Associação Cultural Amigos do Porto
Poucas cidades terão um tão grande conjunto de estudiosos como o Porto. Poucas suscitarão um bairrismo tão intenso, por vezes tido mesmo por irracional. Múltiplos serão os fatores que condicionam esta atração. Tentaremos neste despretensioso depoimento especular sobre alguns, numa sequência sem intenção valorativa.
A antiguidade histórica.
O povoado do Morro da Sé, ou da Pena Ventosa*, corresponde a um lugar chamado Cale que foi tomado no ano 74 a.C. Este topónimo está na origem da palavra Galiza (de Calécia) e daí houve o nome de Portugal (Portus Cale). O primeiro milénio vai decorrer com este porto estratégico submetido a vário “invasores” – romanos, suevos, visigodos, mouros e cristãos – até chegar o Condado Portucalense fundado por Vímara Peres* (século IX) e confiado a Henrique, filho do duque de Borgonha, em 1096, e depois o reino (2). Pelo meio ficaram batalhas que estarão para sempre nos livros de História e nas ruas da cidade: S. Mamede* (1128), Cerneja* (1135), Ourique* (1139), Valdevez* (1140). Um reino cuja capital não é o Porto mas cujo condado fundador aqui se fez.
A identidade.
Resultante da fixidez dos seus atuais limites, que são naturais (um rio caudaloso) e artificiais (uma estrada transformada em fronteira a circunvalar), a cidade foi alargando e ultrapassando as muralhas dos primórdios até se constituir numa unidade cercada. O sentimento de pertença que perdura nos tripeiros terá, aliás, saído reforçado pelo Cerco do Porto* (3), em 1832-33, quando das lutas entre liberais e absolutistas.
Para a consagração dessa noção de grupo coeso, com vontade inabalável, a “antiga, mui nobre, sempre leal e invicta cidade” conta com vários casos de rebeliões populares demonstrativos do sacrifício das próprias vidas. São exemplos: o cais dos Insurretos (ou Cais das Pedras*) onde se levantaram, em 1598, os tripulantes dos barcos da Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos* contrários à participação na Armada Invencível; o motim da Companhia, que vitimou os Mártires da Pátria*, em 1757, rebelados contra as ordens do governo pombalino, como relatou Arnaldo Gama* no romance histórico Um Motim há Cem Anos; os Mártires da Liberdade*, executados pelo regime miguelista em 1829, que têm o seu nome gravado no pedestal da estátua de D. Pedro IV*.
O centralismo.
A
rivalidade com a capital do país, onde impera a tradição centralista
(administrativa, política, financeira, etc.), pode explicar um linguajar que
tende para o exagero mas funciona como aglutinador pelo acumular de queixumes e
de frustrações.
O
Vinho de Porto.
A
par das variadas caraterísticas sociológicas das gentes desta terra, o burgo
reteve um perfil globalmente ligado ao comércio e acentuando os privilégios dos
burgueses, desde o reinado de D. Afonso IV (1339) até ao de D. Manuel I (1509),
com a interdição de os nobres se aposentarem dentro de muros (4). O Porto, cidade do
comércio, tem a sua marca de ouro no sucesso do Vinho do Porto, resultado das
suas especiais qualidades e da predominância da comunidade inglesa local no que
diz respeito à condução de negócios (5).
Foi um mercador do Porto chamado Afonso Martins Alho*
que assinou, em nome de D. Afonso IV, em 1353, um primeiro acordo comercial com
os ingleses (6),
é o marquês de Pombal*
quem institucionalizará a Companhia* Geral
de Agricultura e Vinhas do Alto Douro, em 1756, e será o inglês barão de
Forrester* (1809-1861) quem
mais contribuirá para a sublimação do Douro vinhateiro (7),
mas outros nomes ligados ao Vinho do Porto ficaram registados para memória
futura e confirmando a importância da bebida nas relações sociais, nacional e
internacionalmente: Adriano de Paiva*,
António Cálem*, Henrique David*, John Whitehead*,
Jorge Viterbo Ferreira*, Miguel
de Sousa Guedes*.
O
clubismo.
O
futebol arrasta, desde o século XX, multidões. Os êxitos
desportivos dos clubes portuenses, em especial do Futebol Clube do Porto*, serão talvez um dos grandes
promotores da sua saudável prática mas são, mais do que tudo, o grande cimento
que faz gritar tumultuosamente adeptos unidos em alegrias comuns. Serem Campeões
Europeus* por duas vezes faz com
que “ser portista” se tornasse sinónimo de ser portuense na alma.
A
tradição.
A
presença continuada da Igreja Católica – com uma sucessão ininterrupta de
bispos, desde D. Hugo* (1114-36),
D. João Peculiar* (1136-38) e D.
Pedro Pitões* (1145-52),
coevos de D. Afonso Henriques*,
até ao cardeal D. Américo* (1871-99),
D. António Barroso* (1899-1918),
D. António Meireles* (1929-42) e
D. António Ferreira Gomes* (1952-82), para
referir apenas os que mereceram ficar gravados em placas toponímicas – também
pode ajudar a explicar a persistência, ao longo dos tempos, de rituais
religiosos, bem como de festas populares, particularmente as dedicadas a S.
João*. Falta, é certo,
responder à pergunta de Germano Silva sobre os motivos que terão levado os
portuenses a festejar tão animadamente um “personagem tão austero” e a fazer
dele “um santo galhofeiro, pimpão, amorudo e, até, brejeiro” (8).
Convirá também recordar que embora este santo seja tanto do Porto como de
outras cidades, há um outro S. João do Porto*,
eremita, nascido do século XI na nossa cidade (9).
A
toponímia.
Os
nomes dos arruamentos portuenses traduzem uma cultura de reconhecimento de
figuras marcantes na cidade, com traços de tolerância assinaláveis ao manter na
memória coletiva alguns “vencidos” da História. Aires de Ornelas*, Costa Cabral*,
o marechal Gomes da Costa*,
Paiva Couceiro*, Pinho Leal*, o general Silveira*, Sidónio Pais*
e Teixeira da Vasconcelos* são
alguns exemplos. Sobressai, contudo, uma forte presença de nomes ligados ao
liberalismo, ao Heroísmo*
dos seus protagonistas e à Alegria*
que provocou. A cidade parece assim identificar-se não só com os conspiradores
da revolução de 24 de Agosto* de
1820 – membros do Sinédrio como Fernandes Tomás*,
Ferreira Borges* e Barros Lima* – mas também todos os que se bateram
pelo fim do absolutismo real. O rol é extenso mas vale a pena nomear alguns
próceres da liberdade: Alexandre Herculano*,
Almeida Garrett*, Anselmo Braamcamp*, Pedro de Mello Breyner*, conde de Castro*,
duque de Loulé*, duque de Palmela*, duque de Saldanha*
(aliás duplicado como marechal Saldanha*), duque
da Terceira*, Faria Guimarães*, Fontes Pereira de Melo*, Francisco da Rocha Soares*, Joaquim António de Aguiar*, José da Silva Passos*, Luz Soriano*,
Mouzinho da Silveira*, o
coronel Pacheco*, Parada Leitão*, Passos Manuel*,
Rodrigues Sampaio*, visconde de
Bóbeda*, visconde de Setúbal*, Vitorino Damásio*.
Não
podemos, contudo, deixar de salientar, de entre todos, o nome do rei de
Portugal e imperador do Brasil, D. Pedro IV*, o
que pediu que o seu coração se guardasse no Porto. Ele, que entrou na cidade em
9 de Julho* de 1832 à frente do
Exército Libertador*, que
está imortalizado na magnífica estátua equestre sita na Praça da Liberdade* e que teve uma vida fulgurante a que
não faltam episódios picantes como os relacionados com o grande número de
filhos que terá feito nascer em diversos ventres nos seus curtos 36 anos,
entremeados de crises epiléticas.
Registe-se,
a latere, que o liberalismo plasmado nas ruas e nas memórias portuenses não
se refere, como na atualidade, a contextos económicos ou sociais, antes significa,
afinal, a defesa da liberdade de escolher quem nos governa. Base democrática da
vontade popular, o liberalismo conduz sem apelo nem agravo a uma outra tónica
identitária da toponímia do Porto: o republicanismo. Na verdade, a cidade fixou
os nomes dos primeiros presidentes da República*
nascida no 5 de Outubro* de
1910: António José de Almeida*,
Bernardino Machado*,
Manuel de Arriaga* e Teófilo Braga*, mas não deixou no esquecimento os
candidatos derrotados Humberto Delgado*, Norton
de Matos* e Ruy Luís Gomes*. O que mais marca, porém, é a
quantidade de lutadores pelo ideal republicano iniciado no 31 de Janeiro* de 1891, os quais ganharam direito a
homenagem da cidade e também contribuem para a noção de “livro aberto” que faz
do Porto um caso à parte. Referimo-nos, entre outros, a pessoas como o sargento
Abílio*, Alexandre Braga*, Alfredo de Magalhães*, Alves da Veiga*,
Antero de Araújo*, António Granjo*, António Luís Gomes*, António da Silva Cunha*, Augusto Leça*,
Aurélio da Paz dos Reis*,
Azevedo de Albuquerque*, Basílio
Teles*, Cândido dos Reis*, Carlos da Maia*,
Carrilho Videira*, Carvalho de Araújo*, Corte Real*,
Dionísio Santos Silva*,
Duarte Leite*, Eduardo Santos Silva*, Felizardo de Lima*,
Francisco Xavier Esteves*, Guilherme
Braga*, Helder Ribeiro*, Jacinto Nunes*,
Jaime Cortesão*, João Chagas*, João Corregedor da Fonseca*, José Domingues dos Santos*, José Falcão*,
José Fontana*, Latino Coelho*, Leote do Rego*,
o alferes Malheiro*,
Melo Leote*, Mem Verdial*, Morais Caldas*,
Raul Dória*, Ricardo Severo*, Rodrigues de Freitas*, Sampaio Bruno*,
Santos Pousada*, Severo Portela*, Silva Ramos*.
A
portografia.
Extensíssima é a bibliografia sobre o Porto. Fiquemo-nos pela enumeração dos principais portógrafos. Alguns são já, merecidamente, topónimos: Agostinho Rebelo da Costa*, Albano Martins*, António Cruz*, Artur de Magalhães Basto*, Fernando Moreira da Silva*, Joaquim Costa*, Eugénio da Cunha e Freitas*, Horácio Marçal*. Outros, felizmente vivos e produzindo escritos memoráveis, certamente hão de ver os seus nomes cinzelados numa esquina. Destaquemos somente alguns exemplos: Arminda Santos, César Santos Silva, Germano Silva, Helder Pacheco, Joel Cleto, Luís Aguiar Branco, Manuel do Carmo Ferreira, Manuel de Sousa.
A portofilia.
São os “Amigos do Porto”*, juntos numa associação cultural criada há 74 anos (entre os seus primeiros sócios e dirigentes estavam Ângelo das Neves*, Antão de Almeida Garrett*, António Cálem*, António Cruz*, Augusto Pires de Lima*, Bonfim Barreiros*, Carlos de Passos*, Cruz Malpique*, Eugénio da Cunha e Freitas*, Júlio Brito*, Larose Rocha*), a justificação factual para mais este neologismo – portofilia, Será pouco canónico, mas quer tão-só sintetizar quanto os seus filhos idolatram a terra-mãe.
(1) Autor do Dicionário Toponímico Ilustrado do Porto, UNICEPE, 2021 (esgotado)
(2) Joana Sequeira, Como nasce uma cidade - das origens
ao Condado Portucalense, História do Porto, vol. 1, QuidNovi, 2010
(3) Hugh Owen, O Cerco do Porto contado por uma
testemunha (fac simile da edição da Renascença Portuguesa, 1915), A
Regra do Jogo, 1985
(4) Manuel de Sousa, Porto
Burgo interdito a nobres, Guias, Livraria Lello, em
portoby.livrarialello.pt
(5) António Barros Cardoso, O
ciclo do vinho, História do Porto, vol. 7, QuidNovi, 2010
(6) Germano Silva, Grande
entrevista, O Tripeiro, série nova, ano XXXV, n.º 10, p. 294, 2016
(7) Marc Barros, O “velho lavrador”
do Douro – Barão de Forrester, um ícone da região duriense, O Tripeiro,
série nova, ano XXII, n.º 2, p. 48, 2003]
(8) Germano Silva, Porto - Viagem
ao Passado, Porto Editora, 2013
(9) Fernando J.
Moreira da Silva, S. João do Porto, O Tripeiro, série nova, ano
VI, n.º 10, p. 316, 1987