10 abril 2023

Regras simples para compreender afirmações médicas

 

Regras simples para compreender afirmações médicas
John Mandrola

Tradução espontânea do texto 
Simple Rules to Understand Medical Claims 

Um blogue de um cientista proeminente fez com que parecesse quase impossível esmiuçar as afirmações médicas. Não vejo as coisas dessa forma. 

O Professor Andrew Gelman é professor de estatística e ciências políticas. Escreve um blogue popular onde fala muito bem, especialmente sobre estudos ilusórios. Poucos intelectuais públicos têm mais credenciais do que Gelman. 

Foi por isso que fui atraído para o seu breve postal que diz respeito à dificuldade em digerir  afirmações sobre investigação. As duas alegações em questão eram sobre (a) Vitamina D e COVID-19 e (b) óleo de peixe e cancro da próstata. 

Dois leitores enviaram mensagens de correio eletrónico a Gelman para se informarem sobre os possíveis benefícios do tratamento da Vitamina D na infeção por SRA-CoV-2 e sobre o maior risco de cancro da próstata devido aos suplementos de óleo de peixe. 

Os autores destes e-mails citavam cinco estudos, três para apoiar os potenciais benefícios de tratamento da Vitamina D na COVID-19 e dois para apoiar a ligação entre o óleo de peixe e o cancro da próstata. 

A resposta de Gelman surpreendeu-me: 

   Não tenho ideia sobre o que pensar de qualquer um destes artigos. A literatura médica é tão vasta que muitas vezes parece desesperante interpretar um qualquer artigo ou mesmo a própria subliteratura. 

Na era da Internet (e agora do ChatGPT) isto pareceu-me excessivamente derrotista. Gelman diz mais: 

   Uma abordagem alternativa é procurar fontes de confiança na Internet, mas isso também nem sempre é de grande ajuda. Por exemplo, quando pesquiso no Google *cleveland clinic vitamin d covid*, o primeiro resultado é o artigo, Can Vitamin D Prevent COVID-19?, que parece relevante, mas depois noto que a data é 18 de maio de 2020. Muito se aprendeu sobre a COVID desde então, não?? Não estou a tentar atacar aqui a Clínica Cleveland, apenas a dizer que é difícil saber onde procurar. Confio no meu médico, o que é ótimo, mas (a) nem todos têm um médico de cuidados primários e (b) de qualquer forma os médicos também precisam de obter a sua informação em algum sítio. 

Esta foi a conclusão do professor: 

   Não sei qual é atualmente a melhor forma de apresentar um resumo do estado dos conhecimentos médicos sobre um determinado tópico. 

Correndo o risco de incomodar o Professor Gelman, que é claramente muito mais inteligente do que eu, proporia uma abordagem menos niilista para avaliar afirmações médicas na Internet. 

O primeiro passo implica o pensamento bayesiano. Isto é... a consideração de crenças anteriores. 

O critério mais importante quando se trata de afirmações médicas é muito simples: muitas coisas não têm resultado certo. A maioria das respostas simples estão erradas. Os seres humanos são complexos. As doenças são complexas. As causas únicas de doenças complexas como o cancro devem ser abordadas com grande ceticismo. 

Um dos estudos enviados a Gelman foi um pequeno ensaio experimental que concluiu que a Vitamina D tratou eficazmente a COVID-19. O estudo aberto de centro único inscreveu 76 doentes no início de 2020. Mesmo que este fosse o único estudo disponível, a evidência não é suficientemente forte para mudar a nossa crença prévia de que a maioria das coisas simples (como um comprimido de Vitamina D) não funcionam. 

O passo seguinte é uma pesquisa simples – o qual revela dois grandes ensaios aleatórios controlados de tratamento com Vitamina D para COVID-19, um publicado na JAMA e o outro na BMJ. Ambos foram nulos. 

Pode utilizar a mesma estratégia para avaliar a afirmação de que o suplemento de óleo de peixe leva a taxas mais elevadas de cancro da próstata. 

Comece com as crenças prévias. Como é possível que só uma exposição aumente a taxa de uma doença que afeta sobretudo os homens mais velhos? Resposta: não é muito possível. E mesmo que o óleo de peixe tenha aumentado marginalmente a taxa de uma doença, existem milhares de outras doenças que podem ser encontradas. (← é esse o problema dos rastreios). 

Agora há que ter em conta as afirmações contidas no e-mail de Gelman. 

   - Fosfolípidos séricos de ácidos gordos e risco de cancro da próstata: Resultados do ensaio de prevenção do cancro da próstata 

   - Fosfolípidos plasmáticos de ácidos gordos e risco de cancro da próstata no ensaio SELECT 

Embora ambos os estudos tenham origem em ensaios aleatórios, nenhuma das análises foi primária. Eram estudos de associação que utilizavam dados de um ensaio principal e, por conseguinte, devemos ser cautelosos ao fazer alegações causais. 

Vamos agora ao Google que nos mostra dois grandes ensaios aleatórios controlados de óleo de peixe versus terapia com placebo. 

O ensaio ASCEND de ácidos gordos n-3 em 15000 doentes com diabetes não encontrou “diferenças significativas entre grupos na incidência de cancro fatal ou não fatal, quer globalmente quer em qualquer local específico do corpo”. E eu acrescentaria: nenhuma diferença na morte por todas as causas

O ensaio VITAL incluiu o cancro como um objetivo primário. Mais de 25000 doentes foram aleatorizados. Eis as conclusões: “O suplemento com ácidos gordos n-3 não resultou numa menor incidência de grandes eventos cardiovasculares ou cancro do que placebo”.

A coluna da esquerda é dos ácidos gordos n-3. As taxas de cancro da próstata são ligeiramente superiores, mas os intervalos de confiança não revelam um sinal forte. As taxas globais de cancro e mortalidade são semelhantes. [ver tabelas no artigo original]

Não defendo que todas as afirmações sejam simples. Defendo que o processo de avaliação é um pouco menos assustador do que o Professor Gelman parece inferir. 

É claro que a ciência médica é complicada. Os conhecimentos sobre o assunto podem ser importantes. O Google e a Inteligência Artificial não podem substituir a sabedoria dos médicos experientes. 

Mas isso não significa que devamos tomar essa atitude: “Não sei o que pensar sobre estes artigos”. 

Eis cinco regras básicas que ajudam a compreender as afirmações médicas: 

1. Manter premissas pessimistas 

2. Ser supercauteloso quanto a inferências causais a partir de comparações observacionais não-aleatorizadas 

3. Procurar grandes ensaios controlados aleatorizados e concentrar-se nas suas análises primárias 

4. Saber que o que realmente funciona é geralmente óbvio (antibióticos para infeção bacteriana; desfibrilador externo automático para reverter a fibrilação ventricular) 

5. Respeitar a incerteza. Manter-se humilde sobre a maioria das alegações “positivas”. 

E sempre... arranjar tempo para Parar e Pensar. Stop and Think!