20 dezembro 2022

Sedação paliativa, o que é e como é administrada


Sedação paliativa, o que é e como é administrada

Luciano Orsi (diretor científico da Revista Italiana de Cuidados Paliativos)

Tradução espontânea do artigo 
publicado em 11-12-2022 em univadis

Casos recentes nas notícias relacionadas com o chamado “fim da vida” reacenderam a atenção sobre a sedação paliativa (SP), um procedimento terapêutico que infelizmente ainda é pouco conhecido, tanto no mundo da saúde como entre o público em geral. Esta falta de reconhecimento, também devido ao facto de até agora os currículos universitários quase nunca terem previsto o ensino sistemático de cuidados paliativos, encoraja uma certa resistência à sua implementação ou, pior ainda, uma infeliz confusão com a morte medi­camente assistida (MMA), um termo que inclui tanto a eutanásia como o suicídio medica­mente assistido. O debate mediático contribuiu frequentemente para esta confusão, em­bora em casos mais recentes tenha havido uma maior qualidade de informação e uma redução das ambiguidades semânticas e conceptuais. Isto pode também ser atribuído aos numerosos comunicados de imprensa que a Sociedade Italiana de Cuidados Paliativos (SICP) emitiu em várias ocasiões. 1 A fim de compreender a diferença entre SP e MMA, é necessário conhecer os elementos constituintes dos dois procedimentos.

Sedação paliativa

Em primeiro lugar, é necessário fazer referência à definição do procedimento terapêutico chamado sedação paliativa (SP). No documento intitulado “Recomendações da SICP sobre sedação terminal/sedação paliativa”, esta prática é definida como “a redução intencional da vigília por meios farmacológicos, até à perda de consciência, com o objetivo de reduzir ou abolir a perceção de um sintoma, de outra forma intolerável para o doente, apesar de terem sido aplicados os meios mais adequados para controlar um sintoma, que é, portanto, refratário”. 2

A refratariedade de um sintoma é entendida como a impossibilidade de o controlar ade­quadamente com tratamentos tradicionais (isto é, que não deprimem o estado de vigília), que são toleráveis, eficazes e praticáveis nas condições e no tempo disponíveis para um profissional de saúde experiente em cuidados paliativos. 2

Outro elemento definidor muito importante é o período de tempo em que a sedação pa­liativa é considerada permissível: a fase de morte iminente, que se refere aos últimos 15 dias de vida. A fase de morte iminente é também referida na literatura como “últimas horas - últimos dias”.

De acordo com dados da literatura, a sedação paliativa é realizada principalmente nos úl­timos 2-3 dias de vida.

A incidência com que é praticada é muito variável (10-43% dos doentes falecidos), de­pendendo de muitos fatores (heterogeneidade de casos, cenário, competências profis­sio­nais, atitudes culturais, etc.); os valores médios são de 12-16%. No que respeita à seda­ção profunda contínua, a incidência relatada na literatura é de 5-15%.

As indicações para iniciar SP residem tanto na ocorrência de eventos agudos envolvendo uma situação de morte iminente como no agravamento progressivo do sintoma psicofísico que se torna refratário ao melhor tratamento possível.

Os eventos agudos com risco de morte iminente são, principalmente, a angústia res­piratória devido a sufocação (por exemplo, tromboembolismo pulmonar massivo, edema pulmonar, hemorragias na árvore respiratória, inalação massiva de material gastroentérico, síndrome da veia cava superior, etc.), hemorragia maciça que se julga estar nas vias diges­tivas e respiratórias, grandes vasos no pescoço ou inguinais ou massas tumorais vegetantes, estado-de-mal epilético.

Nestes casos, a SP pode ser configurada como um tratamento de emergência devido à inevitabilidade da morte e ao extremo sofrimento psicofísico do doente. Os cenários em que estas SP de emergência têm lugar são obviamente múltiplos e incluem o ambiente doméstico, hospício ou outros ambientes de internamento, tais como residências assisti­das, enfermarias hospitalares, departamentos de emergência-urgência, unidades de cuida­dos intensivos. 2,3

Os sintomas físicos progressivamente refratários estão representados, nas doenças on­cológicas como nas crónicas degenerativas, por dispneia (35-50% dos casos), agi­tação psicomotora terminal (delírio) (30-45% dos casos), náuseas incoercíveis e vómitos por obstrução intestinal (25%) e estado-de-mal epilético; a dor é raramente referida (5%). Os sintomas podem tornar-se refratários em qualquer doença oncológica, embora ocor­ram mais frequentemente nos cancros do pulmão, do trato gastroentérico, da cabeça-pes­coço e da mama.

Entre as doenças não oncológicas, a ocorrência de sintomas refratários é mais frequente em doenças neurológicas (esclerose lateral amiotrófica, distrofias musculares, doença de Parkinson, esclerose múltipla, demência, etc.) e em doenças respiratórias crónicas, car­diomiopatias, nefropatias e doenças metabólicas. Ao contrário do que geralmente se pensa, na fase final das doenças não oncológicas, o sofrimento induzido por sintomas refratários (especialmente dispneia e delírio) é de intensidade semelhante, se não maior, ao dos doentes com cancro.

Os sintomas psíquicos são representados pelo sofrimento psicoexistencial, que em mui­tos casos é diretamente proporcional à gravidade dos sintomas físicos, mas há casos mais raros em que o sofrimento psicoexistencial está presente sem estar associado ao sofri­mento físico. Nos casos em que essa angústia é refratária aos tratamentos disponíveis (tra­tamento farmacológico ou psicoterapêutico, apoio socioeducativo e espiritual), há indica­ção para SP.

Os tipos de SP são: sedação de emergência, sedação de alívio ou sedação temporária, sedação intermitente e sedação contínua profunda.

A sedação de emergência é realizada nas fases pré-terminais imediatas em doentes que sofrem de eventos catastróficos tais como crise asfíxica, hemorragia massiva, estado-de-mal epilético, etc.

A sedação de alívio ou temporária ou de curta duração pode estar indicada em fases terminais mais precoces para induzir um alívio temporário enquanto se aguarda o benefí­cio de tratamentos destinados ao controlo dos sintomas ou, mais frequentemente, para controlar o sofrimento psicoexistencial quando o prognóstico parece ser de mais de duas semanas.

A sedação intermitente é uma sedação de alívio repetida várias vezes ou ciclicamente (por exemplo, à noite), combinada com o doente, a fim de interromper as fases de angústia mais profunda e mais intolerável. 

A sedação paliativa profunda ou sedação contínua profunda é o tipo de sedação que é mais frequentemente aplicada em cuidados paliativos e envolve um aumento progressivo do nível de sedação devido ao aumento do sofrimento e à medida que o sintoma refratário se agrava. De facto, alguns autores utilizam o termo sedação paliativa proporcional preci­samente para enfatizar este importante conceito de proporcionalidade.

Os medicamentos utilizados para implementar a SP são os sedativos, especialmente as benzodiazepinas (midazolam como primeira escolha), associados a vários neurolépticos (haloperidol in primis). Mais raramente, os barbitúricos ou o propofol são utilizados em con­dições especiais. Os opiáceos não devem ser utilizados para fins sedativos, mas podem ser associados para controlo da dispneia e da dor.

A lista de medicamentos sedativos que podem ser utilizados encontra-se em vários artigos da literatura. 2,3

Finalmente, deve salientar-se que, como o objetivo fundamental da SP é obter e manter um controlo adequado do sofrimento devido a sintomas psicofísicos, teoricamente não existem doses máximas dos sedativos. 3

Diferenças importantes

A diferença empírica e moral entre SP e MMA baseia-se em, pelo menos, três elemen­tos constituintes do procedimento: o objetivo (ou intenção), os tipos de medicamentos, dosa­gens e via de administração utilizada, e o resultado final. 1,4

De facto, o objetivo (intenção) do procedimento em SP é o controlo do sofrimento e não a indução da morte do doente, como acontece na MMA.

Quanto aos tipos de medicamentos, dosagens e via de administração utilizados em SP, estes são administrados para reduzir a perceção de sofrimento (através de uma redução proporcional da vigília) e não para a rápida indução da morte, como é o caso do MMA.

Finalmente, em relação ao terceiro elemento, o resultado final, na SP é a redução da perceção do sofrimento por meio de medicamentos sedativos, enquanto na MMA coin­cide com a morte do doente. Portanto, pode concluir-se que a SP é completamente dife­rente da MMA uma vez que esta tem, pelo contrário, o objetivo (intenção) de causar a morte do doente através da utilização de medicamentos letais, em dosagens e vias de administração adequadas de modo a causar uma morte rápida do doente e o resultado é inevitavelmente a morte do doente através da ação dos medicamentos letais.

Nos últimos anos, tornou-se claro que a hipótese de antecipação da morte ligada a SP é desmentida por estudos que, desde a revisão Cochrane, confirmam a ausência de depres­são respiratória e de antecipação da morte em doentes sedados em comparação com os não sedados. Por outro lado, há mesmo estudos que relatam uma sobrevida mais longa no grupo sedado. 5,6

Por último, é de notar que a permissibilidade legal da SP está consagrada em Itália (*) na lei desde 2017, que no Art. 2.2 indica a SP para o tratamento do sofrimento refratário (Lei 219).

ver Referências no artigo original 

(*) NT: Em Portugal temos a Lei n.º 31/2018 - Direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida: Artigo 8.º Prognóstico vital breve 1 - As pessoas com prognóstico vital estimado em semanas ou dias, que apresentem sintomas de sofrimento não controlado pelas medidas de primeira linha previstas no n.º 1 do artigo 6.º, têm direito a receber sedação paliativa com fármacos sedativos devidamente titulados e ajustados exclusivamente ao propósito de tratamento do sofrimento, de acordo com os princípios da boa prática clínica e da leges artis. 2 - As pessoas que se encontrem na situação prevista no número anterior são alvo de monitorização clínica regular por parte de equi­pas de profissionais devidamente credenciados na prestação de cuidados paliativos. 3 - À pessoa em situação de últimos dias de vida, é assegurado o direito à recusa alimentar ou à prestação de determinados cuidados de higiene pessoal, respeitando, assim, o processo natural e fisiológico da sua condição clínica.