27 fevereiro 2023

"Pão e Rosas" - Resposta à crise do cuidar


Resposta à crise do cuidar
London, UK // Mayo Clinic, Rochester, Minnesota, USA

Tradução espontânea do artigo de opinião 
publicado em 23.02.2023

    Os cuidados de saúde estão em crise na maior parte do globo e talvez, especialmente, nos nossos dois países – Estados Unidos e Reino Unido, ambos, parecem mais desunidos do que nunca perante a ganância e a falta de cuidado que conduzem à polarização socioeconómica e política e à degradação sistemática do nosso planeta.

   Há duas respostas possíveis para esta crise.

   A primeira pressupõe que se trata simplesmente de uma crise de organização, eficiência, informação, tecnologia e escala. Vê as pessoas como máquinas biológicas insuficientemente estudadas, como nuvens de dados escassa­mente detalhadas, como fisiologias inadequadamente monitorizadas e reguladas. A cada vez mais impiedosa onda leva-nos a acreditar que, se a indústria dos cuidados de saúde pudesse aceder e utilizar os dados biomédicos e socioeconómicos de todos, então as nossas necessidades poderiam ser previstas e um futuro saudável seria asse­gurado para todos. A indústria já está a estender a mão através da venda de dispositivos tecnológicos nos pulsos e nos bolsos, nas casas e no trabalho, encorajando os seus consumidores a agir, persuadir, coagir ou atrair outros para prevenir a doença e o sofrimento; esquecendo-se sempre de que, no final, todos devem morrer. A ciência biomédica e a máquina de descobertas de tecnologia produzem testes e tratamentos a serem prescritos por chatbots a consumidores isolados, sem os atritos e custos de ter de lidar com outras pessoas. Estão preparados para operar em sistemas de saúde a escalas de velocidade e alcance que só podem ser atingidos quando abandonamos a ideia de que os cuidados são apenas possíveis entre pessoas. Esta resposta alimenta o envolvimento cada vez maior das grandes empresas comerciais e gestoras de dados nos cuidados de saúde, e impulsiona o consumo crescente de produtos farmacêuticos e tecnologia médica, tudo isto ignorando deliberadamente as consequências para o planeta.

   A segunda resposta assume que se trata de uma crise de cuidados em e de si mesma. Os cuidados acontecem no espaço entre as pessoas, num encontro sem pressas. Só os seres humanos em interação se podem importar. É nesta interação que um repara num problema do outro e procura responder à situação difícil do outro para a melhorar. Nos cuidados de saúde, esta tomada de consciência vai além do biológico para apreciar o biográfico, e, plenamente consciente de que os corpos não são máquinas e que as emoções – tanto positivas como negativas – exercem uma poderosa influência em todos os aspetos da saúde. Vai além do que torna a vida possível, tem em conta o que torna a vida significativa. Cuidar não é apenas aderir a diretrizes baseadas em provas para melhorar as métricas a nível populacional. O trabalho de cuidar descobre ou inventa formas de avançar. O esforço de cuidar fomenta a esperança de que a situação possa ser melhor no futuro. O resultado é um caminho para o futuro coincidente com a intenção de confortar sempre, algo que vai desde a cirurgia complexa até ao acompanhar os que estão a morrer, vai da cura ao alívio. Esta resposta é humana, pelo que está repleta de atritos, mergulhada numa incerteza radical, mas resiliente à desilusão recorrente graças às relações pessoais estreitas em que os cuidados acontecem.

   Neste Verão, ambos lemos o último livro de Rebecca Solnit, Orwell's Roses1, que ela se abalançou a escrever quando descobriu que George Orwell não só relatara os retratos mais sombrios e poderosos dos regimes totali­tários do século XX2, como também plantara roseiras, custando-lhe sessenta cêntimos cada uma em Woolworths. Esta aparente contradição entre uma visão de mundo sombria e o ato esperançoso da jardinagem, lem­brou a Solnit o lema político “Pão e Rosas” que parece ter surgido nos EUA por volta de 1910 e foi utilizado por mulheres que faziam campanha pelos votos das mulheres e pelos direitos dos trabalhadores. Descrevendo o poder da frase, Solnit escreveu:

“O pão alimentou o corpo, as rosas alimentaram algo mais subtil: não apenas corações, mas imaginações, psiques, sentidos, identidades. Era um bonito lema, mas também um argumento contundente de que algo mais do que sobrevivência e bem-estar corporal eram necessários e estavam a ser exigidos como um direito. Era igualmente um argumento contra a ideia de que tudo o que os seres humanos precisam pode ser reduzido a bens e condi­ções quantificáveis e tangíveis. As rosas nestes gritos representavam a forma como os seres humanos são complexos, os desejos são irredutíveis, que o que nos sustenta é muitas vezes subtil e fugidio.”

   “Pão e rosas” é o que os humanos envolvidos nos cuidados – o doente e o profissional de saúde – querem dos cuidados de saúde. Pão é sustento e, portanto, vida; rosas são coragem e esperança, curiosidade e alegria, e tudo o que faz uma vida valer a pena viver. O pão é biologia; as rosas são biografia. O pão é negociável e tecnocrático; as rosas são relacionais. O pão é ciência; as rosas são cuidados, bondade e amor.

   “Pão e rosas” também pode descrever como os cuidados de saúde podem proporcionar o cuidar. Pedido desculpa àqueles que cozem os seus próprios pães, o paralelo aqui é com a produção industrial de pão, de modo que o pão representa os processos burocráticos que tornam os cuidados de saúde eficientes e seguros, evi­tando desperdícios e erros através da normalização, regulação e formação. Cozer pão é como as tecnologias e inovações que tornam possíveis e viáveis conversas sem pressa e a continuidade dos cuidados de saúde, que redu­zem os erros de diagnóstico, detetam e corrigem os danos de forma precoce e fiável. Cuidar do pão assegura que os cuidados de saúde mantêm o potencial para alcançar o objetivo do cuidar, do corpo e da mente, de lidar com os medos e sentimentos dos doentes e de criar condições para o surgimento de cuidados atenciosos e carinhosos.

   As rosas representam o que faz a vida valer a pena, tudo o que é bom nas relações humanas, e as histórias que usamos para dar sentido às nossas situações desesperadas e ao que é possível com o tratamento. As rosas são o que nos dá conforto perante o fracasso, a dor, a decadência e a morte, ou seja, perante a vida. Atender às rosas leva ao sujeito dos cuidados o verdadeiro alívio para que as marcas da injustiça, do racismo, da desigualdade e da violência possam ser vistas como as marcas das doenças. As rosas, tal como os cuidados atenciosos e cari­nhosos3, falam de esperança – o nosso trabalho de plantar e criar condições de luz, solo e água que tornam possível que uma flor apareça no futuro. Tal como as rosas, os cuidados não podem ser chamados ou incitados, mas devem emergir das condições certas.

   Os cuidados de saúde industrializados pós-pandémicos são, na sua maioria, uma dura tarefa impulsionada de fora por uma obsessão com os números. Isto está a causar danos morais generalizados ao coagir os pro­fissionais a darem prioridade a cada vez mais intervenções que sabem ser fúteis, banindo ao mesmo tempo qualquer vestígio de uma rosa para os doentes, ou para quem tenta cuidar deles. O patamar moral dos cuidados de saúde industrializados está cada vez mais em desacordo com os imperativos éticos e morais do trabalho real de cuidar dos doentes. O resultado só pode ser dissonância cognitiva e dano moral, desencanto e revolta, desintegração e fuga. Como diz Rebecca Solnit1, a ética do cuidar é menosprezada,

“...trivial, irrelevante, indulgente, inútil, confusa ou qualquer daqueles outros pejorativos com os quais o quan­tificável arrasa o não-quantificável”.

   Já nos tínhamos esquecido dos limites da indústria e da tecnologia. Deixámos que algumas formas de progresso e crescimento material prevalecessem sobre a dignidade, a justiça, a solidariedade e a sustentabilidade. Uma aten­ção excessiva ao pão deixou-nos com a impressão de que o cuidado é um recurso finito, a sua escassez exigindo a sua administração, regulamentação e racionamento. Estamos a viver com as consequências dos paraísos pavimen­tados de Joni Mitchell4, percebendo como os cuidados de saúde se sentem quando o cuidar desaparece, quando os prestadores de cuidados não só se desgastam como aparecem para cuidar dos doentes estando eles próprios esgotados, quando os doentes procuram cuidados, mas o plano de negócios e o algoritmo prescrevem uma cruel indiferença.

   Como responder a esta crise do cuidar?

   Neste caso, o próprio Orwell detém a pista. A descoberta de que Orwell tinha plantado aquelas rosas levou Solnit a repensar o seu romance 1984. Dentro de toda a cinzentismo, crueldade e opressão, existe esta grande verdade:

“O que importava eram as relações individuais e que um gesto inofensivo, um abraço, uma lágrima, uma palavra dita a um agonizante, pudesse ter valor em si mesmo”.2

   Toda a alegria, todas as rosas da saúde, mesmo nestes tempos difíceis, existe nas relações, entre doentes e pro­fissionais, entre colegas; no conhecimento seguro de que todos estes gestos têm valor em si mesmos.

   Acontece que a coisa subversiva, quase revolucionária, a fazer dentro dos cuidados de saúde contemporâneos é construir, silenciosa e discretamente, estas relações cruciais. Sabemos hoje que a continuidade dos cuidados, numa relação única entre doente e médico, atrasa a doença e prolonga vidas5 e, assim, proporciona o pão, mas fá-lo dando-nos simultaneamente as rosas da alegria, confiança, curiosidade, cuidado, gentileza e solidariedade. Uma vida que vale a pena viver tende a durar mais tempo.

   Na verdade, o cuidar, tal como o amor, é abundante e autossustentável, um potencial de todos. Treinado e cele­brado, o cuidar é uma capacidade humana exigente que se expande com a satisfação de ter optado por correr contra a dor, que se reabastece com o sorriso e a gratidão com que avaliamos a nossa eficácia, que se regenera quando os cuidados, e o amor, regressam aos prestadores de cuidados quando estes, invariavelmente, têm de ser benefi­ciários de cuidados. O cuidar, tal como as rosas, dá sentido à vida. Temos de o cultivar.

   No combate à nossa saída desta crise dos cuidados de saúde, ao trabalharmos por cuidados atenciosos e carinho­sos para todos, temos de seguir as sufragistas e exigir “pão e rosas”. 



1 Solnit R. Orwell’s Roses. Viking, 2021.
2 Orwell G. Nineteen Eighty-Four: Martin Secker & Warburg, 1949.
3 Montori V. Why We Revolt: a patient revolution for careful and kind care: The Patient Revolution, Inc. 2017.
4 Mitchell J. Big Yellow Taxi. Ladies of the Canyon: Reprise Records, 1970.
5 Pereira Gray DJ, Sidaway-Lee K, White E, Thorne A, Evans PH. Con­tinuity of care with doctors-a matter of life and death? A systematic re­view of continuity of care and mortality. BMJ Open 2018;8:e021161. doi: 10.1136/bmjopen-2017-021161. pmid: 29959146

07 fevereiro 2023

O rei vai nu?

Público, 07.02.2023

Então, ele virou-se para mim e disse-me assim:

– É sabido que uma opinião maioritária não é garantia de ser a mais correta.

– Concordo, mas um órgão deliberativo tem forçosamente de tomar decisões por maioria dos seus membros – estou a lembrar-me do Parlamento…

–  E do coletivo de um Tribunal.  E um órgão consultivo também aprova Pareceres por maioria.

– Claro. Em qualquer caso, pode acontecer que as opiniões minoritárias sejam afinal as melhores. É aí que queres chegar?

– Não. Estava a lembrar-me que uma opinião maioritária num órgão pode ser minoritária noutro, como se estivesse certa num lado e errada noutro…

– Talvez seja por isso que há as declarações de voto de vencido. Estou a lembrar-me de que o projeto de lei para a despenalização da ajuda médica à morte provocada a pedido do doente gerou uma maioria parlamentar que o aprovou e teve um Parecer desfavorável do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV).

– Já o Tribunal Constitucional, chamado a pronunciar-se sobre um ponto específico da Lei, declarou por maioria que essa formulação precisava de ser corrigida. Ora, li ontem que uma voz do CNECV, integrada na sua posição maioritária, lamentando que os deputados não tenham acolhido as recomendações do órgão consultivo, desejou que aproveitassem a devolução do projeto para o melhorarem.

– Os argumentos do Tribunal centram-se numa questão pontual de natureza semântica e julgo que é nesse ponto que o Parlamento vai focar-se. O Parecer votado no CNECV não refere a questão do sofrimento, embora o relatório que o precede até o considere como indefinível. Aparentemente, a questão é poder haver interpretações divergentes da alínea f) do artigo 2 da Lei (define “Sofrimento de grande intensidade” como “o sofrimento físico, psicológico e espiritual”).

– Afigura-se-me que o legislador pretendeu considerar o “sofrimento de grande intensidade” como aquele que congrega as três qualificações referidas, caso contrário, teria de admitir que se atendesse um pedido de morte medicamente ajudada em situações de depressão ‘pura’, o que não condiz com o conjunto do texto da Lei.

– Deixa-me, a este propósito, recordar o que disse na minha declaração de voto minoritário referente ao Parecer do CNECV. «Todos sabemos que em Saúde e, especialmente, no exercício da Medicina não é possível desenhar soluções para todos os dilemas e problemas garantidamente certas e limpas de incertezas, nomeadamente os que têm dimensão ética. O recurso a algoritmos, com ou sem apoio em técnicas de inteligência artificial, (ainda) não permite elaborar leis e normas perfeitas e sempre haverá possibilidade de as melhorar.»

– Compreendo. O que temo é que, mesmo que o Parlamento faça uma alteração ‘cirúrgica’, apenas centrada na dúvida do Tribunal, possa a assinatura promulgadora da Lei voltar a ser adiada por pedido de nova pronúncia pelo Tribunal sobre novas dúvidas. Iremos assistir a um pingue-pongue interminável, uma estratégia concertada de uma minoria para desconvencer uma maioria?

– Não quero acreditar nisso!

17 janeiro 2023

Vendias o teu rim? vs. Remunerar dadores de medula óssea?

  versus  

Vendias o teu rim?
Dylan Walsh

Tradução dos primeiros parágrafos do artigo

Todos os anos milhares de pessoas morrem porque não há órgãos suficientes para transplantes e eu posso ser uma delas. É tempo de começar a remunerar os dadores. Quando éramos adolescentes, eu e o meu irmão recebemos transplantes de rim com seis dias de intervalo. Não era suposto ser assim. Ele, dois anos mais velho, estava programado para receber um rim do meu pai em abril de 1998. Vinte e quatro horas antes da cirurgia, a equipa de transplantes realizou as suas últimas análises de sangue e descobriu uma incompatibilidade de tecidos que todos os testes anteriores tinham, de alguma forma, excluído. O meu irmão foi remetido para “a lista”, onde esperaria, quem sabe por quanto tempo, pelo rim de alguém que morresse e tivesse a generosa visão de ser dador após a morte. Eu era o próximo na fila para o rim do meu pai. Éramos compatíveis e a data foi marcada para 28 de agosto. Então, os meus pais receberam uma chamada de manhã cedo, a 22 de agosto. Tinha havido um acidente de carro. Havia um rim disponível.

/CONTRAPONTO/CONTRAPONTO/

Remuneração dos dadores de células estaminais hematopoiéticas: princípios e perspetiva da Associação Mundial de Dadores de Medula Óssea
Michael Boo et al. em nome da World Marrow Donor Association

Considerações éticas - A questão da remuneração da doação suscita certas preocupações éticas. O ato essencial em questão é a decisão por parte de uma pessoa não relacionada de se submeter a um procedimento médico em benefício de outra pessoa. Há um conjunto significativo de trabalhos em torno das questões éticas envolvidas nesse intercâmbio, especialmente no contexto da doação de órgãos sólidos e da utilização de dadores como sujeitos de investigação. Três princípios éticos em particular são frequentemente alvo de escrutínio. O primeiro é o princípio da dignidade, visto que a transferência de parte de um corpo humano é diferente da de um produto ou serviço e exige considerações únicas para não desvalorizar a vida humana através da comercialização de órgãos, tecidos e sangue. O segundo princípio é que o dador não deve estar sujeito a danos desnecessários ou irrazoáveis. Finalmente, qualquer sistema de distribuição deve ser fundamentalmente justo. Em particular, nenhum segmento da sociedade deve ter benefícios à custa de outro ou permitir qualquer tipo de coação no processo de obtenção de células estaminais hematopoiéticas.

30 dezembro 2022

Médico condenado por eutanásia em Espanha transforma o seu drama numa peça de teatro

 
Médico condenado por eutanásia em Espanha 
transforma o seu drama numa peça de teatro

Matías A. Loewy
 
Tradução espontânea do texto 
Médico condenado en España por eutanasia transforma su drama en una obra de teatro
publicado na Medscape em espanhol, em 20 de dezembro de 2022

BUENOS AIRES, ARG. Na noite de 28 de março de 2005, quando em serviço num hospital em Tarragona, Espanha, o Dr. Marcos Hourmann cuidou de Cármen Cortiella, uma doente de 82 anos de idade, descompensada com cancro do cólon avançado, hemorragia digestiva, diabetes e outras comorbilidades. Não havia nada a fazer, ela estava a lutar para respirar e a sedação paliativa só prolongaria o inevitável por algumas horas ou um dia.

A filha implorou-lhe que fizesse algo para que a sua mãe não sofresse e a própria Cármen tinha-lhe pedido, em diálogos anteriores, que a sua doença não fizesse a sua filha sofrer e ele não hesitou. Pegou numa seringa, encheu-a com 50 mg de cloreto de potássio e injetou-a na sua veia. Registou este ato no processo clínico. E foi descansar. “Ajudei-a a morrer. A doente já não aguentava mais”, recorda-se hoje.

A vida do cirurgião e especialista em emergências, nascido e formado na Argentina, mudaria para sempre. “No dia em que terminou a agonia de Cármen, começou a agonia do Dr. Hourmann”, publicou em 2020 o jornal espanhol El País.[1] Meses depois, o próprio hospital denunciou-o por este ato, pois a eutanásia não estava aprovada em Espanha, e em março de 2009, como resultado de um acordo com o Ministério Público, foi condenado a um ano de prisão (mais tarde reduzido a quatro meses, suspensa) e a mais um ano de desqualificação para a prática da medicina, embora a família do doente nunca o incriminasse.[2] Entretanto, o especialista trabalhou durante alguns anos no País de Gales, mentindo sobre o seu passado, até ser descoberto pelo jornal The Sun e apelidado de “Doutor Morte”, pelo que a sua licença foi revogada e teve de deixar o país. Atualmente, o Dr. Hourmann está a reconstruir detalhes do episódio, o seu percurso posterior e a sua história familiar numa peça documental que protagoniza, apresentada pela primeira vez em Buenos Aires, após 168 atuações em Espanha ao longo de quatro anos, “de norte a sul e de este a oeste”. Intitulada Celebraré mi muerte, é escrita e dirigida pelos realizadores Alberto San Juan e Víctor Morilla (o “ideólogo”, depois de o ver numa entrevista televisiva) e o médico descreveu-a ao La Nación como “um hino à vida, cheio de humor, paz, alegria, loucura e também tristeza, é claro.[3] É um redemoinho de emoções ao longo de cinquenta minutos”. Planeia estreá-lo, em inglês, em Malta no próximo ano, bem como novas atuações em Espanha. “A ideia é continuar com a peça enquanto ela durar. Ainda há vida, ainda há vida”, disse ele.

O Dr. Hourmann explicou à Medscape que nunca foi um ativista da eutanásia, mas da vida, que era uma situação no limite e que a sua ação foi “uma atitude humana, quando a medicina já não estava disponível e o único tratamento que lhe restava era pôr fim ao sofrimento desnecessário e, é claro, quando pedido pelo doente. Na vida aprendi que existe um limite ao sofrimento humano, que o sofrimento desnecessário não tem significado. Não é preciso ser médico para compreender isto.”

¿A eutanásia colide com o Juramento de Hipócrates?

A eutanásia está aprovada em poucos países do mundo: Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo, Espanha (a partir de 25 de junho de 2021), Canadá, Colômbia e Nova Zelândia. Na Argentina há projetos de lei que serão debatidos no Parlamento no próximo ano.

A eutanásia colide com a obrigação médica de “defender a vida” até ao último esforço ou com os preceitos éticos do Juramento Hipocrático? O Dr. Hourmann pensa que não. “O Juramento Hipocrático é uma obrigação moral e ética que o médico tem em relação ao seu trabalho e à responsabilidade do que significa cuidar de um doente. Obviamente, isto muda com o tempo, mas está comigo todos os dias e sempre respeitei os seus preceitos. Quando faço um ato médico, penso em fazer o que é melhor para o doente. O maior esforço que fiz com Cármen foi arriscar a minha própria vida para a ajudar a morrer de uma forma mais digna”.

Se a eutanásia for vista como implicando um dano deliberado ou uma ação deliberada para causar a morte, é lógico que surja resistência na comunidade médica.

O especialista salientou: “Apresentado desta forma, ninguém a quererá fazer. Mas não vejo as coisas dessa forma. A eutanásia é apenas mais uma forma de acabar com a vida de um ser humano quando não existe uma solução médica e científica viável e há um pedido explícito do doente segundo o qual o sofrimento o impede de continuar a viver. É esse o meu entendimento. É um conceito de vida. E embora pareçam ir um contra o outro, a eutanásia e o Juramento Hipocrático andam de mãos dadas, em paralelo”.

Em I Will Celebrate My Death, o Dr. Hourmann conta como o seu pai teve um AVC que o deixou preso à cadeira de rodas e afásico durante dois anos até à sua morte. “Foi um sofrimento tremendo, agonizante e muito triste. E eu teria preferido que o meu pai não sofresse. Mas isso sou eu. O meu pai sempre temeu a morte e era um amante da vida. Ele nunca falou em pedir para morrer. Se me tivesse pedido, claro que o teria ajudado, sem hesitação. Mas eu nunca teria feito nada contra a sua vontade ou contra a de qualquer outra pessoa”, disse ele.

Devido à sua especialidade, cirurgia e emergências, o Dr. Hourmann disse nunca ter tido um doente a pedir-lhe ajuda para morrer: “Nós não temos diálogo contínuo e empatia com doentes como tem, por exemplo, um especialista em medicina interna, um oncologista ou um pediatra”.

“O que faria agora se a situação de Cármen se repetisse noutro dos seus doentes?” perguntou a Medscape. “Hoje, dezembro de 2022, fá-lo-ia, sem dúvida, ao abrigo da lei da eutanásia (em vigor em Espanha), que tem requisitos muito claros e rigorosos sobre quais os doentes em que se pode praticar este ato. No entanto, sem a lei, não o faria novamente, porque esse episódio levou-me a mim e à minha família ao desespero e não sou um kamikaze, um herói, nem uma vítima. No entanto, foi o melhor ato médico que alguma vez fiz na minha vida. Essa é a minha convicção”, respondeu ele.

No final da peça e antes de um colóquio aberto onde fala com o público e responde às suas perguntas durante 40 minutos, o Dr. Hourmann convida seis espectadores ao acaso para decidir se deve ser considerado culpado ou inocente desse ato com Cármen. Na atuação em Buenos Aires, no domingo, dia 11, o “tribunal”, no qual participaram por acaso dois médicos, “absolveu-o” num veredicto dividido: 4 a 1, com uma abstenção. A maioria das sentenças foi nesse sentido. “Penso que há muitas pessoas que pensam que esta é uma decisão que devemos tomar livremente, sem interferência”, disse ele.

“Nem tudo justifica que alguém continue a sofrer após uma cirurgia, quimioterapia ou radioterapia por algo incurável. A isto chama-se encarniçamento terapêutico. Já perguntou se ele quer receber tudo isso para permanecer vivo ou vivo? Justificam-se todos os meios médicos para ver se se pode salvar alguém que lhe diz que não quer continuar a viver? Talvez justifique a ciência, mas é preciso perguntar ao doente, estando consciente, estando no pleno uso das suas capacidades mentais, se quer que não lhe seja feito mais nada. Nem tudo se justifica. Muito menos a morte”, disse ele ao Infobae.

O Dr. Hourmann ainda exerce medicina e trabalha como chefe do departamento de urgências numa clínica em Sabadell, perto de Barcelona.

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[1] Nicolai A. El médico condenado por eutanasia sube a escena con su caso. El País. Publicado el 18 de enero de 202. Consultado en versión electrónica. Fuente

[2] Balsells F. “Solo hizo lo que le pedimos: que mi madre no sufriera”. El País. Publicado el 18 de enero de 2020. Consultado en versión electrónica. Fuente

[3] Garcia L. Historias. El médico argentino que practicó una eutanasia en España, fue enjuiciado y transformó la experiencia en un espectáculo teatral. La Nación. Publicado el 16 de diciembre de 2022. Consultado en versión electrónica. Fuente

Portofilia, uma amizade sem fim

 

Portofilia, uma amizade sem fim

por Rosalvo Almeida (1)
Boletim de 2022, 4.ª série, n.º 7, p. 205-211
Associação Cultural Amigos do Porto

Poucas cidades terão um tão grande conjunto de estudiosos como o Porto. Poucas suscitarão um bairrismo tão intenso, por vezes tido mesmo por irracional. Múltiplos serão os fatores que condicionam esta atração. Tentaremos neste despretensioso depoimento especular sobre alguns, numa sequência sem intenção valorativa.

A antiguidade histórica.

O povoado do Morro da Sé, ou da Pena Ventosa*, corresponde a um lugar chamado Cale que foi tomado no ano 74 a.C. Este topónimo está na origem da palavra Galiza (de Calécia) e daí houve o nome de Portugal (Portus Cale). O primeiro milénio vai decorrer com este porto estratégico submetido a vário “invasores” – romanos, suevos, visigodos, mouros e cristãos – até chegar o Condado Portucalense fundado por Vímara Peres* (século IX) e confiado a Henrique, filho do duque de Borgonha, em 1096, e depois o reino (2). Pelo meio ficaram batalhas que estarão para sempre nos livros de História e nas ruas da cidade: S. Mamede* (1128), Cerneja* (1135), Ourique* (1139), Valdevez* (1140). Um reino cuja capital não é o Porto mas cujo condado fundador aqui se fez.

A identidade.

Resultante da fixidez dos seus atuais limites, que são naturais (um rio caudaloso) e artificiais (uma estrada transformada em fronteira a circunvalar), a cidade foi alargando e ultrapassando as muralhas dos primórdios até se constituir numa unidade cercada. O sentimento de pertença que perdura nos tripeiros terá, aliás, saído reforçado pelo Cerco do Porto* (3), em 1832-33, quando das lutas entre liberais e absolutistas.

Para a consagração dessa noção de grupo coeso, com vontade inabalável, a “antiga, mui nobre, sempre leal e invicta cidade” conta com vários casos de rebeliões populares demonstrativos do sacrifício das próprias vidas. São exemplos: o cais dos Insurretos (ou Cais das Pedras*) onde se levantaram, em 1598, os tripulantes dos barcos da Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos* contrários à participação na Armada Invencível; o motim da Companhia, que vitimou os Mártires da Pátria*, em 1757, rebelados contra as ordens do governo pombalino, como relatou Arnaldo Gama* no romance histórico Um Motim há Cem Anos; os Mártires da Liberdade*, executados pelo regime miguelista em 1829, que têm o seu nome gravado no pedestal da estátua de D. Pedro IV*.


D. Pedro IV, estátua de Célestin Anatole Calmels, 1866, fotografada por R.A.

O centralismo.

A rivalidade com a capital do país, onde impera a tradição centralista (administrativa, política, financeira, etc.), pode explicar um linguajar que tende para o exagero mas funciona como aglutinador pelo acumular de queixumes e de frustrações.

O Vinho de Porto.

A par das variadas caraterísticas sociológicas das gentes desta terra, o burgo reteve um perfil globalmente ligado ao comércio e acentuando os privilégios dos burgueses, desde o reinado de D. Afonso IV (1339) até ao de D. Manuel I (1509), com a interdição de os nobres se aposentarem dentro de muros (4). O Porto, cidade do comércio, tem a sua marca de ouro no sucesso do Vinho do Porto, resultado das suas especiais qualidades e da predominância da comunidade inglesa local no que diz respeito à condução de negócios (5). Foi um mercador do Porto chamado Afonso Martins Alho* que assinou, em nome de D. Afonso IV, em 1353, um primeiro acordo comercial com os ingleses (6), é o marquês de Pombal* quem institucionalizará a Companhia* Geral de Agricultura e Vinhas do Alto Douro, em 1756, e será o inglês barão de Forrester* (1809-1861) quem mais contribuirá para a sublimação do Douro vinhateiro (7), mas outros nomes ligados ao Vinho do Porto ficaram registados para memória futura e confirmando a importância da bebida nas relações sociais, nacional e internacionalmente: Adriano de Paiva*, António Cálem*, Henrique David*, John Whitehead*, Jorge Viterbo Ferreira*, Miguel de Sousa Guedes*.

O clubismo.

O futebol arrasta, desde o século XX, multidões. Os êxitos desportivos dos clubes portuenses, em especial do Futebol Clube do Porto*, serão talvez um dos grandes promotores da sua saudável prática mas são, mais do que tudo, o grande cimento que faz gritar tumultuosamente adeptos unidos em alegrias comuns. Serem Campeões Europeus* por duas vezes faz com que “ser portista” se tornasse sinónimo de ser portuense na alma.

A tradição.

A presença continuada da Igreja Católica – com uma sucessão ininterrupta de bispos, desde D. Hugo* (1114-36), D. João Peculiar* (1136-38) e D. Pedro Pitões* (1145-52), coevos de D. Afonso Henriques*, até ao cardeal D. Américo* (1871-99), D. António Barroso* (1899-1918), D. António Meireles* (1929-42) e D. António Ferreira Gomes* (1952-82), para referir apenas os que mereceram ficar gravados em placas toponímicas – também pode ajudar a explicar a persistência, ao longo dos tempos, de rituais religiosos, bem como de festas populares, particularmente as dedicadas a S. João*. Falta, é certo, responder à pergunta de Germano Silva sobre os motivos que terão levado os portuenses a festejar tão animadamente um “personagem tão austero” e a fazer dele “um santo galhofeiro, pimpão, amorudo e, até, brejeiro” (8). Convirá também recordar que embora este santo seja tanto do Porto como de outras cidades, há um outro S. João do Porto*, eremita, nascido do século XI na nossa cidade (9).

A toponímia.

Os nomes dos arruamentos portuenses traduzem uma cultura de reconhecimento de figuras marcantes na cidade, com traços de tolerância assinaláveis ao manter na memória coletiva alguns “vencidos” da História. Aires de Ornelas*, Costa Cabral*, o marechal Gomes da Costa*, Paiva Couceiro*, Pinho Leal*, o general Silveira*, Sidónio Pais* e Teixeira da Vasconcelos* são alguns exemplos. Sobressai, contudo, uma forte presença de nomes ligados ao liberalismo, ao Heroísmo* dos seus protagonistas e à Alegria* que provocou. A cidade parece assim identificar-se não só com os conspiradores da revolução de 24 de Agosto* de 1820 – membros do Sinédrio como Fernandes Tomás*, Ferreira Borges* e Barros Lima* – mas também todos os que se bateram pelo fim do absolutismo real. O rol é extenso mas vale a pena nomear alguns próceres da liberdade: Alexandre Herculano*, Almeida Garrett*, Anselmo Braamcamp*, Pedro de Mello Breyner*, conde de Castro*, duque de Loulé*, duque de Palmela*, duque de Saldanha* (aliás duplicado como marechal Saldanha*), duque da Terceira*, Faria Guimarães*, Fontes Pereira de Melo*, Francisco da Rocha Soares*, Joaquim António de Aguiar*, José da Silva Passos*, Luz Soriano*, Mouzinho da Silveira*, o coronel Pacheco*, Parada Leitão*, Passos Manuel*, Rodrigues Sampaio*, visconde de Bóbeda*, visconde de Setúbal*, Vitorino Damásio*.

Não podemos, contudo, deixar de salientar, de entre todos, o nome do rei de Portugal e imperador do Brasil, D. Pedro IV*, o que pediu que o seu coração se guardasse no Porto. Ele, que entrou na cidade em 9 de Julho* de 1832 à frente do Exército Libertador*, que está imortalizado na magnífica estátua equestre sita na Praça da Liberdade* e que teve uma vida fulgurante a que não faltam episódios picantes como os relacionados com o grande número de filhos que terá feito nascer em diversos ventres nos seus curtos 36 anos, entremeados de crises epiléticas.

Registe-se, a latere, que o liberalismo plasmado nas ruas e nas memórias portuenses não se refere, como na atualidade, a contextos económicos ou sociais, antes significa, afinal, a defesa da liberdade de escolher quem nos governa. Base democrática da vontade popular, o liberalismo conduz sem apelo nem agravo a uma outra tónica identitária da toponímia do Porto: o republicanismo. Na verdade, a cidade fixou os nomes dos primeiros presidentes da República* nascida no 5 de Outubro* de 1910: António José de Almeida*, Bernardino Machado*, Manuel de Arriaga* e Teófilo Braga*, mas não deixou no esquecimento os candidatos derrotados Humberto Delgado*, Norton de Matos* e Ruy Luís Gomes*. O que mais marca, porém, é a quantidade de lutadores pelo ideal republicano iniciado no 31 de Janeiro* de 1891, os quais ganharam direito a homenagem da cidade e também contribuem para a noção de “livro aberto” que faz do Porto um caso à parte. Referimo-nos, entre outros, a pessoas como o sargento Abílio*, Alexandre Braga*, Alfredo de Magalhães*, Alves da Veiga*, Antero de Araújo*, António Granjo*, António Luís Gomes*, António da Silva Cunha*, Augusto Leça*, Aurélio da Paz dos Reis*, Azevedo de Albuquerque*, Basílio Teles*, Cândido dos Reis*, Carlos da Maia*, Carrilho Videira*, Carvalho de Araújo*, Corte Real*, Dionísio Santos Silva*, Duarte Leite*, Eduardo Santos Silva*, Felizardo de Lima*, Francisco Xavier Esteves*, Guilherme Braga*, Helder Ribeiro*, Jacinto Nunes*, Jaime Cortesão*, João Chagas*, João Corregedor da Fonseca*, José Domingues dos Santos*, José Falcão*, José Fontana*, Latino Coelho*, Leote do Rego*, o alferes Malheiro*, Melo Leote*, Mem Verdial*, Morais Caldas*, Raul Dória*, Ricardo Severo*, Rodrigues de Freitas*, Sampaio Bruno*, Santos Pousada*, Severo Portela*, Silva Ramos*.

A portografia.

Extensíssima é a bibliografia sobre o Porto. Fiquemo-nos pela enumeração dos principais portógrafos. Alguns são já, merecidamente, topónimos: Agostinho Rebelo da Costa*, Albano Martins*, António Cruz*, Artur de Magalhães Basto*, Fernando Moreira da Silva*, Joaquim Costa*, Eugénio da Cunha e Freitas*, Horácio Marçal*. Outros, felizmente vivos e produzindo escritos memoráveis, certamente hão de ver os seus nomes cinzelados numa esquina. Destaquemos somente alguns exemplos: Arminda Santos, César Santos Silva, Germano Silva, Helder Pacheco, Joel Cleto, Luís Aguiar Branco, Manuel do Carmo Ferreira, Manuel de Sousa. 

A portofilia. 

São os “Amigos do Porto”*, juntos numa associação cultural criada há 74 anos (entre os seus primeiros sócios e dirigentes estavam Ângelo das Neves*, Antão de Almeida Garrett*, António Cálem*, António Cruz*, Augusto Pires de Lima*, Bonfim Barreiros*, Carlos de Passos*, Cruz Malpique*, Eugénio da Cunha e Freitas*, Júlio Brito*, Larose Rocha*), a justificação factual para mais este neologismo – portofilia, Será pouco canónico, mas quer tão-só sintetizar quanto os seus filhos idolatram a terra-mãe.



(1) Autor do Dicionário Toponímico Ilustrado do Porto, UNICEPE, 2021 (esgotado)

(2) Joana Sequeira, Como nasce uma cidade - das origens ao Condado Portucalense, História do Porto, vol. 1, QuidNovi, 2010

(3) Hugh Owen, O Cerco do Porto contado por uma testemunha (fac simile da edição da Renascença Portuguesa, 1915), A Regra do Jogo, 1985

(4) Manuel de Sousa, Porto Burgo interdito a nobres, Guias, Livraria Lello, em portoby.livrarialello.pt

(5) António Barros Cardoso, O ciclo do vinho, História do Porto, vol. 7, QuidNovi, 2010

(6) Germano Silva, Grande entrevista, O Tripeiro, série nova, ano XXXV, n.º 10, p. 294, 2016

(7) Marc Barros, O “velho lavrador” do Douro – Barão de Forrester, um ícone da região duriense, O Tripeiro, série nova, ano XXII, n.º 2, p. 48, 2003]

(8) Germano Silva, Porto - Viagem ao Passado, Porto Editora, 2013

(9) Fernando J. Moreira da Silva, S. João do Porto, O Tripeiro, série nova, ano VI, n.º 10, p. 316, 1987


20 dezembro 2022

Sedação paliativa, o que é e como é administrada


Sedação paliativa, o que é e como é administrada

Luciano Orsi (diretor científico da Revista Italiana de Cuidados Paliativos)

Tradução espontânea do artigo 
publicado em 11-12-2022 em univadis

Casos recentes nas notícias relacionadas com o chamado “fim da vida” reacenderam a atenção sobre a sedação paliativa (SP), um procedimento terapêutico que infelizmente ainda é pouco conhecido, tanto no mundo da saúde como entre o público em geral. Esta falta de reconhecimento, também devido ao facto de até agora os currículos universitários quase nunca terem previsto o ensino sistemático de cuidados paliativos, encoraja uma certa resistência à sua implementação ou, pior ainda, uma infeliz confusão com a morte medi­camente assistida (MMA), um termo que inclui tanto a eutanásia como o suicídio medica­mente assistido. O debate mediático contribuiu frequentemente para esta confusão, em­bora em casos mais recentes tenha havido uma maior qualidade de informação e uma redução das ambiguidades semânticas e conceptuais. Isto pode também ser atribuído aos numerosos comunicados de imprensa que a Sociedade Italiana de Cuidados Paliativos (SICP) emitiu em várias ocasiões. 1 A fim de compreender a diferença entre SP e MMA, é necessário conhecer os elementos constituintes dos dois procedimentos.

Sedação paliativa

Em primeiro lugar, é necessário fazer referência à definição do procedimento terapêutico chamado sedação paliativa (SP). No documento intitulado “Recomendações da SICP sobre sedação terminal/sedação paliativa”, esta prática é definida como “a redução intencional da vigília por meios farmacológicos, até à perda de consciência, com o objetivo de reduzir ou abolir a perceção de um sintoma, de outra forma intolerável para o doente, apesar de terem sido aplicados os meios mais adequados para controlar um sintoma, que é, portanto, refratário”. 2

A refratariedade de um sintoma é entendida como a impossibilidade de o controlar ade­quadamente com tratamentos tradicionais (isto é, que não deprimem o estado de vigília), que são toleráveis, eficazes e praticáveis nas condições e no tempo disponíveis para um profissional de saúde experiente em cuidados paliativos. 2

Outro elemento definidor muito importante é o período de tempo em que a sedação pa­liativa é considerada permissível: a fase de morte iminente, que se refere aos últimos 15 dias de vida. A fase de morte iminente é também referida na literatura como “últimas horas - últimos dias”.

De acordo com dados da literatura, a sedação paliativa é realizada principalmente nos úl­timos 2-3 dias de vida.

A incidência com que é praticada é muito variável (10-43% dos doentes falecidos), de­pendendo de muitos fatores (heterogeneidade de casos, cenário, competências profis­sio­nais, atitudes culturais, etc.); os valores médios são de 12-16%. No que respeita à seda­ção profunda contínua, a incidência relatada na literatura é de 5-15%.

As indicações para iniciar SP residem tanto na ocorrência de eventos agudos envolvendo uma situação de morte iminente como no agravamento progressivo do sintoma psicofísico que se torna refratário ao melhor tratamento possível.

Os eventos agudos com risco de morte iminente são, principalmente, a angústia res­piratória devido a sufocação (por exemplo, tromboembolismo pulmonar massivo, edema pulmonar, hemorragias na árvore respiratória, inalação massiva de material gastroentérico, síndrome da veia cava superior, etc.), hemorragia maciça que se julga estar nas vias diges­tivas e respiratórias, grandes vasos no pescoço ou inguinais ou massas tumorais vegetantes, estado-de-mal epilético.

Nestes casos, a SP pode ser configurada como um tratamento de emergência devido à inevitabilidade da morte e ao extremo sofrimento psicofísico do doente. Os cenários em que estas SP de emergência têm lugar são obviamente múltiplos e incluem o ambiente doméstico, hospício ou outros ambientes de internamento, tais como residências assisti­das, enfermarias hospitalares, departamentos de emergência-urgência, unidades de cuida­dos intensivos. 2,3

Os sintomas físicos progressivamente refratários estão representados, nas doenças on­cológicas como nas crónicas degenerativas, por dispneia (35-50% dos casos), agi­tação psicomotora terminal (delírio) (30-45% dos casos), náuseas incoercíveis e vómitos por obstrução intestinal (25%) e estado-de-mal epilético; a dor é raramente referida (5%). Os sintomas podem tornar-se refratários em qualquer doença oncológica, embora ocor­ram mais frequentemente nos cancros do pulmão, do trato gastroentérico, da cabeça-pes­coço e da mama.

Entre as doenças não oncológicas, a ocorrência de sintomas refratários é mais frequente em doenças neurológicas (esclerose lateral amiotrófica, distrofias musculares, doença de Parkinson, esclerose múltipla, demência, etc.) e em doenças respiratórias crónicas, car­diomiopatias, nefropatias e doenças metabólicas. Ao contrário do que geralmente se pensa, na fase final das doenças não oncológicas, o sofrimento induzido por sintomas refratários (especialmente dispneia e delírio) é de intensidade semelhante, se não maior, ao dos doentes com cancro.

Os sintomas psíquicos são representados pelo sofrimento psicoexistencial, que em mui­tos casos é diretamente proporcional à gravidade dos sintomas físicos, mas há casos mais raros em que o sofrimento psicoexistencial está presente sem estar associado ao sofri­mento físico. Nos casos em que essa angústia é refratária aos tratamentos disponíveis (tra­tamento farmacológico ou psicoterapêutico, apoio socioeducativo e espiritual), há indica­ção para SP.

Os tipos de SP são: sedação de emergência, sedação de alívio ou sedação temporária, sedação intermitente e sedação contínua profunda.

A sedação de emergência é realizada nas fases pré-terminais imediatas em doentes que sofrem de eventos catastróficos tais como crise asfíxica, hemorragia massiva, estado-de-mal epilético, etc.

A sedação de alívio ou temporária ou de curta duração pode estar indicada em fases terminais mais precoces para induzir um alívio temporário enquanto se aguarda o benefí­cio de tratamentos destinados ao controlo dos sintomas ou, mais frequentemente, para controlar o sofrimento psicoexistencial quando o prognóstico parece ser de mais de duas semanas.

A sedação intermitente é uma sedação de alívio repetida várias vezes ou ciclicamente (por exemplo, à noite), combinada com o doente, a fim de interromper as fases de angústia mais profunda e mais intolerável. 

A sedação paliativa profunda ou sedação contínua profunda é o tipo de sedação que é mais frequentemente aplicada em cuidados paliativos e envolve um aumento progressivo do nível de sedação devido ao aumento do sofrimento e à medida que o sintoma refratário se agrava. De facto, alguns autores utilizam o termo sedação paliativa proporcional preci­samente para enfatizar este importante conceito de proporcionalidade.

Os medicamentos utilizados para implementar a SP são os sedativos, especialmente as benzodiazepinas (midazolam como primeira escolha), associados a vários neurolépticos (haloperidol in primis). Mais raramente, os barbitúricos ou o propofol são utilizados em con­dições especiais. Os opiáceos não devem ser utilizados para fins sedativos, mas podem ser associados para controlo da dispneia e da dor.

A lista de medicamentos sedativos que podem ser utilizados encontra-se em vários artigos da literatura. 2,3

Finalmente, deve salientar-se que, como o objetivo fundamental da SP é obter e manter um controlo adequado do sofrimento devido a sintomas psicofísicos, teoricamente não existem doses máximas dos sedativos. 3

Diferenças importantes

A diferença empírica e moral entre SP e MMA baseia-se em, pelo menos, três elemen­tos constituintes do procedimento: o objetivo (ou intenção), os tipos de medicamentos, dosa­gens e via de administração utilizada, e o resultado final. 1,4

De facto, o objetivo (intenção) do procedimento em SP é o controlo do sofrimento e não a indução da morte do doente, como acontece na MMA.

Quanto aos tipos de medicamentos, dosagens e via de administração utilizados em SP, estes são administrados para reduzir a perceção de sofrimento (através de uma redução proporcional da vigília) e não para a rápida indução da morte, como é o caso do MMA.

Finalmente, em relação ao terceiro elemento, o resultado final, na SP é a redução da perceção do sofrimento por meio de medicamentos sedativos, enquanto na MMA coin­cide com a morte do doente. Portanto, pode concluir-se que a SP é completamente dife­rente da MMA uma vez que esta tem, pelo contrário, o objetivo (intenção) de causar a morte do doente através da utilização de medicamentos letais, em dosagens e vias de administração adequadas de modo a causar uma morte rápida do doente e o resultado é inevitavelmente a morte do doente através da ação dos medicamentos letais.

Nos últimos anos, tornou-se claro que a hipótese de antecipação da morte ligada a SP é desmentida por estudos que, desde a revisão Cochrane, confirmam a ausência de depres­são respiratória e de antecipação da morte em doentes sedados em comparação com os não sedados. Por outro lado, há mesmo estudos que relatam uma sobrevida mais longa no grupo sedado. 5,6

Por último, é de notar que a permissibilidade legal da SP está consagrada em Itália (*) na lei desde 2017, que no Art. 2.2 indica a SP para o tratamento do sofrimento refratário (Lei 219).

ver Referências no artigo original 

(*) NT: Em Portugal temos a Lei n.º 31/2018 - Direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida: Artigo 8.º Prognóstico vital breve 1 - As pessoas com prognóstico vital estimado em semanas ou dias, que apresentem sintomas de sofrimento não controlado pelas medidas de primeira linha previstas no n.º 1 do artigo 6.º, têm direito a receber sedação paliativa com fármacos sedativos devidamente titulados e ajustados exclusivamente ao propósito de tratamento do sofrimento, de acordo com os princípios da boa prática clínica e da leges artis. 2 - As pessoas que se encontrem na situação prevista no número anterior são alvo de monitorização clínica regular por parte de equi­pas de profissionais devidamente credenciados na prestação de cuidados paliativos. 3 - À pessoa em situação de últimos dias de vida, é assegurado o direito à recusa alimentar ou à prestação de determinados cuidados de higiene pessoal, respeitando, assim, o processo natural e fisiológico da sua condição clínica.