30 março 2023

A Ética da Investigação Clínica Gerir a Incerteza Persistente

 
JAMA. 2023;329(11):884-885

A Ética da Investigação Clínica / Gerir a Incerteza Persistente

Alex John London, PhD e Christopher W. Seymour, MD, MSc

Tradução espontânea do artigo

The Ethics of Clinical Research / Managing Persistent Uncertainty,

publicado em 20.03.2023

Face aos novos agentes patogénicos, ao conhecimento incompleto e ao desacordo sobre os méritos dos tratamentos médicos, a conversão do dever de cuidar em benefícios concretos para os doentes depende da nossa capacidade de agir rapidamente em função do dever de aprender.1 A aprendizagem é um processo dinâmico cujo objetivo, na investigação médica, é gerar as provas necessárias para reduzir a incerteza e levar os cuidados para uma prática mais segura, eficaz e eficiente. É também um processo social que requer a cooperação de múltiplos intervenientes, incluindo financiadores, investigadores, profissionais de saúde, sistemas de saúde, organismos reguladores e doentes. Os interesses destes intervenientes podem entrar em conflito e a exigência de equipolência (*) clínica é vista como uma forma de assegurar que a investigação promove o progresso médico sem comprometer os interesses dos participantes no estudo. O requisito de equipolência faz com que (i) as investigações dirigidas à incerteza ou às opiniões médicas divergentes de especialistas conscientes e informados são suscetíveis de ter valor social e (ii) a submissão de indivíduos a intervenções com tais conflitos ou incertezas é consistente com o respeito pelos seus direitos ou bem-estar.2 Mas quando é que a equipolência clínica deixa de ser válida?

   A importância desta questão é ilustrada pelo relatório de Naggie et al. publicado no JAMA.3 Os autores referem os resultados da plataforma Accelerating Covid-19 Therapeutic Interventions and Vaccines 6 (ACTIV-6), em que 1206 participantes com COVID-19 leve a moderada foram aleatorizados para receberem uma dose máxima de 600 μg/kg de ivermectina diariamente durante 6 dias em comparação com placebo. Este ensaio investigou uma dose mais elevada e uma duração mais longa de ivermectina do que estudos anteriores. A maioria dos participantes (84%) recebeu pelo menos 2 doses de vacina COVID-19 e 60% receberam o medicamento em estudo no prazo de 5 dias após o início dos sintomas. O tempo médio para a recuperação foi de 11 dias no grupo da ivermectina em comparação com 11 dias no grupo do placebo, não havendo benefício significativo da ivermectina para quaisquer resultados secundários ou em análises de subgrupos.

   Estes resultados são consistentes com investigações anteriores, incluindo três outros ensaios aleatórios de diferentes doses e duração da ivermectina. Apesar disso, existem presentemente mais de dez ensaios com ivermectina a recrutar participantes no portal ClinicalTrials.gov. Depois de analisarmos os fatores que podem influenciar a persistência de equipolência clínica, defendemos que as decisões sobre as investigações a empreender devem corresponder ao relativo valor social de continuar a reduzir a incerteza de uma intervenção e, também, que os intervenientes devem ponderar se o tempo, os recursos e o esforço dos participantes, sendo escassos, poderiam ser melhor utilizados analisando outras questões.

O que é Equipolência Clínica?

A equipolência clínica defende que é eticamente admissível aleatorizar participantes num estudo para receberem uma intervenção alternativa para uma dada indicação se houver incerteza ou conflito em relação aos méritos terapêuticos, profiláticos ou de diagnóstico das intervenções e não houver consenso de que os interesses dos participantes estariam mais protegidos se recebessem a intervenção alternativa. Explícita neste requisito está a ideia de que é inadmissível aleatorizar participantes para receberem formas de tratamento médico que se sabe serem piores do que uma alternativa disponível. A exigência de pareceres médicos divergentes ou de incertezas sobre os méritos relativos das intervenções promove o respeito pelo bem-estar dos participantes.

   Na prática médica e em investigação, há frequentemente mais incertezas ou desacordos profissionais do que possibilidades de realizar ensaios clínicos. A incerteza por si só não é suficiente para assegurar que os estudos colmatam uma lacuna de conhecimentos crítica para o avanço da capacidade de os clínicos e sistemas de saúde servirem os interesses dos doentes de forma eficaz e equitativa. Isto exige esforços para assegurar que as provas que um ensaio pretende atingir estejam relacionadas com uma necessidade prioritária dos doentes ou dos sistemas de saúde a eles destinados. Compreender quando a equipolência já não existe é difícil por muitos fatores, incluindo a aquisição de novos conhecimentos, a complexidade dos tratamentos médicos e as mudanças no contexto em que as intervenções são avaliadas.

Exemplos de fatores que afetam a equipolência durante a COVID-19

A pandemia revelou numerosos fracassos na produção e síntese de provas em medicina e saúde pública e vimos muitos exemplos de fatores que influenciam a existência de equipolência clínica.4

   No início da pandemia, estudos pequenos e de baixa qualidade promoveram o interesse por um punhado de tratamentos propostos para finalidades diferentes das inicialmente previstas.5 A maioria destes tratamentos mostrar-se-ia subsequentemente desprovida de valor clínico em estudos maiores e mais rigorosos. À medida que os peritos plenamente informados e conscienciosos atualizavam as suas opiniões, perante novas provas, as suas recomendações por vezes diferiam da prática comum ou das preferências dos doentes. Este tipo de incerteza ou desacordo, que reflete a aceitação incompleta de toda uma gama de comprovativos médicos disponíveis, não constitui uma equipolência clínica.

   Noutros casos, mesmo os peritos informados e conscienciosos continuaram entusiasmados com intervenções cujos méritos não foram justificados em ensaios bem concebidos. Os ensaios não testam todas as utilizações de um medicamento, apenas um específico “conjunto do tratamento” (ou seja, uma dose específica, uma duração, uma população, uma finalidade).6 Quando um tal conjunto falha, alguns proponentes podem concluir que estudar uma dose, duração ou população diferente produzirá os resultados desejados para o mesmo cenário de utilização. Por exemplo, o estudo de Naggie et al. 3 aumentou a dose e duração da ivermectina enquanto avaliava doentes e objetivos finais semelhantes a ensaios anteriores. Noutros casos, o interesse pode passar para um cenário de utilização diferente, por exemplo, do tratamento de doentes graves para a redução do curso da doença ou para a sua prevenção.

   Talvez contraintuitivamente, as mudanças no contexto clínico podem também alterar a relevância de intervenções anteriormente descartadas. Por exemplo, uma intervenção pode não demonstrar um grande efeito terapêutico no início de uma pandemia, mas após mudanças na imunidade da população e o desenvolvimento bem sucedido de tratamentos alternativos, os especialistas podem considerar se a intervenção tem um efeito terapêutico menor em doentes que recebam um melhor tipo de cuidados.

   Estes e outros fatores podem levar à persistência de incertezas ou discordâncias informadas sobre se um fármaco é suscetível de fazer parte de um tratamento eficaz. Mas, o valor social relativo da realização de investigação para resolver estas incertezas pode não persistir nestes cenários.

Gerir a incerteza persistente

Os estudos que satisfazem os requisitos de equipolência clínica para os participantes podem carecer de valor social se as lacunas de conhecimento que investigam forem de valor marginal em comparação com questões alternativas. Embora as comissões de revisão institucionais sejam incumbidas de assegurar que os protocolos não prejudicam conscientemente os participantes no estudo e não violam o dever de cuidar, o sistema que visa alinhar o dever de aprender com as lacunas de conhecimento prioritárias precisa de ser reforçado.

   Para assegurar que a incerteza ou conflito refletem um compromisso imparcial com todas as provas relevantes, as partes interessadas devem promover a produção de uma síntese abrangente através de revisões reais e sistemáticas. Apesar dos repetidos apelos a tais reformas, uma amostra aleatória de protocolos de investigação de 2022 concluiu que “nenhum continha afirmações que indiciassem uma busca sistemática de evidência clínica relevante”.7 As agências de financiamento e os conselhos de revisão institucionais deveriam exigir que as alegações relacionadas com a equipolência clínica e a importância das lacunas de conhecimento investigadas se justificam frente ao pano de fundo de tais revisões, especialmente para os casos em que o mesmo fármaco é o alvo de investigação clínica repetida para indicações semelhantes.

   O desacordo entre as partes interessadas refletindo diferentes valores e compromissos sociais é a norma, não a exceção. No entanto, a nossa capacidade coletiva de montar estudos que visem questões de saúde prioritárias é fundamental para a integridade da investigação médica, utilizando métodos suficientemente rigorosos para que as suas conclusões sejam suscetíveis de mudar o entendimento e a prática dos especialistas. A incerteza razoável pode persistir, mas à medida que as provas amadurecem, as partes interessadas devem assegurar-se de que o tempo e os recursos escassos e o envolvimento de doentes se compaginem com as lacunas de conhecimento mais suscetíveis de favorecer os interesses fundamentais dos doentes.

ver afiliações dos autores e referências no artigo original

(*) NT: «Equipolência é a tradução para o português da palavra inglesa Equipoise. [...] A sua utilização na Ética da Pesquisa foi proposta pelo filósofo Benjamin Freedman em 1987 (Equipoise and the ethics of clinical research. N Engl J Med 1987 Jul 16;317(3):141-5) para explicar o estado no qual especialistas em uma determinada área ficam indecisos entre diversos tratamentos possíveis. [...] A Equipolência não implica uma equivalência entre os métodos ou procedimentos, mas sim um estado de incerteza, de falta de convicção para estabelecer uma escolha.» José Roberto Goldim