11 julho 2025

Humanizar em Braga

No passado dia 4 de julho, tive o gosto e a honra de moderar uma mesa no II Seminário "Humanização em Saúde", no Hospital de Braga. Além da demonstração clara de que há cada vez mais serviços do SNS onde se trabalha a humanização, aprendi muito com as comunicações e apreciei especialmente encontrar muitos amigos e amigas.

Recordo, entre outros, o encontro com várias profissionais do Serviço Social de várias ULS com quem tive o gosto e a honra de trabalhar entre 2005 e 2008 no Gabinete de Cidadão da ARSN. 

Registo ainda um encontro que muito me sensibilizou: um investigador, cujo nome não me revelou, fez questão de me saudar discretamente para me dizer quanto estava grato pela forma como terei resolvido um problema com que se defrontou quando submeteu um projeto à Comissão de Ética do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, a que presidi entre 2013-2016.

São momentos como estes que, se nos fazem lembrar a ancianidade e a humanidade, também nos aquecem o coração. 


 

02 julho 2025

Projeto de Lei britânica sobre Adultos em Fase Terminal


 
Lei sobre Adultos em Fase Terminal (Fim da Vida) Projeto de iniciativa parlamentar

Originated in the House of Commons, Session 2024-25 // Last updated: 20 June 2025 at 17:16

Tradução espontânea para distribuição sem fins lucrativos a partir do texto extraído em 21/06/2025 daqui

UM PROJETO DE LEI PARA

permitir que adultos com doenças terminais, sob salvaguardas e proteções, solicitem e recebam assistência para pôr fim à sua própria vida e para fins conexos.

QUE SEJA PROMULGADA

por Sua Majestade o Rei, com o conselho e consentimento dos Lords Spiritual and Temporal e dos Commons, reunidos no presente Parlamento, e pela autoridade do mesmo, da seguinte forma–

Ver tradução completa AQUI ou AQUI

27 junho 2025

Suicídio Medicamente Ajudado - posição da Sociedade Italiana de Neurologia

Neurological Sciences (2025) 46:2371–2379

Neurologia e suicídio medicamente ajudado:
posição da Sociedade Italiana de Neurologia

Eugenio Pucci, Nicola Ticozzi, Giancarlo Comi, Gianluigi Mancardi, Leandro Provinciali, Alessandro Padovani, Alessandra Solari
 
Tradução espontânea de algumas partes do artigo
Neurology and physician-assisted suicide:
position of the Italian society of neurology
Para ler o artigo original completo clicar AQUI

Resumo

Esta posição explora a complexa questão do suicídio medicamente ajudado (SMA) no contexto da Neurologia. Analisa os desafios legais, éticos e clínicos que envolvem o SMA, incluindo o papel dos neurologistas na avaliação da elegibilidade com base no prognóstico, na capacidade de tomada de decisão e no estado funcional. O documento descreve o quadro jurídico italiano em matéria de SMA, na sequência de uma decisão histórica do Tribunal Constitucional de 2019, que permite o SMA em condições estritas para doentes que sofrem de doenças incuráveis. Compara também a regulamentação em matéria de SMA noutros países europeus e não europeus. A Sociedade Italiana de Neurologia (SIN) enfatiza a importância de respeitar a autonomia do doente, ao mesmo tempo que defende cuidados paliativos abrangentes. A posição da SIN é que o SMA deve ser legalizado em circunstâncias específicas, mas insiste em garantir o acesso equitativo aos serviços de cuidados paliativos antes de se considerar o SMA. Além disso, a SIN apoia a formação de neurologistas em cuidados paliativos e cuidados em fim de vida, sublinhando a necessidade de um acompanhamento cuidadoso e de regulamentação das práticas do SMA para evitar potenciais abusos éticos e legais.

[…]

O papel do neurologista

O papel do médico (neurologista, no que diz respeito às doenças neurológicas) nos casos de SMA é multifacetado, envolvendo questões clínicas, éticas e legais.

No que diz respeito ao seu papel clínico, o médico (que trabalha numa unidade do sistema nacional de saúde público) pode estar envolvido na avaliação do estado do doente e da sua elegibilidade, de acordo com o Acórdão 242/2019 do Tribunal Constitucional Italiano. Isso inclui confirmar o diagnóstico de “uma doença incurável que causa sofrimento físico ou psicológico” que o doente “considera intolerável”. O médico também tem de ter conhecimento do prognóstico do doente e de verificar que o seu sofrimento não pode ser aliviado por outros meios. Além disso, é essencial avaliar se o doente “tem plena capacidade para tomar decisões livres e informadas” e se “é mantido vivo por tratamentos de suporte vital”. Por fim, é o médico que pode avaliar se o doente seria capaz de autoadministrar o fármaco letal, o que implica, de algum modo, a manutenção da capacidade motora e da capacidade de deglutição. Dado que distúrbios mentais e/ou sofrimento psicológico e/ou défice cognitivo podem dificultar o processo de tomada de decisão, é aconselhável que o neurologista colabore com outros especialistas, tais como psiquiatras, psicólogos ou neuropsicólogos, para uma avaliação mais abrangente.

Deve garantir-se que o doente compreende plenamente as implicações da sua decisão. Isso pressupõe uma análise aprofundada da condição do doente, do seu prognóstico e das alternativas disponíveis, a fim de garantir que a sua intenção de pôr fim à própria vida seja “formulada de forma autónoma e livre”.

O médico não é obrigado a prescrever medicação letal, a menos que esteja diretamente envolvido no procedimento de SMA a pedido do doente. Essa responsabilidade recai sobre o médico designado pelo doente, a quem foi confiada essa função. O médico que ajuda na realização do SMA pode contar com o apoio de outros profissionais para preparar o ambiente adequado, o medicamento letal e o dispositivo de administração. Se o doente consentir, o médico deve procurar colaborar estreitamente com profissionais especializados em cuidados paliativos, tendo também em consideração a gestão da fase de luto.

O papel ético do médico no SMA é complexo, envolvendo um equilíbrio delicado entre respeitar a autodeterminação do doente e gerir os seus deveres profissionais e as suas convicções morais pessoais. Tem de encontrar este equilíbrio, respeitando os princípios éticos clínicos da autonomia, beneficência e não maleficência. Preservar a confidencialidade do doente é fundamental. No entanto, quando as obrigações legais ou éticas entram em conflito, os médicos devem procurar orientação de especialistas em direito e bioética. As comissões de ética locais (em italiano: comitati etici locali per la pratica clinica), que existem em algumas regiões italianas, podem desempenhar um papel significativo na abordagem destas e de outras questões e conflitos.

Envolver-se em SMA pode representar desafios profissionais, incluindo potenciais conflitos com crenças morais pessoais ou convicções éticas profissionais. Alguns médicos podem sentir angústia moral ou enfrentar críticas de colegas ou do público.

Os médicos têm de cumprir requisitos legais específicos, tais como documentar o pedido do doente, garantir que todos os critérios de elegibilidade são cumpridos e comunicar o caso às autoridades competentes. Este processo tem de ser meticulosamente documentado para evitar contestação judicial.

A prática do SMA afeta a forma como a comunidade médica em geral vê o papel dos médicos.

Atualmente, os médicos italianos são orientados pelo código de ética estabelecido pela FNOMCEO (Federazione Nazionale degli Ordini dei Medici Chirurghi e degli Odontoiatri), que afirma que “o médico, mesmo a pedido do doente, não deve praticar nem facilitar atos destinados a causar a morte do doente” (artigo 17.º do Código de Ética Médica). No entanto, na sequência do Acórdão 242/2019 do Tribunal Constitucional Italiano (TCI), existe um debate em curso sobre as implicações para o artigo 17.º do Código de Ética Médica. Para conciliar o Código com as novas realidades jurídicas, foi introduzida uma alteração que estabelece que “a livre escolha do médico de prestar assistência, com base no princípio da autodeterminação individual, na intenção de cometer suicídio [...] deve ser sempre avaliada caso a caso e implica [...] a não punibilidade do ponto de vista disciplinar”.

Os conselhos disciplinares das ordens médicas serão chamados a avaliar cada caso especificamente, para garantir que todas as condições previstas na decisão do TCI são cumpridas.

A FNOMCEO decidiu, portanto, deixar os colegas livres para agir de acordo com a lei e a sua própria consciência. Mesmo que os princípios do artigo 17.º permaneçam inalterados, a alteração indica uma mudança na proibição absoluta de atos que causem a morte a pedido do doente. Isto está em conformidade com as disposições do TCI que, fora da área delimitada, reiteraram que “criminalizar a ajuda ao suicídio não é, em si mesmo, inconstitucional [...] mas sim que tal criminalização se justifica pela necessidade de proteger o direito à vida, especialmente das pessoas mais fracas e vulneráveis [garantindo que] o sistema jurídico procura proteger essas pessoas, impedindo que terceiros interfiram numa decisão tão extrema e irreparável como o suicídio”.

A adaptação deste quadro ético às mudanças jurídicas em curso é um tema fundamental de discussão na comunidade médica italiana. Na situação atual, o Acórdão n.º 242/2019 do Tribunal Constitucional Italiano afirma que não existe “obrigação para os médicos” de prestar ajuda no SMA, deixando à consciência individual dos médicos a decisão de acatar ou não o pedido do doente. Uma vez que o SMA não impõe quaisquer obrigações aos profissionais de saúde, não deve ser necessário invocar objeção de consciência. No entanto, o TCI reconheceu que as instituições de saúde pública são obrigadas a responder aos pedidos de SMA. Não há problema quando um neurologista concorda voluntariamente em participar num SMA no âmbito da relação médico-doente. A dificuldade surge quando um neurologista é obrigado a participar em procedimentos de SMA exigidos pela sua instituição pública, como por exemplo, integrar uma comissão para verificar a elegibilidade para o SMA. Nesses casos, o neurologista pode invocar a “cláusula de consciência”, que lhe permite opor-se, com base em princípios constitucionais e códigos éticos, a situações não reguladas pela lei. No entanto, se nenhum médico do serviço público de saúde estiver disposto a participar, será criada uma situação insustentável, que impedirá o direito do doente ao SMA. O Conselho Nacional de Bioética (CNB) italiano salientou que a objeção de consciência tem de ser exercida de forma sustentável, garantindo a disponibilidade de serviços que defendam os direitos dos doentes, apesar das objeções. Este princípio pode ser aplicado de forma semelhante à “cláusula de consciência”.

[…]

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A posição da Sociedade Italiana de Neurologia (SIN) sobre o SMA (suicídio medicamente ajudado)

A SIN reconhece que as doenças neurológicas:
- São o segundo mais importante motivo para pedidos de SMA, depois do cancro, em todo o mundo
- Podem causar sofrimento intolerável (físico, psicológico e/ou existencial)
- Podem levantar dificuldades em termos de prognóstico temporal
- Podem afetar a capacidade de decisão e/ou de comunicação dos doentes
A SIN afirma que:
- Os neurologistas devem reconhecer e debater abertamente as vontades dos doentes de terem uma morte voluntária ajudada, assim como identificar fatores de risco (por ex. depressão, isolamento, capacidades limitadas) e possíveis alternativas de tratamentos.
- Os cuidados paliativos devem estar disponíveis para os doentes com doenças neurológicas e suas famílias em todas as regiões italianas e nos diversos cenários (internamento, ambulatório, domicílios)
- Os neurologistas devem reconhecer e debater abertamente os pedidos de SMA quando os melhores tratamentos (incluindo cuidados paliativos) não são eficazes ou são recusados pelo doente, especialmente aqueles que demonstram sofrimentos espiritual ou existencial
- A decisão sobre realizar ou não realizar SMA deve ser deixada ao rigoroso entendimento dos neurologistas, atuando em nome dos seus doentes
- Há necessidade urgente de uma lei italiana que garanta procedimentos seguros, transparentes e justos
- É preciso realizar uma monitorização contínua dos SMA em toda a Itália e ao longo do tempo, para evitar a ocorrência de práticas desviantes
A SIN manifesta-se a favor de:
- Programas de formação dos seus membros sobre partilha de decisões, conversas atempadas sobre fim de vida e planeamento antecipado de cuidados
- Programas de formação interdisciplinar em Neurologia e Cuidados Paliativos, sobretudo para jovens membros
- Investigação em cuidados neuropaliativos, centrados na avaliação e tratamentos de doentes com necessidades complexas e sofrimentos refratários

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24 junho 2025

Quadras de S. João

Pró dia de S. João,

É preciso uma quadrinha,

Preciso de algum pão,

Pra lá meter a sardinha!


Já não sei onde estão

As rimas do ano passado.

Desculpa lá S. João,

Este poeta encalhado!


Ai S. João, estamos velhos,

Tantas quadras já massacra!

Inda iremos de joelhos

Fazer lá a Via-Sacra!

10 de junho

Hoje é dia de São Camões.

O primeiro dos feriados.

Esqueçamos as eleições

Pois ‘tamos todos lixados!

 

Havemos de ir festejar

Outro Santo certamente.

Temos muito que falar.

E quem disser o contrário mente!

 13 de junho

O Sant’António de Lisboa

Tem a idade de Portugal.

Mas a festa não é tão boa

Como a do João, etc. e tal…


Para os santos populares

Os festejos são eternos.

Temos versos e cantares,

P'ra esquecer os Governos!

19 de junho

Hoj’é feriado outra vez!

Mas não é dia de santo.

Muito gosta o português

D'um bom descanso, portanto!

 

Dia do Corpo de Deus,

Iss’ agora interessa é nada!

Porque também os ateus

Gostam da vida airada!

 

Mas seja lá como for,

Temos de nos preparar.

Um manjerico sem flor,

É isso que está a dar!

24 de junho

i Orvalhadas, orvalhadas, orvalhadas

E vivam as mulheres casadas!! (bis)

i Brincadeiras, brincadeiras, brincadeiras

E vivam as mulheres solteiras!! (bis)

Ó São João, ó meu rapaz,

Anda p'r aí muita trampa (bis)

O que nós q’remos é paz,

Já’stamos cheios do Trump!!! (bis)

São João, tu és do Porto,

Grande com’ó Jorge Nuno. (bis)

Com ambos temos conforto,

Inda que pouc’oportuno. (bis)

Esta noite, nem sei porquê,

Brindemos ao Fê Cê Pêêê! (bis)

Podemoz'então dançar,

Rir c’o Sporting, c’o Benfica! (bis)

Anda daí, vamos cantar… (bis)

u u u u …

Repenica, repenica, repenica

É São João a suar em bica! (bis) (bis) (bis)

18 junho 2025

Efeméride - 18 de junho de 2010

Efeméride – 18 de junho de 2010

José Saramago morreu há 15 anos
José Saramago (1922-2010), por Armando Ferreira, Azinhaga do Ribatejo, 2009
Escritor, prémio PEN Clube (1982, 1984), prémio APE (1991), prémio Camões (1995), prémio Nobel da Literatura (1998)

«O livro [Memorial do Convento] existe, deu a volta ao mundo, levou o nome de Mafra a toda a parte. Fala da construção da gigantesca mole, fala das pedras talhadas e sobrepostas, fala das mãos que as afeiçoaram e assentaram, fala do esforço dos homens, do suor e do sangue, do sacrifício. Ali, na biblioteca do convento, rodeado de livros, lembrei que as pedras morrem quando não as cuidamos, quando nos esquecemos do trabalho que representam.» [Cadernos de Lanzarote – V, José Saramago. Ed. Caminho, 1998, p. 108]

Rua José Saramago, antiga rua 8 do bairro rainha D. Leonor, Porto

08 junho 2025

Violência no local de trabalho

Int. J. Environ. Res. Public Health 202421(12), 1708

Avaliar o risco de violência usando a Saúde Ocupacional

Nicola Magnavita, Igor Meraglia, Giacomo Viti, Martina Gasbarri

Occupational Epidemiology Unit, Department of Life Sciences and Public Health, Università Cattolica del Sacro Cuore, 00168 Roma, Italy // Health Surveillance Service, Local Healthcare Unit Roma4, 00053 Civitavecchia, Italy

Tradução do resumo e conclusões do artigo

Measuring the Risk of Violence Through Health Surveillance

Resumo

A violência no local de trabalho (VLT) é um fenómeno omnipresente, mas pouco relatado e estudado. As medidas de prevenção podem ser ineficazes porque a avaliação de riscos é frequentemente baseada em algoritmos não validados. Após monitorizar o risco de VLT numa empresa de saúde por mais de 20 anos, este artigo apresenta os resultados recolhidos em 2023 e pormenores da metodologia utilizada. Monitorizar a VLT na Saúde Ocupacional envolve três ações: (1) perguntar a todos os trabalhadores que realizam exames médicos periódicos no local de trabalho se sofreram agressão física, ameaças ou assédio no ano anterior; (2) investigar a VLT no final das inspeções no local de trabalho, criando grupos participativos de ergonomia (GPE) para sugerirem soluções; (3) investigar as características e consequências da VLT através de questionários online anónimos. Em 2023, 6,9% dos profissionais de saúde relataram ter sofrido um ou mais ataques físicos durante o ano anterior; 12,7% relataram ter sido ameaçados e 12,9% relataram outros tipos de comportamento violento e de assédio. Os profissionais de saúde notaram um aumento da violência após os anos da pandemia e, nos GPE, sugeriram a adoção de diferentes medidas preventivas em diferentes departamentos de saúde. O inquérito online revelou outras informações sobre as características da violência contra os profissionais de saúde e as suas consequências. O risco de violência contra os profissionais de saúde pode ser eficazmente caracterizado e medido na Saúde Ocupacional.

[…]

Conclusões

O objetivo do médico do trabalho é aumentar a sensibilização e a participação dos profissionais – elementos essenciais para compreender as características e as causas da violência e para preparar medidas de prevenção adequadas. A atenção por parte da gestão e a divulgação de informações à comunidade também são vitais para alcançar uma gestão partilhada da segurança em cuidados de saúde.

Em conclusão, medir o risco de violência usando as atividades de Saúde Ocupacional é um método confiável e sustentável que incentiva à participação dos profissionais e à busca de soluções consensuais e decisivas.

                                 Para ler o artigo original, clicar AQUI

31 maio 2025

Limitar tratamentos

 

https://doi.org/10.1093/brain/awae060

BRAIN 2024: 147; 2274–2288 | 2274

Limitação de tratamentos de suporte vital em perturbações da consciência: ética e prática

India A. Lissak e Michael J. Young

Department of Neurology, Massachusetts General Hospital and Harvard Medical School, Boston, USA

Tradução espontânea do resumo e parte final do artigo

Limitation of life sustaining therapy in disorders of consciousness: ethics and practice


Resumo

As discussões clínicas sobre a continuação ou “limitação de tratamentos de suporte vital” (LTSV) em doentes com perturbações da consciência (PdC) resultantes de lesões cerebrais graves são difíceis e tragicamente necessárias. As diferentes perspetivas culturais, filosóficas e religiosas contribuem para uma grande heterogeneidade nas abordagens clínicas à LTSV, como se pode ver nas diferenças regionais e na variabilidade entre médicos. Aqui, apresentamos uma análise ética dos fatores que influenciam as decisões sobre LTSV em doentes com PdC.

Começamos por apresentar o desafio clínico e ético e clarificamos a distinção entre retirar e não iniciar tratamentos de suporte à vida. Em seguida, descrevemos fatores relevantes que influenciam a tomada de decisão, incluindo a incerteza diagnóstica e prognóstica, a perceção da dor, a definição de um “bom” resultado e o papel dos médicos. Nas secções finais, exploramos a variação global na prática da LTSV no que se refere a doentes com PdC e analisamos o impacto das perspetivas culturais e religiosas na sua abordagem.

Compreender e respeitar as perspetivas culturais e religiosas dos doentes e dos seus representantes é essencial para proteger a autonomia dos doentes e promover cuidados coerentes com os objetivos em momentos críticos da tomada de decisões médicas que envolvem doentes em estado de coma. 

[…] 

Perspetivas religiosas sobre a limitação de tratamentos de suporte vital

Dada a sua natureza carregada de valores, os antecedentes religiosos e as crenças de um doente ou da sua família também podem ter um peso significativo nas decisões sobre os TSV em doentes com PdC. A identificação com um grupo religioso específico não significa necessariamente que os doentes ou os seus familiares subscrevam todos os princípios da sua fé, mas pode proporcionar-lhes apoio espiritual ou orientação, designadamente no contexto de TSV.

As perspetivas religiosas podem influenciar de várias maneiras importantes os debates sobre os planos de cuidados em doentes com PdC. Em primeiro lugar, a interpretação de certos textos religiosos pode fornecer orientações diretas sobre se as LTSV são permitidas e, em caso afirmativo, em que circunstâncias são apropriadas. Dependendo do nível de religiosidade do doente ou do seu representante, os líderes religiosos ou conselheiros podem ser consultados, direta ou indiretamente, durante as decisões sobre LTSV. Em segundo lugar, as crenças religiosas ou espirituais de uma pessoa podem influenciar a crença num poder superior, o que se pode traduzir em otimismo ou sentimentos de esperança em relação ao potencial de recuperação do doente. Um estudo que avaliou o papel da religião e da espiritualidade na tomada de decisões por representantes, em contexto de LTSV, mostrou que a prática religiosa não estava associada às preferências para o fim da vida, mas a crença em milagres estava significativamente associada a uma menor preferência pelas decisões de não reanimação. Em terceiro lugar, as crenças religiosas podem influenciar as perceções sobre o valor da consciência ou o valor intrínseco da vida humana. Por exemplo, verificou-se que as perspetivas dualistas em relação à consciência e ao cérebro são influenciadas pelas crenças religiosas. Estas perspetivas podem, posteriormente, ser aplicadas a conversas sobre LTSV e podem influenciar a tomada de decisões no caso de doentes com PdC.

Verificou-se que as crenças religiosas tanto proporcionam apoio como são fonte de conflitos durante as discussões sobre o plano de cuidados. Dos representantes que tomaram a decisão de adotar a LTSV, 48% mencionaram que a fé lhes proporcionou tranquilidade durante a estadia do seu ente querido no hospital. Estudos anteriores que avaliaram as dimensões religiosas que influenciam as discussões pessoais sobre a LTSV revelaram que a resiliência religiosa, uma maior religiosidade e uma identidade religiosa mais forte estavam associadas a uma maior utilização do TSV. Curiosamente, um estudo com representantes que tomavam decisões em nome de doentes incapazes de fazê-lo revelou que aqueles que relatavam níveis mais elevados de religiosidade intrínseca, uma medida do compromisso religioso pessoal, eram menos propensos a procurar TSV agressivos. Isto destaca um potencial papel diferencial da religião no contexto das decisões sobre LTSV nos casos em que os doentes tomam as suas próprias decisões, em comparação com os casos em que os representantes tomam decisões em nome de um doente incapacitado. A falha em obter e envolver as crenças religiosas e espirituais dos doentes no contexto das discussões sobre o plano de cuidados pode comprometer os cuidados centrados na pessoa, o que poderia limitar involuntariamente a autonomia do doente.

A não realização de TSV foi mais prevalente do que a retirada de TSV entre doentes de origem judaica, ortodoxa grega ou muçulmana. Por outro lado, os doentes sem filiação religiosa ou aqueles que se identificaram como católicos ou protestantes foram submetidos à retirada de TSV com mais frequência do que o não-início de TSV. É de salientar que a literatura específica sobre perspetivas agnósticas/ateístas tem sido, em geral, pouco explorada em estudos anteriores que avaliam a importância da religião e da religiosidade nas decisões de fim de vida na UCI. Como resultado, não está claro se, e em que medida, as crenças agnósticas/ateístas podem influenciar especificamente as perspetivas éticas sobre a LTSV nas PdC, sendo esta uma área que pode beneficiar de estudos adicionais. As crenças religiosas dos médicos também podem influenciar as práticas de LTSV. Os médicos que se declararam mais religiosos, independentemente da sua fé religiosa, mostraram-se mais relutantes em praticar a LTSV. Num estudo com médicos nos EUA, aqueles que eram mais religiosos relataram que retirar o TSV era mais problemático do ponto de vista ético do que negar o TSV. Os médicos que se identificaram como protestantes não evangélicos ou católicos romanos eram mais propensos a aceitar essa distinção ética, enquanto os médicos sem afiliação religiosa eram menos propensos a fazê-lo. A preocupação do médico com as origens e alcance desta diferença pode ajudar a preservar a autonomia do doente e reduzir conflitos em torno das discussões sobre o plano de cuidados. Na secção abaixo, exploramos os princípios de várias religiões importantes e as suas perspetivas sobre a LTSV, com especial atenção para a forma como podem influenciar a tomada de decisões no caso de doentes com PdC.

Budismo

O budismo oferece pouca orientação sobre a permissibilidade da LTSV. Como não existe uma autoridade budista central, há uma enorme heterogeneidade nas perspetivas em torno da permissibilidade dessa limitação. A tradição budista geralmente proíbe o fim prematuro da vida, incluindo o suicídio, mas a LTSV em casos de doença crítica pode ser aceitável se o doente estiver a sofrer desnecessariamente. Isto pode ser difícil de interpretar no contexto das PdC, em que os doentes não podem relatar o seu sofrimento ou a validação negativa/positiva das suas vivências. A recusa de TSV é considerada eticamente equivalente à retirada da TSV na tradição budista. Devido à crença na vida após a morte, a LTSV em doentes que estão a sofrer pode, na verdade, ser considerada digna de admiração em alguns casos, pois pode ajudar a facilitar o processo de renascimento. De acordo com essa perspetiva, o processo natural da vida, morte e renascimento não deve ser interrompido artificialmente, e prolongar uma morte inevitável e certa pode ser visto como uma interrupção do processo. Não é claro como esses princípios se aplicam a doentes com PdC, em que a morte não é categoricamente inevitável. O uso de hidratação e alimentação artificiais não é considerado essencial e, portanto, a sua retirada ou a não administração é permitida. O uso de analgésicos e sedativos é raro durante o processo de morte, pois uma mente clara durante a morte é vista como desejável.

Cristianismo

Na tradição católica e em outras confissões cristãs, a preservação da vida é geralmente considerada sagrada, mas os princípios da futilidade e do sofrimento podem ser considerações igualmente importantes nas discussões sobre LTSV.  O catolicismo procura encontrar um meio-termo entre dois extremos: preservar a vida a todo o custo e desconsiderar o valor da vida humana, o que poderia resultar numa LTSV prematura. Se um doente necessitar de medidas extraordinárias para se manter vivo, mas essas medidas não lhe proporcionarem quaisquer outros benefícios, é permitido retirar ou não administrar o TSV. A ventilação mecânica em doentes em coma, em estado vegetativo persistente ou minimamente consciente pode ser considerada uma medida extraordinária, permitindo potencialmente a LTSV; no entanto, não existe clareza suficiente sobre como se caracteriza a futilidade. Não existe consenso quanto ao facto de a alimentação e hidratação artificiais serem consideradas uma medida extraordinária. Numa declaração, o Papa João Paulo II explicou que não é permitido retirar a alimentação artificial a doentes considerados em estado vegetativo persistente.

Hinduísmo

Ao contrário de outras grandes religiões mundiais, as práticas do hinduísmo não se baseiam num texto central, num cânone ou numa doutrina específica; por conseguinte, há muito pouca orientação sobre se e em que circunstâncias a LTSV é permitida. O conceito de Karma, uma lei moral baseada na acumulação de méritos ao longo de vidas sucessivas, influencia as crenças hindus sobre a vida e a morte. As intervenções agressivas perante um prognóstico desfavorável podem interferir com o Karma e, por isso, podem não ser recomendadas ou continuadas. Se houver capacidade para uma boa qualidade de vida, é permitido prolongar a vida artificialmente. Retirar alimentação e hidratação artificiais pode ser um método aceitável de LTSV; no entanto, é mais provável que seja uma preferência individual e familiar.

Islamismo

Na tradição islâmica, a vida é considerada sagrada. Nesse contexto, o TSV deve ser geralmente utilizado, exceto nos casos em que o doente sofre indevidamente ou não tem hipóteses razoáveis de recuperação. A remoção da ventilação mecânica é aceitável se a qualidade de vida não puder ser restaurada e for mantida apenas através do uso de medidas extraordinárias. Se a morte for considerada inevitável, a fé islâmica defende que o suporte de vida pode ser retirado. A interrupção da alimentação e hidratação artificiais como meio de LTSV geralmente não é permitida, pois a fome é estritamente proibida de acordo com a fé islâmica.

Judaísmo  

De acordo com a “Halachá”, a lei judaica, a vida humana tem “valor infinito”. As interpretações haláchicas variam consideravelmente, mas, segundo a tradição judaica, não iniciar ou interromper TSV é considerado eticamente distinto. Não há obrigação de administrar TSV a um doente em estado terminal ou que esteja a sofrer de forma insuportável. Não realizar TSV é permitido nessas condições, as quais também podem se estender a alguns doentes com PdC irreversível. Como salientou o grande halachista Rabi Moshe Feinstein, “não somos obrigados a curar um doente que não deseja esses tratamentos médicos, que apenas prolongam [uma] vida de sofrimento. Em geral, quando é impossível determinar os desejos do doente (por exemplo, quando [alguém] se encontra em estado vegetativo persistente ou em coma, e não existem diretivas antecipadas), podemos presumir que o doente não deseja (mais tratamento) e não há obrigação de curá-lo”. De acordo com as tradições judaicas ortodoxas, a retirada da TSV geralmente não é permitida, a menos que a morte, definida pela cessação dos batimentos cardíacos, ocorra dentro de 3 dias. Intervenções consideradas um “impeditivas do processo de morte” podem ser interrompidas; no entanto, as interpretações do que constitui um impedimento à morte no sentido relevante são debatidas por especialistas em ética médica judaica e autoridades rabínicas. A administração de analgésicos para o alívio da dor durante os cuidados paliativos é permitida, mas alguns rabinos expressaram preocupações quanto ao potencial de depressão respiratória. Na tradição reformista, a retirada de TSV é considerada aceitável se a morte for iminente. Exceto nos casos em que os doentes sofrem ativamente e estão em fase terminal, o que não é sempre o caso dos doentes com PdC, considera-se obrigatório proporcionar aos doentes apoio nutricional contínuo. As tradições judaicas conservadoras permitem tanto a recusa como a retirada de TSV, incluindo alimentação e hidratação artificiais, se os doentes forem considerados “incuráveis”, o que, segundo alguns, inclui doentes em estado vegetativo persistente.

Conclusão

Na maioria das vezes, a morte de doentes que sofrem lesões cerebrais graves na fase aguda ocorre no contexto de Limitação de Tratamentos de Suporte Vital (LTSV). As decisões de limitar ou continuar tratamentos de suporte vital no contexto de perturbações de consciência (PdC) são multidimensionais e baseiam-se em diversas considerações clínicas e éticas, bem como em sistemas de crenças pessoais. O que é do melhor interesse de um determinado doente depende intimamente das suas preferências, objetivos e valores, que são profundamente pessoais e muitas vezes têm de ser intuídos pelos seus representantes. A dificuldade de maximizar a beneficência e a não maleficência nesse contexto é complexa e deve levar em consideração as crenças e vivências específicas do doente, que, às vezes, podem ser difíceis de deduzir. As crenças sobre a permissibilidade de suspender ou não iniciar tratamentos de suporte vital são influenciadas, direta ou indiretamente, por perspetivas e valores culturais, filosóficos ou religiosos. Através da análise das potenciais fontes de variação nas práticas de LTSV, os médicos, investigadores e especialistas em ética podem, durante as conversas sobre LTSV, aperceber-se da importância de terem em conta as crenças culturais e religiosas. Estudos adicionais que avaliem como envolver os representantes legais e que reduzam a discordância e a incerteza na tomada de decisões são de importância substancial. Dada a heterogeneidade das práticas de LTSV, devem ser aplicadas salvaguardas padronizadas que previnam os riscos de preconceito, a fim de evitar a LTSV prematura ou promover abordagens equivalentes a tratamentos de suporte vital em contextos multiculturais, de modo a proteger a autonomia dos doentes e promover cuidados em conformidade com objetivos definidos. <

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28 maio 2025

Efeméride - 28 de maio de 1925

João Chagas morreu há 100 anos


João Chagas (1863-1925) [...] oriundo de uma família liberal emigrada ao tempo de D. Miguel em virtude das perseguições de que foi vítima. Educado em Lisboa, foi, contudo, no Porto que se iniciou no jornalismo, aos vinte anos, tendo desde logo patenteado, nas páginas d’O Primeiro de Janeiro, o talento que viria a consagrá-lo como jornalista brilhante, admirado e, também temido. [...] Após a implantação da República, foi nomeado ministro de Portugal em Paris, vindo depois a chefiar o primeiro Governo constitucional. [António Pedro Manique, in Diário de Um Condenado Político, de João Chagas, coleção «Testemunhos Contemporâneos» n.º 22. Alfa, 1990]

“Thirteen Laughing at Each Other” / “Treze a Rir Uns dos Outros”,
por Juan Muñoz, 2001

Jardim João Chagas ou da Cordoaria ou Campo dos Mártires da Pátria, Porto

Reflexões sobre Informação Clínica


Hoje, tive o gosto e a honra de fazer uma pequena palestra na ULS Médio Ave.

















20 maio 2025

Opinião pública inglesa sobre Morte Medicamente Ajudada

Análise à Opinião Pública sobre Morte Ajudada na Inglaterra

Tradução espontânea do Resumo e Conclusões do relatório 

Exploring public views on assisted dying in England

Para aceder ao texto completo original, clicar AQUI

Resumo executivo

(páginas 7-11)

  Em 2023, o Nuffield Council on Bioethics (NCOB - https://www.nuffieldbioethics.org/) convocou o primeiro Júri de Cidadãos [Tribunal Cívico] para analisar a opinião pública sobre a eutanásia na Ingla­terra. Este processo revelou que uma clara maioria dos cidadãos está a favor de uma altera­ção na lei que permita a eutanásia. Após um extenso programa deliberativo, baseado em teste­munhos de espe­cialis­tas, defensores de ambos os lados e pessoas com experiência vivida nas questões, o Júri de Cidadãos concluiu que a lei deve ser alterada para permitir a morte ajudada para pessoas com doen­ças terminais. Não considera­ram que a morte ajudada deva ser permitida em quaisquer ou­tras circunstâncias, por exemplo, em casos de sofrimento intolerável. Foram unânimes em con­cluir que, independentemente de a lei ser alterada para permitir a morte ajudada, deve haver um pro­grama significativo de investi­mento e reforma nos cuidados paliativos.

Porquê conhecer a opinião pública em Inglaterra sobre a morte ajudada?

  Quando o NCOB dialogou com especialistas do governo e do setor de políticas de saúde, ficou claro a todos que seria muito útil ter dados robustos e detalhados sobre a opinião pública para informar o debate sobre a morte ajudada.

  O objetivo deste projeto foi, portanto, obter provas credíveis e bem fundamentadas sobre a opinião em relação à morte ajudada na Inglaterra. Isto foi feito com o objetivo de gerar um debate público informado sobre o assunto e incorporar as conclusões deste debate junto dos principais decisores políticos, de modo a informar as futuras políticas e práticas em matéria de morte ajudada.

Que métodos foram utilizados?

  Foi utilizado um programa de metodologias mistas para conhecer a opinião pública sobre a morte ajudada na Inglaterra. No centro do programa esteve um Júri de Cidadãos, precedido e seguido por dois Inquéritos representativos a nível nacional.

O que é um Júri de Cidadãos?

  Os Júris de Cidadãos são um método valioso para compreender as opiniões públicas quando:

1.      A questão ou área política envolve questões complexas, incertezas ou crenças e valores contraditórios.

2.      A decisão requer uma avaliação dos compromissos entre as diferentes opções políticas.

3.      Os decisores políticos não podem elaborar ou executar políticas sem compreender os valores, princípios e crenças de um público alargado.

  As pessoas são recrutadas para os Júris de Cidadãos de forma a refletirem em linhas gerais a demografia e as atitudes prévias do público em geral. É-lhes pedido que ouçam e ponderem os dados dispo­níveis, deliberem em conjunto, utilizem os seus valores para avaliar alternativas e tomem decisões, chegando a respostas fundamentadas às questões que lhes são colocadas. Os dados provêm de testemunhos especializados que foram preparados para fazer apresentações que proporcionem ao Júri um equilíbrio justo entre as provas mais relevantes.

Questões-chave e visão geral do processo

  As principais questões colocadas ao Júri foram:
  1. A lei na Inglaterra deveria ser alterada para permitir a morte ajudada?
● Quais são as razões mais importantes a favor da legalização da morte ajudada?
● Quais são as razões mais importantes contra a permissão da morte ajudada?
  2. Se a lei for alterada para permitir a morte ajudada na Inglaterra, o que deve incluir? O que deve excluir?
  3. Se a lei não for alterada para permitir a morte ajudada na Inglaterra, há alguma recomendação ou alteração que deva ser feita nas políticas de morte ajudada?
  O Júri de Cidadãos decorreu durante oito semanas, entre abril e junho de 2024. Durante um webinar e seis sessões (quatro online e duas presenciais), os membros do Júri exploraram em profundidade o tema da morte ajudada. Os membros do Júri passaram por um processo de aprendizagem, deliberação e tomada de decisão em três fases, escalonando as suas recomendações e elaborando uma declaração dos seus princípios e principais conclusões.

Este relatório

  Este relatório final do projeto apresenta uma análise qualitativa das conclusões do Júri de Cidadãos, expondo exaustivamente as suas deliberações. Apresenta as conclusões do Júri juntamente com as de dois Inquéritos representativos a nível nacional, quando estas acrescentam um con­texto importante. Em geral, isto proporciona uma visão clara do que pensa e sente uma amos­tra amplamente representativa da população inglesa sobre o tema da morte ajudada.

Quais foram as conclusões?

  A maioria dos membros do Júri (20 dos 28 membros votantes) e a maioria dos inquiridos (69% dos inquiridos no Inquérito 1 e 70% dos inquiridos no Inquérito 2) concordaram em que a lei em Inglaterra deveria ser alterada para permitir a morte ajudada.

As três principais razões apontadas pelos membros do Júri para alterar a lei foram:
● Parar a dor
● Ter a opção de acabar com a própria vida
● Saber que pode morrer com dignidade.

  Esses pontos foram repetidos pelos participantes do Inquérito 2 que apoiam uma alteração na lei, cujas principais explicações para quererem uma alteração na lei foram as seguintes:
● Uma pessoa com uma doença terminal ou sem qualidade de vida deve poder decidir sobre a sua morte
● As pessoas não deviam ter de sofrer
● As pessoas devem ter o direito de optar pela morte ajudada.

  Escolha, autonomia e liberdade foram três conceitos fundamentais que estiveram na base das principais razões apresentadas pelos membros do Júri para alterar a lei inglesa sobre a morte ajudada.
  A análise qualitativa das deliberações do Júri de Cidadãos revelou que as razões mais importantes contra uma alteração da lei identificadas pelo Júri foram:
● A preocupação de que as salvaguardas não sejam suficientemente fortes para proteger os mais vulneráveis da sociedade contra a coação ou outras formas de pressão para que recorram à morte ajudada.
● O desvalorizar a vida à medida que a morte ajudada se torne normalizada.
● Uma constante expansão de critérios, à medida que as contestações à lei vão esvaziando os critérios originalmente bem definidos.
● Que os fundos necessários para a criação de serviços de morte ajudada sejam retirados dos recursos já limitados disponíveis para cuidados paliativos em fim de vida.

  As salvaguardas foram uma preocupação fundamental para todos os membros do Júri ao longo do processo, independentemente de concordarem ou não com uma alteração na lei. Tanto os mem­bros do Júri como os inquiridos no Inquérito 2 afirmaram que uma preocupação em relação a qualquer alteração na lei era a possibilidade de haver consequências indesejadas. Por exemplo, os membros do Júri afirmaram que não querem que a criação de um serviço de morte ajudada em Inglaterra retire fundos existentes dos cuidados sociais e paliativos.

  Os membros do Júri solicitaram o envolvimento de vários especialistas, incluindo juristas, peri­tos em assistência social e psicólogos, para a elaboração de um quadro de salvaguardas prévias à introdução de qualquer legislação. Se isso acontecer, consideraram que a sociedade teria mais confiança em que o devido processo teria sido seguido e que as pessoas vulneráveis seriam efetivamente protegidas.

Critérios para a morte ajudada

  Tanto as conclusões do Júri de Cidadãos como as conclusões do Inquérito revelam apoio a:
● Só serem elegíveis para a morte ajudada pessoas que tenham capacidade mental para tomar as suas próprias decisões.
● Restringir a morte ajudada a condições terminais.
- Os membros do Júri não chegaram a um consenso sobre um prazo específico para o prognóstico, enquanto 70% dos participantes do Inquérito 2 restringiram esse prazo a um prognóstico de seis meses.
● Excluir a doença mental dos critérios de elegibilidade para a morte ajudada.

  No que diz respeito às modalidades de morte ajudada, há também um consenso entre o Júri e os par­ticipantes do Inquérito quanto a:
● Ambos os modos de morte ajudada serem permitidos por lei, com profissionais de saúde a poderem prescrever ou administrar drogas letais destinadas a pôr fim à vida de um doente a seu pedido voluntário.
● Envolvimento dos profissionais médicos no processo de acesso à morte ajudada.
● As pessoas devem poder escolher onde querem que a morte ajudada ocorra, permitindo-lhes escolher um local onde se sintam confortáveis e seguras e possam estar com os seus entes queridos.

  Independentemente de a lei sobre a morte ajudada na Inglaterra ser alterada ou não, os membros do Júri e os participantes do Inquérito concordam em que é necessário mais financiamento, prioridade e foco na prestação de cuidados paliativos de alta qualidade, orientação e assistência emocional a todas as pessoas que se aproximam do fim da vida ou que cuidam de alguém com um diagnóstico terminal:
● Os membros do Júri manifestaram forte apoio a um aumento do financiamento destinado melhorar a qualidade e disponibilidade dos cuidados paliativos do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
● 97% dos inquiridos no Inquérito 2 pediram um aumento do financiamento para melho­rar a qualidade e a disponibilidade dos cuidados paliativos do SNS; 81% apelaram à garantia da continuidade dos cuidados com o seu médico de família e 80% ao compromisso do go­verno em apoiar os prestadores de cuidados domiciliários.

  O Júri e os participantes do Inquérito também se mostraram favoráveis a:
● Aumento do debate público aberto sobre a morte e o processo de morrer – os membros do Júri e a maioria dos inquiridos no Inquérito 2 afirmaram que deveria haver um debate na­cional contínuo para apoiar o elaboração de qualquer nova legislação e a sua aplicação.
● O Júri afirmou que apoiar um amigo ou familiar a viajar para pôr fim à sua vida numa clí­nica de morte ajudada noutro país deve ser descriminalizado. A maioria dos inquiridos no Inqué­rito 2 também apoiou esta medida.
● Os membros do Júri também querem que os profissionais de saúde possam aconselhar as pessoas que procuram morte ajudada numa clínica de morte ajudada noutro país, uma opi­nião com a qual 66% dos inquiridos no Inquérito 2 concordaram.

  Existem opiniões divergentes sobre alguns critérios de elegibilidade:
Idade:
● Alguns membros do Júri afirmaram que os menores de 18 anos deveriam ter direito à morte ajudada se tivessem uma doença terminal e o apoio dos pais para tomar essa decisão.
● Outros membros do Júri votaram contra a elegibilidade de menores de 18 anos para a morte ajudada, citando preocupações sobre a sua capacidade e maturidade para tomar uma decisão tão importante.
● No Inquérito 2, 57% apoiaram a possibilidade de morte ajudada para menores de 18 anos com uma doença terminal, mas este valor cai para 47% se a criança não tiver uma doença terminal.
Condições de residência:
● Alguns membros do Júri defendiam veementemente que apenas os residentes na Inglaterra deveriam ter direito à morte ajudada na Inglaterra.
● Para outros membros do Júri, isso não era um problema, pois afirmaram que os não resi­dentes pagariam pelo serviço, gerando receita para o SNS.
● No Inquérito 2, 51% dos inquiridos eram favoráveis a que os não residentes em Inglaterra com uma doença terminal fossem autorizados a viajar para o país para obter morte ajudada, desde que pagassem por esse serviço. 39% opunham-se a que os não residentes fossem elegí­veis para a morte ajudada.

  Os membros do Júri discutiram quais os requisitos que esperariam em diferentes fases do processo de acesso à morte ajudada, caso esta fosse legalizada.
  Entre estes incluíam-se:
● Serviços de aconselhamento facilmente acessíveis e claramente sinalizados, incluindo aconselhamento e assistência espiritual para apoiar a tomada de decisão antes de um pedido formal de morte ajudada ser feito.
● Avaliações psicológicas realizadas repetidamente para garantir que a decisão da pessoa é definitiva e que não está a ser coagida.
● Um período de reflexão: há opiniões divergentes sobre se este deve ser um período padrão ou se deve ser permitida alguma flexibilidade quando a esperança de vida do doente é curta.

  Para os membros do Júri e os participantes do Inquérito, foi essencial que qualquer nova legislação tenha:
● Limites bem definidos para proteção dos cidadãos vulneráveis e garantia de medidas de salvaguarda robustas, como partes nucleares da legislação.
● Diretrizes de aplicação incorporadas.
● Clareza sobre o que é e o que não é permitido pela lei.

 O Júri considerou que um tema tão importante para a sociedade como a morte ajudada deve ser pensado a nível social, independentemente de opiniões, interesses e preferências individuais, e ter em conta uma perspetiva de benefício público. Isto significa que os decisores políticos devem ponderar cuidadosamente se uma alteração da lei trará benefícios para a sociedade em geral.

[…]

Temas principais e conclusões

(páginas 86-87)

A lei na Inglaterra deve ser alterada para permitir a morte ajudada?

   Sim, a maioria dos inquiridos e a maioria dos membros do Júri de Cidadãos responderam que a lei em Inglaterra deveria ser alterada para permitir a morte ajudada.

   As salvaguardas e a rigorosa gestão mereceram destaque. Os mem­bros do Júri propuseram o envolvimento de diversos especia­listas na elabo­ração de um quadro de salvaguardas, antes da introdução de qualquer legislação. O objetivo é garantir a confiança da socie­dade e proteger as pessoas vulneráveis.

Quais são as razões mais importantes para uma alteração na lei?

   Ao refletir sobre as razões de princípio para uma alteração da lei, os participantes em ambos os elementos do projeto chegam a conclusões semelhantes:
● Prevenção da dor.
● Pôr fim ao sofrimento de pessoas com uma doença terminal.
● Dar segurança à escolha.

Quais são as razões mais importantes contra uma alteração da lei?

   De forma semelhante, ao refletir sobre as razões de princípio contra uma alteração da lei, os participantes partilharam a opinião de que:
● Proteger os mais vulneráveis da sociedade é fundamental, mas pode ser muito difícil de alcançar, ou mesmo impossível, se a lei for alterada.
● Aprovar uma alteração na lei poderia levar a que a morte ajudada seja vista como uma alternativa normal aos cuidados paliativos, o que con­sideraram inaceitável.
  Alguns expressaram a opinião de que é sempre errado tirar uma vida.

Se a lei for alterada, quais devem ser os critérios de elegibilidade aplicáveis?

   Tanto os participantes do inquérito como os membros do Júri apoiaram:
● Restringir a morte ajudada a pessoas com doenças terminais – com os participantes do inquérito a apoiarem um prognóstico de 6 meses e o Júri a não chegar a um acordo claro sobre os prazos.
● A doença mental deve ser excluída como critério de elegibilidade.
● Pessoas com capacidade mental para solicitar a morte ajudada – uma capacidade que é avaliada durante o processo de aprovação.
   Houve menos consenso sobre se os seguintes casos deveriam ser elegíveis para solicitar morte ajudada:
● Menores de 18 anos
● Pessoas que não são residentes em Inglaterra.

Se a lei for alterada, quais os modos e processos de morte ajudada que devem ser permitidos?

   Muitos membros do Júri concordam em que:
● Tanto a morte ajudada por um médico (prescrição) como a eutanásia voluntária (administração) devem ser permitidas.
● Os profissionais de saúde devem estar envolvidos no processo de morte ajudada.
● As pessoas devem poder escolher onde a morte ajudada pode ocorrer.
● Devem estar disponíveis serviços de aconselhamento, informação e outro tipo de apoio às pessoas que procuram e são elegíveis para a morte ajudada, bem como aos seus familiares, quando apropriado.
● É necessário um processo formal para solicitar a morte ajudada.
● Avaliações psicológicas repetidas são essenciais para garantir que a opinião do doente está definida e para testar se houve coação.
● Um período de reflexão daria à pessoa que solicita a morte ajudada a oportunidade de refletir sobre a sua decisão.
   Foram expressas várias opiniões sobre as diretivas antecipadas, com alguns a verem valor na possibilidade de expressar uma preferência antes de uma condição ser terminal e outros a temerem que o pedido possa ser mal interpretado ou ser demasiado inflexível, impedindo as pessoas de mudar de opinião quando se aproximar o momento.

Quais são as razões mais importantes para uma alteração na lei?

   Os membros do júri e os participantes do inquérito pediram:
● Melhorias substanciais nos cuidados de saúde, sociais e paliativos através do financiamento e de uma distribuição mais equitativa dos serviços.
● Um debate público continuado sobre a morte, o processo de morrer e a morte ajudada. O objetivo é sensibilizar, informar sobre as políticas e a sua implementação e garantir que os cuidados paliativos continuam a ser uma prioridade na agenda política.
● O ato de levar um amigo ou familiar para viajar a uma clínica de morte ajudada no estrangeiro deve ser descriminalizado, acabando com a incerteza.

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