30 março 2023

A demência frontotemporal de Bruce Willis não é a demência do vosso avô

 

A demência frontotemporal de Bruce Willis não é a demência do vosso avô

Michael Merzenich *

Tradução espontânea do artigo,
publicado na Medscape, em 20 de março de 2023

Quando li a notícia de que Bruce Willis tinha revelado o seu diagnóstico de demência frontotemporal (DFT), lembrei-me que todos nós corremos o risco de passar os nossos últimos dias perdidos num pântano neurológico. O que é digno de nota no pântano a que chamamos DFT é que se trata de um tipo de demência algo raro e invulgar. Tendemos a caracterizar a demência como a erosão da memória, mas a DFT é mais caracterizada pela perda de controlo sobre as emoções e outras funções cognitivas. O que é especialmente trágico para artistas como Willis é a perda da fluência verbal necessária para a interpretação dos seus papéis.

Demência Frontotemporal

Para este espectador ocasional, Bruce Willis era uma força quase invencível, vigorosa, vital, um dos “imortais”. Infelizmente, com o seu diagnóstico de DFT, sabemos que mesmo um duro como Willis, agora com apenas 67 anos de idade, pode ter de suportar anos de declínio progressivo. Se a doença seguir o seu caminho típico, isso incluirá provavelmente desligar-se lentamente e perder progressivamente o juízo e controlo emocional, bem como perder a compreensão razoável do que está a acontecer ou porquê. Pode também sofrer uma deterioração progressiva do controlo das funções corporais e da saúde em geral.

A maioria das pessoas com demência perde as suas capacidades neurocognitivas por uma série de vias diferentes, todas elas resultando em diminuição do cérebro, desconexão, neuropatologia óbvia, expressões neurocomportamentais de perda e manifestações de confusão. A doença de Alzheimer lidera a lista como a forma mais comum de demência, mas demências vasculares, demências com corpos Lewy, demências “mistas”, demências associadas a Parkinson, Huntington ou outras doenças, demências resultantes de alcoolismo ou outras agressões cerebrais, doença de Lyme, VIH  ou uma série de outras infeções cerebrais ou de encefalopatias traumáticas (crónicas ou recentes) estão presentes em qualquer clínica de neurologia ativa. Estas são as chamadas “demências do avô” – os tipos mais frequentemente associados à velhice.

A demência frontotemporal é uma variante particularmente interessante por várias razões. Primeiro, surge habitualmente em indivíduos relativamente jovens, com sintomas iniciais pelos 50 ou 60 anos. Na maioria dos casos, não há qualquer explicação genética e, com raras exceções, sem qualquer outra explicação de origem – exceto a velha resposta médica: má sorte.

Em segundo lugar, a DFT tem pouco impacto inicial na memória mais ampla do doente e nas capacidades cognitivas associadas. O doente tropeçará para chegar à palavra seguinte e acabará por lentificar o seu discurso à medida que o seu cérebro se debate com a fluência verbal; lutará para traduzir os seus sentimentos e emoções em ações rápidas e apropriadas expressas na sua mente e no seu corpo físico, enquanto a sua memória parecerá intacta.

Em todas as outras demências, as perdas cognitivas podem ser profundas, enquanto o controlo social e emocional e a produção volúvel da fala são geralmente mais bem mantidas.  Imagine o impacto que estas lutas na fluência verbal e na calibração e resposta emocional devem ter num ator experiente. Segundo todos os testemunhos, Willis prosseguiu vigorosamente o trabalho que amava até ao momento do seu diagnóstico de demência, mesmo quando os seus colegas viram quase de certeza que ele estava a lutar. Infelizmente, a falta desse tipo de autoconhecimento é uma consequência esperada da DFT.

A Rede de Saliências e os Neurónios von Economo

Terceiro e mais intrigante para um ‘cromo’ neurocientífico, como eu, é que os doentes com DFT sofrem uma perda inicial de uma população especial de neurónios corticais localizados dentro da rede de saliências do nosso cérebro, os chamados neurónios von Economo. Essa rede está concebida para ler e avaliar rapidamente os nossos pensamentos e emoções complexas e, através desses neurónios, iniciar respostas neurológicas e físicas adequadas.

Partilhamos este instrumental com grandes símios, baleias, elefantes e algumas espécies de mamíferos especialmente sociais.

Quando vemos ou ouvimos ou sentimos algo que induz medo, alarme ou uma potencial recompensa, a rede de saliências no nosso cérebro atua como uma espécie de porteiro. Primeiro, avalia a situação emergente ou em mudança, depois inicia rapidamente uma resposta emocional e física. Ao sentar-me com um doente em óbvia aflição no meu consultório, a minha rede de saliências aciona um sinal de alarme empático. O meu cérebro e o meu corpo ajustam-se imediatamente para iniciar reações simpáticas adequadas. Os neurónios von Economo – aqueles mesmos neurónios que morrem significativamente num cérebro com DFT – são os vetores deste sistema de resposta rápida de emoções e de sinais corporais complexos.

A resposta emocional controlada está no âmago da nossa humanidade. É um triste dia quando a perdemos.

Noutras condições clínicas neurológicas marcadas pela perda de células cerebrais específicas, diferentes formas de “atrofia por falta de uso” estão em parte na sua origem. Não sabemos se é esse o caso da demência frontotemporal. Os cientistas têm demonstrado que formas específicas de exercícios cerebrais computorizados podem aumentar acentuadamente os níveis de atividade na rede de saliências, o que está ligado a melhorias no controlo regulatório do sistema nervoso autónomo – um dos principais alvos mediadores de resposta dos neurónios von Economo da rede.

Curiosamente, os gerontes que mantêm a saúde do corpo e do cérebro na casa dos 90 (e mais além) morrem com um conjunto completo de neurónios von Economo a operar alegremente numa rede de saliências ainda vigorosa.

Enquanto neurocientista posso antever que chegaremos a um dia em que avaliaremos rotineiramente a integridade deste importante sistema cerebral e manteremos de forma mais fiável a sua boa saúde. Manter esses neurónios muito especiais vivos teria provavelmente permitido que Willis se mantivesse em palco e na sua melhor forma durante muito tempo. Infelizmente, como tantas coisas na medicina, é só uma promessa. Mas neste momento para este famoso doente, a nossa ciência médica atual parece estar um dia atrasada e ter um dólar a menos.

* Michael Merzenich, PhD, é frequentemente creditado pela descoberta da plasticidade ao longo da vida, sendo o primeiro a aproveitar a plasticidade para benefício humano (na sua co-invenção do implante coclear), e por ser pioneiro no campo do exercício cerebral computorizado baseado na plasticidade. É professor emérito na UCSF e Laureado Kavli em Neurociência, e tem sido homenageado pelas Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina dos EUA. É mais conhecido por uma série de programas especiais sobre o cérebro na televisão pública. O seu foco atual é BrainHQ, uma aplicação de exercício cerebral.