08 novembro 2025

Vergonha e culpa

Esses médicos querem quebrar o ciclo de vergonha e culpa em Medicina.

Charlotte Huff, jornalista independente

Tradução do texto publicado em 28 de outubro de 2025

These doctors want to break the cycle of shame and blame in medicine

 A aflição que Will Bynum mais tarde reconheceu como vergonha tomou conta dele quase imediatamente.

Bynum, então no seu segundo ano de internato como médico de família, estava a terminar um longo turno quando foi chamado para um parto de emergência. Para salvar a vida do bebé, ele usou um dispositivo de vácuo, que aplica sucção para ajudar no parto rápido.

O bebé nasceu ileso. Mas a mãe sofreu um grave rasgão vaginal que exigiu uma reparação cirúrgica por um obstetra. Logo depois, Bynum retirou-se para um quarto vazio do hospital, tentando processar os seus sentimentos sobre aquela complicação inesperada.

«Eu não queria ver ninguém. Não queria que ninguém me encontrasse», disse Bynum, agora professor associado de medicina familiar na Faculdade de Medicina da Universidade Duke, na Carolina do Norte. «Foi uma reação realmente muito primitiva.»

A vergonha é uma emoção humana comum e altamente desconfortável. Nos anos que se seguiram, Bynum tornou-se uma voz de destaque entre médicos e investigadores que defendem que a intensidade do processo de formação médica pode amplificar a vergonha nos futuros médicos.

Ele agora faz parte de um trabalho emergente para ensinar o que descreve como «competência em vergonha» a estudantes de medicina e médicos em exercício. Embora a vergonha não possa ser eliminada, Bynum e os seus colegas de investigação afirmam que as competências e práticas relacionadas podem reduzir a cultura da vergonha e promover uma forma mais saudável de lidar com ela.

Sem essa abordagem, argumentam eles, os médicos do futuro não reconhecerão e não lidarão com as emoções em si mesmos e nos outros. E, assim, correm o risco de transmiti-las aos seus doentes, mesmo que inadvertidamente, o que pode piorar-lhes a saúde. Culpar os doentes pode ter um efeito contrário, disse Bynum, tornando-os defensivos e levando ao isolamento e, às vezes, ao uso de substâncias.

Culpar os doentes

O ambiente político dos EUA apresenta um obstáculo adicional à mudança da cultura da vergonha. O secretário de Saúde e Serviços Humanos, Robert F. Kennedy Jr., e outros altos funcionários da área de saúde do governo Trump acusaram publicamente o autismo, a diabetes, o transtorno de défice de atenção e hiperatividade e outras doenças crónicas, em grande parte, de serem devidas a escolhas de estilo de vida das pessoas com essas condições – ou dos seus pais.

Por exemplo, o comissário da FDA, Marty Makary, sugeriu numa entrevista à Fox News que mais casos de diabetes poderiam ser tratados com aulas de culinária, em vez de «apenas dar insulina às pessoas».

Mesmo antes da mudança política, essa atitude também se refletia nos consultórios médicos. Um estudo de 2023 descobriu que um terço dos médicos relatou sentir repulsa ao tratar doentes com diabetes tipo 2, que às vezes está associada à obesidade. Cerca de 44% consideravam que esses doentes não tinham motivação para mudar o estilo de vida, enquanto 39% disseram que eles tendiam a ser preguiçosos.

«Não gostamos de sentir vergonha. Queremos evitá-la. É muito desconfortável», disse Michael Jaeb, en­fermeiro da Universidade de Wisconsin-Madison, que realizou uma revisão de estudos relacionados, publicada em 2024. E se a fonte da vergonha for o médico, o doente pode perguntar: «Por que voltaria?» Em alguns casos, esse doente pode generalizar isso para todo o sistema de saúde.

De facto, alguns doentes, como Christa Reed, evitaram os médicos por causa disso. Reed abandonou os cuidados médicos regulares durante duas décadas, cansada de palestras relacionadas com o peso. «Quando estava grávida, disseram-me que as minhas náuseas matinais se deviam ao facto de eu ser uma mulher plus size, com excesso de peso», disse ela.

Com exceção de alguns problemas médicos urgentes, como um corte infetado, Reed evitava os profissionais de saúde. «Porque ir ao médico para uma consulta anual seria inútil», disse a fotógrafa de casamentos da região de Minneapolis, agora com 45 anos. «Eles só me diriam para perder peso.»

Então, no ano passado, uma forte dor na mandíbula levou Reed a procurar atendimento especializado. Uma medição de rotina da pressão arterial mostrou uma leitura altíssima, levando-a às urgências. «Eles disseram: ‘Não sabemos como consegue andar normalmente’», contou ela.

Desde então, Reed encontrou médicos que a apoiam e têm experiência em nutrição. A sua pressão arterial permanece controlada com medicação. Ela também está quase 45 kg abaixo do seu peso máximo e faz caminhadas, anda de bicicleta e levanta pesos para ganhar músculos.

Uma ética de trabalho «masoquista»

Savannah Woodward, psiquiatra da Califórnia, faz parte de um grupo de médicos que tenta chamar a atenção para os efeitos prejudiciais da vergonha e desenvolver estratégias para preveni-la e mitigá-la. Embora esse esforço esteja em fase inicial, ela foi corresponsável por uma sessão sobre a espiral da vergonha na reunião anual da Associação Americana de Psiquiatria, em maio.

Se os médicos não reconhecerem a vergonha em si mesmos, podem correr o risco de depressão, exaustão, dificuldades para dormir e outros efeitos em cadeia que prejudicam o atendimento ao doente, disse ela.

«Muitas vezes não falamos sobre a importância da conexão humana na medicina», disse Woodward. «Mas se o seu médico está exausto ou sente que não merece ser o seu médico, os doentes sentem isso. Eles percebem.»

Numa pesquisa realizada este ano, 37% dos estudantes finalistas relataram ter sentido constrangimentos públicos em algum momento da faculdade de medicina, e quase 20% descreveram humilhações públicas, de acordo com uma pesquisa anual da Associação Americana de Faculdades de Medicina.

Os estudantes de medicina e os médicos internos já são propensos ao perfeccionismo, juntamente com uma ética de trabalho quase «masoquista», como Woodward descreveu. Então, são sujeitos a uma série de exames e anos de formação, debaixo de um escrutínio constante e com a vida dos doentes nas suas mãos.

Durante a formação, os médicos trabalham em equipas e fazem apresentações para o corpo docente sobre os problemas de saúde de doentes e a abordagem de tratamentos recomendada. «Você tropeça nas palavras. Esquece coisas. Confunde as coisas. Fica em branco», conta Bynum. E então a vergonha aparece, diz ele, levando a outros pensamentos debilitantes, como «Não sou bom nisto. Sou um idiota. Todos à minha volta teriam feito isto muito melhor'».

No entanto, a vergonha continua a ser «uma falha na sua armadura, que não se quer mostrar», disse Karly Pippitt, médica de família da Universidade do Utah, que ensinou estudantes de medicina sobre o potencial da vergonha como parte de um curso mais amplo de ética e humanidades.

«Estás a cuidar de uma vida humana», disse ela. «Deus te livre de agir como se não fosses capaz ou de mostrar medo.»

Acabar com o ciclo da vergonha

Ao ensinar os estudantes sobre a vergonha, o objetivo é ajudar os futuros médicos a reconhecerem essa emoção em si mesmos e nos outros, para que não perpetuem o ciclo, disse Pippitt. «Se sentiu vergonha durante toda a sua formação médica, isso normaliza essa experiência», disse ela.

Acima de tudo, os médicos em formação podem trabalhar para reformular a sua mentalidade quando recebem uma nota baixa ou têm dificuldade em dominar uma nova competência, disse Woodward, psiquiatra da Califórnia. Em vez de acreditar que falharam como médicos, podem concentrar-se no que fizeram de errado e nas formas de melhorarem.

No ano passado, Bynum começou a ensinar aos médicos da Duke sobre competência em relação à ver­gonha, começando com cerca de 20 médicos internos em obstetrícia e ginecologia. Este ano, ele lançou uma iniciativa maior com o The Shame Lab, uma parceria de investigação e formação entre a Duke University e a University of Exeter, na Inglaterra, da qual ele é cofundador, para envolver cerca de 300 pessoas do Departamento de Medicina Familiar e Saúde Comunitária da Duke, incluindo professores e médicos inter­nos.

Este tipo de formação é raro entre os colegas da médica interna de obstetrícia e ginecologia da Duke, Canice Dancel. Dancel, que concluiu a formação, esforça-se agora por apoiar os estudantes à medida que aprendem competências como suturar. Ela espera que eles transmitam essa abordagem numa «reação em cadeia de gentileza mútua».

Mais de uma década depois de Bynum ter passado por aquele parto de emergência angustiante, ainda se arrepende de a vergonha o ter impedido de verificar como estava a mãe, como se costumava fazer após o parto. «Eu estava com muito medo de como ela iria reagir perante mim», disse ele.

«Foi um pouco devastador», disse ele, quando um colega lhe contou mais tarde que a mãe gostaria que ele tivesse passado por lá. «Ela tinha passado uma mensagem para me agradecer por salvar a vida do seu bebé. Se eu tivesse dado a mim mesmo a oportunidade de ouvir isso, teria ajudado muito na minha recuperação: ter sido perdoado.» <

31 outubro 2025

Consentimento retirado


 ‘Primeiro, certifique-se de que não haverá arrependimentos’: uma abordagem teórica da decisão para o consentimento informado na prática clínica

Narcyz Ghinea

Department of Philosophy, Faculty of Arts, Macquarie University, Sydney, New South Wales, Australia

 Tradução espontânea, sem fins lucrativos, do artigo

‘First ensure no regret’: a decision-theoretic approach to

informed consent in clinical practice

Publicado no Journal of Medical Ethics November 2025 - Volume 51 - 11 

Resumo: Os teóricos da decisão reconhecem que a informação só tem valor na medida em que tem o potencial de alterar uma decisão. Isto significa que, uma vez que a obtenção de mais informação é demorada e, por vezes, dispendiosa, é necessário avaliar qual a informação mais valiosa a obter e se vale a pena obtê-la. Neste artigo, aplico esta ideia ao consentimento informado e defendo que a informação mais valiosa não está relacionada com qual a melhor opção de tratamento, mas sim com os possíveis futuros que um doente pode vir a lamentar. Concluo propondo uma estrutura de minimização do arrependimento para o consentimento informado que, na minha opinião, capta de forma mais adequada a verdadeira natureza da tomada de decisão partilhada do que as formulações existentes.

 Depois do princípio «primeiro, não fazer mal», o consentimento informado é, sem dúvida, o conceito mais central na ética clínica. Articulado pela primeira vez no Código de Nuremberga, procurava evitar a repetição das experiências atrozes realizadas em seres humanos durante a Segunda Guerra Mundial. Estes princípios foram gradualmente adotados de forma mais ampla no contexto clínico. Em 1962, a Emenda Kefauver Harris à legislação dos Estados Unidos sobre produtos terapêuticos tornou o consentimento informado um requisito para a investigação clínica utilizada para apoiar um pedido de registo de um novo medicamento.1 A Declaração de Helsínquia, publicada pela primeira vez em 1964, delineou os princípios éticos para os médicos que realizam investigação clínica, incluindo a necessidade de consentimento informado quando a investigação era realizada em conjunto com a prestação de cuidados.2 A Declaração de Genebra, versão moderna do Juramento de Hipócrates desenvolvida pela primeira vez em 1948, só introduziu o respeito pela autonomia na sua última versão de 2017, enquanto o Código Internacional de Ética Médica incluiu pela primeira vez o direito dos doentes à autodeterminação em 2006.3,4

   Embora o significado exato e a aplicação adequada do consentimento informado sejam objeto de constante debate e confusão, com algumas fontes a enumerarem até seis funções principais,5 o seu objetivo permanece claro e simples: proteger o direito do doente à autodeterminação. A autodeterminação implica tanto a capacidade de tomar decisões como a existência de opções entre as quais se pode escolher. É fundamental saber o quanto se tem de informar ao doente para que o consentimento seja considerado «informado», mas esses requisitos informativos têm sido pouco explorados.6 Proponho que, para entender melhor esses requisitos, devemos reenquadrar o consentimento informado no contexto clínico como uma noção epistémica.

   Tomar decisões em condições de incerteza irredutível é uma característica da vida quotidiana. Fora de circunstâncias muito limitadas e artificiais - pense num jogo de xadrez - as pessoas tomam decisões rotineiramente com base em informações imperfeitas. Atravesso a rua todos os dias sem saber qual é o risco de ser atropelado por um carro, porque tudo o que preciso saber é que o risco é baixo o suficiente para ser irrelevante para mim. Da mesma forma, fico feliz em sair para caminhar enquanto chove, pois sei que o risco de ser atingido por um raio é insignificante, embora não possa fornecer detalhes exatos. O facto de estarmos tão dispostos a tomar decisões apesar da nossa ignorância destaca um facto importante: nem todas as informações são valiosas, e lutar por informações perfeitas nem sempre vale o tempo ou o esforço. Esse facto é bem conhecido na teoria da decisão, mas nunca discutido explicitamente no contexto do consentimento informado, onde muitas vezes parece que a posição padrão é quanto mais, melhor.7

   As decisões decorrem de escolhas concretas, enquanto a informação é interminável. O valor da informação corresponde à sua capacidade de alterar a nossa decisão de uma opção concreta para outra.8 Como exemplo, considere um doente com cancro terminal que aceitou submeter-se a um tratamento com uma taxa de sobrevivência de 20% em 5 anos. Posteriormente, descobre-se que o médico do doente não estava a par das últimas pesquisas e que a taxa de sobrevivência é, na verdade, de 40%. Para um doente disposto a aceitar uma chance de 20%, essa informação adicional é irrelevante. Isso não quer dizer que essa informação não seria esclarecedora para o doente e que não há mérito moral em dar esperança. Significa apenas que, na medida em que a escolha não mudaria, o consentimento informado atingiu o seu objetivo.

   Há várias vantagens em compreender o consentimento informado desta forma. Em primeiro lugar, permite um modelo mais consistente e realista de como as decisões são tomadas nos diferentes contextos de cuidados de saúde. Na investigação clínica, na prática clínica e na regulamentação de medicamentos, é sempre necessário avaliar se existem provas suficientes para justificar uma decisão. Isto requer, pelo menos implicitamente, uma avaliação da sensibilidade da decisão a informações adicionais que possam surgir. Quanto menos sensível for uma decisão a novas informações, mais estável ela será e, portanto, mais justificável. Um bom exemplo desse princípio é o desenvolvimento de programas de aprovação provisória em todo o mundo para acelerar o acesso a medicamentos. Esses programas existem para garantir que os doentes não tenham o acesso negado a medicamentos promissores e foram amplamente utilizados durante a pandemia da COVID-19 para lançar novas vacinas.9

   Em segundo lugar, muda o foco do consentimento informado da prestação de informações por si só para a identificação das informações que são mais suscetíveis de influenciar uma decisão num sentido ou noutro. Esta diferença é análoga à diferença entre a significância estatística e clínica dos resultados da investigação. No domínio da medicina oncológica, a rápida inovação e o aumento dos custos levaram a um debate rigoroso sobre o que constitui valor. A Sociedade Americana de Oncologia Clínica e a Sociedade Europeia de Oncologia Médica elaboraram tabelas de valores para medicamentos contra o cancro para tentar responder a essa questão,10 e o que constitui uma melhoria significativa na sobrevida é um ponto importante de debate.11 De forma semelhante, as diferenças clinicamente significativas entre as opções de tratamento podem não ser importantes para o doente, enquanto diferenças clinicamente insignificantes podem ser. Ao enfatizar quais são as informações mais valiosas para o doente, os processos de consentimento informado podem se tornar mais centrados no doente.

   Em terceiro lugar, uma abordagem baseada na teoria da decisão é mais consistente com a forma como os tribunais decidem os casos de negligência médica. A lei não protege o direito do doente à informação em si, mas reconhece o direito do doente a informações relevantes, ou seja, informações às quais o doente atribuiria importância.12 Na prática, isso significa informações que provavelmente influenciariam a decisão do doente. Tomemos, por exemplo, o caso australiano histórico Rogers vs. Whitaker (1992) 175 CLR 479, que estabeleceu os parâmetros do dever de advertência do médico. Neste caso, o médico réu foi considerado negligente por não ter avisado o doente de que a cirurgia ocular acarretava um pequeno risco de danificar o seu «olho bom». Embora o risco parecesse insignificante para o médico, no contexto do desejo expresso do doente de que o seu olho bom não fosse danificado, era importante.

   Por fim, enquadrar o consentimento informado em termos epistémicos tem o potencial de simplificar processos desnecessariamente onerosos que não distinguem entre informações essenciais e complementares.13 A falta de clareza leva a práticas defensivas e a um viés para divulgar o máximo de informações possível, o que pode não ser do interesse do doente. O excesso de informação pode sobrecarregar os doentes e minar a sua autonomia, em vez de a apoiar.14 A prática clínica excessivamente defensiva não leva a melhores resultados clínicos e contribui para o aumento dos gastos com saúde.15 Ela é motivada pelo medo de litígios, que representam um fardo financeiro, emocional e de tempo para os médicos, mesmo quando não são bem-sucedidos.16

   No entanto, isso levanta a seguinte questão: como pode o médico verificar o valor da informação? O filósofo pragmático William James propôs que a racionalidade era um sentimento que só surgia na ausência do sentimento de irracionalidade.17 De forma semelhante, proponho que o objetivo do consentimento informado seja mais bem caracterizado de forma negativa; ou seja, o seu propósito é ajudar os doentes a evitar decisões que causem arrependimento. Se um doente não se arrepende de uma decisão, é difícil identificar qual é o problema moral. Além disso, há dados que sugerem que um fator determinante na tomada de decisão do doente é evitar o arrependimento.18 Um benefício mais maquiavélico é que, sem arrependimento, não haveria motivação para os doentes processarem ou reclamarem contra o seu médico. No geral, parece louvável tentar minimizar o arrependimento na medida do possível.

   Uma vez que o arrependimento só pode ser compreendido com referência aos objetivos de vida do doente, solicitar esses objetivos deve ser uma componente padrão de qualquer procedimento de consentimento. Isto é válido tanto para a investigação como para a prática clínica. O arrependimento só existe na presença de escolhas de tratamento moralmente relevantes, e essas escolhas só são moralmente relevantes na medida em que têm consequências reais para o bem-estar do doente. No caso de Rogers, o objetivo do doente ao se submeter à cirurgia ocular era melhorar a sua visão, e qualquer efeito colateral que comprometesse ainda mais a sua visão deveria ter sido considerado claramente relevante. Em alguns casos, o objetivo principal do doente pode ser apenas sobreviver, e pensar além disso não é importante. No entanto, em muitos outros casos, a saúde é apenas um meio para se ter uma vida plena, e o que isso significa precisa ser explorado.

   Para concluir, gostaria de antecipar brevemente duas críticas a este enquadramento. Pode-se argumentar que evitar decisões passíveis de arrependimento é um padrão baixo para o consentimento e que o objetivo deve ser ajudar cada doente a tomar a melhor decisão possível. Em resposta, diria que eliminar opções passíveis de arrependimento da equação coloca o doente na posição ideal para tomar a melhor decisão. Por outro lado, tentar verificar a melhor opção sem sondar o que o doente pode lamentar pode sair pela culatra, como demonstra o caso de Rogers, particularmente em casos em que claramente não há uma opção «melhor». Concentrar-se em minimizar o arrependimento parece, portanto, uma abordagem mais robusta e estabelece uma pré-condição mínima para identificar um tratamento aceitável.

   Outra crítica poderia ser que, às vezes, os próprios doentes podem não saber do que se arrependerão até depois do evento. A experiência vivida do dano é muito diferente da discussão prospetiva do dano estatisticamente possível. Concordo, no entanto, que isso expõe uma fraqueza dos processos de consentimento informado em geral e não a este enquadramento específico.19 Todas as decisões clínicas exigem, em última análise, que o médico equilibre cenários hipotéticos que podem ou não ocorrer. É impossível prever como os doentes reagirão a um resultado específico quando ele ocorrer. Na verdade, essa crítica apenas reforça a minha proposta, na medida em que significa que devemos fazer um esforço extra para minimizar a possibilidade de arrependimento. <

Para ver o artigo original e as referências, clicar AQUI

29 outubro 2025

Medicina defensiva

A prática da medicina defensiva entre médicos hospitalares no Reino Unido

Osman Ortashi et al.

Tradução do resumo do artigo

The practice of defensive medicine among hospital doctors in the United Kingdom

Publicado na revista BMC Medical Ethics volume 14, Article number: 42 (2013)

O artigo original completo está acessível AQUI

Resumo

Contexto

A medicina defensiva é definida como o desvio de um médico em relação à prática padrão para reduzir ou evitar reclamações ou críticas. Os objetivos deste estudo foram avaliar a prevalência da prática da medicina defensiva no Reino Unido entre médicos hospitalares e os fatores que a afetam.

Métodos

Foi elaborado um estudo quantitativo, com um questionário detalhado de dezassete pontos. A prática da medicina defensiva foi avaliada e testada em relação a quatro fatores: idade, sexo, especialidade e grau.

Trezentos médicos hospitalares de três hospitais do Reino Unido receberam o questionário.

Resultados

Duzentos e quatro (68%) dos 300 médicos hospitalares responderam ao inquérito. Setenta e oito por cento relataram praticar uma forma ou outra de medicina defensiva. Solicitar exames desnecessários é a forma mais comum de medicina defensiva relatada por 59% dos inquiridos. Segue-se o encaminhamento desnecessário para outras especialidades (55%). Embora apenas 9% dos médicos da amostra se recusassem a tratar doentes de alto risco, o dobro desse número evitaria procedimentos de alto risco (21%). Um módulo de regressão linear mostrou que apenas o grau sénior estava associado a uma menor prática de medicina defensiva.

Conclusão

A prática de medicina defensiva é comum entre os médicos que responderam à pesquisa. O grau sénior está associado a uma menor prática de medicina defensiva.

23 outubro 2025

Efeméride - data incerta de 1525

D. Lopo de Almeida, Hospital de Santo António, 
por António Almeida da Costa, 1860

Foi há 500 anos que terá nascido D. Lopo de Almeida (1525-1584), merecido topónimo portuense.
«chegou ao Porto a notícia da morte, em Madrid, do riquíssimo sacerdote D. Lopo de Almeida e de que ele havia instituído como herdeira da sua imensa fortuna a Santa Casa da Misericórdia do Porto, com o encargo de aplicar a herança “num hospital e obras pias” [...] Com o produto da herança, mandou renovar e ampliar o velho hospital, a que deu o nome do seu benfeitor, nascendo assim o Hospital de D. Lopo, que foi, digamos assim, o precursor do Hospital de Santo António.» 
[Porto – Da História e da Lenda, Germano Silva. Casa das Letras, 2007, pp. 255 e 259]

13 outubro 2025

Filosofia na Neurologia

Do Cérebro ao Ser: Reintegrar a
Filosofia na Educação em Neurologia

por Eduardo Boiteux Uchôa Cavalcanti
Clínica Externa de Neurologia, Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação, Brasília, Brasil

Tradução espontânea do resumo do artigo

From Brain to Being: Reintegrating
Philosophy Into Neurology Education

Neurology: Education | Volume 4, Number 3 | September 2025

Vale a pena ler o artigo original: clicar AQUI

Resumo

Os neurologistas enfrentam cada vez mais situações clínicas marcadas por ambiguidade diag­nóstica, complexidade ética e distúrbios que desafiam os conceitos tradicionais de consciên­cia, personalidade e atuação. No entanto, a maioria dos programas de formação em neurolo­gia continua focada no conhecimento biomédico e nas competências procedimentais, ofere­cendo uma preparação limitada para estes aspetos profundos e muitas vezes carregados de moralidade dos cuidados de saúde. Esta lacuna educacional pode comprometer o raciocínio clínico, a sensibilidade ética e a formação de uma identidade profissional reflexiva. Esta análise propõe a integração de três domínios sub-representados, mas essenciais – epistemologia, ética e filosofia da mente  na educação em Neurologia. Guiado pelo modelo de desenvolvi­mento curricular de seis etapas de Kern, o artigo descreve estratégias baseadas em factos e informadas pela teoria para incorporar competências filosóficas na formação pós-graduada. A epistemologia apoia o raciocínio diagnóstico por meio de uma visão metacognitiva, reconhecimento de vieses e tolerância à ambiguidade. A educação ética fortalece o julgamento moral e a comunicação em cenários que envolvem avaliação de capacidade, cuidados de fim de vida e intervenções neurotecnológicas. A filosofia da mente oferece clareza conceptual para a compreensão de distúrbios da consciência, neurodegeneração e alterações da personali­dade. As estratégias curriculares incluem sessões de análise narrativa (narrative debriefings), exames clínicos objetivos estruturados em ética, seminários interdisciplinares e ensino reflexivo à beira do leito, todos os quais podem ser incorporados em estágios clínicos rele­vantes, como em unidades de cuidados intensivos neurológicos (UCI) e em neurologia cognitiva. Os objetivos de aprendizagem estão alinhados com os objetivos do Conselho de Acreditação para Educação Médica de Pós-Graduação e são apoiados por ferramentas de avaliação validadas, incluindo rubricas de escrita reflexiva, avaliações éticas estruturadas e medidas de tolerância à ambiguidade. As barreiras à sua aplicação, incluindo a preparação do corpo docente e as restrições curriculares, são abordadas através do desenvolvimento do corpo docente, modelos de ensino conjunto e integração modular. Ao reformular a Filosofia como uma com­petência clínica, em vez de um enriquecimento teórico, esta análise apresenta uma abordagem pragmática e voltada para o futuro da educação em Neurologia. A incorporação do raciocínio filosófico na formação melhora a precisão do diagnóstico, o compromisso ético e os cuidados centrados no doente. A integração da filosofia na educação em neurologia não é uma vene­ração do passado, mas um complemento voltado para o futuro, proporcionando uma estrutura humanista para orientar o raciocínio clínico e a identidade profissional numa era moldada pela inteligência artificial e pelas neurotecnologias. l

03 outubro 2025

História e desafios da demência


História e Desafios da Demência

Jesse F. Ballenger
Tradução espontânea do artigo
History and the Challenges of Dementia 8
parte do relatório especial
Living with Dementia: Learning from Cultural Narratives of Aging Societies 8
Hastings Center, setembro de 2025

 

Uma das grandes ironias de uma condição cujo sintoma mais temido é a perda da memória é que o debate popular e profissional sobre ela ocorre com muito pouca consciência da sua história. A demência tem sido amplamente discutida como um problema médico que, com o envelhecimento da população em todo o mundo, ameaça sobrecarregar as instituições de saúde e de assistência social e desestruturar a vida social. Muito tem sido escrito sobre os aspetos biológicos, clínicos e epidemiológicos da demência. Foram identificadas e discutidas questões sociais e políticas graves, por vezes apocalípticas, e dezenas de livros foram publicados explicando tudo isso ao grande público e proporcionando conselhos práticos para doentes e suas famílias. No entanto, na sua maioria, o debate público sobre a demência tem sido superficial e desavisado. As suposições nas quais se baseiam as ideias contemporâneas sobre a demência e as nossas respostas raramente foram reconhecidas, muito menos revistas no discurso popular. A história pode ser a base para uma discussão mais crítica e informada sobre a demência, mostrando que atitudes e ideias muitas vezes consideradas naturais e inevitáveis são, na verdade, historicamente contingentes, moldadas por circunstâncias sociais e culturais específicas. A história pode recuperar um sentido de possibilidade, mostrando que as coisas nem sempre foram como são agora – e que podem muito bem ser diferentes no futuro.

   A narrativa cultural dominante sobre a demência gira em torno de várias ideias-chave: que a demência é causada por doenças específicas, como a de Alzheimer, que podem ser independentes do envelhecimento; que a demência constitui uma ameaça existencial tanto para a sociedade (porque a prevalência crescente da demência ameaça sobrecarregar os sistemas de saúde e de assistência social) como para os indivíduos (porque ataca e destrói os atributos e capacidades essenciais que constituem a identidade); e que a única solução significativa para os desafios da demência reside no desenvolvimento de tratamentos eficazes, especialmente farmacológicos.1 Uma perspetiva histórica rigorosa levanta interrogações sobre cada uma destas ideias.

Demência e envelhecimento no passado distante

Talvez não haja afirmação mais importante para a narrativa cultural dominante sobre a demência do que a de que ela é causada por uma série de condições patológicas que podem ser diferenciadas do envelhecimento normal. Agências governamentais fidedignas e organizações sem fins lucrativos que lidam com a demência sempre incluem declarações proeminentes como esta da Associação de Alzheimer: “O maior fator de risco conhecido para a doença de Alzheimer e outras demências é o aumento da idade, mas esses distúrbios não são uma parte normal do envelhecimento. Embora a idade aumente o risco, ela não é uma causa direta da doença de Alzheimer.”2 Mas, durante a maior parte da história, a ideia de que a demência poderia ser claramente separada do envelhecimento teria parecido estranha. Embora a escassez de estudos sobre a demência nas sociedades antigas torne provisório qualquer argumento sobre como as sociedades do passado distante a consideravam, penso que vale a pena esboçar algumas possibilidades.

   É um equívoco comum pensar que, como a esperança média de vida ao nascer nas sociedades pré-industriais era de quarenta anos ou menos, poucas pessoas chegavam à velhice e, portanto, doenças associadas à idade, como a demência, eram praticamente desconhecidas. Na verdade, a baixa esperança de vida ao nascer na era pré-industrial era principalmente resultado das taxas muito altas de mortalidade infantil. Portanto, embora seja certamente verdade que houve um aumento na longevidade desde a segunda metade do século XX, não era incomum que as pessoas vivessem até uma idade avançada nas sociedades do passado distante.

   Não está claro o que isso possa significar para a demência. Os poucos estudos existentes sobre a prevalência da demência em sociedades pré-industriais chegam a conclusões diferentes. O arqueólogo Martin Smith e os seus colegas defendem que, embora a prevalência da demência seja significativamente menor do que nas sociedades modernas, ela deve ter afetado um número muito significativo de pessoas em períodos anteriores. Criando modelos de estruturas populacionais pré-industriais com base em registos escritos e restos mortais, Smith et al. aplicam as taxas contemporâneas de demência para estimar, por exemplo, que havia 9700 pessoas com demência na Roma Imperial no século I d.C. e cerca de 2000 pessoas na Londres do século XIV.3 Em contrapartida, o gerontologista biológico Caleb Finch e o historiador Stanley Brustein pesquisaram registos escritos na Grécia e Roma antigas e encontraram referências frequentes ao declínio cognitivo, mas poucas descrições de demência avançada. Eles concluem que o comprometimento cognitivo leve pode ter sido comum, mas que a demência avançada era relativamente desconhecida no mundo antigo, e argumentam que as toxinas ambientais associadas à industrialização são a causa provável do aumento dramático da demência observado na era moderna.4

   Em última análise, pode simplesmente não haver dados suficientes para determinar com certeza a prevalência da demência em sociedades do passado distante. No entanto, uma afirmação mais modesta parece razoável: os sintomas do declínio cognitivo associado à idade, se não a própria demência, têm sido amplamente reconhecidos ao longo da história e as atitudes em relação ao declínio cognitivo parecem diferentes da narrativa cultural dominante sobre a demência hoje em dia. Os estudiosos encontraram, em textos médicos, jurídicos e literários em praticamente todas as sociedades humanas, descrições de sintomas que hoje provavelmente seriam considerados sinais de demência.5 Mas antes do século XX, esses textos geralmente não tentavam separar a demência da ampla gama de perdas físicas e mentais debilitantes associadas ao envelhecimento. Em vez disso, a deterioração cognitiva era incluída numa longa lista de enfermidades e perdas que frequentemente acompanhavam o envelhecimento, e não era necessariamente considerada a pior delas. Em The Coming of Age, Simone de Beauvoir identificou “The Instructions of Ptahhotep”, escritas no Egito por volta de 2500 a.C., como a primeira descrição conhecida da velhice na tradição ocidental. Ela começa com um lamento sobre as aflições da velhice: “Ele fica mais fraco a cada dia; seus olhos ficam turvos, seus ouvidos surdos... O poder de sua mente diminui e hoje não consegue se lembrar como foi ontem. Todos os seus ossos doem... [O] paladar desaparece.” Ela argumenta que “esta lista infeliz das enfermidades da velhice [seria] repetida século após século, e é importante enfatizar a permanência deste tema”.6 Este tipo de litania das perdas do envelhecimento é repetido por inúmeros autores, talvez mais notoriamente por Shakespeare em As You Like It: a “segunda infância e mero esquecimento, sem dentes, sem olhos, sem paladar, sem tudo”.7 Note-se que, nestas linhas, Shakespeare, tal como inúmeros escritores antes e depois dele, incluiu a perda da capacidade cognitiva (“segunda infância e mero esquecimento”) como apenas uma das muitas perdas dolorosas associadas ao envelhecimento (“sem dentes, sem olhos, sem paladar, sem tudo”).

   Para os leitores contemporâneos, acostumados a pensar na demência como resultado de uma doença específica, o aparecimento de sintomas como perda de memória numa lista indiferenciada de problemas físicos associados à idade parecerá uma curiosidade arcaica. Talvez ainda mais difícil de entender seja a indiferença estoica com que tais sintomas eram frequentemente recebidos antes do século XX. Por exemplo, no livro de 2001 The Forgetting: Alzheimer’s: Portrait of an Epidemic, o jornalista David Shenk descreve com espanto como, na década de 1870, o brilhante ensaísta e poeta americano Ralph Waldo Emerson, então com mais de 70 anos, aceitou serenamente a sua deterioração cognitiva. Emerson consultou um médico apenas uma vez por causa da sua memória gravemente debilitada e nada, evidentemente, resultou disso. Nem Emerson nem ninguém à sua volta pensou em tratar a sua perda de memória, nem considerou isso uma doença. Quando um amigo perguntou sobre a sua saúde, Emerson respondeu: “Muito bem; perdi as minhas faculdades mentais, mas estou perfeitamente bem”. Para Shenk, essa atitude em relação à demência é trágica e peculiar.8 Mas, embora seja compreensível a tendência de descartar ideias e atitudes sobre a demência do passado distante como curiosidades históricas trágicas, devemos aceitar a possibilidade de que podemos aprender com a forma como as sociedades do passado respondiam à demência, por mais diferentes que fossem das nossas. De qualquer forma, para encontrar o tipo de temor que passamos a considerar como a atitude natural em relação à demência, devemos olhar para a história recente.

O conceito moderno de demência

O trabalho dos psiquiatras alemães Alois Alzheimer e Emil Kraepelin, na transição para o século XX, é frequentemente invocado como a base do conceito moderno de demência. Mas o seu trabalho não marcou uma rotura acentuada com a longa tradição de ver a demência como parte do envelhecimento. É verdade que o seu trabalho estabeleceu as características clínicas e as estruturas patológicas que ainda hoje definem a doença de Alzheimer, a forma mais prevalente de demência. Mas Alzheimer e Kraepelin não estavam interessados na demência como um problema grave numa sociedade em envelhecimento, como poderíamos imaginar hoje. Eles estavam principalmente interessados em colocar a psiquiatria numa base científica sólida, estabelecendo entidades patológicas com características clínicas claras que pudessem ser correlacionadas com patologias cerebrais distintas.9 A demência parecia uma candidata promissora, pois parecia estar associada a lesões claras e distintas no cérebro. No entanto, a sua associação com o envelhecimento tornava o seu estatuto como doença altamente ambíguo. Kraepelin acabou por categorizar os casos raros de demência que ocorriam antes dos sessenta e cinco anos como “doença de Alzheimer”, distintos do grupo muito maior de casos senis que lhe pareciam mais uma variante extrema da deterioração normal associada ao envelhecimento do que uma doença.10 Apesar do grande avanço na compreensão da neuropatologia da demência, a conceção de Kraepelin sobre a doença de Alzheimer tinha muito em comum com a visão tradicional de que a deterioração física e mental era, até certo ponto, normal na velhice. A demência foi, assim, deixada numa espécie de limbo nosológico. Se classificada como doença de Alzheimer, era interessante, mas demasiado rara para atrair muita atenção além de um pequeno círculo de especialistas; se considerada como demência senil, a sua prevalência era significativa, mas a sua associação com o envelhecimento significava que era de pouco interesse para a maioria dos investigadores da medicina e psiquiatria convencionais. Como resultado, a demência atraía relativamente pouco interesse entre a maioria dos psiquiatras e neurologistas.

   Isso mudou no final da década de 1970, quando uma coligação de investigadores, familiares e decisores políticos se reuniu nos Estados Unidos com o objetivo de aumentar a consciencialização pública sobre a demência e obter apoio governamental para a investigação. A sua estratégia girava em torno de reformular a demência em idosos como parte de um processo de doença, em vez de uma parte normal do envelhecimento. Essa afirmação de que a demência é uma síndrome clínica causada por uma doença específica tem sido repetida em editoriais e declarações consensuais com tanta frequência que pode parecer um simples fato da natureza. Mas, se lermos mais profundamente a literatura científica sobre a reformulação da demência senil como uma doença, encontramos um debate não resolvido (e talvez irresolúvel). Em termos científicos, podem ser apresentados argumentos razoáveis em ambos os sentidos. Por um lado, uma vez que os sintomas clínicos e a patologia cerebral associada à doença de Alzheimer e à demência senil eram essencialmente idênticos, era razoável considerá-los como uma única entidade. Por outro lado, uma vez que se sabia que todas as alterações cerebrais associadas à demência se desenvolviam no cérebro de todos os idosos, era razoável considerar a demência senil como uma variante extrema do envelhecimento normal e a demência que ocorria em idades significativamente mais jovens como algo diferente (a conceção original da doença de Alzheimer). No final da década de 1970 e na década de 1980, esse debate não resolvido refletiu-se no termo “demência senil do tipo Alzheimer”, usado para descrever a demência que ocorria com prevalência crescente após os 65 anos. O termo afirma uma entidade unificada em torno de uma patologia cerebral comum e preserva a antiga distinção entre a ocorrência comum de demência em idades mais avançadas. O termo “doença de Alzheimer” ainda era reservado para os casos relativamente raros que ocorriam mais cedo na vida.11

   Mas, por razões políticas pragmáticas, o termo “doença de Alzheimer” passou a ser cada vez mais utilizado para descrever a demência, independentemente da idade em que ocorria. Incluir a demência senil na categoria da doença de Alzheimer significava que ela já era um grande problema, afetando um milhão ou mais de pessoas, e que se tornaria um problema enorme nas décadas seguintes, com o envelhecimento da geração baby boom. Denominar a categoria unificada de “Alzheimer” em vez de “demência senil” reforçou que não se tratava “apenas de envelhecimento”, mas de uma entidade patológica com uma base patológica bem estabelecida no cérebro, digna de um enorme esforço de investigação sobre a sua causa e cura.12 Esta formulação foi feita de forma mais famosa e contundente pelo neurologista Robert Katzman num editorial de 1976 chamado “The Prevalence and Malignancy of Alzheimer Disease: A Major Killer”.13 Publicado na revista Archives of Neurology da American Medical Association, o artigo é amplamente reconhecido como a publicação que, mais do que qualquer outra, tornou a demência uma questão pública importante. A relevância política da reconceptualização da demência senil não passou despercebida por Katzman. Ao relembrar o seu trabalho num simpósio da Fundação Ciba sobre investigação do envelhecimento, em 1988, ele explicou: “Passei vários anos a tentar convencer as pessoas de que a doença de Alzheimer é uma doença, e não simplesmente o que costumava ser chamado de ‘senilidade’ ou ‘demência senil’. E houve um progresso maravilhoso na investigação. Na minha opinião, isso deve-se ao facto de as pessoas agora considerarem a doença de Alzheimer como uma doença.”14

A demência como ameaça existencial

A análise histórica acima sugere que a reconceptualização da doença de Alzheimer foi tanto uma afirmação política quanto científica. Parte do poder dessa afirmação foi a segunda ideia na narrativa cultural dominante sobre a demência – que ela representa uma ameaça existencial para a sociedade e para o indivíduo. Como vimos na secção anterior, os defensores da doença de Alzheimer frequentemente se envolviam no que os críticos descreveram como uma espécie de demografia apocalíptica, na qual a prevalência crescente da demência associada ao envelhecimento da população é caracterizada como uma “bomba-relógio demográfica” ou “tsunami prateado” que destruirá o sistema de saúde, a menos que um tratamento eficaz seja encontrado.15

   Ainda mais salientes do que essas alegações sobre uma catástrofe económica iminente são as descrições da doença de Alzheimer e de distúrbios semelhantes como as piores de todas as doenças, porque destroem a própria identidade das pessoas que afetam. No discurso popular de defesa da investigação e dos cuidados da doença de Alzheimer, as pessoas com demência são comumente retratadas como se já não estivessem realmente presentes, como estranhos assustadores para os seus entes queridos, como invólucros vazios ou mesmo zombies. Embora possa parecer perverso questionar o sofrimento das pessoas que enfrentam as terríveis perdas causadas pela demência, estas representações profundamente estigmatizantes e desmoralizantes das pessoas com demência merecem um escrutínio crítico.

   Como defendi no meu livro Self, Senility, and Alzheimer’s Disease in Modern America, embora a demência sempre tenha sido entendida como implicando perdas, a ansiedade específica em torno da sua ameaça à identidade pode ser atribuída à preocupação com a construção da identidade que surgiu no início da modernidade e se aprofundou nos séculos XIX e XX.16 No século XVI, a ideia tradicional de que os indivíduos eram dotados por Deus de traços essenciais e definidores foi sendo substituída pela ideia de que os indivíduos criavam-se a si mesmos através das escolhas conscientes e engenhosas que faziam ao longo da vida.17 Esta nova ênfase na autocriação foi acompanhada por uma ansiedade acrescida em relação à velhice em geral e à demência em particular. À medida que a ascensão do capitalismo liberal nos séculos XVIII e XIX minava as hierarquias tradicionais que proporcionavam fontes estáveis, embora restritivas, de identidade, a individualidade tornou-se mais problemática. A identidade tornou-se mais um projeto do que um estatuto atribuído, e a velhice tornou-se cada vez mais um local de ansiedade cultural sobre a identidade que se levou uma vida inteira a criar, ameaçando desmoronar-se e desaparecer à medida que a demência destruía a capacidade de criar uma narrativa pessoal coerente e coesa. Essa ansiedade cultural foi medicalizada no contexto das preocupações do século XX com o envelhecimento e a passagem à reforma numa economia industrial. Os trabalhadores idosos, com seus corpos e cérebros em deterioração, poderiam acompanhar as exigências da produção industrial e da gestão burocrática complexa? Após a Segunda Guerra Mundial, à medida que a aposentadoria se tornou uma fase aceitável da vida, apoiada por um sistema misto de previdência social pública e pensões privadas, a ansiedade passou a ser sobre o que os idosos fariam com seu tempo livre repentinamente abundante. Será que o facto de serem privados do envolvimento significativo com o mundo proporcionado pelo trabalho resultaria numa deterioração das suas capacidades cognitivas? Os programas sociais para idosos eram frequentemente justificados com o argumento de que evitariam um aumento catastrófico da demência senil. No geral, as expectativas de uma velhice produtiva e gratificante aumentaram durante a segunda metade do século XX. Nesse contexto, a ideia de que a deterioração mental poderia ser uma parte normal do envelhecimento parecia cada vez mais insustentável, e os investigadores geriátricos e gerontológicos procuraram identificar a demência como um estado patológico do envelhecimento, que, segundo eles, normalmente não deveria ser caracterizado por nenhuma perda significativa das capacidades cognitivas. A reconceptualização da doença de Alzheimer descrita na secção anterior foi o exemplo mais significativo disso.18

   No entanto, isso não diminuiu a estigmatização da demência e a ansiedade em relação ao envelhecimento. Nas campanhas altamente visíveis e eficazes dos media e do lobby do Congresso, organizadas em torno da reconceptualização da doença de Alzheimer, os seus defensores aumentaram a consciência pública e o financiamento para a doença de Alzheimer, explorando a ansiedade profundamente enraizada em relação à senilidade e à identidade. As perdas pessoais associadas à demência foram retratadas como tão globais e irrevogáveis que levantaram a questão de se as pessoas que sofrem dessa doença ainda podem ser consideradas pessoas. Na lógica dessa narrativa cultural dominante sobre a demência, as políticas destinadas a melhorar os cuidados e os tratamentos das pessoas com demência eram tardias, pois esses indivíduos já haviam sido privados de sua identidade. Embora admitissem que deveriam ser feitas algumas concessões para melhorar a situação das pessoas com demência e dos seus cuidadores, os defensores da doença de Alzheimer afirmavam veementemente que a ameaça existencial à sociedade tornava absolutamente prioritário encontrar meios eficazes para tratar, se não curar ou prevenir, a demência.19

Neoliberalismo, política de demência e o domínio da agência farmacêutica

Se o contexto histórico essencial para compreender o surgimento da demência como uma questão pública importante na década de 1980 foi, não apenas o envelhecimento da população, mas também as ansiedades profundamente enraizadas sobre a coerência e a estabilidade do eu na sociedade capitalista moderna, então o neoliberalismo é o contexto histórico essencial para compreender as políticas e as agendas de investigação que se desenvolveram desde então. “Neoliberalismo” é um termo controverso, definido e utilizado de várias maneiras. Mas há um amplo consenso no sentido de que descreve com precisão um conjunto de ideias e políticas que enfatizam a liberdade individual, a desregulamentação, a redução do Estado social, a livre iniciativa privada e a expansão dos valores e práticas do capitalismo de mercado livre para todos os aspetos da sociedade. Como argumentam Daniel George e Peter White-house, “uma visão neoliberal do mundo incorpora a lógica de mercado em todas as dimensões das nossas vidas... Tudo se torna uma mercadoria em potencial.” 20 A demência tornou-se uma questão pública importante na década de 1980, justamente quando o neoliberalismo estava a tornar-se a abordagem dominante para as políticas económicas e sociais nos Estados Unidos e no Reino Unido e estava a remodelar profundamente a pesquisa académica como um todo, e essa confluência distorceu as agendas da investigação e das políticas que surgiram para enfrentar os desafios da demência.

   Na narrativa cultural dominante sobre a demência, a busca por um tratamento ou cura é apresentada em termos heroicos. A investigação científica sobre a demência deve orientar-se para a descoberta de intervenções que beneficiem significativamente os doentes e as suas famílias. Mas a investigação médica académica foi reformulada com a aprovação da Lei Bayh-Dole em 1980, que permitiu às universidades reivindicar direitos de propriedade intelectual sobre os produtos da investigação financiada pelo governo federal.21 O resultado foi uma enorme injeção de dinheiro privado das indústrias farmacêutica e de dispositivos médicos na medicina académica. Embora a ligação direta da investigação académica aos mercados financeiros tivesse como objetivo aumentar a inovação e facilitar a translação da investigação em intervenções médicas eficazes, também criou o potencial para corrupção e conflito de interesses.22 O envolvimento da medicina e dos mercados era uma preocupação generalizada, mas tornou-se especialmente grave quando a investigação sobre a doença de Alzheimer surgiu, há cerca de treze anos, no centro de um dos maiores escândalos de abuso de informação privilegiada da história dos Estados Unidos.23

   É claro que nem toda a investigação sobre Alzheimer é corrupta. A maior parte da investigação é conduzida de boa-fé, com a intenção de desenvolver tratamentos que realmente ajudem os pacientes. Mas o investimento maciço e de alto risco em empreendimentos farmacêuticos vinculou o campo da Alzheimer ao mesmo tipo de práticas e pressões financeiras que levaram a repetidos escândalos e a ciclos perturbadores de expansão e recessão em toda a economia. Embora as questões éticas em torno dos casos de má conduta sejam obviamente sérias, a questão mais importante é a forma como a investigação sobre a doença de Alzheimer, desde a década de 1980, está orientada para um modelo de rentabilidade a curto prazo através dos mercados financeiros. Não é preciso duvidar que os líderes farmacêuticos e os investigadores científicos que eles financiam estejam genuinamente empenhados na ideia de desenvolver produtos que tratem ou previnam eficazmente a doença de Alzheimer para se preocupar com o poder das forças de mercado para distorcer a investigação e a regulamentação.

   Essas preocupações estão no centro da controvérsia em torno de vários medicamentos para remoção de amiloide recentemente licenciados pela Food and Drug Administration dos EUA (FDA) para o tratamento da demência em estágio inicial. Desde meados da década de 1990, a hipótese amiloide, que sugere que a neurodegeneração na doença de Alzheimer é causada pelo excesso da proteína beta-amiloide, que causa a formação de placas no cérebro, tem sido o ponto focal das estratégias de desenvolvimento de medicamentos. Depois de vários medicamentos para remoção de amiloide terem falhado nos ensaios clínicos, a FDA aprovou o aducanumab em 2021, embora nenhum membro do painel consultivo de especialistas convocado para avaliar os dados dos ensaios clínicos do medicamento tenha considerado que havia provas suficientes de eficácia.24 Dois outros medicamentos para remoção de amiloide, o lecanemab e o donanemab, atingiram os seus objetivos nos ensaios clínicos. O lecanemab foi aprovado pela FDA em 2023 e o donanemab em 2024. Mas muitos líderes de opinião proeminentes na área de Alzheimer continuam céticos; o efeito desses medicamentos é tão pequeno que eles podem não proporcionar nenhum benefício percetível aos doentes, mas apresentam riscos significativos e são muito caros.25

   Parte da fundamentação para aprovar esses medicamentos, apesar das objeções, foi a necessidade de incentivar as empresas farmacêuticas a continuarem a investir no desenvolvimento de medicamentos para Alzheimer, pois esse investimento inevitavelmente levaria a tratamentos eficazes. Mas, como a pesquisa e o desenvolvimento farmacêuticos são orientados para o mercado de ações, o impacto final de um novo medicamento pode parecer secundário. O dinheiro será ganho de qualquer maneira. Independentemente de os medicamentos atuais proporcionarem ou não benefícios significativos aos doentes, ao saber quando comprar e quando vender, os investidores experientes terão feito fortunas; e ao saber onde investir o seu tempo e como vender os seus conhecimentos, os investigadores experientes terão construído carreiras.

   Além disso, a ênfase neoliberal em abordagens orientadas para o mercado favorece os tratamentos farmacêuticos, porque são facilmente comercializados e apoiados pelas operações de marketing e distribuição de grandes companhias. Como argumenta o médico, especialista em ética e investigador clínico Jason Karlawish no seu livro The Problem of Alzheimer’s: How Science, Culture, and Politics Turned a Rare Disease into a Crisis and What We Can Do about It, “uma intervenção eficaz não é um tratamento, a menos que tenha um plano de negócios”. Os inibidores da colinesterase, a geração anterior de medicamentos licenciados para Alzheimer, nunca mostraram mais do que um benefício modesto para os doentes, e muitos investigadores de Alzheimer argumentaram que eles eram inúteis. Mas “por um tempo, os inibidores da colinesterase tiveram um modelo de negócios robusto que começou com financiamento privado e público para pesquisas para descobri-los e testá-los, seguido por uma revisão regulatória de seus benefícios e malefícios. O mais importante foi um sistema altamente coordenado e organizado para promover a sua prescrição”. E assim, tornaram-se medicamentos de grande sucesso. Karlawish contrasta-os com duas intervenções comportamentais destinadas a treinar e apoiar cuidadores que, em ensaios clínicos, mostraram claramente uma melhora significativa tanto para os doentes quanto para seus cuidadores.26 Um editorial que acompanhou a publicação dos estudos na revista Annals of Internal Medicine defendeu que “a magnitude do benefício e a qualidade das provas que apoiam essas intervenções excedem consideravelmente as das terapias [medicamentosas] atualmente aprovadas para demência”.27 Mas as intervenções comportamentais são mais difíceis de comercializar, por isso as empresas têm demonstrado pouco interesse nelas. Na falta de um plano de negócios, poucos doentes e cuidadores beneficiam delas, por mais clara que seja a prova da sua eficácia. “As intervenções comportamentais..., com exceção do apoio financeiro do National Institute on Aging, das fundações e agências estaduais, não tinham um sistema para divulgá-las, promovê-las ou mantê-las”, observa Karlawish. “É essa disparidade entre os dois sistemas — um financeiramente robusto, o outro fragmentado e descoordenado — que está no cerne da crise da doença de Alzheimer.” 28

Para uma história diferente

Quais são as lições da história em relação à demência? Primeiro, que algumas coisas que parecem naturais e inevitáveis dentro da narrativa cultural dominante sobre a demência podem, na verdade, ser historicamente contingentes, refletindo as atitudes e ideias de um determinado tempo e lugar. Segundo, que alguns aspetos do contexto histórico contemporâneo levantam sérias questões sobre a ênfase na busca por um tratamento farmacêutico e uma cura, e que o envolvimento da indústria de pesquisa com os mercados financeiros cria um conflito de interesses estrutural. Por fim, ao adotar uma abordagem mais crítica e historicamente informada em relação à demência, podemos acabar por contestar o domínio de valores políticos e sociais, como o individualismo e a eficiência económica, que têm impulsionado a narrativa cultural dominante sobre a demência e a ênfase no desenvolvimento de comprimidos que possam ser facilmente comercializados e vendidos.

   Para enfrentar os desafios da demência, precisamos incorporar e encontrar novos valores na vulnerabilidade, na interdependência e no bem comum, além de desenvolver e financiar intervenções sociais e comportamentais que apoiem diretamente tanto os doentes como os seus cuidadores. Essa transformação ajudar-nos-á a enfrentar não apenas o desafio da demência, mas também uma ampla gama de desafios sociais, económicos e ambientais que a humanidade enfrenta neste momento histórico. A história recorda-nos que outro mundo é possível. E necessário. <

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28 setembro 2025

Efeméride – 28 de setembro de 1542

                                           

João Rodrigues Cabrilho, por António Pacheco, 1989, Montalegre

Foi há 483 anos que Cabrilho, topónimo portuense, descobriu a Califórnia 
«Considerando que João Rodrigues Cabrilho, natural de Portugal, descobriu a Califórnia a 28 de setembro de 1542, entrando no porto de San Diego; Considerando que o referido descobrimento foi um acontecimento de importância mundial e o seu aniversário uma data de particular interesse para o povo do Estado da Califórnia, resolveu o Senado, reunido em Assembleia, o seguinte: É o povo do Estado da Califórnia convidado a comemorar o Dia Cabrilho, a 28 de setembro de cada ano, por meio de cerimónias patrióticas apropriadas.» [Os Descobrimentos Portugueses – VI, Obras Completas, vol. 26, Jaime Cortesão. Livros Horizonte, 1978, p. 1479]