01 dezembro 2022

Declaração de Malta


Declaração de Malta
sobre a Greve de Fome

[Aprovada pela 43.ª Assembleia da Associação Médica Mundial em St. Julians, Malta, em novembro 1991, revista pela 44.ª Assembleia em Marbella, Espanha, em setembro 1992, pela 57.ª Assembleia em Pilanesberg, África do Sul, em outubro 2006, e pela 68.ª Assembleia em Chicago, EUA, outubro 2017] Ver original AQUI 

PREÂMBULO

1. As greves de fome podem ocorrer em vários contextos mas dão sobremaneira origem a dilemas quando as pessoas se encontram detidas (prisões, cadeias e centros de detenção de imigrantes). São, muitas vezes, formas de protesto assumidas por pessoas que não veem outras vias de tornar conhecidas as suas reivindicações. Ao recusarem alimentar-se por um período significativo de tempo, os grevistas habitualmente esperam atingir determinados objetivos ao atraírem publicidade negativa sobre as autoridades. As recusas alimentares por pouco tempo ou fictícias raramente põem problemas éticos. Já os jejuns genuínos e prolongados têm risco de morte ou danos de saúde permanentes para os grevistas e podem pôr os médicos perante conflitos de valores. Os grevistas de fome raramente querem morrer mas alguns podem estar dispostos a tal para alcançarem as suas pretensões.

2. Os médicos precisam de estar certos das reais intenções dos indivíduos, sobretudo em greves coletivas ou em situações onde a pressão dos pares possa ser fator determinante. Há um desafio emocional quando os grevistas de fome que claramente emitiram instruções para não serem reanimados passam a um estado de perturbação cognitiva. O princípio da beneficência encoraja os médicos para os reanimar mas o respeito pela autonomia individual opõe-se a que os médicos intervenham se tiver havido uma recusa válida e informada. Isto tem sido bem tratado em muitas outras situações clínicas, incluindo na recusa de tratamentos que salvam vidas. Acresce uma outra dificuldade em contexto prisional porque nem sempre é claro se as diretivas antecipadas de vontade do grevista foram feitas voluntariamente e com a adequada informação sobre as consequências.

 Princípios

3. Dever de agir eticamente. Todos os médicos estão subordinados à ética médica no seu contacto com pessoas vulneráveis, mesmo quando não estejam em causa atos terapêuticos. Qualquer que seja o seu papel, os médicos têm de procurar evitar a coação (*) ou maus-tratos sobre pessoas detidas e devem protestar se tal acontecer.

4. Respeito pela autonomia. Os médicos devem respeitar a autonomia individual. Isto pode implicar avaliações difíceis pois os verdadeiros desejos dos grevistas de fome podem não ser tão claros como parecem. Todas as decisões carecem de força moral quando são assumidas sob ameaça, pressão de pares ou coação. Os grevistas de fome não deverão ser forçados a receber tratamentos que recusem. A alimentação forçada que contraria uma recusa informada e voluntária não é justificada. A alimentação artificial com consentimento explícito ou implícito do grevista de fome é eticamente aceitável.

5. 'Benefício' e 'prejuízo'. Os médicos devem exercer o seu saber e destreza profissional em benefício daqueles que tratam. Este conceito de ‘beneficência’ é complementado pelo da ‘não-maleficência’ ou primum non nocere. Estes dois conceitos devem estar em equilíbrio. O ‘benefício’ inclui respeitar as vontades individuais assim como promover o seu bem-estar. Evitar ‘prejuízos’ significa não só minimizar danos como também não impor tratamentos a pessoas capazes, nem as coagir a interromper o jejum. A beneficência não implica necessariamente prolongar a vida a todo o custo, sem respeito por outros valores.

Os médicos têm de respeitar a autonomia dos indivíduos capazes, mesmo nos casos em que isso previsivelmente conduza a danos. A perda de capacidade não significa que uma recusa prévia de tratamentos, incluindo a alimentação artificial, deva ser ignorada.

6. Equilíbrio entre lealdades. Os médicos que cuidam de grevistas de fome podem confrontar-se com um conflito entre a sua lealdade perante a entidade empregadora (direção do estabelecimento prisional) e a sua lealdade perante os doentes. Os médicos com dupla lealdade estão obrigados aos mesmos princípios éticos de todos os outros, o que significa que a sua primeira obrigação é para com o doente individualmente considerado. Eles continuam independentes da entidade empregadora no que diz respeito a decisões médicas.

7. Independência clínica. Os médicos devem manter-se objetivos nas suas avaliações e não permitir que terceiros interfiram na sua opinião médica. Não devem admitir ser pressionados a ponto de quebrar princípios éticos, ou seja, não devem intervir medicamente sem fundamentação médica.

8. Confidencialidade. O dever de confidencialidade é importante na construção da confiança mas não é absoluto. Pode ser ultrapassado se a não-revelação causar danos a outros. Como com muitos doentes, a confidencialidade devida a um grevista de fome deve ser respeitada a menos que este concorde com a revelação ou quando a informação for necessária para prevenir danos sérios. Se a pessoa concordar, os seus familiares e advogados devem ser informados da situação.

9. Ganhar confiança. Estimular a laços de confiança entre médicos e grevistas de fome é, muitas vezes, a chave para atingir uma solução que tanto respeita os direitos dos grevistas como minimiza a possibilidade de estes sofrerem danos. Ganhar a confiança pode criar oportunidades para resolver situações difíceis. A confiança está dependente de os médicos darem conselhos ajustados e de serem francos para com os grevistas da fome quanto às limitações do que podem e não podem fazer, incluindo nas situações em que o médico pode não garantir a confidencialidade.

10. Os médicos têm de avaliar a capacidade mental dos indivíduos que anunciam uma greve de fome. Isto implica verificar que a pessoa que pretende entrar em jejum não tem uma perturbação mental que ponha em causa a sua capacidade para tomar decisões sobre a sua própria saúde. As pessoas com capacidade mental seriamente limitada podem não conseguir avaliar as consequências dos seus atos se aderirem a uma greve de fome. As que têm problemas de saúde mental tratáveis devem ser encaminhadas para os cuidados adequados à sua condição e receber o devido tratamento. As pessoas com problemas intratáveis, incluindo défice de aprendizagem grave ou demência avançada, devem receber tratamentos e apoios que permitam capacitá-las a tomar as suas decisões de acordo com as suas capacidades.

11. Tão cedo quanto possível, os médicos devem recolher uma história clínica detalhada e exata da pessoa que pretende jejuar. As implicações médicas de quaisquer doenças existentes devem ser lhe explicadas. Os médicos devem certificar-se de que os grevistas de fome compreendem as eventuais consequências para a saúde provocadas pelo jejum e informá-los com linguagem simples dos inconvenientes. Os médicos devem também explicar como podem ser minimizados ou adiados os danos, por exemplo, com acréscimo de ingestão de líquidos e de tiamina. Uma vez que as decisões das pessoas sobre uma greve de fome podem ser dramáticas, torna-se crucial garantir a plena perceção das consequências médicas da falta de alimentos. De acordo com as melhores práticas do consentimento informado em cuidados de saúde, o médico deve assegurar-se de que o doente compreende as informações que lhe são transmitidas pedindo-lhe que repita o que lhe foi explicado.

12. Deve ser feito um exame minucioso do grevista de fome no início do processo, incluindo a medição do peso corporal. O controlo de sintomas futuros, incluindo os não relacionados com o jejum, deve ser alvo de conversas com os grevistas de fome. Devem também ser registados os valores e vontades da pessoa, no que se refere a tratamentos médicos, caso o jejum se vier a prolongar. Se o grevista consentir, os exames médicos devem ser feitos regularmente para determinada a necessidade de tratamentos. Deve ser avaliada a envolvente física para elaborar recomendações que previnam efeitos negativos.

13. A continuidade da comunicação entre o médico e os grevistas de fome é essencial. Os médicos devem certificar-se diariamente de que as pessoas desejam continuar a greve de fome e o que querem que seja feito quando estiverem em situação em que não possam comunicar. O médico deve identificar se o indivíduo, na falta de satisfação das suas exigências, está disposto a continuar o jejum mesmo até à morte. Estes dados devem ser devidamente registados.

14. Por vezes os grevistas de fome aceitam a administração de soluções salinas intravenosas e outras formas de tratamento. A recusa de certas intervenções não tem de prejudicar qualquer outro tipo de cuidados médicos, como seja o tratamento de infeções ou de dores.

15. Os médicos devem falar com os grevistas de fome em privado e longe dos ouvidos de outras pessoas, incluindo outros detidos. É essencial uma comunicação clara e, se necessário, deve recorrer-se a intérpretes não dependentes das autoridades prisionais e que também respeitem a confidencialidade.

16. Os médicos necessitam de estar convencidos de que a recusa de tratamentos ou de alimentos é uma opção voluntária do indivíduo. Os grevistas devem ser protegidos da coação. Os médicos podem frequentemente ajudar a conseguir essa proteção e devem estar atentos a que a coação pode ser exercida por grupos de colegas, autoridades ou outros, como os familiares. Os médicos e outros profissionais de saúde não devem exercer pressões indevidas de qualquer tipo sobre o grevista de fome para que suspenda a greve. Os tratamentos e cuidados com o grevista de fome não devem ser condicionados à suspensão da greve de fome.

17. Se um médico não é capaz por razões de consciência de lidar com a recusa de tratamentos e de alimentação artificial de um grevista de fome, esse médico deve tornar isso claro desde o início e encaminhar o grevista de fome para outro médico que aceite lidar com tal recusa.

18. Quando um médico toma conta de um caso, o grevista de fome pode já ter perdido a sua capacidade mental, não havendo oportunidade para negociar com ele as suas vontades sobre intervenções médicas capazes de lhe preservar a vida. Têm de ser tidas em conta e respeitadas as diretivas antecipadas de vontade feitas pelo grevista de fome. As recusas antecipadas de tratamentos devem ser respeitadas se refletirem a livre vontade do indivíduo quando capaz. É preciso ter em conta a possibilidade de, em contexto prisional, as diretivas antecipadas terem sido feitas sob pressão. Quando os médicos tenham sérias dúvidas sobre as intenções da pessoa, tais declarações têm de ser apreciadas com grande prudência. Se bem informadas e feitas livremente, as diretivas antecipadas de vontade apenas podem, geralmente, ser ultrapassadas se se tornarem inválidas por as condições em que foram feitas terem mudado radicalmente depois da perda da sua capacidade de decisão.

19. Se não é possível haver negociação com o indivíduo e não houver diretivas antecipadas de vontade ou qualquer prova ou anotação no processo clínico, os médicos têm de agir conforme o que considerem os melhores interesses da pessoa. Isto significa ter em conta as vontades previamente expressas pelos grevistas de fome, os seus valores culturais e pessoais, assim como a sua saúde física. Na ausência de qualquer comprovativo das vontades anteriores dos grevistas de fome, os médicos devem decidir, sem a interferência de terceiros, sobre se promovem ou não a sua alimentação.

20. Os médicos podem, rara e excecionalmente, considerar justificável agir contra o referido em diretivas antecipadas de vontade com recusa de tratamentos se, por exemplo, pensarem que a recusa foi feita sob coação. Se após a reanimação e recuperando as suas faculdades mentais, o grevista de fome reconfirmar a sua intenção de manter o jejum, a sua decisão deve ser respeitada. É ético permitir que um grevista de fome determinado possa morrer com dignidade e não o submeter a intervenções repetidas contra a sua vontade. Os médicos que atuam contra uma recusa antecipada de tratamentos têm de estar preparados para justificar essa ação às autoridades competentes, incluindo aos reguladores profissionais.

21. A alimentação artificial, quando usada no interesse clínico do doente, pode ser eticamente adequada se o grevista de fome capaz concordar que seja instituída. Contudo, em conformidade com a Declaração de Tóquio () da AMM, quando um prisioneiro recusa alimentar-se e é considerado pelo médico como capaz de formar um juízo racional e irrepreensível sobre as consequências de tal decisão, não deve ser alimentado artificialmente. A alimentação artificial também pode ser aceitável se pessoas incapazes não tiverem deixado diretivas antecipadas livres que a recusem, a fim de preservar a vida do grevista da fome ou de evitar uma inaptidão grave e irreversível. A hidratação retal não é e nunca deve ser utilizada como uma forma de terapia de reidratação ou apoio nutricional em doentes em jejum.

22. Quando um doente está fisicamente capaz de iniciar a alimentação oral, devem ser tomadas todas as precauções para assegurar a implementação das diretrizes mais atualizadas em matéria de reposição alimentar.

23. Todos os tipos de intervenções para a alimentação entérica ou parenteral contra a vontade do grevista de fome capaz são considerados como "alimentação forçada". A alimentação forçada nunca é aceitável do ponto de vista ético. Mesmo que pretenda ser benéfica, a alimentação acompanhada de ameaças, coação, força ou uso de restrições físicas é uma forma de tratamento desumana e degradante. Igualmente inaceitável é a alimentação forçada de alguns detidos a fim de intimidar ou coagir outros grevistas da fome a deixarem de jejuar.

O papel das associações médicas nacionais (Ordens) e da Associação Médica Mundial (AMM)

24. As Ordens devem organizar e proporcionar programas educacionais que sublinhem as dimensões éticas das greves de fome, abordagens médicas apropriadas, tratamentos e intervenções. Devem esforçar-se por atualizar os conhecimentos e competências profissionais dos médicos.

As Ordens devem trabalhar no sentido de proporcionar mecanismos de apoio aos médicos que trabalham em prisões/cadeias/centros de detenção de imigrantes, os quais podem encontrar-se frequentemente em situações de conflito e, tal como declarado na Declaração de Hamburgo () da AMM, devem apoiar quaisquer médicos que sejam pressionados a comprometer os seus princípios éticos.

As Ordens têm a responsabilidade de se esforçar por prevenir práticas antiéticas, bem como por assumir uma posição pronunciando-se contra violações éticas e investigando-as adequadamente.

25. A Associação Médica Mundial apoiará os médicos e as Ordens confrontados com pressões políticas por defenderem uma posição eticamente justificável, como estatuído na Declaração de Hamburgo.

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(*) Nota do tradutor: optamos por ‘coação’ para traduzir ‘coercion’. «Coação e coerção são sinónimos, mas não sinónimos perfeitos. A principal diferença é a seguinte: na linguagem jurídica, coerção significa a força que emana da soberania do Estado e é capaz de impor o respeito à norma legal. O termo coação não tem este significado.» in Ciberdúvidasda Língua Portuguesa
(†) Declaração de Tóquio (2016) - Diretrizes para médicos sobre a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes relacionados com detenção e prisão.
(‡) Declaração de Hamburgo (2017) - Relativa ao apoio aos médicos que se recusam a aceitar ou a participar no uso de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.