30 abril 2025

Efeméride - 30 de abril de 1845

 Efeméride – 30 de abril de 1845

Oliveira Martins nasceu há 180 anos

passa a viver no Porto, a partir de 1874, assumindo em 1879 o lugar de administrador da Companhia dos Caminhos de Ferro que assegurava as ligações Porto-Póvoa. Funda a Revista Oci­dental [...] concebe o ambicioso projeto da sua “Biblioteca de Ciências Sociais”, inaugurada com o volume História da Civi­lização Ibérica e, no mesmo ano, a História de Portugal. [...] jornalista político, economista, deputado, publicista de estudos histórico-eco­nómicos [...] ministro da Fazenda em 1892, cargo de que aliás se demi­tirá frustrado [«Oliveira Martins, um talento no “Grupo dos Cinco”», Paulo Samuel, O Tri­peiro, VII série, ano XIII, n.os 8-9, 1994, p. 246]

hoje queremos saber, não queremos sonhar

Joaquim Pedro Oliveira Martins (1845-1894), 

por Irene Vilar, 1971
Esc. Sec. Artística Soares dos Reis, rua Major David Magno, Porto

    

15 abril 2025

Carlos Matos Gomes (1946-2025)

Não costumo copiar textos de locais com assinatura e não me lembro de transcrever textos originalmente divulgados em língua portuguesa. Hoje, abro uma exceção para prestar homenagem a um "rapaz da minha idade" que manteve até ao fim uma lucidez e um saber acima de qualquer média.
Transcrevo assim o que deve ter sido o seu último escrito.
***

O 25 de Abril – um Ato de Independência na História de Portugal

 Carlos Matos Gomes

Seara Nova, Primavera, 2025, pp 33-37

Oficialmente todos os povos têm uma história gloriosa que se inicia habitualmente por uma luta de libertação contra outros povos considerados opressores. Estes atos são designados por Independência, Libertação, Restauração e significam que um dado povo conquistou a sua Soberania. Decidiu o seu presente e o seu futuro. Inventa uma bandeira, um hino e nomeia um padroeiro.

A realidade é, no entanto, bem diferente. Todos os povos, e as entidades políticas que os governam, os Estados na modalidade que a Europa do pós-revolução francesa estabeleceu como padrão mundial, são dependentes – a soberania de um Estado é apenas a liberdade concedida e reconhecida pelos outros Estados. São muito raros os momentos em que um Estado agiu de forma soberana. A história dos Estados assenta sempre nas relações de vassalagem que os historiadores classificam como dependências e alianças.

No caso de Portugal, a independência do condado portucalense é um ato determinado pelos interesses dos ingleses em manterem o controlo da fachada atlântica nas suas rotas para o Mediterrâneo e pela inconveniência de terem um inimigo unificado, Castela e Galiza, que lhes negasse ou dificultasse o apoio aos seus navios. A instauração da dinastia de Avis, após a crise de 1383-1385, resulta dos interesses ingleses em evitar, de novo, uma reunificação peninsular sob a tutela de Castela. Para isso enviaram Filipa de Lencastre para Portugal, uma mulher extraordinária, que traçou a estratégia da expansão marítima de Portugal, enquadrada na estratégia da Inglaterra de domínio da entrada do Mediterrâneo. Daí a primeira expedição ter sido Ceuta e não uma praça do Atlântico.

Será na dependência da Inglaterra que Portugal restaura a independência em 1640, que concedeu o livre acesso dos ingleses aos portos do Brasil, que resistiu às invasões francesas, que recebeu o seu quinhão de colónias na Conferência de Berlim, que participou na Grande Guerra, na Guerra Civil de Espanha, na Segunda Guerra Mundial e, finalmente, na guerra colonial em África, que tinha como objetivo final a criação de uma África Austral Branca, incluindo Angola, Moçambique, África do Sul, Namíbia e Rodésia, um plano que recebeu o nome de código de Exercício Alcora.

Desde a fundação da nacionalidade, no século XII, as elites portuguesas foram vassalas de Inglaterra e Portugal, apenas com a exceção do reinado de João II, integrou a ordem que os grandes poderes europeus impuseram. Quanto ao povo, o povo nunca teve participação significativa na definição do destino do seu país, desde sempre oprimido entre uma aristocracia servil e um Igreja promíscua e corrupta. A dependência da Inglaterra não permitiu a emergência de uma burguesia comercial autónoma, um facto que a Inquisição, com a expulsão do judeus, agravou.

Apesar das várias consagrações à Senhora da Conceição desde 1189 como padroeira de Portugal, no início do século XX, a esperança de vida era a mais baixa da Europa, o sistema de saúde assentava na sorte do Deus dará e na caridade das Misericórdias, as infraestruturas básicas eram medievais, desde as vias de comunicação ao saneamento, não existiam sistemas de esgotos, e a industrialização morrera à nascença com o Tratado de Methuen, o analfabetismo atingia números chocantes quando comparados com os outros Estados europeus, a indústria têxtil, vidreira, do papel, os transportes ferroviários e marítimos encontravam-se nas mãos dos ingleses. As matérias-primas das colónias, o café, o algodão, o tabaco e os diamantes eram negociados em Londres. O Ultimato inglês resultou do facto de a ocupação de uma pequena parcela de território no interior de África interferir com o plano de Cecil Rhodes de unir, sob a soberania inglesa, a cidade do Cabo ao Cairo. A pobreza obrigava a vagas de emigração. A mais emblemática e rentável companhia colonial, a Diamang, era uma empresa do grupo Anglo-American Corporation, das famílias Rothschild e Rockefeller.

O Estado Novo, apesar da retórica dos orgulhosamente sós, da atração de Salazar pelo nazismo e pelo fascismo, foi sempre vassalo e obedeceu às orientações de Londres, a potência imperial. Foram os ingleses que impuseram a continuidade de Salazar no governo após a Segunda Guerra, preferindo-o ao perigo de entrarem “comunistas” no governo (Abrilada, 1947). O regime português do pós-Segunda Guerra foi determinado pela Inglaterra e pelos Estados Unidos.

Este é um pequeno resumo da secular vassalagem das elites portuguesas às potências dominantes, uma vassalagem que prolongou durante a guerra colonial, em que o Estado português passou pela humilhação do bloqueio do porto da Beira, em Moçambique, por uma esquadra inglesa, mas que não impediu uma viagem de Marcelo Caetano a Londres para celebrar a secular aliança Luso-Britânica!

Ao contrário do que tem sido veiculado como discurso oficial, os Estados Unidos tinham um plano para resolver a questão colonial portuguesa, que Kissinger resumiu num briefing : é necessário correr com os portugueses e eles apenas percebem a linguagem da força. Também durante a guerra israelo-árabe, quando Marcelo Caetano tentou jogar com a autorização de aterragem dos aviões americanos que transportavam armamento para Israel, para obter fornecimento de armamento, o embaixador dos EUA informou o primeiro-ministro português que era melhor conceder rapidamente a autorização porque os aviões já haviam descolado e iriam reabastecer nas Lages.

O 25 de Abril de 1974 apanha de surpresa os “senhores” que sempre haviam tomado o Estado Português como um manso vassalo em que os seus dirigentes iam às capitais europeias de chapéu na mão pedir orientações políticas e comissões para os negócios. Os serviços de informação dos Estados Unidos e das grandes nações europeias, a Inglaterra e a França em particular, estavam focados noutras origens, naquelas que habitualmente dominam.

Para os Estados dominantes, a mudança em Portugal seria protagonizada por um general e este estava escolhido: Spínola. A receita do costume. Seguir-se-ia um regime de vassalagem com uma aparência de democracia, umas eleições disputadas por partidos de confiança, um parlamento e a manutenção das tradicionais linhas de subordinação estratégica e económica. O que estava previsto – e daí a displicência com que os agentes estrangeiros analisam os primeiros dias da revolução – seria um regime presidencialista, alinhado pela NATO, com a economia e a banca nas mãos das famílias tradicionais. Um regime escovado pelo povo. Tal era a confiança no servilismo português que, em 25 de abril, o embaixador americano nem se encontrava em Lisboa e os serviços de informações interrogavam-se sobre quem eram os chefes do golpe!

O 25 de Abril de 1974 foi e é o único ato político em que um grupo com força e consciência política dos problemas em Portugal age de forma autónoma e sem pedir autorização, conselho ou cumplicidade do estrangeiro.

O 25 de Abril de 1974 constituiu o único momento da História de Portugal em que se cumpriu a afirmação de Camões no final de Os Lusíadas quando escreve a invocação final a D. Sebastião, numa premonição de decadência:

Fazei, Senhor, que nunca os admirados
Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,
Possam dizer que são pera mandados,
Mais que pera mandar, os Portugueses.

A inaudita autonomia dos “capitães de Abril” relativamente aos tradicionais mandantes é o primeiro facto que excecionaliza o 25 de Abril. A NATO e o seu comando supremo dos Estados Unidos ficaram de fora, assim como a França, com quem Portugal mantinha uma forte cumplicidade na política ultramarina, tal como a Alemanha, além da Grã-Bretanha e da vizinha Espanha. E a revolução portuguesa devia ser levada a sério, porque provocava repercussões no flanco sul da NATO, na Grécia (ditadura dos coronéis), na Itália (compromisso histórico Democracia Cristã-Comunistas), em França – agitação laboral e frente de esquerda e em Espanha, com o final da ditadura de Franco, moribundo.

O clássico golpe militar, o putsch, em que uma Junta de chefes militares, em grande uniforme, garante a nova ordem, transformou-se rapidamente num processo revolucionário com a entrada do povo, do movimento popular, nas transformações políticas e sociais. Essa entrada ocorre logo no dia 25 de abril quando Otelo Saraiva de Carvalho autoriza Salgueiro Maia a deixar entrar o povo no Largo do Carmo.

A autonomia do processo político do 25 de Abril evoluiu para a ameaça de revolução com o apoio que as Forças Armadas conferem, através do COPCON, ao movimento popular e é um ato herético, uma ofensa ao dogma, imposto pelos Estados Unidos que ingleses, com Churchill, alemães, com Adenauer, a França, com De Gaulle haviam aceitado, de chefiarem regimes vassalos.

O final da Segunda Guerra instaurou na parte ocidental da Europa sob domínio americano um novo modelo de regime caraterizado pelo acréscimo de direitos sociais, férias, previdência, sistemas de saúde, de educação e por direitos políticos, alargamento da base eleitoral com o acesso geral das mulheres ao voto que tornaram este modelo uma vacina contra as tentações dos trabalhadores optarem pelo socialismo, mas em Portugal, uma sociedade com um proletariado industrial reduzido e que nunca tivera direitos, com o final da guerra colonial e a desmobilização de cerca de duzentos mil jovens, a atração por novas formas de democracia e de exercício de poder existia. O fenómeno político que ficou conhecido como a Aliança Povo-MFA ultrapassou as barreiras do aceitável pelos “senhores da ordem ocidental” estabelecidos após a Segunda Guerra e assustou as oligarquias europeias do que hoje assumiu o título de Ocidente Global.

O processo político português, a partir da resignação do general Spínola em setembro de 1974 e até 25 de novembro de 1975 é uma luta sem tréguas nem regras (terrorismo incluído) contra a autonomia e a independência de um povo, que criou um movimento popular e foi apoiado pelas forças armadas sob o comando de uma nova estrutura, o COPCON.

O argumento de que as “forças democráticas” lutavam contra a imposição de uma nova ditadura é uma vulgar falácia típica da propaganda anticomunista da Guerra Fria, bem descrita por Melo Antunes e que teve dois momentos teatralmente culminantes, um no comício da Fonte Luminosa convocado por Mário Soares e o outro no arrombamento do portão do quartel da Ajuda por uma Chaimite dos Comandos às ordens de Ramalho Eanes a partir da Amadora.

A divisão da Europa em zonas de influência entre os Estados Unidos e a URSS fora estabelecida em 1945 na Conferência de Potsdam e as duas superpotências jamais violaram o acordado, os Estados Unidos não intervieram na Hungria nem na Checoslováquia, do mesmo modo que a URSS se absteve de intervir nas ditaduras bananeiras instaladas pelos Estados Unidos na América do Sul. Na ata final do Acordo de Helsínquia, no Verão de 1975, ficara estabelecido entre Gerald Ford, o presidente dos Estados Unidos, e Brejnev, da URSS, que Portugal se manteria no campo ocidental, NATO incluída.

A conjugação do movimento popular e do apoio do COPCON, que marcou a especificidade da revolução portuguesa desde 25 de abril de 1974 a 25 de novembro de 1975, a afirmação de liberdade e de soberania popular sem a tutela de “cabos políticos” dos aparelhos partidários não eram aceitáveis pelas democracias ocidentais. O movimento popular colocava em causa o domínio do Estado sobre a sociedade, que é o dogma em que assentam os atuais regimes de democracias iliberais.

O 25 de Novembro de 1975 marcou o regresso à vassalagem internacional de Portugal e, internamente, a imposição de regime de representação partidária que limita, quando não exclui, a intervenção dos cidadãos no governo da sociedade e na definição do seu futuro, mas não livra de sofrer os resultados das decisões das velhas e novas classes possidentes, que se apropriaram do poder do Estado e que em nome dele realizam os seus negócios e fabricam as suas fortunas. 

12 abril 2025

Principialismo 2

Ética - Uma questão de princípios?

Parte II: Racionalidade, fins e níveis do discurso moral

Michael Trimble
Centre for Medical Education, Queen’s University, Belfast
Tradução espontânea para distribuição sem fins lucrativos do artigo
Ethics – A matter of principle?

Para ver a Parte I, abrir AQUI
Pode ver em formato PDF no LinkedIn AQUI

Resumo - A discussão de temas bioéticos utilizando a abordagem dos quatro princípios proposta por Beauchamp e Childress é atualmente uma prática corrente no Reino Unido. Um artigo anterior documentou a história do principialismo antes de analisar o seu impacto e de passar em revista algumas críticas à sua abordagem. Este examinará algumas das dificuldades filosóficas em maior profun­didade. Uma preocupação especial é o facto de o principialismo conduzir a um debate pouco aprofundado, com a ponderação dos meios sem a devida preocupação com os fins pretendidos.

Racionalidade

Tal como no artigo anterior, utilizaremos alguns dos temas desenvolvidos pelo sociólogo John H Evans na sua análise do debate bioético. Na linguagem comum, racional aparece como ‘o oposto de louco’.1 Nas ciên­cias sociais, racional pode ser usado num sentido mais formal. Uma crença racional é aquela que pode ser mantida legitimamente. A racionalidade pode ser explorada de forma mais aprofundada. A racionalidade ins­trumental é a que mais se aproxima da utilização comum da palavra racional. Por exemplo, para um estudante que pretende estudar medicina, escolher biologia é uma escolha de disciplina instrumentalmente racional. Por outro lado, se ela quisesse ser músico, seria menos racional. Para efeitos desta discussão, os termos que precisamos de compreender são racionalidade substantiva e formal. Um padrão de ação deve ser considerado substantivamente racional se utilizar os critérios de ‘fins últimos’ ou ‘valores últimos’ para as ações ou meios envolvidos, ou seja, se os meios forem consistentes com os fins ou valores últimos. Isto contrasta com a racionalidade formal. Aqui, os fins e os meios são debatidos em conjunto, e um padrão de ação pode ser consi­derado formalmente racional se for considerado o meio mais eficaz para atingir fins predeterminados ou assumidos.1 Na avaliação de um argumento, há cinco componentes a considerar. São eles: a ligação entre meios e fins, a extensão do debate sobre os fins, o número de fins considerados legítimos no debate, a mensurabilidade dos fins e a universalidade dos fins.1 Analisemos melhor esta última afirmação, uma vez que tem grande relevância para a narrativa global.

Relação entre meios e fins

Ao considerar a relação entre meios e fins, verifica-se que a racionalidade formal tende para uma visão con­sequencialista - essencialmente, os fins podem justificar os meios. A racionalidade substantiva pode conside­rar que alguns meios são inerentemente errados porque entram em conflito com outros fins ou valores.1

Em que medida os fins são debatidos

Num debate substantivamente racional, os fins devem ser definidos e defendidos. Simplificando, um debate substantivamente racional é sobre fins.1 Isto contrasta com um debate formalmente racional em que os fins são assumidos, explícita ou implicitamente. A inclusão de fins no debate torna o resultado menos facilmente calculável, uma vez que é difícil valorizar fins concorrentes entre si, por exemplo, beneficência versus res­peito pela autonomia de um indivíduo, sem recorrer a um fim de nível superior.1

O número de fins considerados legítimos no debate

A racionalidade formal exige que o número de fins seja limitado. Evans cita o ‘método científico’ como o exemplo mais extremo de racionalidade formal, uma vez que diz respeito a factos sobre a natureza que per­mitem calcular as consequências previstas de uma ação sem considerar os fins últimos a que esse conheci­mento pode ser aplicado.1 No debate substantivo, pode ser considerado qualquer número de fins. Evans regista a progressão do debate bioético ao longo do tempo e a forma como a aceitação dos quatro fins pré-determinados do principialismo – autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça – facilitou a passagem de um debate substantivo para um debate mais formal.

 

Mensurabilidade dos fins

A mensuração descreve o processo de combinação de diferentes fins numa métrica comum, sendo exemplos a utilidade e o custo. Ela transforma qualidades em quantidades, diferenças em grandezas. É uma forma de reduzir e simplificar informações díspares em números que podem ser facilmente comparados. É igualmente importante – se não mais – considerar o que omite o processo de mensuração de fins. Algumas coisas são incomensuráveis, sendo um exemplo trivial a questão de saber se o gelado de chocolate pode ser considerado melhor do que o de morango. Exemplos mais sérios incluem questões de valores fundamentais e padrões morais absolutos. Assim, embora a mensuração possa ser útil para determinar uma métrica comum que permita avaliar um plano de ação proposto, também pode ser motivada «por um desejo de se esconder atrás de números, impor ordem ou reforçar uma autoridade fraca... A mensuração pode proporcionar uma defesa sólida para decisões controversas, expandir o território organizacional ou profissional de um grupo»2. Assim, enquanto o utilitarista ‘o maior bem para o maior número’ permite uma métrica que parece quase quantifi­cável, e portanto calculável, a ‘fidelidade a Deus’ não o faz. «Os autores que assumem a racionalidade subs­tantiva resistem a escalas comparáveis porque os seus fins não podem ser comparáveis com outros fins sem distorcer o seu significado.»1

Universalidade dos fins

Num ponto relacionado com o anterior, Evans descreve dois sentidos de universalidade, sendo o primeiro uma generalidade mensurável que não é suscetível de causar desacordo. Dá o exemplo de «é melhor fazer o bem do que fazer o mal». Estes fins são assumidos como universais e, por isso, não requerem debate. O sentido em que um fim pode ser considerado universal é quando o fim pode ser considerado aplicável a uma série de meios. Neste caso, o autor dá o exemplo da autonomia. Se a autonomia é primordial numa situação, então pode assumir-se que é primordial quando se consideram vários meios. O pressuposto da universalidade torna a tomada de decisões mais calculável. O universalismo em ambos os sentidos é inaceitável para aqueles que preferem argumentos substantivamente racionais.1

Ao descrever a história do debate bioético, Evans regista a passagem progressiva do debate substantivo para o debate formal, com uma ênfase crescente nos fins mensuráveis. Isto é de grande importância porque «se­gundo a racionalidade substantiva, os meios estão certos ou errados por razões a priori – pela sua coerência com determinados fins – e não pelas suas consequências».1 No entanto, na perspetiva da racionalidade for­mal, não há meios que sejam inerentemente errados, mas podem ser considerados errados se não maximiza­rem o fim pretendido. Por conseguinte, qualquer meio pode ser levado até ao ponto em que as suas conse­quências possam ser calculadas. Pellegrino e Thomasma constatam também esta dificuldade na abordagem da ética médica que resulta do relatório da Comissão Presidencial. Consideram que se trata de uma passagem da substância ao procedimento. Para evitar a irreconciliabilidade dos conflitos morais, a discussão ética cen­tra--se antes no processo de tomada de decisão. Uma outra forma de descrever esta situação é considerar se um debate é denso ou ténue. Os debates profundos são substantivos. A confiança na racionalidade formal resulta num debate superficial.

Níveis de discurso moral

Os princípios são indubitavelmente importantes no debate ético. Aiken descreve as respostas éticas como ocorrendo em quatro níveis. O primeiro, e mais simples, é o nível expressivo-evocativo. Neste nível, não são apresentadas razões para o juízo moral e o juízo aplica-se apenas ao caso específico em causa. O segundo nível é o das regras. As regras aplicam-se não apenas a um caso, mas a todos os casos semelhantes. As regras dizem-nos diretamente o que devemos ou não devemos fazer. Os princípios estão na base das regras. Os princípios podem apoiar as regras ou criticá-las. Um princípio é mais geral do que uma regra e não dá orien­tações ou instruções específicas. Por último, subjacente a tudo o que precede, estão as convicções básicas do indivíduo, as suas crenças pessoais fundamentais. O esquema de Aiken está resumido no Quadro 1.

Quadro 1. Níveis do discurso moral. Adaptado de Aiken

Nível

Características

Exemplo

Expressivo-evocativo

a) Não são dadas razões para o juízo moral.

b) O juízo moral aplica-se a um caso concreto

Decisões simples / intuições

Regras

a) A regra aplica-se não apenas a um caso imediato, mas a todos os casos semelhantes

b) A regra diz-nos diretamente o que fazer ou não fazer

A Lei.

GMC - General Medical Council, também NICE - National Institute for Health and Care Excellence, SIGN - Scottish Intercollegiate Guidelines Network, etc.

Princípios

a) Um princípio apoia regras - ou critica-as

b) Um princípio é mais geral do que uma regra; não nos diz direta e concretamente o que fazer.

Autonomia, beneficência, não-maleficência, justiça

Dever

Inviolabilidade da vida

Convicções pós-éticas / básicas

a) Uma convicção básica é a base dos nossos princípios, regras e raciocínio ético geral

b) Não se pode ir mais longe do que as convicções de base

Crenças pessoais fundamentais

Visão do mundo

Identidade

Verifica-se que a manutenção dos níveis mais superficiais do discurso, ou seja, a discussão expressivo-evo­cativa e baseada em regras, significa que a qualidade do debate será ténue. (ver abaixo o Quadro 2)

Quadro 2. Níveis de discurso moral vs. debate superficial e aprofundado.

Nível

Características

 

Expressivo-evocativo

a) Não são dadas razões para o juízo moral.

b) O juízo moral aplica-se a um caso concreto

SUPERFICIAL/

/TÉNUE

 



APROFUNDADO/

/DENSO

Regras

a) A regra aplica-se não apenas a um caso imediato, mas a todos os casos semelhantes

b) A regra diz-nos diretamente o que fazer ou não fazer

Princípios

a) Um princípio apoia regras - ou critica-as

b) Um princípio é mais geral do que uma regra; não nos diz direta e concretamente o que fazer.

Convicções pós-éticas / básicas

a) Uma convicção básica é a base dos nossos princípios, regras e raciocínio ético geral

b) Não se pode ir mais longe do que as convicções de base

Além disso, quando se discutem questões éticas desta forma, a omnipresença do principialismo pode deixar os estudantes confusos quando lhes é pedido que considerem outros princípios além dos quatro de Beau­champ e Childress. Já mencionámos os princípios autoevidentes de WD Ross. Ao rever o tema, Veatch refere sistemas de bioética baseados em até dez princípios ou simplesmente num, por exemplo, a utilidade. Além dos princípios fundamentais de Beauchamp e Childress, refere outros como veracidade, fidelidade, gratidão, reparação e evitar matar.

Richard Huxtable refere que os quatro princípios podem ser vistos como definindo uma posição que não é simplesmente ocidental, mas de facto anglo-americana. Os quatro princípios de Beauchamp e Childress são confrontados com os identificados pelo projeto europeu BIOMED II relativamente aos «Princípios éticos básicos da bioética e do direito biológico europeus» - autonomia, dignidade, integridade e vulnerabilidade. De notar que a dignidade inclui aqui a ‘inviolabilidade da vida’ e restrições às ‘intervenções em seres humanos em situações tabu’.8 O grupo também não afirmou que estes princípios éticos básicos deveriam ser «entendi­dos como ideias universais eternas ou verdades transcendentais, mas funcionam antes como diretrizes refle­xivas e valores importantes na cultura europeia».8

Matthew Shea considera que o que falta ao principialismo é um tratamento adequado dos fenómenos axio­lógicos, ou seja, uma teoria do bem. Shea sugere o consequencialismo, a ética da virtude eudemonista ou a ética do direito natural como fontes potenciais para uma tal teoria, mas não defende uma delas em detrimento das outras.

Tom Walker também questiona a suficiência dos quatro princípios. Observa que há domínios em que estes não podem fornecer uma orientação moral. Cita os exemplos da profanação de monumentos em memória dos mortos e a repugnância moral face a casos de bestialidade. É evidente que as pessoas se encontram vinculadas por normas morais que vão além das articuladas pelos quatro princípios. Walker sugere o desen­volvimento de ‘formas culturalmente específicas de principialismo’.

No entanto, isto apenas desloca a questão de saber de onde derivamos os nossos princípios e como deter­minamos qual o princípio que tem prioridade numa dada situação. O que é que explica estas diferenças culturais? O psicólogo moral Jonathan Haidt refere que os aspetos culturais da moralidade podem ser expli­cados pela atenção específica que os indivíduos de culturas ocidentais, cultas, industrializadas, ricas e demo­cráticas (western, educated, industrialised, rich, and democratic = WEIRD) dão a determinados aspetos da moralidade. As pessoas de culturas WEIRD tendem a valorizar muito a autonomia e o individualismo e podem menosprezar ou mesmo ignorar outros fatores. Este facto pode ajudar a explicar porque é que a abordagem dos quatro princípios se enraizou tão fortemente no Ocidente. Do mesmo modo, tanto o utilitarismo como a deontologia favorecem formas de raciocínio com uma forte tendência para o pensamento sistemático, mas com baixos níveis de empatia.11 Outras cultu­ras, não-WEIRD, exibem uma moralidade mais sociocêntrica, em que as relações, quer no seio da família quer na comunidade mais alargada, têm maior significado moral.11 Haidt também refere que outras culturas têm frequentemente uma ‘ética da divindade’11 que tem impacto na forma como veem o corpo e dá origem a ideias de limpeza e pureza. Haidt propõe que os seres humanos têm um ‘paladar moral’ composto por cinco ‘recetores gustativos’: cuidado com os outros, justiça, lealdade, respeito pela autoridade e santidade.11 A moralidade WEIRD – que inclui o principialismo – centra-se num número limitado de recetores. A nossa cultura e educação desempenham um papel importante na determinação da forma como se desenvolvem as visões pessoais e sociais das questões morais. No Ocidente, o legado da moralidade cristã é muito importante, pois é a fonte das nossas crenças mais acarinhadas – mesmo que muitos esqueçam as suas raízes. O filósofo francês Luc Ferry, ele próprio um humanista secular, escreve

«Há no pensamento cristão, sobretudo no domínio da ética, ideias que têm grande significado ainda hoje, mesmo para os não crentes; ideias que, uma vez desligadas das suas origens puramente religiosas, adqui­riram uma autonomia que veio a ser assimilada pela filosofia moderna. Por exemplo, a ideia de que o valor moral de uma pessoa não reside nos seus dons herdados ou nos seus talentos naturais, mas no uso livre que faz deles, é uma noção que o cristianismo deu ao mundo e que muitos sistemas éticos modernos adotariam para os seus propósitos.»

Embora os cristãos «tendam a entender-se a si próprios como tendo uma tradição histórica» e «especialmente responsáveis perante o testemunho da Bíblia», outros terão uma perspetiva diferente. Devemos ter presente a influência do passado de cada indivíduo na formação da sua paisagem moral. Nas palavras do filósofo Alasdair MacIntyre, «só posso responder à pergunta ‘O que devo fazer?’ se puder responder à pergunta anterior ‘De que história faço parte?’»14

Que significa isto na prática?

Até agora, abordámos muita teoria com alguma profundidade, mas o que pode isso significar para os deci­sores políticos, para os comités de ética clínica ou para um profissional individual? Utilizando o exemplo prático de uma mulher que solicita um aborto tardio para realçar as dificuldades do principialismo como metodologia, Brock e Wyatt explicam como a forma do debate pode condicionar o resultado das delibera­ções. Em suma, como o principialismo não tem em conta o que Brock e Wyatt designam por ‘variáveis não consideradas’, parte-se de um consenso moral que não existe. Em concreto, considera-se que esta metodo­logia exclui sistemas de crenças ‘particularistas’ como o cristianismo. Isto, de facto, marginaliza as «narrativas morais reais que têm fundamentado a vida ética dos grupos sociais ao longo de toda a história humana«. A ambivalência legal relativamente ao aborto tardio coloca o peso moral da decisão no médico. O principia­lismo deixa pouco espaço para a consciência do médico, uma vez que a sociedade exige a «separação dos ‘preconceitos’ pessoais do médico da sua prática». Podemos imaginar desafios semelhantes no debate con­temporâneo em torno da questão da eutanásia e do suicídio ajudado pelo médico. Se começarmos a delibe­ração com a autonomia como o ponto de partida e sem um consenso aceite em torno da questão da benefi­cência ou do bem supremo, a discussão depressa se torna uma discussão sobre direitos e processos, sobre grupos relevantes e equidade de acesso; uma discussão sobre os meios para atingir o resultado e não sobre a justeza do resultado em si mesmo. A moralidade do médico individual perde-se no meio da questão de saber se as cláusulas de consciência devem dar aos indivíduos a opção de recusar a prestação do serviço.

Conclusão

A abordagem dos quatro princípios deve ser abandonada? Não necessariamente. Mas devem estar enquadra­dos num contexto moral mais amplo e profundo. Para apreciar a autonomia, temos de saber porque é que cada pessoa é importante. Para comentar a beneficência, temos de saber o que entendemos por bem. Para procurar a não-maleficência, temos de reconhecer o mal. Para agir com justiça, temos de saber o que significa ser justo. Podemos utilizar os princípios como pilares úteis para apoiar os nossos pensamentos, mas precisa­mos de ser capazes de exercitar toda a gama dos nossos ‘recetores de sabor moral’ e de mergulhar nos níveis mais profundos do discurso moral, tanto para compreender os nossos próprios fundamentos morais como para ter em conta as preocupações dos outros quando consideramos casos difíceis. <

Clicar AQUI para ver o artigo original

REFERÊNCIAS

1. Evans JH. Human genetic engineering and the rationalization of public bioethical debate. Chicago: University of Chicago Press; 2002. Playing God?

2. Espeland WN, Stevens ML. Commensuration as a social process. Ann Rev Sociol. 1998;24:313–43.

3. Pellegrino E, Thomasma DC. Oxford: Oxford University Press; 1988. For the patient’s good. the restoration of beneficence in health care.

4. Aiken HD. The levels of moral discourse. Ethics. 1952;62(4):235–48.

5. Ross WD. Oxford: Clarendon Press; 1930. The right and the good.

6. Veatch RM. Reconciling Lists of Principles in Bioethics. J Med Philos. 2020;45(4-5):540–59. doi: 10.1093/jmp/jhaa017.

7. Huxtable R. For and against the four principles of biomedical ethics. Clin Ethics. 2013;8(2-3):39–43.

8. Rendtorff JD. Basic ethical principles in European bioethics and biolaw: autonomy, dignity, integrity and vulnerability – towards a foundation of bioethics and biolaw. Med Health Care Philos. 2002;5(3):235–44. doi: 10.1023/a:1021132602330.

9. Shea M. Principlism’s balancing act: why the principles of biomedical ethics need a theory of the good. J Med Philos. 2020;45(4-5):441–70. doi: 10.1093/jmp/jhaa014.

10. Walker T. What principlism misses. J Med Ethics. 2009;35:229–31. doi: 10.1136/jme.2008.027227.

11. Haidt J. London: Penguin; 2012. The righteous mind: why good people are divided by politics and religion.

12. Ferry L. London: Canongate Books Ltd; 2012. A brief history of thought: a philosophical guide to living.

13. Biggar N. Michigan: William B. Eerdmans Publishing Company; 2011. Behaving in public.

14. MacIntyre A. Iniana: University of Notre Dame Press; 1984. After virtue: a study in moral theory. 2nd ed. Notre Dame.

15. Brock B, Wyatt J. The physician as political actor: late abortion and the strictures of moral discourse. StudyChristian Ethics. 2006;19(2):153–68.

Principialismo 1

Ética - Uma questão de princípios?

Parte I: Princípios e principialismo

Michael Trimble
Centre for Medical Education, Queen’s University, Belfast
Tradução espontânea para distribuição sem fins lucrativos do artigo
Ethics – A matter of principle?

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Resumo - A discussão de temas bioéticos utilizando a abordagem dos quatro princípios proposta por Beauchamp e Childress é atualmente uma prática corrente no Reino Unido. O presente artigo começa por documentar a história do principialismo antes de analisar o seu impacto e rever algumas críticas à sua abordagem. Um artigo futuro examinará mais aprofundadamente algumas das dificuldades filosóficas decorrentes do principialismo. 

A omnipresença do principialismo

Quando se analisa a ética médica no Reino Unido, é difícil evitar a abordagem dos 4 princípios defendida por Beauchamp e Childress. Os Princípios de Ética Biomédica de Beauchamp e Childress, publicados pela pri­meira vez em 1979 e atualmente na sua oitava edição, continuam a ser um dos manuais de ética mais influ­entes no mundo anglófono.1 Os quatro princípios éticos propostos são a beneficência, a não-maleficên­cia, a autonomia e a justiça. Defende-se que estes princípios fazem a mediação entre a teoria moral de alto nível e a moralidade comum de baixo nível, proporcionando um quadro de trabalho para analisar as questões éticas. A sua influência tem sido global. A abordagem, também conhecida como principialismo, pode ser encontrada em manuais populares de medicina geral, como o Clinical Medicine de Kumar e Clark.2 É o quadro sugerido pela Clinical Ethics Network do Reino Unido para os comités de ética clínica dos hospitais e organis­mos acreditados utilizarem na avaliação prática de questões éticas.3 É mesmo recomendada para os estudan­tes que pretendem estudar medicina na sua preparação para as entrevistas nas escolas de medicina.4

Parece que estes princípios são agora aceites como autoevidentes, não necessitando de qualquer outra justi­ficação e como suficientes – não é necessário considerar outros princípios. Mas de onde veio a abordagem dos 4 princípios? Como é que estes princípios foram selecionados e outros, como a santidade da vida, foram excluídos? Quem são Beauchamp e Childress?

Origens do principialismo

Este artigo analisará as origens do principialismo, tal como descrito por John H Evans5, e considerará alguns dos pontos fortes e fracos desta abordagem. Dado o profundo impacto e influência do principialismo no debate bioético contemporâneo, as implicações filosóficas e éticas do principialismo merecerão uma análise mais pormenorizada e serão tratadas num documento separado. Evans começa a sua história na década de 1950, numa altura em que crescia a preocupação entre a comunidade científica relativamente ao potencial de aplicação dos avanços científicos à prática da eugenia. A ideia de eugenia é, evidentemente, muito mais antiga. A palavra foi cunhada por Francis Galton em 1883 e G.K. Chesterton classificava-a como um mal em 1922.6 O que era novo era o rápido avanço da ciência. Watson e Crick tinham determinado a estrutura do ADN em 1953. A esperança de novas descobertas suscitou debates sobre a condição genética da população, acabando por conduzir à perspetiva da engenharia genética humana (EGH). Evans considera que se tratou de uma época em que a comunidade científica «tentava alargar a sua jurisdição para lá da descoberta de factos sobre a natureza, assumindo um papel mais ativo nos assuntos públicos. Estes geneticistas faziam parte de uma comunidade mais vasta de cientistas que tentavam encontrar o significado e o objetivo da existência humana na evolução e na biologia, para criar uma base “científica” secular sobre a qual reestabelecer o nosso sistema de ética... Se os seres humanos já não podiam olhar para fora da natureza em busca de propósito e direção – como a maioria das teologias tinha feito – o fundamento da ética devia ser encontrado nos factos “objetivos” da evolução... A sociedade já não podia usar uma religião tradicional desacreditada como base: era necessária uma nova religião científica baseada no ser humano para salvar a sociedade.»5,6 Este exagero ético da comu­nidade científica não ficou sem contestação por parte de filósofos e teólogos. Uma das principais diferenças de perspetiva entre os teólogos e os cientistas era a importância dada aos meios em oposição aos fins; em concreto, os fins para os quais a EGH seria utilizada. Em suma, muitos filósofos e teólogos defendiam que, se os meios são inconsistentes com os fins da sociedade, então não devem ser utilizados. Esta diferença levou a outros desacordos entre os dois grupos, incluindo desacordos quanto à forma como o debate deveria ser construído. Em resumo, a comunidade científica preferia um debate for­malmente racional, em que a tónica era colocada na melhor forma de atingir os fins (objetivos) acordados ou assumidos, ao passo que os teólogos e os filósofos procuravam um debate substancialmente racional, em que a adequação dos fins fosse incluída nas discussões. O debate formalmente racional pode ser descrito como ‘superficial’ e o debate substancial­mente racional como ‘profundo’. A questão do debate formal ou subs­tancial será objeto de uma análise mais aprofundada no segundo artigo.

Um momento-chave desta história foi a criação, nos Estados Unidos da América, da National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research. A comissão reuniu-se no Centro de Confe­rências de Belmont, em Elkridge, Maryland, de 1974 a 1978, e publicou o seu relatório, Ethical Principles and Guidelines for the Protection of Human Subjects of Research, em 1979.7 [NT: ver uma tradução portuguesa do Rela­tório Belmont AQUI]

Este relatório pode ser visto como o precursor imediato da abordagem dos 4 princípios. A comissão tinha sido criada para analisar a questão da ética na investigação médica quando houvesse seres humanos envolvi­dos. A comissão propôs que certos princípios básicos fossem fundamentais. Eram eles:

· Respeito pelas pessoas - definido como o imperativo de reconhecer a autonomia e o impera­tivo de proteger as pessoas com autonomia reduzida.

· Beneficência - definida como a obrigação de não prejudicar e de maximizar os possíveis be­nefí­cios e minimizar os possíveis danos.

· Justiça - «no sentido de ‘equidade na distribuição’ ou de ‘o que é devido’».

Um dos membros da comissão era o filósofo e especialista em ética Tom Beauchamp. Nessa altura, ele e James Childress, licenciado pela Yale Divinity School e especialista em ética teológica, faziam parte do corpo docente do recém-criado Kennedy Institute of Ethics da Universidade de Georgetown. Enquanto Beauchamp trabalhava no Relatório Belmont, estava também a escrever a primeira edição de Principles of Biomedical Ethics com Childress. No que se refere ao Relatório Belmont, Beauchamp recorda: «Esta redação foi feita exata­mente na mesma altura em que Jim e eu estávamos a redigir os Princípios, e a redação de um influenciaria profundamente a redação do outro nas áreas da ética da investigação e dos princípios gerais».8 É de notar que o coautor de Beauchamp, James Childress, lembra a confusão entre os três princípios do Relatório Bel­mont e os quatro princípios apresentados nos Princípios de Ética Biomédica9 , mas isso parece ser só uma parte da história.

A utilização de princípios orientadores na ética não é nova. No seu livro The Right and the Good, o filósofo W.D. Ross propôs uma série de princípios éticos que designou por ‘princípios éticos autoevidentes’. Eram: respeito pelas pessoas (incluindo o próprio), fidelidade e honestidade, justiça, reparação, beneficência e não-maleficência.10 Embora possa haver alguma sobreposição entre os princípios autoevidentes de Ross e os propostos pelo Relatório Belmont, há uma diferença em termos da forma como são concebidos e como são aplicados. Beauchamp descreve o pensamento subjacente à elaboração da sua abordagem. Ele e Childress citam o que designam por ‘teoria da moralidade comum’, que consiste em normas morais gerais que se apli­cam a toda a vida.11

Princípios alternativos

Outros bioeticistas propuseram os seus próprios princípios. H. Tristram Engelhardt Jr. propôs que os prin­cípios da permissão e da beneficência eram suficientes (neste caso, a permissão para o médico atuar substitui a autonomia).12 Engelhardt reconhece os desafios da bioética numa sociedade moralmente heterogénea e admite a sua própria perspetiva religiosa, que dá forma aos seus princípios. Na sua obra Clinical Ethics: A Practical Approach to Ethical Decisions in Clinical Medicine, Jonsen, Seigler e Winslade sugerem a existência de quatro tópicos-chave a considerar nas questões éticas: indicações médicas, preferências dos doentes, quali­dade de vida e características contextuais.13 Embora haja relativamente pouca literatura sobre este método, considera-se que tem algumas vantagens sobre o método de Beauchamp e Childress em termos de apli­cabi­lidade clínica.14 Influenciado tanto por Ross como por Beauchamp e Childress, Robert Veatch também pro­pôs o seu próprio conjunto de princípios: beneficência, não-maleficência, fidelidade, autonomia, hones­tidade (veracidade) e evitar matar.15 Os quatro princípios de Beauchamp e Childress podem também ser comparados com os identificados pelo projeto europeu BIOMED II relativamente aos Basic Ethical Principles in European Bioethics and Biolaw – autonomia, dignidade, integridade e vulnerabilidade. De notar que a digni­dade inclui a ‘inviolabilidade da vida’ e restrições às ‘intervenções em seres humanos em situações tabu’.16

Princípios e moralidade

Beauchamp e Childress negam que o conjunto de quatro princípios constitua o conjunto completo de normas universais da moralidade comum. Pelo contrário, foram selecionados do conjunto mais vasto de princípios da moralidade comum com o objetivo de construir um quadro normativo para a ética biomédica. A morali­dade comum é composta por princípios, juntamente com regras, virtudes, ideais e direitos, e todos eles são necessários para uma perspetiva moral plenamente formada. Um ponto importante a salientar é que «nenhum dos princípios é moralmente valorizado ou colocado numa ordem hierárquica de importância», pelo que «as questões de peso e prioridade devem ser avaliadas em contextos específicos». 17 Beauchamp resiste à crítica de que o principialismo é apenas um método e não uma teoria concetualmente formada. No entanto, fun­ci­ona claramente como um método e o próprio Beauchamp descreve-o como tal noutro lugar.17 Apesar do apelo à moralidade comum, noutro ponto afirma: «Não parto do princípio de que a bioética está integral­mente ligada à teoria ética filosófica. De facto, assumo que a ligação é contingente e frágil. Muitas pessoas no direito, na ética teológica, na teoria política, nas ciências sociais e comportamentais e nas profissões da saúde abor­dam cuidadosamente as questões principais da bioética sem pensarem que a teoria ética é essencial ou deveras atraente».18 Refere as dificuldades colocadas pela «falta de autoridade distintiva por detrás de qualquer estru­tura ou metodologia, o carácter pouco apelativo e temível de muitas teorias, a natureza inde­terminada das normas gerais de todos os tipos», opinando que «os filósofos morais não convenceram o público interdisci­plinar da bioética, ou mesmo a si próprios, de que a teoria da ética é fundamental para o campo e determi­nante na prática». Conclui com as suas dúvidas sobre «se a teoria ética tem um papel signi­ficativo na bioética».

Impacto do principialismo

Como é que outros consideram o impacto do principialismo no debate bioético? O influente especialista britânico em ética médica Raanan Gillon, professor emérito de ética médica no Imperial College de Londres e antigo editor do Journal of Medical Ethics, é um forte defensor do principialismo. Afirma que «a ética precisa de princípios – quatro podem abarcar o resto». Além disso, considera que o respeito pela autonomia deve ser ‘o primeiro entre iguais’. Gillon vê os princípios como um meio de evitar o que considera ‘dois perigos opos­tos’ – são eles o relativismo moral e o imperialismo moral. 19 Quem defende que existem de facto alguns absolutos morais achará isto preocupante. No entanto, é difícil perceber como é que um profissional que siga os quatro princípios sem uma base mais sólida de crença pode evitar o relativismo moral. Num artigo posterior, Gillon reconhece que «a abordagem não permite métodos universalizáveis nem para resolver esses dilemas morais resultantes do conflito entre os princípios ou os seus derivados, nem métodos univer­salizáveis para resolver desacordos sobre o âmbito desses princípios».20

Outra defensora do principialismo é Ruth Macklin, distinta professora universitária emérita do Albert Einstein College of Medicine, em Nova Iorque.21 Num artigo publicado no Journal of Medical Ethics, contrasta a utilização do principialismo com a abordagem mais intuitiva descrita por Leon Kass como a ‘Wisdom of Repugnance22, rejeitando esta última simplesmente com um ‘yuk23 [NT: reação emocional intensa de nojo]. Macklin tam­bém apoia a afirmação de Beauchamp e Childress de que os princípios se baseiam numa ‘mora­lidade univer­sal’ que é distinta e superior a qualquer ‘moralidade específica da comunidade’.

Objeções ao principialismo

Embora o principialismo tenha sido amplamente adotado como norma e tenha muitos defensores influentes, nem todos apoiam a sua abordagem. Richard Huxtable, professor de Ética Médica na Universidade de Bris­tol, no Reino Unido, destaca quatro críticas ao principialismo.24 Em primeiro lugar, observa que os quatro prin­cípios podem ser vistos como estabelecendo uma posição que é não apenas ocidental, mas de facto anglo-americana. (Este aspeto será abordado em profundidade num próximo artigo.) A segunda crítica apon­tada por Huxtable é que os princípios são inaplicáveis em certos casos, por exemplo, quando o doente não tem autonomia. A terceira objeção é que são inconsistentes, apresentando como exemplo o conflito entre autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça quando se considera o pedido, por um doente, de ajuda médica para morrer. Por último, podem ser vistos como um quadro inadequado para resolver dificuldades éticas, uma vez que não podem ajudar a resolver questões como a morte ajudada, tal como referido ante­riormente. Além disso, são «incapazes de detetar erros e inconsistências na argumentação». Huxtable conclui este artigo reconhecendo que «poder-se-ia ver os princípios como oferecendo um quadro e uma linguagem através dos quais pontos de vista contraditórios podem ser expressos e explorados e, em seguida, o consenso ou, pelo menos, o compromisso pode ser alcançado». No entanto, há que compreender que o principialismo «permite apenas um ponto de partida e não um ponto de chegada da deliberação moral». John Harris con­corda com Huxtable, observando que «embora os princípios constituam uma ‘lista de verificação’ útil, tam­bém ‘permitem uma enorme margem de interpretação e não são excelentes como meio de detetar erros e inconsistências na argumentação».25

Outros encontram problemas mais substanciais no principialismo. Green nota um «evitar quase deliberado de um envolvimento profundo com questões teóricas básicas na teoria ética».26 Isto inclui um ‘varrer para debaixo do tapete’ os potenciais conflitos entre aqueles que defendem uma posição utilitarista e aqueles que favorecem uma abordagem deontológica. Clouser e Gert também consideram que o principialismo é insufi­ciente. «Na melhor das hipóteses, os ‘princípios’ funcionam essencialmente como listas de controlo que no­meiam questões que vale a pena recordar quando se considera uma questão moral biomédica. Na pior das hipóteses, os ‘princípios’ obscurecem e confundem o raciocínio moral devido à sua incapacidade de serem diretrizes e à utilização eclética e não sistemática da teoria moral».27 Em vez de serem uma descrição coerente da moralidade, os princípios, tal como descritos em Principles of Biomedical Ethics, são meramente «títulos de capítulos para uma discussão de alguns conceitos que estão superficialmente relacionados entre si» e, na prática, «funcionam como cabides nos quais se podem pendurar discussões elaboradas de vários tópi­cos». Na ausência de uma teoria moral abrangente e adequada, «os ‘princípios’ são de facto o tribunal de recurso final».

A primeira parte deste artigo passou em revista a história do principialismo e considerou algumas preocupa­ções relativamente à sua aceitação como abordagem padrão para o debate bioético. Uma preocupação espe­cial tem sido a sua tendência para conduzir a um debate pouco aprofundado e a uma racionalidade formal sem uma consideração mais profunda da teoria moral. Esta questão será tratada com maior profundidade na Parte II. <

Clicar AQUI para ver o artigo original

REFERÊNCIAS:

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2. Feather A, Randall D, Waterhouse M. Kumar and Clark’s Clini­cal Medicine. 10th ed. London: Elsevier; 2020.

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4. The Medical Portal. Duke’s Education. Medical ethics: interview prep. [Internet]. London: The Medical Portal; 2023. [cited 2023 Dec 20]. Available from: https://www.themedicpor­tal.com/application-guide/ medical-school-interview/medical-ethics/

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10. Ross WD. The Right and the Good. Oxford: At The Claren­don Press; 1930.

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12. Engelhardt HT. Foundations of Bioethics. 2nd ed. Oxford: Oxford University Press; 1995.

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27. Clouser KD, Gert B. A critique of principlism, J Med Philos. 1990; 15(2): 219-36.