Quando um obstetra ou parteira corta o cordão umbilical, após o nascimento de uma criança, a sala é invadida por um silêncio tenso até que o primeiro choro do bebé se ouça.
Uma vez ouvi
este silêncio numa sala de operações, onde 32 pessoas se movimentavam à espera
do nascimento de uma bebé com uma massa tumoral que lhe cobria o pescoço e a
mandíbula, o que poderia dificultar – se não mesmo impossibilitar – a sua
respiração.
Como
otorrinolaringologista pediátrico, eu estava lá para a ajudar a respirar. As
minhas memórias desse dia, e as escolhas difíceis da sua mãe sobre qual a saúde
a que deva dar prioridade, reaparecem à medida que penso nos desafios que os
pais e clínicos enfrentam agora que se fala das decisões difíceis num mundo
pós-Roe 2.
Os pais da
bebé, Jessica e Paul, sabiam que este dia chegaria. Uma ecografia pré-natal de
rotina, quando Jessica estava grávida de 22 semanas, revelou sinais de uma
complicação que tornaria o parto muito difícil, que exigiria uma cesariana
difícil e possivelmente perigosa para a mãe e um problema potencialmente fatal
para a criança. Naquele momento, o casal tivera de escolher sobre o levar a
criança até ao fim e decidira fazê-lo, aconteça o que acontecer. Simplesmente
tinham esperado que isso viesse algumas semanas mais tarde, quando o plano que
tínhamos preparado em conjunto pudesse ser melhor concretizado. Mas estávamos
todos a fazer o melhor que podíamos.
No bloco
operatório, o silêncio estendeu-se enquanto o obstetra cortava o cordão e me
entregava o recém-nascido, coberto de líquido amniótico tingido de vermelho.
Uma das enfermeiras limpou suavemente a bebé enquanto eu e a equipa da unidade
de cuidados intensivos neonatais a inspecionávamos. A massa que eu tinha visto
numa Ressonância Magnética, que tinha trazido tantos profissionais médicos para
esta sala, parecia ainda maior na vida real. O teratoma 3 do tamanho de uma bola de basebol, um crescimento
descontrolado de pele, músculo, osso e outros tecidos, escondia o pescoço e a
linha do maxilar do bebé. Ela lutou para respirar, mas não havia nenhum caminho
no seu pescoço através do qual o ar pudesse alcançar os seus pulmões. O seu
peito debatia-se com esforço acrescido, mas em vão.
Há quase duas
décadas, os cirurgiões descreveram pela primeira vez o tratamento ex utero intrapartum, EXIT [em inglês] para abreviar. Esta intervenção foi concebida para tratar um recém-nascido com uma massa
a obstruir a sua boca, pescoço ou peito que torne difícil ou impossível que
respire por si só quando é cortado o cordão umbilical. Numa intervenção EXIT, o
obstetra realiza um parto cesáreo parcial, mantendo o bebé preso ao cordão
umbilical até que um cirurgião pediátrico possa colocar com segurança um tubo
respiratório na boca do recém-nascido ou faça um orifício no pescoço para ter
um acesso diferente ao tubo respiratório – um tubo de traqueostomia – que contorne
a obstrução. Uma vez isso realizado, o bebé pode ser totalmente libertado e o
cordão umbilical cortado.
Neste procedimento, a mãe torna-se
temporariamente uma máquina de coração-pulmão para uma criança parcialmente
nascida. Se isto parece coisa da ficção científica, bem-vindo ao mundo da
medicina moderna.
Embora a intervenção EXIT contenha a
esperança de proporcionar um milagre médico, está também repleta de riscos e
envolvida de enigmas éticos.
Numa cesariana de rotina, o anestesista dá
medicamentos para diminuir o fornecimento de sangue ao útero imediatamente
antes da incisão para a retirada do bebé. Este medicamento reduz significativamente
o risco de hemorragia materna e de morte durante o procedimento. No entanto,
num procedimento EXIT, a mãe decide com a equipa dar prioridade à saúde do
bebé, de modo que, em vez de comprimir o fluxo sanguíneo, o anestesista
administra medicamentos para manter o sangue rico em oxigénio a fluir
rapidamente para o útero, através da placenta, pelo cordão umbilical, e para
dentro do bebé, mantendo-o vivo.
‘A que vida
dou prioridade?’ é uma decisão difícil que nenhuns pais desejam tomar
Escrevo isto
tendo trabalhado como médico durante anos antes de a decisão do Supremo
Tribunal sobre Dobbs vs. Jackson Women's Health Organization 4 retirar o acesso federalmente protegido ao aborto, num
Estado onde o aborto permanece legal. Por mais difíceis que estas decisões
sejam no meu hospital, estou ciente de quanto mais o serão em Estados onde uma
ecografia fetal possa identificar uma anomalia e a mãe não possa escolher se
vai ou não levar a criança a termo, onde já não terá a oportunidade de ponderar
os seus próprios riscos e benefícios com os da sua criança por nascer.
Jessica e
Paul concordaram no seu desejo de avançar com a gravidez na esperança de que
uma intervenção EXIT ajudasse a sua filha a sobreviver. Tinham feito essa
escolha às 22 semanas, quando decidiram prosseguir com a gravidez, uma decisão
que agora é ainda mais complicada em muitos Estados. Compreenderam os riscos
acrescidos de Jessica, mas sentiram que precisavam de fazer tudo o que estivesse
ao seu alcance para salvar o seu filho.
Dado o
tamanho do teratoma, tomámos a decisão de esperar até que o feto tivesse 32
semanas ou pesasse 2 quilos, pois isso permitiria a possibilidade ainda mais
dramática de colocar a bebé numa máquina de circulação extracorporal se não eu
conseguisse assegurar uma via aérea. Mas esses marcos nunca foram alcançados:
Jessica entrou em trabalho de parto prematuro com 29 semanas.
Outro
conjunto de decisões precisava então de ser tomado, e rapidamente. Uma
intervenção EXIT numa mulher que está a contrair é ainda mais arriscada para a
mãe, devido ao risco de aumento da hemorragia, e o resultado para a criança é
menos previsível, uma vez que a placenta pode não permanecer totalmente presa
ao útero durante tempo suficiente para que o oxigénio flua livremente enquanto
a EXIT é realizada. A recomendação da equipa médica foi a de realizar uma
cesariana padrão para o parto do bebé e depois fazer o nosso melhor para lhe
garantir uma via aérea segura. Jessica concordou com esta escolha. Ouvi a culpa
na sua voz e senti que estava a dar prioridade ao seu risco e à sua vida em
detrimento da do seu filho.
Tive então,
como frequentemente acontece, uma sensação de injustiça quando os pais são
forçados a tomar decisões tão terríveis. Relembrei à Jessica que, do ponto de
vista médico, a sua decisão era legítima e que a sua equipa médica a apoiava.
Foi assim que me achei a olhar para um recém-nascido com uma massa a obstruir o
seu pescoço, os seus olhos fechados e o seu peito a debater-se.
Abri-lhe a
boca e usei um instrumento chamado laringoscópio para ver as suas cordas
vocais, esperando poder colocar um tubo através delas. O teratoma tinha
empurrado as cordas para a esquerda, mas pelo menos eu conseguia vê-las. O tubo
de respiração, porém, não as atravessaria; era como se não houvesse passagem
para baixo. Ao tentar novamente, uma das enfermeiras obstetras sussurrou-me ao
ouvido que eu deveria tentar durante o tempo que achasse necessário, mas que,
se a menina não ia viver, então era muito importante deixar a sua mãe segurá-la
enquanto ela ainda estava cor-de-rosa. Fui surpreendido por esta candura
brutal, que só podia vir de alguém bem inserido num ambiente como o da
obstetrícia de alto risco, onde a morte fazia parte da vida.
Pedi a um assistente para levantar o queixo
da menina para estender o mais possível o seu pescoço, depois usei um bisturi
para cortar a pele por baixo da massa numa longa linha vertical para chegar até
ao seu tubo respiratório. Mas não o encontrava em lado nenhum. Palpei com os
dedos o pescoço dela e fui até sentir a sua coluna vertebral. Nada. Talvez o
teratoma tivesse impedido o desenvolvimento das suas vias respiratórias.
A enfermeira estava de novo no meu ouvido. “Se ela não vai conseguir, precisamos de a
levar à mãe, mas limpa”, sussurrou ela com urgência. Eu sabia que tinha de
parar, e imediatamente comecei a coser o pescoço do bebé. A enfermeira
limpou-a, colocou-lhe uma touca bordada na cabeça e enfaixou-a num cobertor
limpo tão rapidamente que, quando eu estava a cortar a última sutura, ela
levantou a criança da cama, certificou-se de que uma mão minúscula, ainda
cor-de-rosa, era visível, e levou-a até à mãe.
Duas vezes em
apenas algumas semanas, Jessica tinha precisado de fazer uma escolha entre duas
vidas: a sua e a do seu filho por nascer. No início, escolheu arriscar-se pelo
bem do seu filho. Como parte da sua equipa médica, apoiei e apoiei plenamente a
sua decisão. Depois, tudo mudou quando o bebé chegou mais cedo. O conjunto de
riscos tinha mudado e Jessica foi forçada a escolher novamente. Desta vez,
optou por dar prioridade a si mesma.
Nenhum de nós
poderia saber então o que sabemos agora, que ela iria dar à luz uma criança anatomicamente
incapaz de viver. A grande maioria das vezes, médicos e doentes simplesmente
não têm tal informação no momento e têm de tomar decisões em tempo real. Sem
uma resposta nítida, Jessica tinha de confiar na sua voz interior e a sua
equipa médica precisava de apoiar a sua escolha, mesmo que fosse contrária à
que fosse recomendada.
Não há muito
tempo, encontrei-me com uma mãe e o seu companheiro para decidir uma intervenção
EXIT, as opções e riscos, e como eles queriam proceder. Ela foi muito clara:
“Sei que algumas mães podem escolher de forma diferente e respeito isso. Eu
simplesmente não sou elas. Tenho uma criança de dois anos em casa que também
precisa de mim. Quero tentar salvar o meu bebé e quero tentar essa intervenção.
Por favor, façam tudo o que puderem. Mas se algo correr mal e se tiverem de ser
feitas escolhas durante a operação, eu escolho-me a mim”.
As
intervenções EXIT podem ser raras, mas as decisões cruciais que as pessoas e os
seus médicos tomam em conjunto não o são. Como cirurgião pediátrico, considero
meus “doentes” tanto as crianças que trato como os seus pais. Mas, exceto nas
intervenções EXIT, raramente tenho de me envolver em discussões sobre “A que
vida dou prioridade?” e “Qual a vida que deve ser posta em risco?” onde a
escolha primordial a fazer é entre mãe e filho.
Ao cuidar de
Jessica e ao trabalhar com ela sobre as suas escolhas, uma delas em caso de
crise, foi-me dada uma janela para o que atualmente se tornou um ambiente ainda
mais limitado para fazer escolhas sobre as vidas das mães e dos bebés. Em
alguns Estados, uma mãe pode ter uma ecografia mostrando que algo está
terrivelmente errado com o seu bebé e, por muito doloroso e difícil que seja o
próximo conjunto de decisões, não terá uma palavra a dizer sobre elas.
Espero que vozes como as de Jessica nunca sejam silenciadas, mas encontrem
sempre uma forma de serem ouvidas, mesmo em Estados onde se tornou difícil
envolvermo-nos legalmente neste tipo de discussões e decisões centradas no
doente.
______________________
1 “Numa decisão histórica e de grande alcance, o Supremo Tribunal dos EUA inverteu oficialmente na sexta-feira Roe vs. Wade, declarando que o direito constitucional ao aborto, defendido durante quase meio século, já não existe.” - notícia de junho de 2022.
2 Teratoma – Tumor ou massa tumoral formada por uma grande diversidade de células e tecidos estranhos à região onde estão localizados. Esses tecidos e/ou células podem ser embrionários e/ou muito diferenciados. O teratoma é um tumor que pode ser benigno ou maligno. Sinónimo: embrioma; tumor teratoide
3 Decisão de 2022 que revogou a decisão Roe vs.
Wave de 1973.
† Christopher Hartnick é otorrinolaringologista; diretor de otorrinolaringologia pediátrica e do Pediatric Airway, Voice and Swallowing Center, no Mass Eye and Ear, em Boston; e professor de otorrinolaringologia – cirurgia da cabeça e pescoço na Harvard Medical School. Este ensaio reflete as memórias das suas vivências ao longo do tempo. Alguns nomes e características tais como idade e sexo foram alterados para anonimizar as personagens e alguns acontecimentos foram encurtados.