O
25 de Abril – um Ato de Independência na História de Portugal
Carlos Matos Gomes
Oficialmente
todos os povos têm uma história gloriosa que se inicia habitualmente por uma
luta de libertação contra outros povos considerados opressores. Estes atos são
designados por Independência, Libertação, Restauração e significam que um dado
povo conquistou a sua Soberania. Decidiu o seu presente e o seu futuro. Inventa
uma bandeira, um hino e nomeia um padroeiro.
A
realidade é, no entanto, bem diferente. Todos os povos, e as entidades
políticas que os governam, os Estados na modalidade que a Europa do
pós-revolução francesa estabeleceu como padrão mundial, são dependentes – a soberania
de um Estado é apenas a liberdade concedida e reconhecida pelos outros Estados.
São muito raros os momentos em que um Estado agiu de forma soberana. A história
dos Estados assenta sempre nas relações de vassalagem que os historiadores
classificam como dependências e alianças.
No
caso de Portugal, a independência do condado portucalense é um ato determinado
pelos interesses dos ingleses em manterem o controlo da fachada atlântica nas
suas rotas para o Mediterrâneo e pela inconveniência de terem um inimigo
unificado, Castela e Galiza, que lhes negasse ou dificultasse o apoio aos seus
navios. A instauração da dinastia de Avis, após a crise de 1383-1385, resulta
dos interesses ingleses em evitar, de novo, uma reunificação peninsular sob a
tutela de Castela. Para isso enviaram Filipa de Lencastre para Portugal, uma
mulher extraordinária, que traçou a estratégia da expansão marítima de Portugal,
enquadrada na estratégia da Inglaterra de domínio da entrada do Mediterrâneo.
Daí a primeira expedição ter sido Ceuta e não uma praça do Atlântico.
Será
na dependência da Inglaterra que Portugal restaura a independência em 1640, que
concedeu o livre acesso dos ingleses aos portos do Brasil, que resistiu às
invasões francesas, que recebeu o seu quinhão de colónias na Conferência de
Berlim, que participou na Grande Guerra, na Guerra Civil de Espanha, na Segunda
Guerra Mundial e, finalmente, na guerra colonial em África, que tinha como
objetivo final a criação de uma África Austral Branca, incluindo Angola,
Moçambique, África do Sul, Namíbia e Rodésia, um plano que recebeu o nome de
código de Exercício Alcora.
Desde
a fundação da nacionalidade, no século XII,
as elites portuguesas foram vassalas de Inglaterra e Portugal, apenas com a
exceção do reinado de João II, integrou a ordem que os grandes poderes europeus
impuseram. Quanto ao povo, o povo nunca teve participação significativa na
definição do destino do seu país, desde sempre oprimido entre uma aristocracia
servil e um Igreja promíscua e corrupta. A dependência da Inglaterra não
permitiu a emergência de uma burguesia comercial autónoma, um facto que a Inquisição,
com a expulsão do judeus, agravou.
Apesar
das várias consagrações à Senhora da Conceição desde 1189 como padroeira de
Portugal, no início do século XX, a
esperança de vida era a mais baixa da Europa, o sistema de saúde assentava na
sorte do Deus dará e na caridade das Misericórdias, as infraestruturas básicas
eram medievais, desde as vias de comunicação ao saneamento, não existiam
sistemas de esgotos, e a industrialização morrera à nascença com o Tratado de
Methuen, o analfabetismo atingia números chocantes quando comparados com os
outros Estados europeus, a indústria têxtil, vidreira, do papel, os transportes
ferroviários e marítimos encontravam-se nas mãos dos ingleses. As matérias-primas
das colónias, o café, o algodão, o tabaco e os diamantes eram negociados em
Londres. O Ultimato inglês resultou do facto de a ocupação de uma pequena
parcela de território no interior de África interferir com o plano de Cecil
Rhodes de unir, sob a soberania inglesa, a cidade do Cabo ao Cairo. A pobreza
obrigava a vagas de emigração. A mais emblemática e rentável companhia
colonial, a Diamang, era uma empresa do grupo Anglo-American Corporation, das
famílias Rothschild e Rockefeller.
O
Estado Novo, apesar da retórica dos orgulhosamente sós, da atração de Salazar
pelo nazismo e pelo fascismo, foi sempre vassalo e obedeceu às orientações de
Londres, a potência imperial. Foram os ingleses que impuseram a continuidade de
Salazar no governo após a Segunda Guerra, preferindo-o ao perigo de entrarem
“comunistas” no governo (Abrilada, 1947). O regime português do pós-Segunda
Guerra foi determinado pela Inglaterra e pelos Estados Unidos.
Este
é um pequeno resumo da secular vassalagem das elites portuguesas às potências
dominantes, uma vassalagem que prolongou durante a guerra colonial, em que o
Estado português passou pela humilhação do bloqueio do porto da Beira, em
Moçambique, por uma esquadra inglesa, mas que não impediu uma viagem de Marcelo
Caetano a Londres para celebrar a secular aliança Luso-Britânica!
Ao
contrário do que tem sido veiculado como discurso oficial, os Estados Unidos
tinham um plano para resolver a questão colonial portuguesa, que Kissinger
resumiu num briefing : é necessário correr com os portugueses e eles
apenas percebem a linguagem da força. Também durante a guerra israelo-árabe,
quando Marcelo Caetano tentou jogar com a autorização de aterragem dos aviões
americanos que transportavam armamento para Israel, para obter fornecimento de
armamento, o embaixador dos EUA informou o primeiro-ministro português que era
melhor conceder rapidamente a autorização porque os aviões já haviam descolado
e iriam reabastecer nas Lages.
O
25 de Abril de 1974 apanha de surpresa os “senhores” que sempre haviam tomado o
Estado Português como um manso vassalo em que os seus dirigentes iam às
capitais europeias de chapéu na mão pedir orientações políticas e comissões
para os negócios. Os serviços de informação dos Estados Unidos e das grandes
nações europeias, a Inglaterra e a França em particular, estavam focados
noutras origens, naquelas que habitualmente dominam.
Para
os Estados dominantes, a mudança em Portugal seria protagonizada por um general
e este estava escolhido: Spínola. A receita do costume. Seguir-se-ia um regime
de vassalagem com uma aparência de democracia, umas eleições disputadas por
partidos de confiança, um parlamento e a manutenção das tradicionais linhas de
subordinação estratégica e económica. O que estava previsto – e daí a
displicência com que os agentes estrangeiros analisam os primeiros dias da
revolução – seria um regime presidencialista, alinhado pela NATO, com a
economia e a banca nas mãos das famílias tradicionais. Um regime escovado pelo
povo. Tal era a confiança no servilismo português que, em 25 de abril, o
embaixador americano nem se encontrava em Lisboa e os serviços de informações
interrogavam-se sobre quem eram os chefes do golpe!
O 25 de Abril de 1974 foi e é o único ato político em que um grupo com força e consciência política dos problemas em Portugal age de forma autónoma e sem pedir autorização, conselho ou cumplicidade do estrangeiro.
O 25 de Abril de 1974 constituiu o único momento da História de Portugal em que se cumpriu a afirmação de Camões no final de Os Lusíadas quando escreve a invocação final a D. Sebastião, numa premonição de decadência:
Fazei,
Senhor, que nunca os admirados
Alemães,
Galos, Ítalos e Ingleses,
Possam
dizer que são pera mandados,
Mais
que pera mandar, os Portugueses.
A
inaudita autonomia dos “capitães de Abril” relativamente aos tradicionais
mandantes é o primeiro facto que excecionaliza o 25 de Abril. A NATO e o seu
comando supremo dos Estados Unidos ficaram de fora, assim como a França, com
quem Portugal mantinha uma forte cumplicidade na política ultramarina, tal como
a Alemanha, além da Grã-Bretanha e da vizinha Espanha. E a revolução portuguesa
devia ser levada a sério, porque provocava repercussões no flanco sul da NATO,
na Grécia (ditadura dos coronéis), na Itália (compromisso histórico Democracia
Cristã-Comunistas), em França – agitação laboral e frente de esquerda e em
Espanha, com o final da ditadura de Franco, moribundo.
O
clássico golpe militar, o putsch, em que uma Junta de chefes militares,
em grande uniforme, garante a nova ordem, transformou-se rapidamente num
processo revolucionário com a entrada do povo, do movimento popular, nas
transformações políticas e sociais. Essa entrada ocorre logo no dia 25 de abril
quando Otelo Saraiva de Carvalho autoriza Salgueiro Maia a deixar entrar o povo
no Largo do Carmo.
A
autonomia do processo político do 25 de Abril evoluiu para a ameaça de
revolução com o apoio que as Forças Armadas conferem, através do COPCON, ao
movimento popular e é um ato herético, uma ofensa ao dogma, imposto pelos
Estados Unidos que ingleses, com Churchill, alemães, com Adenauer, a França,
com De Gaulle haviam aceitado, de chefiarem regimes vassalos.
O
final da Segunda Guerra instaurou na parte ocidental da Europa sob domínio
americano um novo modelo de regime caraterizado pelo acréscimo de direitos
sociais, férias, previdência, sistemas de saúde, de educação e por direitos
políticos, alargamento da base eleitoral com o acesso geral das mulheres ao
voto que tornaram este modelo uma vacina contra as tentações dos trabalhadores
optarem pelo socialismo, mas em Portugal, uma sociedade com um proletariado
industrial reduzido e que nunca tivera direitos, com o final da guerra colonial
e a desmobilização de cerca de duzentos mil jovens, a atração por novas formas de
democracia e de exercício de poder existia. O fenómeno político que ficou
conhecido como a Aliança Povo-MFA ultrapassou as barreiras do aceitável pelos
“senhores da ordem ocidental” estabelecidos após a Segunda Guerra e assustou as
oligarquias europeias do que hoje assumiu o título de Ocidente Global.
O
processo político português, a partir da resignação do general Spínola em
setembro de 1974 e até 25 de novembro de 1975 é uma luta sem tréguas nem regras
(terrorismo incluído) contra a autonomia e a independência de um povo, que
criou um movimento popular e foi apoiado pelas forças armadas sob o comando de
uma nova estrutura, o COPCON.
O
argumento de que as “forças democráticas” lutavam contra a imposição de uma
nova ditadura é uma vulgar falácia típica da propaganda anticomunista da Guerra
Fria, bem descrita por Melo Antunes e que teve dois momentos teatralmente
culminantes, um no comício da Fonte Luminosa convocado por Mário Soares e o
outro no arrombamento do portão do quartel da Ajuda por uma Chaimite dos
Comandos às ordens de Ramalho Eanes a partir da Amadora.
A
divisão da Europa em zonas de influência entre os Estados Unidos e a URSS fora
estabelecida em 1945 na Conferência de Potsdam e as duas superpotências jamais
violaram o acordado, os Estados Unidos não intervieram na Hungria nem na
Checoslováquia, do mesmo modo que a URSS se absteve de intervir nas ditaduras
bananeiras instaladas pelos Estados Unidos na América do Sul. Na ata final do
Acordo de Helsínquia, no Verão de 1975, ficara estabelecido entre Gerald Ford,
o presidente dos Estados Unidos, e Brejnev, da URSS, que Portugal se manteria
no campo ocidental, NATO incluída.
A conjugação do movimento popular e do apoio do COPCON, que marcou a especificidade da revolução portuguesa desde 25 de abril de 1974 a 25 de novembro de 1975, a afirmação de liberdade e de soberania popular sem a tutela de “cabos políticos” dos aparelhos partidários não eram aceitáveis pelas democracias ocidentais. O movimento popular colocava em causa o domínio do Estado sobre a sociedade, que é o dogma em que assentam os atuais regimes de democracias iliberais.
O 25 de Novembro de 1975 marcou o regresso à vassalagem internacional de Portugal e, internamente, a imposição de regime de representação partidária que limita, quando não exclui, a intervenção dos cidadãos no governo da sociedade e na definição do seu futuro, mas não livra de sofrer os resultados das decisões das velhas e novas classes possidentes, que se apropriaram do poder do Estado e que em nome dele realizam os seus negócios e fabricam as suas fortunas.
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