02 dezembro 2025

Biomarcadores de Alzheimer

Testes sanguíneos para a doença de Alzheimer - o que fazer com o Santo Graal

Joshua D. Grill, PhD - Instituto de Distúrbios Neurológicos e Deficiências de Memória, Universidade da Califórnia, Irvine

Tradução espontânea do editorial da revista JAMA Neurology publicado em 1.12.2025

Blood Tests for Alzheimer Disease - What to Do With the Holy Grail

https://jamanetwork.com/journals/jamaneurology/fullarticle/2842198

 

Neste número da revista JAMA Neurology, Malek-Ahmadi e colegas1 apresentam uma meta-análise de 17 estudos, realizados nos últimos 5 anos, sobre a capacidade de a proteína tau 217 fosforilada no plasma (p-tau217) distinguir grupos de indivíduos sem comprometimento cognitivo que apresentam resultados positivos nos biomarcadores tradicionais da doença de Alzheimer (DA) daqueles que apresentam resultados negativos. Os autores concluem que a p-tau217 no plasma é uma ferramenta poderosa para diferenciar esses grupos, com efeitos e áreas consistentes, considerando a curva operacional característica do recetor.

   No passado, os testes de biomarcadores sanguíneos (BBM - Blood-Based Biomarkers) eram o Santo Graal para os investigadores da DA e doenças relacionadas, mas agora são uma realidade. Embora não substituam uma avaliação cuidadosa, eles aumentarão o acesso a diagnósticos confiáveis para indivíduos com comprometimento cognitivo, vão reduzir o tempo para o início de novas terapias para alguns e facilitar para muitos outros a transição de uma jornada diagnóstica frequentemente ambígua para uma fase de gestão proativa da doença. Os BBM para a DA são os mais recentes de uma série de notáveis progressos na área, impulsionados por investimentos consistentes em investigação nos Estados Unidos e outros governos. Esses investimentos resultaram em técnicas de imagem molecular clinicamente disponíveis para visualizar placas amiloides e complexos neurofibrilares, análises rigorosas de proteínas do líquido cefalorraquidiano (LCR) para a patologia da doença, BBM recém-aprovados, programas abrangentes de orientação para o tratamento da demência, um primeiro tratamento para sintomas comportamentais e em terapias lecanemab e donanemab orientadas para a DA sintomática precoce. A quantidade e a velocidade do progresso são impressionantes e, desde que os investimentos em investigação sejam mantidos, prenunciam melhorias contínuas na qualidade dos cuidados disponíveis para idosos com comprometimento cognitivo.

   Mas com o rápido progresso vem a necessidade de planos de aplicação bem concebidos, de esforços contínuos para observar os impactos no mundo real e os riscos de uso indevido. O p-tau217 plasmático será uma bênção para o tratamento de indivíduos com comprometimento cognitivo; o uso em indivíduos sem comprometimento cognitivo (a população na meta-análise) é mais complexo. Persistem preocupações sobre a apresentação de diagnósticos ideais, sobre os requisitos e encargos do sistema de saúde, sobre proteções legais inadequadas e, ainda, sobre o estigma da DA.2 Dadas estas preocupações, dois grupos de especialistas mundiais3,4 recomendaram recentemente que não se realizem testes de biomarcadores em populações sem deficiências até que estejam disponíveis tratamentos baseados em provas que retardem os sintomas.

   Os dados apresentados por Malek-Ahmadi et al 1 são, no entanto, convincentes de que, uma vez que estejam disponíveis tratamentos altamente eficazes, o p-tau217 plasmático provavelmente desempenhará um papel central nesta nova prática clínica. Ainda assim, é importante destacar alguns factos importantes.

   Mesmo os padrões de referência para comparação utilizados nos estudos analisados por Malek-Ahmadi et al,1 a tomografia por emissão de positrões (PET) e o LCR, têm limitações e ressalvas. As leituras visuais e quantitativas da PET amiloide podem entrar em conflito,5 os exames positivos com distribuição atípica do sinal podem ser erroneamente rotulados como quantitativamente negativos, uma atrofia cerebral e dificuldades técnicas com tubos, assim como a produção, transporte e administração do marcador podem resultar em variação ou erro.6 Os estudos analisados testaram contra o estado amiloide positivo, mas o p-tau217 não é específico para a amiloide cerebral. Parece fornecer informações sobre placas amiloides e complexos neurofibrilares, como evidenciado pelo facto de que o tratamento com terapia de anticorpos monoclonais, resulta em reduções robustas na PET amiloide que não são completamente captadas por alterações paralelas do p-tau217.7

   Os estudos incluídos descrevem diferenças ao nível do grupo. Efeitos de grande magnitude para demonstrar diferenças entre grupos não são equivalentes à precisão diagnóstica necessária para recomendar um teste para uso clínico. Entre os doentes com comprometimento cognitivo, até 20% dos resultados do teste p-tau217 são «indeterminados», levando a propostas para um sistema-2 de biomarcadores para esses doentes.8 Não se sabe qual a proporção de resultados que serão indeterminados numa população sem comprometimento cognitivo e se esse sistema de biomarcadores seria necessário para garantir a identificação de todos os elegíveis para tratamento. O que se sabe é que uma prevalência geral mais baixa trará taxas mais elevadas de falsos positivos e ao risco de rotular incorretamente os idosos como portadores de DA. Uma eventual prática clínica que inclua o teste BBM em idosos sem comprometimento cognitivo também provavelmente será afetada por fatores externos, como é atualmente o caso do uso clínico do BBM na avaliação de indivíduos com comprometimento cognitivo. A disponibilidade de ensaios e plataformas, bem como as decisões de cobertura das seguradoras, podem resultar em alguns doentes serem testados com opções que não são as ideais.8,9 As preocupações com as taxas de falsos positivos serão particularmente importantes se os testes utilizados tiverem menor precisão ou maior confusão por comorbidades, em comparação com o ambiente controlado da investigação.9

   Determinar os limiares ideais para o p-tau217 para rastrear idosos que necessitam de cuidados continua a ser uma área fundamental de investigação. A carga de complexos neurofibrilares é amplamente considerada como estando mais intimamente associada ao declínio cognitivo, e indivíduos sem comprometimento cognitivo e níveis elevados de amiloide cerebral e algum tau neocortical apresentam o maior risco de progressão a curto prazo para comprometimento cognitivo objetivo.10 Em alternativa, os níveis subliminares de amiloide podem prever um eventual declínio cognitivo.11 Em última análise, pode ser necessária uma calculadora de risco que incorpore BBM e informações clínicas e demográficas adicionais, como é usual noutras áreas da medicina.12

   Por fim, os rápidos avanços tecnológicos levaram à proliferação de empresas que comercializam testes de biomarcadores diretamente ao consumidor (DTC) para DA. Os testes DTC de biomarcadores contornam a avaliação clínica especializada que deveria ser o primeiro passo para qualquer idoso com apreensões cognitivas.13 Há uma escassez de dados de segurança para a divulgação dos resultados dos biomarcadores a idosos sem deficiências, na ausência de consentimento, educação e aconselhamento adequados. Embora algumas empresas DTC ofereçam consultas com um médico para analisar os resultados, poucas parecem oferecer educação ou aconselhamento antes do teste. Esse aconselhamento faz com que, pelo menos, algumas pessoas optem por não prosseguir com o teste14; igualmente importantes são a preparação psicológica para os resultados, a educação sobre os riscos médico-legais e as ações para prevenir os piores cenários.

   Em vez disso, os sites das empresas enfatizam a facilidade dos testes e a oportunidade de saber sobre uma DA 10 a 20 anos antes do início da demência. Alguns sites das empresas referem-se ao acompanhamento de um médico, mas a maioria não. As ofertas de algumas empresas incluem não apenas os resultados do p-tau217 no plasma, mas também testes da cadeia leve do neurofilamento e da proteína ácida fibrilar glial, para os quais há menos dados disponíveis e menos convincentes. Os sites que oferecem os testes variam na linguagem de marketing e na precisão com que descrevem o estado atual da ciência. Muitas vezes, são opacos sobre os testes específicos utilizados e, geralmente, não divulgam os limites em que se baseia a atribuição dos resultados. Alguns também vendem tratamentos, inclusive por meio de serviços de assinatura, que carecem de comprovação, para a redução do risco de DA ou o atraso no início dos sintomas. Alguns afirmam que estas abordagens são «validadas» e enfatizam que o risco de DA pode ser reduzido em até 60% ou que 1 em cada 2 casos de demência pode ser prevenido. Os esforços para atrair indivíduos para os testes sob o pretexto de intervenções preventivas eficazes amplificam as preocupações sobre a falta de transparência, particularmente no que diz respeito à definição de limites.

   Os médicos provavelmente verão um influxo de doentes adultos mais velhos, sem deficiências, levando os resultados dos testes DTC BBM à consulta, perguntando sobre interpretação, prognóstico e oportunidades de tratamento. Isso pode sobrecarregar os especialistas disponíveis, atrasar o acesso ao diagnóstico e tratamento para doentes com deficiências e colocar muitos clínicos não especialistas em posições difíceis para as quais não têm formação.8

   A crescente indústria de BBM precisa de regulamentação. Os consumidores precisam de proteção contra testes de baixa qualidade, terapias não comprovadas e os riscos que acompanham o rótulo de DA.

   Esta área tem um enorme potencial, mas necessita de um plano sólido para a introdução eficaz e responsável dos BBM como ferramenta de rastreio em indivíduos sem deficiência cognitiva.15 É provável que isso comece com especialistas e, em seguida, passe necessariamente para os cuidados primários, a fim de lidar com o número crescente de indivíduos afetados por condições relacionadas com a idade que causam demência.8 Será necessário um investimento contínuo em investigação para sustentar o ritmo atual de progresso na cruzada para lidar com a saúde pública da DA e doenças relacionadas. Vários marcos importantes estão claramente a chegar e serão essenciais para a implementação ética de novas e poderosas ferramentas. <

Referências
1. Malek-Ahmadi M, Sharma S, Stipho F, et al. Plasma phosphorylated tau 217 and amyloid burden in older adults without cognitive impairment: a meta-analysis.  JAMA Neurol. Published online December 1, 2025. doi:10.1001/jamaneurol.2025.4721
2. Karlawish J. Addressing the ethical, policy, and social challenges of preclinical Alzheimer disease. Neurology. 2011;77(15):1487-1493. doi:10.1212/WNL.0b013e318232ac1a
3. Jack CR Jr, Andrews JS, Beach TG, et al. Revised criteria for diagnosis and staging of Alzheimer’s disease: Alzheimer’s Association Workgroup.  Alzheimers Dement. 2024;20(8):5143-5169. doi:10.1002/alz.13859
4. Dubois B, Villain N, Schneider L, et al. Alzheimer disease as a clinical-biological construct: an international working group recommendation. JAMA Neurol. 2024;81(12):1304-1311. doi:10.1001/jamaneurol.2024.3770
5. Zeltzer E, Schonhaut DR, Mundada NS, et al. Concordance between amyloid-PET quantification and real-world visual reads.  JAMA Neurol. 2025;82(9):952-962. doi:10.1001/jamaneurol.2025.2218
6. Leuzy A, Bollack A, Pellegrino D, et al. Considerations in the clinical use of amyloid PET and CSF biomarkers for Alzheimer’s disease. Alzheimers Dement. 2025;21(3):e14528. doi:10.1002/alz.14528
7. Sims JR, Zimmer JA, Evans CD, et al; TRAILBLAZER-ALZ 2 Investigators. Donanemab in early symptomatic Alzheimer disease: the TRAILBLAZER-ALZ 2 randomized clinical trial.  JAMA. 2023;330(6):512-527. doi:10.1001/jama.2023.13239
8. Palmqvist S, Whitson HE, Allen LA, et al. Alzheimer’s Association Clinical Practice Guideline on the use of blood-based biomarkers in the diagnostic workup of suspected Alzheimer’s disease within specialized care settings. Alzheimers Dement. 2025;21(7):e70535. doi:10.1002/alz.70535
9. Schöll M, Verberk IMW, Del Campo M, et al. Challenges in the practical implementation of blood biomarkers for Alzheimer’s disease. Lancet Healthy Longev. 2024;5(10):100630. doi:10.1016/j.lanhl.2024.07.013
10. Ossenkoppele R, Pichet Binette A, Groot C, et al. Amyloid and tau PET-positive cognitively unimpaired individuals are at high risk for future cognitive decline. Nat Med. 2022;28(11):2381-2387. doi:10.1038/s41591-022-02049-x
11. Leal SL, Lockhart SN, Maass A, Bell RK, Jagust WJ. Subthreshold amyloid predicts tau deposition in aging. J Neurosci. 2018;38(19):4482-4489. doi:10.1523/JNEUROSCI.0485-18.2018
12. Wong ND, Budoff MJ, Ferdinand K, et al. Atherosclerotic cardiovascular disease risk assessment: an American Society for Preventive Cardiology clinical practice statement. Am J Prev Cardiol. 2022;10:100335. doi:10.1016/j.ajpc.2022.100335
13. Largent EA, Wexler A, Karlawish J. The future is p-Tau: anticipating direct-to-consumer Alzheimer disease blood tests. JAMA Neurol. 2021;78(4):379-380. doi:10.1001/jamaneurol.2020.4835
14. Gooblar J, Roe CM, Selsor NJ, Gabel MJ, Morris JC. Attitudes of research participants and the general public regarding disclosure of Alzheimer disease research results. JAMA Neurol. 2015;72(12):1484-1490. doi:10.1001/jamaneurol.2015.2875
15. Ketchum FB, Chin NA, Grill JD. Aligning Alzheimer disease biology with care. JAMA Neurol. 2025;82(6):537-538. doi:10.1001/jamaneurol.2024.5154

21 novembro 2025

DAV e MMA

 


“A importância da manifestação de vontade: reflexão sobre o testamento vital e a eutanásia”

Rosalvo Almeida e André Dias Pereira, membros do CNECV *

As Diretivas Antecipadas de Vontade (Testamento Vital e designação de Procurador de Cuidados de Saúde) e a Morte Medicamente Ajudada (Eutanásia e Suicídio Assistido) estão intimamente relacionadas: seja por se referirem ao final de vida, seja por se basearem no primordial princípio da autonomia da pessoa doente.

Contudo, sobressaem diferenças essenciais: as DAV são, fundamentalmente, manifestações negativas (recusas) e na MMA são positivas (pedidos de atuação). Por outro lado, as DAV são documentos firmados antes de ocorrerem os acontecimentos a que dizem respeito e na MMA há obrigação de repetidas confirmações presenciais e atuais.

Acresce que os instrumentos legais que regulam essas circunstâncias diferem bastante: as DAV foram aprovadas por unanimidade (Lei n.º 25/2012) no Parlamento e são socialmente aceites, enquanto a MMA mereceu, apesar de aprovação maioritária (Lei n.º 22/2023), contestação social e sucessivas reservas constitucionais.

O CNECV tem um longo acervo de posicionamentos (Pareceres n.os 11/1995, 59/2010, 69/2013, 70/2013, 82/2015, 95/2017, 100/2018, 101/2018, 105/2019, 107/2020, 108/2020, 109/2020, 110/2020, 116/2022, 118/2022, 121/2023, 129/2024, 134/2025) em que ambas as matérias são referenciadas, verificando-se que são predominantemente favoráveis às DAV e desfavoráveis à MMA. De assinalar que está em preparação uma Tomada de Posição sobre as DAV com eventual proposta de medidas para a sua melhor divulgação.

A manifestação antecipada de aceitar ou rejeitar a participação em ensaios clínicos, caso a pessoa fique incapaz de subscrever o consentimento informado e esclarecido, é abordada em alguns destes pareceres como uma forma de ultrapassar constrangimentos e de facilitar decisões de investigadores, tanto no sentido positivo quanto no negativo. O mesmo se pode dizer no que diz respeito a decisões clínicas perante pessoas com problemas de saúde mental (medidas de contenção, greves de fome ou tratamentos compulsivos).

A lei de despenalização da MMA não permite o testamento vital eutanásico. Ou seja, no contexto de sofrimento intenso e irreversível em fase terminal, e diante de solicitações reiteradas e atuais de acesso a medicação letal, a existência de DAV não configura, por si só, autorização suficiente para a prática da MMA. Contudo, tal documento pode contribuir para a formação de juízo mais consistente acerca dos valores, princípios e trajetória existencial do outorgante, servindo como elemento complementar na avaliação da sua vontade esclarecida e persistente.

Resta uma questão de ordem procedimental sobre a qual aparentemente não há certeza jurídica – como assegurar que uma DAV ou um pedido de MMA é uma manifestação absolutamente livre e esclarecida, não influenciada por fatores económicos ou apreciações afetadas emocional ou psicologicamente? Importa salvaguardar que o sistema de saúde preserva o valor da equidade e da justiça e que se cumpra o direito social à saúde, em todas as fases da vida, para que nenhuma decisão seja condicionada por outros motivos.

Merece ainda referência a Lei n.º 31/2018, que regulamenta os direitos das pessoas em contexto de doença avançada e fim de vida em Portugal. Esta lei consagra o direito a não sofrer de forma desproporcionada e prevê o acesso a cuidados paliativos, apoio espiritual, apoio à família e a realização de testamento vital. l

_________________________

* O presente texto exprime as opiniões dos seus autores, não tendo sido alvo de apreciação institucional pelo CNECV, face às condicionantes de tempo e espaço decorrentes do honroso convite da Ordem dos Advogados.

18 novembro 2025

Inteligência artificial: boa ou má?

Journal of Medical Internet Research | ScienceDirect.com by Elsevier

Inteligência artificial generativa na educação médica: promover o pensamento crítico ou comprometer a autonomia cognitiva?

Juan S Izquierdo-Condoy et al.

Tradução espontânea do resumo e conclusões do artigo publicado em novembro de 2025

Generative Artificial Intelligence in Medical Education: Enhancing Critical Thinking or Undermining Cognitive Autonomy?

Resumo

A inteligência artificial generativa (GenAI) permite a produção de textos coerentes e contextualmente relevantes através do processamento de conjuntos de dados linguísticos em grande escala. Ferramentas como ChatGPT, Gemini, Claude e LLaMA estão cada vez mais integradas na educação médica, auxiliando os estudantes em diversas tarefas, incluindo raciocínio clínico, revisão de literatura, redação científica e avaliação formativa. Embora essas ferramentas ofereçam vantagens significativas em termos de produtividade, personalização e apoio cognitivo, o seu impacto no pensamento crítico – um pilar da educação médica – permanece incerto. O objetivo deste artigo de opinião é avaliar criticamente a influência da GenAI no pensamento crítico no âmbito da formação médica, examinando tanto o seu potencial para melhorar as competências cognitivas como os riscos que representa para a autonomia cognitiva. Os utilizadores relataram maior eficiência e melhoria na produção linguística; no entanto, também surgiram preocupações quanto ao risco de dependência cognitiva excessiva. As provas atuais apresentam um quadro misto, indicando tanto melhorias no envolvimento dos alunos como potenciais desvantagens, tais como passividade ou propensão para desinformação. Sem uma integração curricular que dê prioridade ao uso ético, à 'prompt engineering' e à avaliação crítica, a GenAI pode comprometer a autonomia cognitiva dos estudantes de medicina.

 Por outro lado, quando cuidadosamente incorporadas em estruturas pedagógicas, essas ferramentas podem atuar como potenciadores cognitivos, apoiando, em vez de substituir, o raciocínio clínico. A educação médica deve se adaptar para garantir que os futuros médicos se envolvam com a GenAI de maneira crítica, ética e contextualizada, especialmente em cenários complexos de tomada de decisão. Essa transformação exige não apenas fluência tecnológica, mas também prática reflexiva e supervisão contínua por parte do corpo docente e das instituições académicas.

[…]

Conclusões

Essas ferramentas podem apoiar alunos e educadores sobrecarregados, personalizar o ensino e facilitar o desenvolvimento de competências cognitivas. No entanto, elas não são pedagogicamente neutras. Sem um projeto intencional e um envolvimento crítico, a GenAI pode corroer os próprios atributos de discernimento clínico, raciocínio ético e autonomia intelectual que se usam para definir os médicos competentes.

O futuro da educação médica não reside na rejeição ou na adoção cegas, mas na integração ponderada e baseada na ética. Isso requer formação em literacia digital, apoio mediado pelo corpo docente e estruturas curriculares que reforcem o raciocínio reflexivo. A GenAI deve ser vista não como uma ameaça ou uma panaceia, mas como um catalisador que expõe tanto os pontos fortes como as vulnerabilidades dos modelos educacionais atuais. O desafio que temos pela frente é preparar médicos que não sejam apenas tecnologicamente fluentes, mas sejam também criticamente capacitados. Isso, mais do que qualquer algoritmo, moldará o futuro dos cuidados de saúde.

 

Para ver o artigo original, clicar AQUI

16 novembro 2025

Efeméride - 16 de novembro de 1925

  Carolina Michaëlis de Vasconcelos

Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925), por Sousa Caldas, 1954, átrio do liceu

Efeméride – faleceu há 100 anos

         «Nasceu em Berlim [...] recebeu lições de várias línguas, entre elas o árabe, línguas eslavas, germânicas, sânscrito, provençal, espanhol e português, além das disciplinas da literatura greco-romana! [...] começa uma relação epistolar [com Joaquim Vasconcelos] que depois se torna pessoal até que, após namoro, se casam, vindo os dois viver para o Porto em 1876. [...] uma das personalidades mais notáveis de sempre da cultura portuguesa.» [Toponímia Feminina Portuense, César Santos Silva. Cordão de Leitura, 2012, p. 38] 

08 novembro 2025

Vergonha e culpa

Esses médicos querem quebrar o ciclo de vergonha e culpa em Medicina.

Charlotte Huff, jornalista independente

Tradução do texto publicado em 28 de outubro de 2025

These doctors want to break the cycle of shame and blame in medicine

 A aflição que Will Bynum mais tarde reconheceu como vergonha tomou conta dele quase imediatamente.

Bynum, então no seu segundo ano de internato como médico de família, estava a terminar um longo turno quando foi chamado para um parto de emergência. Para salvar a vida do bebé, ele usou um dispositivo de vácuo, que aplica sucção para ajudar no parto rápido.

O bebé nasceu ileso. Mas a mãe sofreu um grave rasgão vaginal que exigiu uma reparação cirúrgica por um obstetra. Logo depois, Bynum retirou-se para um quarto vazio do hospital, tentando processar os seus sentimentos sobre aquela complicação inesperada.

«Eu não queria ver ninguém. Não queria que ninguém me encontrasse», disse Bynum, agora professor associado de medicina familiar na Faculdade de Medicina da Universidade Duke, na Carolina do Norte. «Foi uma reação realmente muito primitiva.»

A vergonha é uma emoção humana comum e altamente desconfortável. Nos anos que se seguiram, Bynum tornou-se uma voz de destaque entre médicos e investigadores que defendem que a intensidade do processo de formação médica pode amplificar a vergonha nos futuros médicos.

Ele agora faz parte de um trabalho emergente para ensinar o que descreve como «competência em vergonha» a estudantes de medicina e médicos em exercício. Embora a vergonha não possa ser eliminada, Bynum e os seus colegas de investigação afirmam que as competências e práticas relacionadas podem reduzir a cultura da vergonha e promover uma forma mais saudável de lidar com ela.

Sem essa abordagem, argumentam eles, os médicos do futuro não reconhecerão e não lidarão com as emoções em si mesmos e nos outros. E, assim, correm o risco de transmiti-las aos seus doentes, mesmo que inadvertidamente, o que pode piorar-lhes a saúde. Culpar os doentes pode ter um efeito contrário, disse Bynum, tornando-os defensivos e levando ao isolamento e, às vezes, ao uso de substâncias.

Culpar os doentes

O ambiente político dos EUA apresenta um obstáculo adicional à mudança da cultura da vergonha. O secretário de Saúde e Serviços Humanos, Robert F. Kennedy Jr., e outros altos funcionários da área de saúde do governo Trump acusaram publicamente o autismo, a diabetes, o transtorno de défice de atenção e hiperatividade e outras doenças crónicas, em grande parte, de serem devidas a escolhas de estilo de vida das pessoas com essas condições – ou dos seus pais.

Por exemplo, o comissário da FDA, Marty Makary, sugeriu numa entrevista à Fox News que mais casos de diabetes poderiam ser tratados com aulas de culinária, em vez de «apenas dar insulina às pessoas».

Mesmo antes da mudança política, essa atitude também se refletia nos consultórios médicos. Um estudo de 2023 descobriu que um terço dos médicos relatou sentir repulsa ao tratar doentes com diabetes tipo 2, que muitas vezes está associada à obesidade. Cerca de 44% consideravam que esses doentes não tinham motivação para mudar o estilo de vida, enquanto 39% disseram que eles tendiam a ser preguiçosos.

«Não gostamos de sentir vergonha. Queremos evitá-la. É muito desconfortável», disse Michael Jaeb, en­fermeiro da Universidade de Wisconsin-Madison, que realizou uma revisão de estudos relacionados, publicada em 2024. E se a fonte da vergonha for o médico, o doente pode perguntar: «Por que voltaria?» Em alguns casos, esse doente pode generalizar isso para todo o sistema de saúde.

De facto, alguns doentes, como Christa Reed, evitaram os médicos por causa disso. Reed abandonou os cuidados médicos regulares durante duas décadas, cansada de palestras relacionadas com o peso. «Quando estava grávida, disseram-me que as minhas náuseas matinais se deviam ao facto de eu ser uma mulher plus size, com excesso de peso», disse ela.

Com exceção de alguns problemas médicos urgentes, como um corte infetado, Reed evitava os profissionais de saúde. «Porque ir ao médico para uma consulta anual seria inútil», disse a fotógrafa de casamentos da região de Minneapolis, agora com 45 anos. «Eles só me diriam para perder peso.»

Então, no ano passado, uma forte dor na mandíbula levou Reed a procurar atendimento especializado. Uma medição de rotina da pressão arterial mostrou uma leitura altíssima, levando-a às urgências. «Eles disseram: ‘Não sabemos como consegue andar normalmente’», contou ela.

Desde então, Reed encontrou médicos que a apoiam e têm experiência em nutrição. A sua pressão arterial permanece controlada com medicação. Ela também está quase 45 kg abaixo do seu peso máximo e faz caminhadas, anda de bicicleta e levanta pesos para ganhar músculos.

Uma ética de trabalho «masoquista»

Savannah Woodward, psiquiatra da Califórnia, faz parte de um grupo de médicos que tenta chamar a atenção para os efeitos prejudiciais da vergonha e desenvolver estratégias para preveni-la e mitigá-la. Embora esse esforço esteja em fase inicial, ela foi corresponsável por uma sessão sobre a espiral da vergonha na reunião anual da Associação Americana de Psiquiatria, em maio.

Se os médicos não reconhecerem a vergonha em si mesmos, podem correr o risco de depressão, exaustão, dificuldades para dormir e outros efeitos em cadeia que prejudicam o atendimento ao doente, disse ela.

«Muitas vezes não falamos sobre a importância da conexão humana na medicina», disse Woodward. «Mas se o seu médico está exausto ou sente que não merece ser o seu médico, os doentes sentem isso. Eles percebem.»

Numa pesquisa realizada este ano, 37% dos estudantes finalistas relataram ter sentido constrangimentos públicos em algum momento da faculdade de medicina, e quase 20% descreveram humilhações públicas, de acordo com uma pesquisa anual da Associação Americana de Faculdades de Medicina.

Os estudantes de medicina e os médicos internos já são propensos ao perfeccionismo, juntamente com uma ética de trabalho quase «masoquista», como Woodward descreveu. Então, são sujeitos a uma série de exames e anos de formação, debaixo de um escrutínio constante e com a vida dos doentes nas suas mãos.

Durante a formação, os médicos trabalham em equipas e fazem apresentações para o corpo docente sobre os problemas de saúde de doentes e a abordagem de tratamentos recomendada. «Você tropeça nas palavras. Esquece coisas. Confunde as coisas. Fica em branco», conta Bynum. E então a vergonha aparece, diz ele, levando a outros pensamentos debilitantes, como «Não sou bom nisto. Sou um idiota. Todos à minha volta teriam feito isto muito melhor'».

No entanto, a vergonha continua a ser «uma falha na sua armadura, que não se quer mostrar», disse Karly Pippitt, médica de família da Universidade do Utah, que ensinou estudantes de medicina sobre o potencial da vergonha como parte de um curso mais amplo de ética e humanidades.

«Estás a cuidar de uma vida humana», disse ela. «Deus te livre de agir como se não fosses capaz ou de mostrar medo.»

Acabar com o ciclo da vergonha

Ao ensinar os estudantes sobre a vergonha, o objetivo é ajudar os futuros médicos a reconhecerem essa emoção em si mesmos e nos outros, para que não perpetuem o ciclo, disse Pippitt. «Se sentiu vergonha durante toda a sua formação médica, isso normaliza essa experiência», disse ela.

Acima de tudo, os médicos em formação podem trabalhar para reformular a sua mentalidade quando recebem uma nota baixa ou têm dificuldade em dominar uma nova competência, disse Woodward, psiquiatra da Califórnia. Em vez de acreditar que falharam como médicos, podem concentrar-se no que fizeram de errado e nas formas de melhorarem.

No ano passado, Bynum começou a ensinar aos médicos da Duke sobre competência em relação à ver­gonha, começando com cerca de 20 médicos internos em obstetrícia e ginecologia. Este ano, ele lançou uma iniciativa maior com o The Shame Lab, uma parceria de investigação e formação entre a Duke University e a University of Exeter, na Inglaterra, da qual ele é cofundador, para envolver cerca de 300 pessoas do Departamento de Medicina Familiar e Saúde Comunitária da Duke, incluindo professores e médicos inter­nos.

Este tipo de formação é raro entre os colegas da médica interna de obstetrícia e ginecologia da Duke, Canice Dancel. Dancel, que concluiu a formação, esforça-se agora por apoiar os estudantes à medida que aprendem competências como suturar. Ela espera que eles transmitam essa abordagem numa «reação em cadeia de gentileza mútua».

Mais de uma década depois de Bynum ter passado por aquele parto de emergência angustiante, ainda se arrepende de a vergonha o ter impedido de verificar como estava a mãe, como se costumava fazer após o parto. «Eu estava com muito medo de como ela iria reagir perante mim», disse ele.

«Foi um pouco devastador», disse ele, quando um colega lhe contou mais tarde que a mãe gostaria que ele tivesse passado por lá. «Ela tinha passado uma mensagem para me agradecer por salvar a vida do seu bebé. Se eu tivesse dado a mim mesmo a oportunidade de ouvir isso, teria ajudado muito na minha recuperação: ter sido perdoado.» <

31 outubro 2025

Consentimento retirado


 ‘Primeiro, certifique-se de que não haverá arrependimentos’: uma abordagem teórica da decisão para o consentimento informado na prática clínica

Narcyz Ghinea

Department of Philosophy, Faculty of Arts, Macquarie University, Sydney, New South Wales, Australia

 Tradução espontânea, sem fins lucrativos, do artigo

‘First ensure no regret’: a decision-theoretic approach to

informed consent in clinical practice

Publicado no Journal of Medical Ethics November 2025 - Volume 51 - 11 

Resumo: Os teóricos da decisão reconhecem que a informação só tem valor na medida em que tem o potencial de alterar uma decisão. Isto significa que, uma vez que a obtenção de mais informação é demorada e, por vezes, dispendiosa, é necessário avaliar qual a informação mais valiosa a obter e se vale a pena obtê-la. Neste artigo, aplico esta ideia ao consentimento informado e defendo que a informação mais valiosa não está relacionada com qual a melhor opção de tratamento, mas sim com os possíveis futuros que um doente pode vir a lamentar. Concluo propondo uma estrutura de minimização do arrependimento para o consentimento informado que, na minha opinião, capta de forma mais adequada a verdadeira natureza da tomada de decisão partilhada do que as formulações existentes.

 Depois do princípio «primeiro, não fazer mal», o consentimento informado é, sem dúvida, o conceito mais central na ética clínica. Articulado pela primeira vez no Código de Nuremberga, procurava evitar a repetição das experiências atrozes realizadas em seres humanos durante a Segunda Guerra Mundial. Estes princípios foram gradualmente adotados de forma mais ampla no contexto clínico. Em 1962, a Emenda Kefauver Harris à legislação dos Estados Unidos sobre produtos terapêuticos tornou o consentimento informado um requisito para a investigação clínica utilizada para apoiar um pedido de registo de um novo medicamento.1 A Declaração de Helsínquia, publicada pela primeira vez em 1964, delineou os princípios éticos para os médicos que realizam investigação clínica, incluindo a necessidade de consentimento informado quando a investigação era realizada em conjunto com a prestação de cuidados.2 A Declaração de Genebra, versão moderna do Juramento de Hipócrates desenvolvida pela primeira vez em 1948, só introduziu o respeito pela autonomia na sua última versão de 2017, enquanto o Código Internacional de Ética Médica incluiu pela primeira vez o direito dos doentes à autodeterminação em 2006.3,4

   Embora o significado exato e a aplicação adequada do consentimento informado sejam objeto de constante debate e confusão, com algumas fontes a enumerarem até seis funções principais,5 o seu objetivo permanece claro e simples: proteger o direito do doente à autodeterminação. A autodeterminação implica tanto a capacidade de tomar decisões como a existência de opções entre as quais se pode escolher. É fundamental saber o quanto se tem de informar ao doente para que o consentimento seja considerado «informado», mas esses requisitos informativos têm sido pouco explorados.6 Proponho que, para entender melhor esses requisitos, devemos reenquadrar o consentimento informado no contexto clínico como uma noção epistémica.

   Tomar decisões em condições de incerteza irredutível é uma característica da vida quotidiana. Fora de circunstâncias muito limitadas e artificiais - pense num jogo de xadrez - as pessoas tomam decisões rotineiramente com base em informações imperfeitas. Atravesso a rua todos os dias sem saber qual é o risco de ser atropelado por um carro, porque tudo o que preciso saber é que o risco é baixo o suficiente para ser irrelevante para mim. Da mesma forma, fico feliz em sair para caminhar enquanto chove, pois sei que o risco de ser atingido por um raio é insignificante, embora não possa fornecer detalhes exatos. O facto de estarmos tão dispostos a tomar decisões apesar da nossa ignorância destaca um facto importante: nem todas as informações são valiosas, e lutar por informações perfeitas nem sempre vale o tempo ou o esforço. Esse facto é bem conhecido na teoria da decisão, mas nunca discutido explicitamente no contexto do consentimento informado, onde muitas vezes parece que a posição padrão é quanto mais, melhor.7

   As decisões decorrem de escolhas concretas, enquanto a informação é interminável. O valor da informação corresponde à sua capacidade de alterar a nossa decisão de uma opção concreta para outra.8 Como exemplo, considere um doente com cancro terminal que aceitou submeter-se a um tratamento com uma taxa de sobrevivência de 20% em 5 anos. Posteriormente, descobre-se que o médico do doente não estava a par das últimas pesquisas e que a taxa de sobrevivência é, na verdade, de 40%. Para um doente disposto a aceitar uma chance de 20%, essa informação adicional é irrelevante. Isso não quer dizer que essa informação não seria esclarecedora para o doente e que não há mérito moral em dar esperança. Significa apenas que, na medida em que a escolha não mudaria, o consentimento informado atingiu o seu objetivo.

   Há várias vantagens em compreender o consentimento informado desta forma. Em primeiro lugar, permite um modelo mais consistente e realista de como as decisões são tomadas nos diferentes contextos de cuidados de saúde. Na investigação clínica, na prática clínica e na regulamentação de medicamentos, é sempre necessário avaliar se existem provas suficientes para justificar uma decisão. Isto requer, pelo menos implicitamente, uma avaliação da sensibilidade da decisão a informações adicionais que possam surgir. Quanto menos sensível for uma decisão a novas informações, mais estável ela será e, portanto, mais justificável. Um bom exemplo desse princípio é o desenvolvimento de programas de aprovação provisória em todo o mundo para acelerar o acesso a medicamentos. Esses programas existem para garantir que os doentes não tenham o acesso negado a medicamentos promissores e foram amplamente utilizados durante a pandemia da COVID-19 para lançar novas vacinas.9

   Em segundo lugar, muda o foco do consentimento informado da prestação de informações por si só para a identificação das informações que são mais suscetíveis de influenciar uma decisão num sentido ou noutro. Esta diferença é análoga à diferença entre a significância estatística e clínica dos resultados da investigação. No domínio da medicina oncológica, a rápida inovação e o aumento dos custos levaram a um debate rigoroso sobre o que constitui valor. A Sociedade Americana de Oncologia Clínica e a Sociedade Europeia de Oncologia Médica elaboraram tabelas de valores para medicamentos contra o cancro para tentar responder a essa questão,10 e o que constitui uma melhoria significativa na sobrevida é um ponto importante de debate.11 De forma semelhante, as diferenças clinicamente significativas entre as opções de tratamento podem não ser importantes para o doente, enquanto diferenças clinicamente insignificantes podem ser. Ao enfatizar quais são as informações mais valiosas para o doente, os processos de consentimento informado podem se tornar mais centrados no doente.

   Em terceiro lugar, uma abordagem baseada na teoria da decisão é mais consistente com a forma como os tribunais decidem os casos de negligência médica. A lei não protege o direito do doente à informação em si, mas reconhece o direito do doente a informações relevantes, ou seja, informações às quais o doente atribuiria importância.12 Na prática, isso significa informações que provavelmente influenciariam a decisão do doente. Tomemos, por exemplo, o caso australiano histórico Rogers vs. Whitaker (1992) 175 CLR 479, que estabeleceu os parâmetros do dever de advertência do médico. Neste caso, o médico réu foi considerado negligente por não ter avisado o doente de que a cirurgia ocular acarretava um pequeno risco de danificar o seu «olho bom». Embora o risco parecesse insignificante para o médico, no contexto do desejo expresso do doente de que o seu olho bom não fosse danificado, era importante.

   Por fim, enquadrar o consentimento informado em termos epistémicos tem o potencial de simplificar processos desnecessariamente onerosos que não distinguem entre informações essenciais e complementares.13 A falta de clareza leva a práticas defensivas e a um viés para divulgar o máximo de informações possível, o que pode não ser do interesse do doente. O excesso de informação pode sobrecarregar os doentes e minar a sua autonomia, em vez de a apoiar.14 A prática clínica excessivamente defensiva não leva a melhores resultados clínicos e contribui para o aumento dos gastos com saúde.15 Ela é motivada pelo medo de litígios, que representam um fardo financeiro, emocional e de tempo para os médicos, mesmo quando não são bem-sucedidos.16

   No entanto, isso levanta a seguinte questão: como pode o médico verificar o valor da informação? O filósofo pragmático William James propôs que a racionalidade era um sentimento que só surgia na ausência do sentimento de irracionalidade.17 De forma semelhante, proponho que o objetivo do consentimento informado seja mais bem caracterizado de forma negativa; ou seja, o seu propósito é ajudar os doentes a evitar decisões que causem arrependimento. Se um doente não se arrepende de uma decisão, é difícil identificar qual é o problema moral. Além disso, há dados que sugerem que um fator determinante na tomada de decisão do doente é evitar o arrependimento.18 Um benefício mais maquiavélico é que, sem arrependimento, não haveria motivação para os doentes processarem ou reclamarem contra o seu médico. No geral, parece louvável tentar minimizar o arrependimento na medida do possível.

   Uma vez que o arrependimento só pode ser compreendido com referência aos objetivos de vida do doente, solicitar esses objetivos deve ser uma componente padrão de qualquer procedimento de consentimento. Isto é válido tanto para a investigação como para a prática clínica. O arrependimento só existe na presença de escolhas de tratamento moralmente relevantes, e essas escolhas só são moralmente relevantes na medida em que têm consequências reais para o bem-estar do doente. No caso de Rogers, o objetivo do doente ao se submeter à cirurgia ocular era melhorar a sua visão, e qualquer efeito colateral que comprometesse ainda mais a sua visão deveria ter sido considerado claramente relevante. Em alguns casos, o objetivo principal do doente pode ser apenas sobreviver, e pensar além disso não é importante. No entanto, em muitos outros casos, a saúde é apenas um meio para se ter uma vida plena, e o que isso significa precisa ser explorado.

   Para concluir, gostaria de antecipar brevemente duas críticas a este enquadramento. Pode-se argumentar que evitar decisões passíveis de arrependimento é um padrão baixo para o consentimento e que o objetivo deve ser ajudar cada doente a tomar a melhor decisão possível. Em resposta, diria que eliminar opções passíveis de arrependimento da equação coloca o doente na posição ideal para tomar a melhor decisão. Por outro lado, tentar verificar a melhor opção sem sondar o que o doente pode lamentar pode sair pela culatra, como demonstra o caso de Rogers, particularmente em casos em que claramente não há uma opção «melhor». Concentrar-se em minimizar o arrependimento parece, portanto, uma abordagem mais robusta e estabelece uma pré-condição mínima para identificar um tratamento aceitável.

   Outra crítica poderia ser que, às vezes, os próprios doentes podem não saber do que se arrependerão até depois do evento. A experiência vivida do dano é muito diferente da discussão prospetiva do dano estatisticamente possível. Concordo, no entanto, que isso expõe uma fraqueza dos processos de consentimento informado em geral e não a este enquadramento específico.19 Todas as decisões clínicas exigem, em última análise, que o médico equilibre cenários hipotéticos que podem ou não ocorrer. É impossível prever como os doentes reagirão a um resultado específico quando ele ocorrer. Na verdade, essa crítica apenas reforça a minha proposta, na medida em que significa que devemos fazer um esforço extra para minimizar a possibilidade de arrependimento. <

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