[Aprovada pela 43.ª Assembleia da Associação Médica Mundial em St. Julians, Malta, em novembro 1991, revista pela 44.ª Assembleia em Marbella, Espanha, em setembro 1992, pela 57.ª Assembleia em Pilanesberg, África do Sul, em outubro 2006, e pela 68.ª Assembleia em Chicago, EUA, outubro 2017] Ver original AQUI
PREÂMBULO
1.
As greves de fome podem ocorrer em
vários contextos mas dão sobremaneira origem a dilemas quando as pessoas se
encontram detidas (prisões, cadeias e centros de detenção de imigrantes). São,
muitas vezes, formas de protesto assumidas por pessoas que não veem outras vias
de tornar conhecidas as suas reivindicações. Ao recusarem alimentar-se por um
período significativo de tempo, os grevistas habitualmente esperam atingir
determinados objetivos ao atraírem publicidade negativa sobre as autoridades.
As recusas alimentares por pouco tempo ou fictícias raramente põem problemas
éticos. Já os jejuns genuínos e prolongados têm risco de morte ou danos de
saúde permanentes para os grevistas e podem pôr os médicos perante conflitos de
valores. Os grevistas de fome raramente querem morrer mas alguns podem estar
dispostos a tal para alcançarem as suas pretensões.
2. Os médicos precisam de estar certos das reais
intenções dos indivíduos, sobretudo em greves coletivas ou em situações onde a
pressão dos pares possa ser fator determinante. Há um desafio emocional quando
os grevistas de fome que claramente emitiram instruções para não serem
reanimados passam a um estado de perturbação cognitiva. O princípio da
beneficência encoraja os médicos para os reanimar mas o respeito pela autonomia
individual opõe-se a que os médicos intervenham se tiver havido uma recusa
válida e informada. Isto tem sido bem tratado em muitas outras situações
clínicas, incluindo na recusa de tratamentos que salvam vidas. Acresce uma
outra dificuldade em contexto prisional porque nem sempre é claro se as
diretivas antecipadas de vontade do grevista foram feitas voluntariamente e com
a adequada informação sobre as consequências.
3.
Dever de agir eticamente. Todos os médicos estão subordinados à ética médica
no seu contacto com pessoas vulneráveis, mesmo quando não estejam em causa atos
terapêuticos. Qualquer que seja o seu papel, os médicos têm de procurar evitar
a coação (*) ou maus-tratos sobre pessoas detidas e devem
protestar se tal acontecer.
4.
Respeito pela autonomia. Os médicos devem respeitar a autonomia individual.
Isto pode implicar avaliações difíceis pois os verdadeiros desejos dos
grevistas de fome podem não ser tão claros como parecem. Todas as decisões
carecem de força moral quando são assumidas sob ameaça, pressão de pares ou
coação. Os grevistas de fome não deverão ser forçados a receber tratamentos que
recusem. A alimentação forçada que contraria uma recusa informada e voluntária
não é justificada. A alimentação artificial com consentimento explícito ou
implícito do grevista de fome é eticamente aceitável.
5. 'Benefício' e 'prejuízo'. Os médicos devem exercer o seu saber e destreza
profissional em benefício daqueles que tratam. Este conceito de ‘beneficência’
é complementado pelo da ‘não-maleficência’ ou primum non nocere. Estes
dois conceitos devem estar em equilíbrio. O ‘benefício’ inclui respeitar as
vontades individuais assim como promover o seu bem-estar. Evitar ‘prejuízos’
significa não só minimizar danos como também não impor tratamentos a pessoas
capazes, nem as coagir a interromper o jejum. A beneficência não implica
necessariamente prolongar a vida a todo o custo, sem respeito por outros
valores.
Os médicos têm de respeitar a
autonomia dos indivíduos capazes, mesmo nos casos em que isso previsivelmente conduza
a danos. A perda de capacidade não significa que uma recusa prévia de
tratamentos, incluindo a alimentação artificial, deva ser ignorada.
6. Equilíbrio entre lealdades. Os médicos que cuidam de grevistas de fome podem
confrontar-se com um conflito entre a sua lealdade perante a entidade
empregadora (direção do estabelecimento prisional) e a sua lealdade perante os
doentes. Os médicos com dupla lealdade estão obrigados aos mesmos princípios
éticos de todos os outros, o que significa que a sua primeira obrigação é para
com o doente individualmente considerado. Eles continuam independentes da
entidade empregadora no que diz respeito a decisões médicas.
7. Independência
clínica. Os médicos
devem manter-se objetivos nas suas avaliações e não permitir que terceiros interfiram
na sua opinião médica. Não devem admitir ser pressionados a ponto de quebrar
princípios éticos, ou seja, não devem intervir medicamente sem fundamentação
médica.
8. Confidencialidade. O dever de confidencialidade é
importante na construção da confiança mas não é absoluto. Pode ser ultrapassado
se a não-revelação causar danos a outros. Como com muitos doentes, a
confidencialidade devida a um grevista de fome deve ser respeitada a menos que
este concorde com a revelação ou quando a informação for necessária para
prevenir danos sérios. Se a pessoa concordar, os seus familiares e advogados
devem ser informados da situação.
9. Ganhar
confiança. Estimular
a laços de confiança entre médicos e grevistas de fome é, muitas vezes, a chave
para atingir uma solução que tanto respeita os direitos dos grevistas como
minimiza a possibilidade de estes sofrerem danos. Ganhar a confiança pode criar
oportunidades para resolver situações difíceis. A confiança está dependente de
os médicos darem conselhos ajustados e de serem francos para com os grevistas
da fome quanto às limitações do que podem e não podem fazer, incluindo nas
situações em que o médico pode não garantir a confidencialidade.
10. Os
médicos têm de avaliar a capacidade mental dos indivíduos que anunciam uma
greve de fome. Isto implica verificar que a pessoa que pretende entrar em jejum
não tem uma perturbação mental que ponha em causa a sua capacidade para tomar
decisões sobre a sua própria saúde. As pessoas com capacidade mental seriamente
limitada podem não conseguir avaliar as consequências dos seus atos se aderirem
a uma greve de fome. As que têm problemas de saúde mental tratáveis devem ser
encaminhadas para os cuidados adequados à sua condição e receber o devido
tratamento. As pessoas com problemas intratáveis, incluindo défice de
aprendizagem grave ou demência avançada, devem receber tratamentos e apoios que
permitam capacitá-las a tomar as suas decisões de acordo com as suas
capacidades.
11. Tão
cedo quanto possível, os médicos devem recolher uma história clínica detalhada
e exata da pessoa que pretende jejuar. As implicações médicas de quaisquer
doenças existentes devem ser lhe explicadas. Os médicos devem certificar-se de
que os grevistas de fome compreendem as eventuais consequências para a saúde
provocadas pelo jejum e informá-los com linguagem simples dos inconvenientes.
Os médicos devem também explicar como podem ser minimizados ou adiados os
danos, por exemplo, com acréscimo de ingestão de líquidos e de tiamina. Uma vez
que as decisões das pessoas sobre uma greve de fome podem ser dramáticas,
torna-se crucial garantir a plena perceção das consequências médicas da falta
de alimentos. De acordo com as melhores práticas do consentimento informado em
cuidados de saúde, o médico deve assegurar-se de que o doente compreende as
informações que lhe são transmitidas pedindo-lhe que repita o que lhe foi
explicado.
12. Deve
ser feito um exame minucioso do grevista de fome no início do processo,
incluindo a medição do peso corporal. O controlo de sintomas futuros, incluindo
os não relacionados com o jejum, deve ser alvo de conversas com os grevistas de
fome. Devem também ser registados os valores e vontades da pessoa, no que se
refere a tratamentos médicos, caso o jejum se vier a prolongar. Se o grevista
consentir, os exames médicos devem ser feitos regularmente para determinada a
necessidade de tratamentos. Deve ser avaliada a envolvente física para elaborar
recomendações que previnam efeitos negativos.
13. A
continuidade da comunicação entre o médico e os grevistas de fome é essencial.
Os médicos devem certificar-se diariamente de que as pessoas desejam continuar
a greve de fome e o que querem que seja feito quando estiverem em situação em
que não possam comunicar. O médico deve identificar se o indivíduo, na falta de
satisfação das suas exigências, está disposto a continuar o jejum mesmo até à
morte. Estes dados devem ser devidamente registados.
14. Por
vezes os grevistas de fome aceitam a administração de soluções salinas
intravenosas e outras formas de tratamento. A recusa de certas intervenções não
tem de prejudicar qualquer outro tipo de cuidados médicos, como seja o
tratamento de infeções ou de dores.
15. Os
médicos devem falar com os grevistas de fome em privado e longe dos ouvidos de
outras pessoas, incluindo outros detidos. É essencial uma comunicação clara e,
se necessário, deve recorrer-se a intérpretes não dependentes das autoridades
prisionais e que também respeitem a confidencialidade.
16. Os
médicos necessitam de estar convencidos de que a recusa de tratamentos ou de
alimentos é uma opção voluntária do indivíduo. Os grevistas devem ser
protegidos da coação. Os médicos podem frequentemente ajudar a conseguir essa
proteção e devem estar atentos a que a coação pode ser exercida por grupos de
colegas, autoridades ou outros, como os familiares. Os médicos e outros
profissionais de saúde não devem exercer pressões indevidas de qualquer tipo
sobre o grevista de fome para que suspenda a greve. Os tratamentos e cuidados
com o grevista de fome não devem ser condicionados à suspensão da greve de
fome.
17. Se um médico não é capaz por razões
de consciência de lidar com a recusa de tratamentos e de alimentação artificial
de um grevista de fome, esse médico deve tornar isso claro desde o início e
encaminhar o grevista de fome para outro médico que aceite lidar com tal
recusa.
18. Quando
um médico toma conta de um caso, o grevista de fome pode já ter perdido a sua
capacidade mental, não havendo oportunidade para negociar com ele as suas
vontades sobre intervenções médicas capazes de lhe preservar a vida. Têm de ser
tidas em conta e respeitadas as diretivas antecipadas de vontade feitas pelo
grevista de fome. As recusas antecipadas de tratamentos devem ser respeitadas
se refletirem a livre vontade do indivíduo quando capaz. É preciso ter em conta
a possibilidade de, em contexto prisional, as diretivas antecipadas terem sido
feitas sob pressão. Quando os médicos tenham sérias dúvidas sobre as intenções
da pessoa, tais declarações têm de ser apreciadas com grande prudência. Se bem
informadas e feitas livremente, as diretivas antecipadas de vontade apenas
podem, geralmente, ser ultrapassadas se se tornarem inválidas por as condições
em que foram feitas terem mudado radicalmente depois da perda da sua capacidade
de decisão.
19. Se
não é possível haver negociação com o indivíduo e não houver diretivas
antecipadas de vontade ou qualquer prova ou anotação no processo clínico, os
médicos têm de agir conforme o que considerem os melhores interesses da pessoa.
Isto significa ter em conta as vontades previamente expressas pelos grevistas
de fome, os seus valores culturais e pessoais, assim como a sua saúde física.
Na ausência de qualquer comprovativo das vontades anteriores dos grevistas de
fome, os médicos devem decidir, sem a interferência de terceiros, sobre se
promovem ou não a sua alimentação.
20. Os
médicos podem, rara e excecionalmente, considerar justificável agir contra o
referido em diretivas antecipadas de vontade com recusa de tratamentos se, por
exemplo, pensarem que a recusa foi feita sob coação. Se após a reanimação e
recuperando as suas faculdades mentais, o grevista de fome reconfirmar a sua
intenção de manter o jejum, a sua decisão deve ser respeitada. É ético permitir
que um grevista de fome determinado possa morrer com dignidade e não o submeter
a intervenções repetidas contra a sua vontade. Os médicos que atuam contra uma
recusa antecipada de tratamentos têm de estar preparados para justificar essa
ação às autoridades competentes, incluindo aos reguladores profissionais.
21. A
alimentação artificial, quando usada no interesse clínico do doente, pode ser
eticamente adequada se o grevista de fome capaz concordar que seja instituída.
Contudo, em conformidade com a Declaração de Tóquio (†) da AMM, quando
um prisioneiro recusa alimentar-se e é considerado pelo médico como capaz de
formar um juízo racional e irrepreensível sobre as consequências de tal
decisão, não deve ser alimentado artificialmente. A alimentação artificial
também pode ser aceitável se pessoas incapazes não tiverem deixado diretivas
antecipadas livres que a recusem, a fim de preservar a vida do grevista da fome
ou de evitar uma inaptidão grave e irreversível. A hidratação retal não é e
nunca deve ser utilizada como uma forma de terapia de reidratação ou apoio
nutricional em doentes em jejum.
22. Quando
um doente está fisicamente capaz de iniciar a alimentação oral, devem ser
tomadas todas as precauções para assegurar a implementação das diretrizes mais
atualizadas em matéria de reposição alimentar.
23. Todos os tipos de intervenções para a
alimentação entérica ou parenteral contra a vontade do grevista de fome capaz
são considerados como "alimentação forçada". A alimentação forçada
nunca é aceitável do ponto de vista ético. Mesmo que pretenda ser benéfica, a
alimentação acompanhada de ameaças, coação, força ou uso de restrições físicas
é uma forma de tratamento desumana e degradante. Igualmente inaceitável é a
alimentação forçada de alguns detidos a fim de intimidar ou coagir outros
grevistas da fome a deixarem de jejuar.
O papel das associações médicas nacionais (Ordens) e da Associação Médica Mundial (AMM)
24. As Ordens devem organizar e
proporcionar programas educacionais que sublinhem as dimensões éticas das
greves de fome, abordagens médicas apropriadas, tratamentos e intervenções.
Devem esforçar-se por atualizar os conhecimentos e competências profissionais
dos médicos.
As Ordens
devem trabalhar no sentido de proporcionar mecanismos de apoio aos médicos que
trabalham em prisões/cadeias/centros de detenção de imigrantes, os quais podem
encontrar-se frequentemente em situações de conflito e, tal como declarado na
Declaração de Hamburgo (‡) da AMM, devem apoiar quaisquer médicos que
sejam pressionados a comprometer os seus princípios éticos.
As Ordens têm
a responsabilidade de se esforçar por prevenir práticas antiéticas, bem como
por assumir uma posição pronunciando-se contra violações éticas e
investigando-as adequadamente.
25. A Associação Médica Mundial apoiará
os médicos e as Ordens confrontados com pressões políticas por defenderem uma
posição eticamente justificável, como estatuído na Declaração de Hamburgo.
(*) Nota do tradutor: optamos por ‘coação’ para traduzir ‘coercion’. «Coação e coerção são sinónimos, mas não sinónimos perfeitos. A principal diferença é a seguinte: na linguagem jurídica, coerção significa a força que emana da soberania do Estado e é capaz de impor o respeito à norma legal. O termo coação não tem este significado.» in Ciberdúvidasda Língua Portuguesa
(†) Declaração de Tóquio (2016) - Diretrizes para médicos sobre a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes relacionados com detenção e prisão.