01 abril 2023

Pensamento ligeiro sobre cuidados de saúde e Saúde

 

Pensamento ligeiro sobre cuidados de saúde e Saúde

John Mandrola

Tradução espontânea para distribuição sem fins lucrativos do artigo Soft thinking about healthcare and health  publicado em “Stop and Think”, 19.03.2023

O pensamento ligeiro é como uma doença contagiosa. Se não for tratado precocemente, irá alastrar e tornar-se endémico.

Pergunto-me, quase todos os dias, se sou culpado de pensamento ligeiro. Terei eu subestimado a complexidade? Aceitei provas fracas?

O problema de pensar sobre a qualidade do nosso pensamento é que produz tensão. Um dos fatores dessa tensão é que trabalhar em Medicina exige pragmatismo. É preciso, até certo ponto, seguir a corrente. Por outro lado, a grande prevalência do pensamento ligeiro faz sobressair o valor do pensamento crítico. Posso passar por niilista, estranho ou até tonto. Alguns até querem saber as motivações.


Na recente reunião do Colégio Americano de Cardiologia, soubemos os resultados de um pequeno estudo canadiano sobre o efeito da eliminação do copagamentos de medicamentos benéficos em adultos mais velhos com baixos rendimentos.

Os resultados do ensaio ACCESS (1) obrigam-nos a pensar nas crenças estabelecidas em matéria de cuidados de saúde preventivos.

Vejamos duas ideias comuns, que voltarei a abordar na secção sobre ‘lições a tirar’:

Uma delas é que os cuidados de saúde preventivos produzem saúde. Por exemplo, há estudos que mostraram que numerosos medicamentos reduzem a taxa futura de maus resultados. As estatinas, por exemplo.

A outra ideia aceite é que a redução das barreiras para conseguir que as pessoas tomem estes medicamentos não só melhora os resultados para todos como também diminui as disparidades nos resultados em saúde.

Estas foram as hipóteses testadas no ACCESS. Os investigadores canadianos selecionaram aleatoriamente quase 5 000 adultos de idade avançada, com elevado risco cardiovascular e com baixo rendimento para terem medicamentos dispendiosos gratuitamente ou tê-los comparticipados.

Os do grupo ativo tiveram os copagamentos eliminados em 15 tipos de medicamentos com reduzidas provas de resultados ao nível experimental. Estatinas, outros agentes que reduzem o colesterol, betabloqueadores, inibidores da ECA, etc. O grupo de controlo teve de desembolsar o típico copagamento de 30%.

O resultado primário foi um composto de morte, ataque cardíaco (EM), AVC, revascularização coronária ou hospitalização devido a doença cardíaca. 

Resultados:

·   A redução média do custo da isenção de copagamentos foi de cerca de US$1100 por pessoa ou US$35 por mês durante os 35 meses do ensaio.

·  A taxa do resultado primário não foi significativamente reduzida no grupo que não teve copagamentos: 521 vs. 533 eventos.

·  Nenhum dos componentes do resultado primário apresentou variações. Também não houve alterações no índice QOL (qualidade de vida) ou nos custos dos cuidados de saúde.

·    A diferença na adesão à estatina praticamente não conta (0,72 vs. 0,68). Não houve diferença na adesão aos ECA-ARA (enzimas de conversão da angiotensina/antagonistas do recetor da angiotensina).

Lições a tirar

Eis algumas conclusões importantes.

Primeiro consideremos os participantes no estudo. Os autores recrutaram as pessoas mais suscetíveis de beneficiar. Eram doentes mais velhos (74 anos de idade), com baixo rendimento e elevado risco cardíaco.

Agora consideremos a intervenção. Todos estes medicamentos têm comprovado benefício ao nível dos ensaios. Devem causar benefícios. Além disso, os medicamentos gratuitos devem melhorar a sua adesão. Os idosos de baixos rendimentos serão certamente sensíveis aos custos.

Um cenário perfeito para o sucesso. No entanto, não houve diferença nos resultados. Há uma década, eu teria ficado surpreendido. Hoje já não.

Tenho de reconhecer que – em média – é difícil mostrar que os cuidados de saúde preventivos produzem melhor saúde.

Eis as provas. A experiência dos seguros de saúde RAND (2) e Oregon (3) e a experiência Karnataka India (4) revelaram que mais cuidados preventivos não melhoraram significativamente os resultados.

Um artigo recente do JAMA (5), comparando os Estados com maior expansão da Medicaid com os Estados com menor expansão, revelou que “os adultos em idade ativa com baixos rendimentos nos Estados de baixa expansão da Medicaid tiveram maiores taxas de cobertura de seguro e pior acesso aos cuidados do que os de Estados com maior expansão; contudo, a gestão do fator de risco cardiovascular foi semelhante”.

O ensaio MI-FREE (6) concluiu que dar medicamentos gratuitos aos doentes após um ataque cardíaco não melhorou os resultados. O mesmo aconteceu com o ensaio ARTEMIS (7), que relatou que senhas para o clopidogrel, medicamento de importância vital após o ataque cardíaco, não levaram a qualquer diferença nos resultados mais adversos após um ataque cardíaco.

O ensaio ACCESS mostra exatamente o mesmo.

O desafio dos cuidados de saúde preventivos

A prevenção de doenças é muito mais complexa do que a simples adesão a medicação baseada em diretrizes.

Ora, precisamos estar à vontade com os pensamentos desafiantes no nosso cérebro. Um pensamento de base: os ensaios são reais. Num contexto controlado, com doentes selecionados e uma aleatorização adequada, os medicamentos preventivos causam taxas de eventos mais baixas.

Mas consideremos três pensamentos desafiantes:

·    Na realidade, a capacidade de aderir a medicamentos é talvez um forte indício de um indivíduo mais saudável e são outros os fatores que conduzem a melhores resultados. Por exemplo, sabemos que os quatro grandes medicamentos para a insuficiência cardíaca funcionam, mas também pensamos que a capacidade para tomar quatro medicamentos seleciona os doentes destinados a que funcionem melhor.

·  Os ensaios mostram que as nossas terapias preventivas consagradas produzem benefícios estatisticamente robustos. Mas, em termos absolutos, a redução do risco futuro é modesta. As estatinas, por exemplo, reduzem o risco relativo de eventos futuros em 25%, mas isto traduz-se numa redução do risco absoluto de 1-2% para eventos cardíacos futuros. Isto não é nada, mas a média dos 75-anos-não-selecionado-para-um-ensaio depara-se com muitos riscos conflituantes de morte. Não é só um enfarte do miocárdio não fatal ou um AVC.

·  Terceiro, e MAIS importante: a saúde depende em grande parte da sorte. A sorte de evitar acontecimentos inesperados (tumor cerebral, cancro pancreático, acidente de viação, esclerose lateral amiotrófica, etc.); a sorte de viver numa família solidária; a sorte de viver numa comunidade agradável, com passeios e jardins; a sorte de ter pais que tiveram boa saúde.

Finalmente

Não se confunda nada disto com niilismo.

Acredito firmemente que os médicos ajudam as pessoas. Ajudamos principalmente quando as pessoas se apresentam com doenças. Mas também ajudamos a prevenir doenças futuras, não só com comprimidos, mas também com conselhos sobre exercício, dieta e o não fumar.

O meu objetivo ao escrever este texto é sublinhar que o perigo do pensamento ligeiro é a sobranceria. A saúde e os cuidados de saúde são complexos.

Há muitos fatores para além da adesão à medicação no caminho causal para a boa saúde. Todos devíamos estar de acordo com isto.

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(1Eliminating Medication Copayments for Low-income Older Adults at High Cardiovascular Risk: A Randomized Controlled Trial. https://doi.org/10.1161/CIRCULATIONAHA.123.064188
(2The Effect of Coinsurance on the Health of Adults Results from the RAND Health Insurance Experimenthttps://www.rand.org/pubs/reports/R3055.html
(3The Oregon Health Insurance Experiment
(4Effect of Health Insurance in India: A Randomized Controlled Trial. 
(5) Health Care Access and Management ofCardiovascular Risk Factors Among Working-Age Adults With Low Income by StateMedicaid Expansion Status. 
(6Full Coverage for Preventive Medications after Myocardial Infarction
(7Effect of Medication Co-payment Vouchers on P2Y12 Inhibitor Use and Major Adverse Cardiovascular Events Among Patients With Myocardial Infarction: The ARTEMIS Randomized Clinical Trial