01 dezembro 2022

Declaração de Córdova

Declaração de Córdova

sobre a relação médico-doente


[Adotada pela 71.ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, Córdova, Espanha, outubro 2020] 

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PREÂMBULO

A relação médico-doente é parte de um modelo de relação humana que remonta às origens da medicina. Representa uma ligação privilegiada entre um doente e um médico baseada na confiança. É um espaço de criatividade onde se trocam informações, sentimentos, visões, ajuda e apoio. A relação médico-doente é uma atividade moral que surge da obrigação de o médico aliviar o sofrimento e respeitar as crenças e a autonomia do doente. É geralmente iniciada por consentimento mútuo – expresso ou implícito – para prestar cuidados médicos de qualidade.

A relação médico-doente é o núcleo fundamental da prática médica. Tem um âmbito universal e visa melhorar a saúde e o bem-estar de uma pessoa. Isto é possível graças à partilha de conhecimentos, tomada de decisões comuns, autonomia do doente e do médico, ajuda, conforto e companheirismo numa atmosfera de confiança. A confiança é uma componente inerente da relação que pode ser terapêutica em si e por si mesma.

A relação médico-doente é essencial para os cuidados centrados no doente. Obriga a que tanto o médico como o doente sejam participantes ativos no processo de cura. Embora a relação promova e suporte a colaboração nos cuidados médicos, os doentes capazes tomam decisões que condicionam os seus cuidados. A relação pode ser terminada por qualquer uma das partes. O médico deve então ajudar o doente, garantindo a transferência dos cuidados e encaminhando-o para outro médico com competência necessária para continuar os cuidados.

A relação médico-doente é um assunto complexo sujeito a uma miríade de influências culturais, tecnológicas, políticas, sociais, económicas ou profissionais. Tem evoluído ao longo da história, de acordo com a cultura e a civilização, na busca do que é mais apropriado para os doentes com base em provas científicas, melhorando a sua saúde e bem-estar mental e físico e aliviando a dor. A relação sofreu profundas mudanças como resultado de marcos importantes como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), as declarações da Associação Médica Mundial de Genebra (1948 [2017]), Helsínquia (1964 [2013]) e a Lisboa (1981 [2005]). A relação tem progredido lentamente no sentido da capacitação do doente.

Hoje em dia, a relação médico-doente é frequentemente ameaçada por influências tanto de dentro como de fora dos sistemas de saúde. Em alguns países e sistemas de cuidados de saúde, estas influências correm o risco de afastar os médicos dos seus doentes e de, potencialmente, prejudicar os doentes. Entre os desafios suscetíveis de minar a eficácia terapêutica da relação, notamos uma tendência crescente para:

Uma invasão tecnológica da medicina, por vezes levando a uma visão mecanicista dos cuidados de saúde e negligenciando as considerações humanas;
Uma diluição das relações de confiança entre as pessoas nas nossas sociedades, o que influencia negativamente as relações nos cuidados de saúde;
Um foco principal nos aspetos económicos dos cuidados médicos em detrimento de outros fatores, colocando por vezes dificuldades em estabelecer relações genuínas de confiança entre o médico e o doente.

É da maior importância que a relação médico-doente aborde estes fatores de influência de tal forma que a relação seja enriquecida e que a sua especificidade seja assegurada. A relação nunca deve estar sujeita a interferências administrativas, económicas ou políticas indevidas.

RECOMENDAÇÕES

Reiterando a sua Declaração de Genebra, o Código Internacional de Ética Médica e a sua Declaração de Lisboa sobre os Direitos do Doente e dada a importância vital da relação entre médico e doente na história e no contexto atual e futuro da medicina, a AMM e os seus membros constituintes:

1. Reafirmam que a autonomia profissional e a independência clínica são componentes essenciais do cuidar e do profissionalismo médico de alta qualidade, protegendo o direito dos doentes a receberem os cuidados de saúde de que necessitam.

2. Instam todos os agentes envolvidos na regulamentação da relação médico-doente (governos e autoridades sanitárias, associações médicas, médicos e doentes) a defender, proteger e reforçar a relação médico-doente, baseada em cuidados de alta qualidade, como herança científica, sanitária, cultural e social.

3. Apelam aos membros constituintes e aos médicos em particular para que preservem esta relação como o núcleo fundamental de qualquer ação médica centrada na pessoa, para defender a profissão médica e os seus valores éticos, incluindo a compaixão, competência, respeito mútuo e autonomia profissional, sustentáculo de cuidados centrados no doente.

4. Reafirmam a sua oposição à interferência dos governos, outras organizações e administrações institucionais na prática da medicina e na relação médico-doente.

5. Reafirmam a sua dedicação à prestação de serviços médicos competentes, com total independência profissional e moral, com compaixão e respeito pela dignidade humana.

6. Comprometem-se a analisar fatores emergentes que possam constituir uma ameaça para a relação médico-doente e a tomar medidas para mitigar esses fatores.