar a longo prazo.
Felicity corre um risco aumentado de
nado-morto além das 40 semanas de gestação, e particularmente entre as 41 e 42
semanas, principalmente devido à sua idade. Embora a sua gravidez não tenha tido
até agora complicações, este risco é reduzido, mas não eliminado. A probabilidade
absoluta de um nado-morto é baixa, cerca de 1 em 100. Embora a indução do parto
não aumente o risco de cesariana, ela medicaliza a experiência do parto e pode
torná-la menos positiva para a mulher. Não induzir o parto aumenta ligeiramente
o risco absoluto de natimortalidade e também deve ser reconhecido pela utente
que o avanço da gestação numa mãe primípara de 44 anos pode aumentar a
probabilidade de complicações no parto, como sofrimento fetal, mesmo que o
parto comece naturalmente, comprometendo potencialmente a sua experiência de
parto.
O anterior parto traumático de Rose
influencia as suas decisões atuais sobre a gravidez. Trabalhar com Rose para
otimizar a sua experiência de parto pode ajudar a reconstruir o seu bem-estar
psicológico. Ela tem pelo menos 70% de hipóteses de ter um parto vaginal sem
complicações, dado o progresso do seu trabalho de parto anterior. Um parto em
casa, se devidamente apoiado, pode oferecer-lhe a melhor hipótese de uma
experiência positiva, uma vez que provavelmente se sentiria mais relaxada. No
entanto, o trabalho de parto e o parto podem ser imprevisíveis. Rose tem 1 em
200 de hipóteses de a cicatriz uterina de uma cesariana anterior se romper
durante o trabalho de parto. Se isso ocorrer em casa, há mais de 50% de
hipóteses de um nado-morto, com risco significativo para a sua vida devido a
hemorragia interna. Seria necessária uma transferência urgente para o hospital,
a fim de maximizar a segurança para ela e para o seu bebé.
Embora manter a esperança seja importante
para o bem-estar psicológico de Rose, é fundamental conversar e chegar a um acordo sobre um
plano de contingência para possíveis complicações, incluindo quando e por que
uma transferência para o hospital seria recomendada. É essencial determinar se
ela concordaria com a transferência seguindo o conselho dos seus cuidadores.
Essas conversas podem ser profundamente perturbadoras para Rose, exigindo apoio
adicional à saúde mental e conversas de acompanhamento. Se decidir ter um parto
em casa, Rose tem de ser apoiada, pois o afastamento dos cuidados médicos e o
parto livre acarretam riscos muito maiores. Cuidar dela em casa exigirá
recursos e poderá traumatizar ainda mais a Rose e os seus cuidadores em caso de
emergência, pois a ajuda deles seria limitada. Quaisquer diretivas antecipadas
contra a intervenção devem ser revistas em caso de emergência em casa.
O debate sobre opções de parto não
normativas requer formação, empatia, experiência e tempo, envolvendo
frequentemente várias consultas. As necessidades de outros doentes e
profissionais também têm de ser consideradas, uma vez que dedicar tempo e
recursos a um doente pode comprometer os cuidados prestados a outros, criando
potencialmente conflitos num cenário de recursos limitados. Nem todos os
profissionais se sentem suficientemente experientes ou psicologicamente seguros
para prestar cuidados de parto fora das diretrizes-padrão. Experiências
traumáticas para os profissionais podem afetar a sua capacidade de cuidar de
outras mães no futuro.
Em resumo, equilibrar os direitos e
preferências das mães com o dever de cuidar requer uma comunicação sensata e
respeitosa, além de compreensão dos riscos associados. É essencial criar um
contexto favorável à tomada de decisões informadas e ao planeamento de
contingências, mesmo quando se trata de escolhas de parto não normativas. Essa
abordagem garante o bem-estar tanto da mãe quanto dos cuidadores, minimizando
traumas e maximizando experiências positivas de parto.
Rebecca CH Brown, Elselijn
Kingma Perspetiva filosófica
Os
casos acima referidos podem, compreensivelmente, ser considerados preocupantes
pelos profissionais de saúde. Isso não significa que os princípios éticos
fundamentais deixem de se aplicar. Pelo contrário: eles são essenciais para
considerar a melhor forma de apoiar alguém que deseja agir “fora das diretrizes”. [Unpublished Kingma, E. (2021)
Toelichting Ethische Aspecten Verloskundige Zorvragen Buiten de Richtlijn.]
As grávidas, tal como
qualquer outro adulto com capacidade de discernimento, mantêm o seu direito
quase absoluto de recusar tratamento médico.9 No contexto da
maternidade, a autonomia reveste-se de especial importância e, ao mesmo tempo,
corre um risco particular de ficar comprometida. É de especial importância uma
vez que os cuidados de maternidade (1) envolvem partes do corpo socialmente
sensíveis e (2) visam frequentemente promover a saúde de um (o bebé) em
detrimento de outro (a mãe).10 Existe um risco particular de
comprometer a autonomia das pessoas em trabalho de parto, uma vez que muitas
vezes esta não é devidamente respeitada.10-12 O papel dos
profissionais de cuidados de maternidade na facilitação da tomada de decisões
não é coagir, persuadir ou manipular as pessoas para que façam a escolha “correta”,
mas sim permitir que a pessoa grávida tome decisões genuinamente autónomas.
Um elemento fundamental para isso é
construir confiança, em vez de miná-la. Isso requer comunicação solidária,
disposição para levar a sério as preocupações da pessoa grávida e garantia
consistente de que o seu direito de decidir o que será feito sempre será
respeitado.
Mas em casos “fora das diretrizes”, como os
discutidos aqui, os profissionais de saúde muitas vezes estão preocupados com o
risco para a mãe e o bebé. De que forma os profissionais de saúde podem cumprir
melhor as suas obrigações éticas e profissionais de prestar cuidados seguros e
justos nesses casos, respeitando ao mesmo tempo a autonomia das mulheres e
construindo confiança?
A proposta de diretrizes holandesas, baseada
em extensas análises éticas, recomenda que os prestadores de cuidados tomem as
medidas descritas na Caixa 1:
Podemos aplicar isto tanto à Felicity como à
Rose. Em ambos os casos, o profissional de saúde deve dedicar tempo para
identificar as preocupações subjacentes (passo 1). Por que é que a Felicity
quer intervenções mínimas? Quais são as crenças, valores e preocupações subjacentes?
Somente com uma compreensão adequada destes aspetos é que o profissional de
saúde pode dar informações precisas, relevantes e imparciais sobre os prós e
contras da indução (passo 2). Pode expressar preocupação com a decisão de Felicity
se achar que isso é necessário, mas apenas deixando claro que respeitará a
escolha de Felicity e fará o possível para cuidar dela e do seu bebé em
qualquer cenário (passo 3). Se Felicity continuar a preferir não induzir, o
profissional de saúde e Felicity devem elaborar um plano de cuidados para os
cuidados mais seguros possíveis, consistentes com os valores e preocupações de Felicity.
Isto deve passar, por exemplo, pelo diálogo sobre em que fase a Felicity
consideraria a indução, quando esta decisão pode ser rediscutida, as suas
preferências em relação à auscultação intermitente (dada a sua posição contra a
monitorização contínua da frequência cardíaca fetal) e assim por diante (passo
5). O plano deve ser claramente escrito e comunicado ao resto da equipa que
está (ou provavelmente estará) envolvida nos seus cuidados.
Caixa 1 - Recomendações
para os profissionais de saúde na resposta a pedidos de cuidados fora das
directrizes15
1. Aborde o pedido (ou recusa) com a mente aberta, tomando cuidado
para identificar as preocupações subjacentes. Muitas vezes, as preocupações
podem ser retiradas ou atenuadas no contexto de uma boa comunicação.
2. Dê informações relevantes e imparciais. Isso pode incluir procurar
corrigir crenças falsas e informar (com sensatez) a grávida de que não
recomenda o que ela está a propor.
3. Trabalhe com a grávida para identificar a versão mais segura de um
plano de cuidados consistente com os seus desejos. Implemente esse plano,
envolvendo toda a equipa de cuidados.
4. Deixe claro que a grávida pode sempre mudar de ideias e verifique
regularmente se o plano precisa de ser alterado (mas não com tanta frequência
que constitua intimidação ou pressão, ou que prejudique a confiança).
5. Registe cuidadosamente no processo clínico que o plano se desvia
das recomendações médicas e porquê, bem como tudo o que foi acordado. Isto
serve para proteger o profissional de saúde e facilitar a colaboração da
equipa.
Casos como os de Felicity e Rose podem ser
preocupantes para os profissionais de saúde. O “sucesso” no planeamento dos
cuidados para essas mulheres não deve ser medido pela extensão em que elas
podem ser persuadidas a cumprir os cuidados recomendados. Em vez disso, deve
concentrar-se em facilitar decisões autónomas e informadas e em usar a
experiência das equipas de cuidados para fornecer os melhores cuidados
possíveis para a mãe e o bebé, de acordo com essas decisões.
Dominic JC Wilkinson, Helen Turnham Ética clínica
Os
comentários acima já exploraram muitas das considerações éticas importantes sobre
os casos. Além disso, se levados à nossa comissão de ética clínica, o nosso
objetivo seria ajudar os clínicos a identificar e separar várias dúvidas éticas
distintas.
Autonomia e recursos
Os
dois casos apresentados neste artigo representam duas formas distintas pelas
quais podem surgir desafios à autonomia. A primeira (como no caso 1) é quando
os doentes recusam o tratamento oferecido. A segunda (caso 2) é quando os
doentes solicitam opções que os profissionais de saúde não aprovam ou não
disponibilizam.
Uma resposta ética padrão a tais desafios
distingue entre autonomia negativa e o direito absoluto dos doentes de recusar
tratamento, versus autonomia positiva e a falta de direito dos doentes
de exigir tratamento (particularmente quando os recursos são escassos ou quando
isso terá um impacto negativo no atendimento a outros doentes). Mas, como fica
claro na discussão anterior, na prática, as linhas entre autonomia positiva e
negativa podem ser difusas. A recusa de opções de tratamento também pode afetar
os recursos e outros doentes, porque esses doentes podem precisar de
monitoramento adicional ou formas alternativas de cuidados. E (como no segundo
caso) os pedidos de tratamento podem coincidir com a recusa de outros
tratamentos. Como Rose não está disposta a dar à luz no hospital, é errado os
médicos compararem as opções de parto no hospital ou em casa. As opções
realistas para ela são o parto assistido em casa ou o parto livre, muito mais
arriscado.
Mencionámos um limite potencial à autonomia
do doente – o da escassez de recursos médicos, incluindo físicos (salas de
cirurgia, espaço para partos), humanos (tempo da equipa) e financeiros. Mas,
embora as limitações de recursos sejam uma consideração eticamente importante,
são difíceis de aplicar a casos individuais. Isso deve-se a várias razões.
Primeiro, ao contrário das decisões sobre o fornecimento de medicamentos caros
ou órgãos para transplante, a alocação não é necessariamente uma escolha entre
uma coisa ou outra, mas sim quanto de um recurso deve ser oferecido. E pode ser
muito difícil traçar uma linha não arbitrária. Em segundo lugar, fornecer o
recurso desejado pode ser viável para um doente individual e não levará
necessariamente a um compromisso no atendimento a outros doentes. O problema
pode surgir quando tais casos ocorrem repetidamente, pois isso pode comprometer
a prestação de cuidados a outras pessoas. Mas pode ser problemático negar às
mulheres o acesso a opções de tratamento que estariam disponíveis para outras
mulheres com base nisso (por exemplo, a opção de parto em casa ou cesariana).
Não se trata simplesmente de uma questão de saber se um recurso está
disponível, se há evidências que apoiem uma escolha ou mesmo se é “economicamente
viável”. A verdadeira questão é se o benefício (por exemplo, em termos de
respeitar as escolhas da mulher em relação ao parto) é suficiente para
justificar o fornecimento do recurso solicitado. Mas essa é uma questão muito
mais complicada.
Mulher versus feto
Em
seguida, um constrangimento geral à autonomia do doente é a possibilidade de
uma escolha prejudicar outra pessoa. As escolhas sobre o parto que não se
enquadram em diretrizes podem ser consideradas particularmente difíceis devido
ao potencial de danos ao feto ou à futura criança. É importante notar que os
comentários acima não se detêm nessa questão específica. Isso porque, pelo
menos no contexto do Reino Unido, os direitos da mulher de tomar decisões sobre
o seu próprio corpo e sobre o parto prevalecem sobre as considerações relativas
ao bem-estar da criança. Isso não significa que a preocupação com a futura
criança seja eticamente irrelevante.16 Na maioria dos casos, essas
preocupações estarão na mente da mulher. Elas provavelmente também sustentarão
as recomendações das parteiras e dos obstetras. No entanto, devemos deixar
claro que esse fator não deve limitar ou restringir as escolhas de Felicity ou Rose.
Não se justificaria forçar Felicity a induzir o parto ou Rose a dar à luz no
hospital.
No entanto, pode ser muito importante
conversar abertamente sobre as preocupações com os danos ao feto/futuro filho.
Isso porque alguns médicos podem ter sido formados ou trabalhado em outras
partes do mundo que limitam a autonomia das mulheres em prol da criança. É
importante ajudá-los a entender como a abordagem pode ser diferente em países
como o Reino Unido. Podemos também explorar se as escolhas de uma mulher
entrariam em conflito com os valores e crenças pessoais dos médicos. Dar aos
médicos a oportunidade de refletir sobre os seus próprios valores pode ajudar a
aliviar o sofrimento moral. Também pode indicar opções que estão disponíveis
para eles, incluindo apoiar a escolha da mulher, apesar da sua discordância
pessoal,17 ou a opção de objeção de consciência (quando há outros
médicos disponíveis para apoiar a mulher nos seus cuidados) <



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