28 agosto 2024

Tirem-nas da gaveta!

Tirem-nas da gaveta!

1. Recebi uma mensagem de correio eletrónico do RENTEV a recordar-me que o meu testamento vital caduca em breve e que posso renová-lo, pois foi feito há 5 anos.

Tenciono fazê-lo no prazo indicado pois continuo convicto de que esse instrumento legal pode ser muito útil se e quando me encontrar em situação de não conseguir manifestar as minhas vontades no final de vida.

As Diretivas Antecipadas de Vontade (Lei n.º 25/2012), mais conhecidas por ‘testamento vital’, incluem a afirmação dessas vontades e ou a indigitação de um ‘procurador de cuidados de saúde’, o qual tem «poderes representativos para decidir sobre os cuidados de saúde a receber, ou a não receber, pelo outorgante, quando este se encontre incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente».

Continua a ser estranho que, quem de direito, ignore os repetidos apelos para um amplo lançamento de ações explicativas que permitam que muitos conheçam e recorram a estas formas de resolver questões tão sensíveis.

Uma tal campanha parece estar esquecida numa qualquer gaveta do Ministério da Saúde. Importa que saia de lá rapidamente!

2. Infelizmente, contudo, essa gaveta tem outros diplomas que tardam a sair. Há mesmo quem pense que estão cobertos de alguma poeira hipócrita…

Depois de, em maio de 2023, ter sido aprovada a Lei n.º 22/2023, que «regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível», aguarda-se a sua regulamentação. A lei aprovada pelo Parlamento e promulgada pelo Presidente da Repúblicas, depois de várias passagens pelo filtro constitucional, ficou dependente do poder governamental. O anterior Governo deixou-a na gaveta e o atual parece pouco disposto a tirá-la de lá.

Há, assim, um nó cego legislativo – a lei só pode entrar em vigor depois de regulamentada mas o poder governamental impede a eficácia do poder parlamentar!

Está na hora de o Parlamento, por iniciativa dos deputados ou da sua Comissão da Saúde, requerer, com caráter urgente, que as entidades nomeadas na lei designem os membros da prevista Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida.

Estas cinco pessoas (indicadas pelos conselhos superiores da Magistratura e do Ministério Público, pelas ordens dos Médicos e dos Enfermeiros e pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida) poderiam desde já participar na elaboração da regulamentação. Esta iniciativa parlamentar teria o mérito de desbloquear o processo (com a vantagem de proporcionar uma boa articulação entre os futuros intervenientes).

3. Há demasiados casos concretos (apesar de cada um ser excecional) de cidadãos e cidadãs que esperam (e desesperam) que a gaveta se esvazie.

24 agosto 2024

Efeméride - 24 de agosto de 1820

Efeméride - 24 de agosto de 1820

Foi há 204 anos que eclodiu no Porto a revolução preparada pelo Sinédrio 


Sinédrio (1818-1820). "Nome que tomou o grupo de indivíduos que, em 24 de agosto de 1820, instauraram no Porto o primeiro regime liberal do País. Fundado por Manuel Fernandes Tomás, desembargador da Relação, a ele aderiram sucessivamente mais doze pessoas, quase todas de especial relevo no seu tempo." [Dicionário de História de Portugal, vol. 5, Joel Serrão (dir.), António Álvaro Dória. Livraria Figueirinhas, 1979, pp. 591 e 592] 

_______________________

NB: convém não confundir liberalismo democrático (fim do absolutismo monárquico) com liberalismo económico (doutrina segundo a qual o Estado não deve intervir na economia), nem com liberalismo de costumes (atitude de não impor padrões de conduta morais à sociedade e às pessoas).

Fernandes Tomás, por Fernandes de Sá, 1911, Figueira da Foz

21 agosto 2024

Comissão Lancet 2024 - relatório sobre demência

The Lancet Commissions

Prevenção, intervenção e cuidados na demência: relatório de 2024 da Comissão Permanente da Lancet

Tradução espontânea do relatório da Lancet publicado em 31.07.2024

Dementia prevention, intervention, and care: 2024 report of the Lancet standing Commission

Gill Livingston, Jonathan Huntley, Kathy Y Liu, Sergi G Costafreda, Geir Selbæk, Suvarna Alladi, David Ames, Sube Banerjee, Alistair Burns, Carol Brayne, Nick C Fox, Cleusa P Ferri, Laura N Gitlin, Robert Howard, Helen C Kales, Mika Kivimäki, Eric B Larson, Noeline Nakasujja, Kenneth Rockwood, Quincy Samus, Kokoro Shirai, Archana Singh-Manoux, Lon S Schneider, Sebastian Walsh, Yao Yao, Andrew Sommerlad, Naaheed Mukadam

Resumo executivo

A atualização de 2024 da Comissão Lancet sobre demência apresenta novas evidências promissoras sobre a prevenção, intervenção e tratamento da demência. À medida que as pessoas vivem mais tempo, o número de pessoas que vivem com demência continua a aumentar, mesmo que a incidência específica da idade diminua nos países de rendimento elevado, o que realça a necessidade de identificar e implementar abordagens de prevenção. Resumimos a nova investigação desde o relatório de 2020 da Comissão Lancet sobre a demência, dando prioridade às revisões sistemáticas e meta-análises e triangulando os resultados de diferentes estudos que mostram como a reserva cognitiva e física se desenvolve ao longo da vida e como a redução dos danos vasculares (por exemplo, através da redução do tabagismo e do tratamento da hipertensão arterial) pode ter contribuído para uma redução da incidência da demência relacionada com a idade. As provas estão a aumentar e são agora mais fortes do que antes de que o combate aos muitos fatores de risco de demência que modelámos anteriormente (ou seja, menos educação, perda de audição, hipertensão, tabagismo, obesidade, depressão, inatividade física, diabetes, consumo excessivo de álcool [ou seja, >21 unidades no Reino Unido, equivalente a >12 unidades nos EUA], traumatismo cranioencefálico [TCE], poluição atmosférica e isolamento social) reduz o risco de desenvolver demência. Neste relatório, acrescentamos as novas provas irrefutáveis de que a perda de visão não tratada e o colesterol LDL elevado são fatores de risco de demência.

Completámos novas meta-análises do risco de perda de audição e de depressão para a demência futura e analisámos e utilizámos a literatura mais recente sobre o risco mundial e as prevalências de todos os fatores de risco para calcular novas frações atribuíveis à população para todos os riscos. Utilizámos as frações atribuíveis à população para criar uma nova perspetiva abrangente da prevenção da demência ao longo da vida, incorporando estes 14 fatores de risco. O potencial de prevenção é elevado e, globalmente, quase metade das demências poderia teoricamente ser prevenida através da eliminação destes 14 fatores de risco. Estes resultados dão-nos esperança. Embora a mudança seja difícil e algumas associações possam ser apenas parcialmente causais, a nossa nova síntese de evidências mostra como os indivíduos podem reduzir o seu risco de demência e discutimos como as intervenções políticas podem melhorar a prevenção da demência. Existe um maior potencial de redução do risco nos países de baixo e médio rendimento e entre os grupos minoritários e socioeconómicos mais baixos, para os quais as novas evidências mostram que existe frequentemente um maior peso do risco modificável do que nos países de rendimento mais elevado e nas populações maioritárias dentro destes, pelo que é mais provável que a demência se desenvolva numa idade mais precoce.

As provas relativas a fatores de risco específicos sugerem que todas as crianças devem ser educadas, sendo benéfica uma longa duração da educação. É importante ser cognitiva, física e socialmente ativo na meia-idade (ou seja, entre os 18 e os 65 anos) e no final da vida (ou seja, com mais de 65 anos), com novas provas que demonstram que a atividade cognitiva na meia-idade faz a diferença mesmo em pessoas que receberam pouca educação. As provas de que o tratamento da perda auditiva diminui o risco de demência são agora mais fortes do que quando o anterior relatório da Comissão foi publicado. A utilização de aparelhos auditivos parece ser particularmente eficaz em pessoas com perda de audição e fatores de risco adicionais de demência. Novas provas sugerem também que o tratamento da depressão e a cessação do tabagismo podem reduzir o risco de demência.

Relatamos a nova descoberta de que a redução da poluição atmosférica está associada a uma melhor cognição e a uma redução do risco de demência. Os decisores políticos devem executar estratégias para melhorar a qualidade do ar, particularmente em áreas com elevada poluição atmosférica. O TCE, em qualquer idade e de qualquer origem, continua a ser um fator de risco para a demência, e novas e melhores provas sugerem que os desportos de contacto representam um risco. Estes dados sugerem que a proteção contra os traumatismos cranianos, nomeadamente através da utilização de equipamento adequado de proteção da cabeça, da redução das colisões de alto impacto e da prática das cabeçadas no treino desportivo, bem como da prevenção da prática de desportos imediatamente após um TCE, deve ser uma prioridade individual e de saúde pública.

Novas provas sugerem que a redução do risco de demência aumenta o número de anos de vida saudável e reduz a duração da doença para as pessoas que desenvolvem demência. As abordagens de prevenção devem ter como objetivo diminuir os níveis dos fatores de risco numa fase precoce (ou seja, quanto mais cedo, melhor) e mantê-los baixos ao longo da vida (ou seja, quanto mais tempo, melhor). Apesar de ser desejável abordar os fatores de risco numa fase precoce da vida, também é vantajoso lidar com o risco ao longo da vida; nunca é demasiado cedo ou demasiado tarde para reduzir o risco de demência. Muitas das evidências sugerem que as intervenções na meia-idade são importantes, mas alguns fatores de risco têm a sua origem a nível social e ao longo da vida. Todos os fatores de risco abrangidos pelo presente relatório têm potencial para serem reduzidos em grande escala através de alterações políticas que afetem o risco ao longo da vida. Outras provas sugerem que estas alterações são frequentemente económicas e, pela primeira vez, é evidente que o risco pode ser modificado mesmo em pessoas com um risco genético aumentado de demência.

Principais mensagens

Dois novos fatores de risco modificáveis para a demência

Novas provas apoiam o aditamento da perda de visão e do colesterol elevado como fatores de risco potencialmente modificáveis para a demência aos 12 fatores de risco identificados na nossa Comissão Lancet de 2020 (ou seja, menos educação, traumatismo craniano, inatividade física, tabagismo, consumo excessivo de álcool, hipertensão, obesidade, diabetes, perda de audição, depressão, contacto social pouco frequente e poluição atmosférica).

A modificação de 14 fatores de risco pode prevenir ou atrasar quase metade dos casos de demência

Ser ambicioso em matéria de prevenção. A prevenção implica mudanças de políticas a nível governamental nacional e internacional e intervenções individuais personalizadas. A política baseada na população deve dar prioridade à equidade e garantir a inclusão dos grupos de alto risco. As ações para diminuir o risco de demência devem começar cedo e continuar ao longo da vida. O risco está concentrado nos indivíduos; por conseguinte, as intervenções devem ser frequentemente multidisciplinares.

O risco é modificável independentemente do fator genético APOE. As intervenções multifacetadas que abordam vários fatores de risco são potencialmente benéficas quer para os indivíduos com risco genético elevado quer para os de baixo risco de demência.

Ações específicas para reduzir o risco de demência ao longo da vida

Recomendamos várias ações específicas para os 14 fatores de risco:

• Assegurar a disponibilidade de uma educação de qualidade para todos e incentivar atividades cognitivamente estimulantes na meia-idade para proteger a cognição

• Tornar os aparelhos auditivos acessíveis às pessoas com perda de audição e diminuir a exposição a ruídos nocivos para reduzir a perda de audição

• Tratar eficazmente a depressão

• Incentivar o uso de capacetes e de proteção da cabeça nos desportos de contacto e nas bicicletas

• Incentivar o exercício físico porque as pessoas que praticam desporto e exercício têm menos probabilidades de desenvolver demência

• Reduzir o consumo de cigarros através da educação, do controlo dos preços e da prevenção do consumo de tabaco em locais públicos e tornar acessíveis os serviços de aconselhamento para deixar de fumar

• Prevenir ou reduzir a hipertensão e manter a tensão arterial sistólica igual ou inferior a 130 mm Hg a partir dos 40 anos

• Detetar e tratar o colesterol LDL elevado a partir da meia-idade

• Manter um peso saudável e tratar a obesidade o mais cedo possível, o que também ajuda a prevenir a diabetes

• Reduzir o consumo elevado de álcool através do controlo dos preços e de uma maior sensibilização para os níveis e riscos do consumo excessivo

• Dar prioridade a ambientes e alojamentos comunitários favoráveis às pessoas idosas e reduzir o isolamento social, facilitando a participação em atividades e a convivência com outras pessoas

• Tornar o rastreio e o tratamento da perda de visão acessíveis a todos

• Reduzir a exposição à poluição atmosférica

Recomendações para pessoas com demência

As intervenções após o diagnóstico ajudam as pessoas a viver bem com a demência, incluindo o planeamento do futuro. As intervenções multidisciplinares para lidar com os familiares prestadores de cuidados e gerir os sintomas neuropsiquiátricos são importantes e devem ser centradas na pessoa.

Os sintomas neuropsiquiátricos devem ser tratados e existem provas claras de que as intervenções multidisciplinares coordenadas pelos cuidados são úteis. As intervenções ativas também reduzem os sintomas neuropsiquiátricos e são importantes para manter o prazer e o objetivo das pessoas com demência. Não existem provas de que o exercício físico seja uma intervenção para os sintomas neuropsiquiátricos.

Os inibidores da colinesterase e a memantina devem ser administrados a pessoas com doença de Alzheimer e demência com corpos de Lewy. Estes medicamentos são baratos, com relativamente poucos efeitos secundários; atenuam a deterioração cognitiva de forma modesta, com boas provas de um efeito a longo prazo; e estão disponíveis na maioria dos países de rendimento elevado, embora menos nos países de rendimento baixo e médio.

Há progressos e esperança em relação aos tratamentos modificadores da doença de Alzheimer, com alguns ensaios de anticorpos que visam a β-amiloide a mostrarem uma eficácia modesta na redução da deterioração após 18 meses de tratamento. No entanto, os efeitos são pequenos e os medicamentos foram testados em pessoas com doença ligeira e em pessoas com poucas outras doenças. Estes tratamentos foram autorizados em alguns países, mas têm efeitos secundários notáveis, com poucos dados sobre os efeitos a longo prazo. O custo destes tratamentos e as precauções que têm de ser tomadas, com implicações em termos de recursos humanos, exames e análises de sangue especializadas, podem limitar a sua utilização e constituir um desafio para os sistemas de saúde. Recomendamos que seja amplamente partilhada informação completa sobre os efeitos desconhecidos a longo prazo, a ausência de dados sobre os efeitos em pessoas com multimorbilidade e a escala de eficácia e efeitos secundários, particularmente para os portadores do genótipo APOE ε4. Recomendamos que as pessoas que tomam anticorpos dirigidos contra a amiloide-β sejam cuidadosamente monitorizadas.

Os biomarcadores do líquido cefalorraquidiano ou do sangue devem ser utilizados clinicamente apenas em pessoas com demência ou défice cognitivo para ajudar a confirmar ou excluir o diagnóstico da doença de Alzheimer. Os biomarcadores só estão validados em populações maioritariamente brancas, o que limita a sua generalização e suscita preocupações em termos de equidade na saúde.

As pessoas com demência que sofrem de um mal-estar físico agudo e precisam de ser internadas no hospital deterioram-se cognitivamente mais depressa do que as outras pessoas com demência sem estas circunstâncias. É importante proteger a saúde física e garantir que as pessoas tenham ajuda, se necessário, para garantir que comem e bebem o suficiente e que podem tomar a medicação.

A COVID-19 expôs a vulnerabilidade das pessoas com demência. Temos de aprender com esta pandemia e também proteger as pessoas com demência, uma vez que as suas vidas e o seu bem-estar, bem como o das suas famílias, foram menos valorizados do que os das pessoas sem demência.

Ver Relatório original AQUI

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16 agosto 2024

Efeméride - 16 de agosto de 1867

Faz hoje 157 anos que nasceu António Nobre


por Irene Vilar // por Tomás Costa
Esc. Sec. António Nobre, rua Aval de Cima // jardim da Cordoaria, Porto

Portuense de nascimento [...] ingressa na vida diplomática, mas a tuberculose não o deixa exercer a profissão. [...] A única obra que edita em vida, Só (1892), considerada pelo autor “O livro mais triste que há em Portugal”, impõe-no como um dos nossos maiores e mais originais e influentes poetas. 
Breve Dicionário de Autores Portugueses, A. M. Couto Viana. Verbo, 1985, p. 16

12 agosto 2024

Mais tempo para pensar

Vol 631 | 709 | 25.07.2024

Os cientistas precisam de mais tempo para pensar

Tradução espontânea do recente editorial não assinado da Nature

Scientists need more time to think

O correio eletrónico e as mensagens instantâneas são fundamentais para a investigação, mas também são uma distração. Os investigadores devem estudar o seu impacto na ciência e como podem voltar a ter tempo para se concentrarem.

  Videochamadas. Mensagens instantâneas. Chamadas de voz. Correio eletrónico. Redes sociais. Smartphones. Tablets. Computadores portáteis. Computadores de secretária. Mais dispositivos digitais equivale a menos tempo para nos concentrarmos e pensarmos. Os efeitos negativos desta situação para os investigadores são abordados pelo cientista informático Cal Newport no seu último livro, “Diminuir a Produtividade” (Slow Productivity)1.

  O título do livro contraria a ideia, comum a muitos locais de trabalho, de que a produtividade deve sempre aumentar. Um estudo demonstrou que a ciência está a tornar-se menos disruptiva, apesar de haver agora mais artigos publicados e bolsas atribuídas do que nunca2. Newport, que estuda as tecnologias nos locais de trabalho na Universidade de Georgetown, em Washington DC, afirma que os investigadores e outros trabalhadores do conhecimento precisam de abrandar e passar mais tempo a pensar, para se concentrarem em manter e melhorar a qualidade do seu trabalho.

  Newport presta um serviço à comunidade de investigação ao chamar a atenção para uma sobrecarga de trabalho. As instituições já deveriam estar a aceder aos conhecimentos especializados que existem dentro das suas paredes na procura de respostas, mas não o estão a fazer. As novas tecnologias de comunicação têm gerado enormes benefícios, incluindo a aceleração da investigação, como foi tão necessário durante a pandemia de COVID-19. Mas também estão a reduzir o tempo de reflexão. O livro de Newport lembra-nos que há investigadores que sabem como ajudar.

Parar, largar e pensar

  O tempo de reflexão – o tempo necessário para se concentrar sem interrupções – sempre foi fundamental para o trabalho académico. É essencial para conceber experiências, compilar dados, avaliar resultados, rever a literatura e, claro, escrever. No entanto, o tempo de reflexão é frequentemente subvalorizado; raramente, ou nunca, é quantificado nas práticas de emprego.

  Uma forma de pensar, na prática, como conciliar a investigação com o correio eletrónico e as mensagens instantâneas é visualizar alguém a trabalhar junto a uma caixa de correio física. Imagine-se a abrir e a ler todas as cartas assim que chegam, e a começar a escrever uma resposta, mesmo quando mais cartas passam pela caixa – ao mesmo tempo que tenta fazer o seu trabalho principal. Os investigadores dizem que as suas listas de tarefas tendem a aumentar, em parte porque os colegas podem contactá-los instantaneamente, muitas vezes por boas razões. Os investigadores também têm muitas vezes de escolher o que deve ser prioritário, o que pode fazer com que se sintam sobrecarregados.

  Newport dá sugestões para recuperar o tempo de reflexão, incluindo a limitação do número de itens nas listas de afazeres e criar equipas de projeto que reservam tempo para completar tarefas que requerem a participação de todos os membros, evitando assim que cada membro envie e-mails uns aos outros. Para as instituições, Newport recomenda um sistema transparente de gestão da carga de trabalho – uma forma de os diretores verem tudo o que se espera que um colega faça – e depois ajustar a carga de trabalho se houver mais tarefas do que o tempo disponível.

  É sem dúvida um bom conselho, mas pode ser mais fácil de concretizar em ambientes industriais do que em ambientes académicos. Em muitos laboratórios de investigação académica, os investigadores respondem perante um único investigador principal, com pouca estrutura de gestão. Isto deve-se em parte ao facto de ser difícil justificar aos financiadores académicos o orçamento destinado ao pagamento de funções de gestão e administração.

  Mas Felicity Mellor, investigadora de comunicação científica no Imperial College de Londres, é cética quanto a dar aos gestores um papel a desempenhar no tempo de reflexão. Em muitos casos, os investigadores já estão a sentir o peso dos sistemas de monitorização e avaliação da sua instituição. Mellor argumenta que a inclusão de mais uma caixa num formulário de avaliação pode não ser bem aceite. Também pensa que as instituições não o vão aceitar. “Consegue imaginar a reação se um cientista preenchesse uma folha de horas onde dissesse ‘oito horas passadas a pensar’?” Em última análise, diz ela, a criação de uma cultura de investigação mais favorável necessita de uma mudança muito mais fundamental. Isso sugere uma reformulação ainda mais radical do atual modelo de financiamento da investigação académica, como escrevemos no mês passado (ver Nature 630, 793; 2024), juntamente com alterações noutros aspetos da ciência académica.

Controlo de qualidade

  A tese de Newport levanta uma questão muito mais fundamental: qual é o impacto da perda de tempo de concentração na ciência – não apenas na estrutura e no processo da ciência, mas também no conteúdo e na qualidade da investigação?

  Em 2014, Mellor colaborou num projeto de investigação, financiado pelo Arts and Humanities Research Council do Reino Unido, chamado The Silences of Science, publicado como livro dois anos depois3. Os investigadores examinaram esta questão e outras numa série de sessões de trabalho, mas o estudo não teve continuidade após o fim da bolsa. Estas explorações precisam de ser retomadas, mas também precisam de incorporar o impacto das tecnologias de inteligência artificial. Estas ferramentas estão a ser utilizadas a um ritmo acelerado em todo o mundo para automatizar muitas tarefas administrativas de rotina. Os investigadores têm de avaliar se essas ferramentas podem libertar mais tempo de reflexão para os investigadores ou se podem ter o efeito contrário.

  As tecnologias de comunicação irão certamente evoluir ainda mais e continuar a distrair os investigadores do seu trabalho. São urgentemente necessários mais estudos que investiguem o efeito destas tecnologias na ciência, bem como estudos sobre a forma como o tempo de reflexão pode ser protegido num mundo de comunicação instantânea. Este conhecimento ajudará os investigadores e os dirigentes institucionais a tomarem melhores decisões sobre a utilização das tecnologias e, esperemos, permitirá aos investigadores criar o tão importante espaço e tempo para poderem pensar. <

 

1. Newport, C. Slow Productivity: The Lost Art of Accomplishment Without Burnout (Portfolio, 2024).
2. Park. M et al. Nature 613, 138–144 (2023).
3. Mellor, F. & Webster, S. The Silences of Science: Gaps and Pauses in the Communication of Science (Routledge, 2016).

10 agosto 2024

O dilema do chamamento da morte


The Annals of Family Medicine July 2024, 22 (4) 350-351

O dilema do chamamento da morte
Tamara A. Huson

Tradução espontânea do artigo
The Dilemma of Death’s Call

Sentou-se no meu gabinete a sorrir. Com um corte de cabelo elegante, cabelo branco, camisa clara, parecia agradavelmente satisfeito. No entanto, em contraste com esta cena serena, disse claramente: “Já ultrapassei o meu tempo de validade”.

Apenas dois dias antes, ele tinha preenchido um questionário prévio à consulta através do portal de doentes online. Chegou sem cerimónias à minha caixa de correio eletrónico. Normalmente, elimino-os, preferindo entrevistas presenciais. Apareceu um alerta intermitente porque carreguei no botão do lixo: “Aviso C-SSRS - Confirmar eliminação.” Era a Columbia-Suicide Severity Rating Scale? (Anexo 1). Abri o questionário.

Eu conhecia bem este doente e tinha-o visto recentemente. Anteriormente empregado num trabalho analítico fatigante, tinha manifestado vontade de se reformar nos seus “anos dourados”. Também tinha ficado viúvo recentemente. A sua amada de décadas tinha lutado corajosamente. Acabara por chegar ao fim da vida em paz, graças aos cuidados paliativos. “É assim que todos nós desejamos ir”, declarou ele na altura. Por isso, quando o C-SSRS assinalou “Alto Risco”, pestanejei duas vezes, com a testa contraída.

Telefonei-lhe imediatamente.

“Olá, doutora!”, respondeu ele reconhecendo o meu número. “Eu sabia que ia ter notícias suas”, disse ele a rir-se. “Peço desculpa por ter respondido tão francamente. Estava a tentar ser honesto consigo e comigo próprio.”

“Por favor, não peça desculpa. Quero que seja sincero. Como é que posso ajudar?”

A sua resposta foi muito clara e sincera. Negou ter pensamentos suicidas ou planos/ações específicos para se lesar a si próprio. No entanto, referiu sentir-se muito “triste”. Era sexta-feira à tarde e a nossa próxima consulta seria na segunda-feira seguinte. Antes da nossa consulta, expliquei-lhe com ênfase o que fazer se entrasse em crise. Ele repetiu cuidadosamente os passos para se certificar de que eu tinha comunicado claramente. Dei-lhe o número da Linha Nacional de Apoio ao Suicídio, que ele anotou dizendo com tristeza: “Sabe que não vou precisar disto, doutora, mas obrigado”.

O fim de semana parecia interminável porque me preocupava com ele. Felizmente, ele foi uma das minhas primeiras consultas na segunda-feira. Quando entrei, preparei-me para uma consulta emocionalmente carregada. Aconteceu o contrário. O seu sorriso caloroso era o mesmo de que me lembrava, talvez até mais.

Entrámos logo em ação.

Contou que, durante a doença da mulher, tinha sido o seu principal prestador de cuidados. Talvez se tenha reformado por isso, refletiu com hesitação. Viu-a não sucumbir, mas encontrar a paz com o seu diagnóstico terminal. Apoiou-a enquanto ela morria com naturalidade, facilmente, à sua maneira. Perguntei-lhe sobre o luto – seria isso parte do que ele estava a sentir agora?

Ele pensou na minha pergunta. Seguiu-se um silêncio longo, mas não incómodo. “Acho que não. Estou numa altura da vida em que já fiz tudo o que queria. Já ultrapassei o meu tempo de validade”. Disse-me que os seus filhos adultos tinham vidas ocupadas. Estava com eles e com os netos de forma intermitente. No entanto, estava limitado pelas dores crónicas. Era difícil sair de casa. Não queria ser um fardo. Perguntei-lhe quais eram os seus passatempos, interesses e paixões atuais. Ele sorriu: “Doutora, um homem só pode ver muitos westerns”. Mais a sério, disse: “Acho que quando se chega a uma certa idade, nós, os mais velhos, devemos poder escolher quando e como partir. Não tenho medo de morrer”.

Os seus sentimentos pareciam mais complexos do que uma falta de interesse nos seus prazeres habituais. Tinha atingido os objetivos que desejava e tinha visto mundo. Os seus dias de glória tinham passado, mas ele encontrava conforto nisso, não na perda. Era uma espécie de tédio; uma ausência de objetivos. Manifestava incerteza sobre o que fazer para viver – semelhante a empreender uma viagem com alegria no início, mas agora ansioso por saber exatamente quando chegará ao seu destino. Para mim, a sua solidão era palpável.

Falámos de medicamentos para a depressão, mas parecia uma conversa de circunstância. Não me pareceu que ele estivesse disposto a aceitar. Quando sugeri que frequentasse um centro de idosos, lembrou-me a sua dor crónica. “E que tal o YMCA (Associação Cristã da Mocidade)? Eles têm uma piscina aquecida. Pode fazer fisioterapia com aeróbica aquática e conhecer pessoas.” Ele acenou com a cabeça, parecendo considerar a sugestão.

Nenhum de nós disse “eutanásia” – talvez seja muito tabu – mas a nossa conversa parecia estar impregnada disso. Falámos da bênção de morrer durante o sono e da inacreditável misericórdia dos cuidados paliativos. Lamentou suavemente o complicado estigma social e as implicações espirituais de querer escolher como/quando morrer. Acenei com a cabeça, sentindo-me impotente. Falámos abertamente da medicina moderna e das consequências de vivermos mais tempo. Falámos do isolamento e de enfrentar a nossa própria morte com dignidade e autonomia, muito depois de os entes queridos terem partido. Quando terminámos, senti-me destroçada e frustrada pela falta de solução. Comprometemo-nos a que começasse a fazer medicação e prometi telefonar-lhe dentro de duas semanas para saber como estava.

Depois de ele se ter ido embora, ficou um ambiente pesado. A minha garganta estava irritada e os meus olhos tinham espinhos. Como médica e humana, foi a mais difícil das conversas. Grande parte daquela consulta tinha sido constituída por frases vagas, muitas das quais se arrastavam sem fim. Era uma pequena sala cheia de silêncios e perguntas sem resposta.

Cuidar de uma população envelhecida requer conhecimentos específicos que devem ser aprofundados. Muitas vezes, as coisas que não fazem parte do envelhecimento normal são incorretamente atribuídas à “velhice” e ignoradas. Os declínios cognitivos e funcionais, o envelhecimento e o isolamento social não têm tratamentos algorítmicos fáceis. Mesmo os instrumentos clínicos mais utilizados podem ser inadequados para os adultos mais velhos. O Patient Health Questionnaire (PHQ) (Anexo 2), por exemplo, é habitualmente utilizado para rastrear, diagnosticar e monitorizar a depressão. O registo médico eletrónico do nosso consultório utiliza-o. No entanto, na minha opinião, é inferior ao Geriatric Depression Screen (GDS) (Anexo 3) para adultos mais velhos. Este último foi concebido especificamente para esta população. Não é de surpreender que a depressão geriátrica seja frequentemente sub-reconhecida e subtratada. 1, 2

A depressão do meu doente poderia facilmente ter passado despercebida. Exteriormente, parecia feliz e a sua pontuação no PHQ era “ligeira”. O seu GDS, no entanto, era positivo para depressão.

Os doentes procuram frequentemente soluções junto dos médicos. Por vezes, é difícil dar apoio e custa apenas ouvir quando não existem soluções fáceis. Isto pode ser especialmente verdade nos cuidados geriátricos: é difícil falar sobre a morte. Os comentários e as perguntas dos meus doentes mexem comigo. Tal como tantas perguntas sem resposta discutidas nesse dia, não tenho a certeza de como termina a sua história. Mas talvez seja esse o objetivo quando se trata de cuidar adequadamente de doentes mais velhos. Não existe um modelo pronto a usar, nem um modelo único para todos. O trabalho deve ser personalizado, delicado e nem sempre termina em encaminhamentos rápidos ou no bloco de receitas. Requer subtileza, paciência e compaixão. Exige parceria e renúncia aos nossos desejos médicos de resolver os problemas rapidamente. São cuidados que precisam de existir em zonas cinzentas, porque, ao contrário do final de um filme, a vida não termina com um conveniente desvanecimento da imagem. <

 Referências:
1. Barry LC, Abou JJ, Simen AA, Gill TM. Under-treatment of depression in older persons. J Affect Disord. 2012;136(3):789-796. 10.1016/j.jad.2011.09.038
 2. Kok RM, Reynolds CF III. Management of depression in older adults: a review. JAMA. 2017;317(20):2114-2122. 10.1001/jama.2017.5706

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08 agosto 2024

Efeméride - 8 de agosto de 1453

Foi há 571 que chegou ao Porto o corpo de S. Pantaleão

Relicário, Museu Nacional Soares dos Reis
Padroeiro do Porto durante séculos e padroeiro dos médicos 

Rua da ARMÉNIA (Miragaia, Porto)
Quer uma velha tradição que esta rua da freguesia ribeirinha de S. Pedro de Miragaia deva o seu nome à moradia que ali tiveram um bispo arménio e seus companheiros, quando, a 8 de agosto de 1453, demandaram a barra do Douro, para irem acolher-se, com o seu barco, ao ancoradouro do areal de Miragaia. Haviam deixado Constantinopla quando da queda do império romano do Oriente para salvarem o corpo do mártir São Pantaleão, até então recolhido e venerado num rico túmulo da igreja de Santa Sofia. 
«Rua da Arménia, apontamentos toponímico-históricos», sem indicação de autor, O Tripeiro, VII série, ano IV, n.os 11-12, novembro/dezembro de 1995, p. 205