02 março 2023

Pensamentos sobre a palavra "contra"

 
Pensamentos sobre a palavra "contra"
John Mandrola

Tradução espontânea do texto 
 
Por vezes dizem que sou do contra. Isso pode ser um rótulo tanto positivo como negativo.
O positivo é que, às vezes, ser do contra acaba por ser o correto. E, mesmo quando o futuro é desconhecido, o debate incerto, uma visão contrária serve para combater o singelo pensamento de consenso. Caso não tenha percebido, o pensamento consensual é comum em Medicina.
O negativo é que ser chamado do contra muitas vezes pode ser usado como um pejorativo: essa pessoa é niilista e não acredita em nada. Deixem-me explicar.
A história moldou a minha visão do mundo da ‘evidência’ médica.
Quando comecei na faculdade de Medicina, o consenso sustentava que usávamos drogas antiarrítmicas em doentes que tinham acabado de ter um ataque cardíaco. Não podíamos falar contra essa prática. No entanto, esse consenso revelou-se mortal quando estudado em ensaio clínico aleatório e controlado. O número necessário para matar doentes com essa prática foi de 29.
Nesses tempos, na enfermaria, como em ambulatório, o consenso sustentava que deveríamos usar terapia de reposição hormonal em mulheres na pós-menopausa para reduzir os incidentes cardíacos. E isso também se mostrou prejudicial no estudo aleatório da Women's Health Initiative.
Na clínica privada, a prática comum sustentava que doentes com baixa frequência cardíaca deveriam ter pacemakers, independentemente dos sintomas. Aprendemos então que os sintomas devem orientar o implante do pacemaker – não um qualquer número.
Na reunião do ACC da próxima semana, você lerá estudos sobre a prática comum de restrição de sódio em doentes com insuficiência cardíaca. Prevejo que temos de apertar os cintos de segurança.
Poderia continuar e continuar. O ponto é que viver estas contradições afeta as crenças anteriores. Os proponentes de novas terapias, os autores de estudos observacionais, os especialistas, são bastante hábeis em enquadrar novos desenvolvimentos como revolucionários. [NT: culto também conhecido por “primeiravezismo”]
Mas... tenho cá na minha cabeça essa voz histórica falando comigo. Pergunto-me se essa coisa nova é semelhante a muitas das outras reversões.
O problema central que temos em 2023 é que obtivemos tantos ganhos que o verdadeiro progresso é bastante difícil.
Quando aprendemos a parar os ataques cardíacos com stents de emergência, o número de doentes com insuficiência cardíaca caiu a pique. A vida se estendeu. Quando desenvolvemos quatro classes de medicamentos para insuficiência cardíaca, o número de doentes que morriam de insuficiência cardíaca também caiu. É o mesmo na terapia do cancro. Doentes que teriam morrido em décadas passadas agora vivem até a velhice.
O cardiologista de hoje enfrenta uma questão diferente do cardiologista dos anos 1990. Hoje, a questão não é se podemos fazer algo (reparar uma válvula mitral, fazer ablação numa arritmia, implantar um desfibrilador), mas se devemos fazê-lo.
Qual é o verdadeiro valor dessas coisas novas?
O valor é claro quando um jovem está a ter um ataque cardíaco: põe-se a pessoa no bloco e abre-se a artéria. Uma questão muito diferente, no entanto, surge quando um doente de noventa anos com doença renal crónica e demência é admitido por causa de uma válvula aórtica estenótica. Claro, podemos colocar uma nova válvula, mas devemos?
O progresso hoje é muitas vezes vendido como muito importante, mas na realidade é incremental.
Um bom exemplo: esta semana, no Journal of the American Medical Association, dois estudos mostram que um cateter de ultrassons pode levar energia ao rim e isso reduz a tensão arterial em cerca de 6 mmHg ao longo de 2 meses.
A ideia de que um procedimento poderia reduzir a TA é fixe. A tensão arterial elevada é um problema importante. E as pessoas odeiam tomar medicamentos durante muito tempo. Assim, a desnervação renal com cateteres é um possível progresso.
Mas o grau de redução da TA (6 mmHg) desse novo cateter poderia ser facilmente obtido com mudanças simples no estilo de vida ou um medicamento genérico que custa centavos. Decisivamente, o tratamento da pressão arterial elevada não é para 2 meses ou 2 anos, mas 20-40 anos.
Este dispositivo pode passar na FDA. Se isso acontecer, os médicos vão adotá-lo. As forças do mercado são enormes.
No entanto, não saberemos o seu valor.
Portanto, serei bastante crítico deste artigo, não porque seja um mau artigo. Não é. Mas porque é muito cedo para começar a usar esta terapia. Precisamos de mais dados.
Por essa crítica, alguns dirão que sou do contra – Mandrola não acredita!
Aceito esse rótulo – totalmente.
Mas tenham a certeza, quando a novas intervenções passam em testes, sou dos primeiros a adotá-las.
Quero ajudar os meus doentes. Gosto de coisas que funcionam. O problema é que encontrar coisas novas que realmente funcionem é difícil.
Precisamos de contrariar, agora mais do que nunca.