26 maio 2024

Os médicos e a proteção do clima

O dever dos médicos em matéria de proteção do clima como expressão da sua identidade profissional: uma defesa a partir do quadro moral neo-kantiano de Korsgaard

Henk Jasper van Gils-Schmidt, Sabine Salloch

Tradução da conclusão do artigo publicado no Journal of Medical Ethics em 22.05.2024

Physicians’ duty to climate protection as an expression of their professional identity: a defence from Korsgaard’s neo-Kantian moral framework

(...) 

Resumo e perspetivas

Os membros da profissão médica e a própria profissão não podem permanecer em silêncio perante as enormes ameaças que as alterações climáticas representam para a saúde humana global e para o futuro. Embora seja frequente o apelo à ação a nível internacional e em vários outros contextos, são raras até agora as análises bioéticas teóricas sobre os antecedentes e o âmbito dos deveres dos médicos relacionados com o clima. Este artigo fez uma primeira tentativa de utilizar a descrição neokantiana de Korsgaard das identidades práticas para proporcionar uma melhor compreensão das questões normativas em jogo, estruturando os conflitos entre os cuidados individuais dos doentes e a proteção do clima, e conceptualizando a transformação do ethos profissional dos médicos.

As limitações do nosso relato decorrem do facto de, utilizando a teoria de Korsgaard, abordarmos principalmente o decisor individual e as suas identidades práticas. Contudo, uma grande parte das decisões relevantes em matéria de proteção climática são tomadas aos níveis meso e macro das instituições e sistemas de cuidados de saúde, respetivamente, envolvendo muitos intervenientes e estruturas sociais diferentes que não abordámos neste artigo. Mais ainda, estes aspetos não são obviamente conceptualizados na teoria de Korsgaard, uma vez que esta se centra nas capacidades de tomada de decisão do indivíduo e nos seus compromissos com identidades práticas específicas. No entanto, a teoria de Korsgaard deixa em aberto quais são os deveres que o nosso compromisso com uma identidade nos obriga e que a responsabilidade pelos deveres que constituem uma identidade não cabe apenas ao indivíduo. Isto é especialmente verdade para a profissão médica, como já defendemos noutro lugar, uma vez que ser profissional de medicina é definido por práticas intersubjetivas que abrangem a profissão médica enquanto comunidade e a sociedade em geral. Atribuir responsabilidade a indivíduos por questões que têm de ser resolvidas numa perspetiva sistémica é uma falha generalizada nos discursos éticos e não deve ser repetida em relação aos médicos e às alterações climáticas.

Na nossa análise, chegamos à conclusão de que a posição de um médico em relação à proteção do clima não é uma questão privada, mas está profundamente enraizada na sua autocompreensão e na identidade prática que partilha com os colegas médicos. Isso tem consequências notáveis a nível individual e profissional. Se estivermos corretos, os médicos não devem continuar a considerar o seu comportamento em relação ao clima como uma questão de escolha pessoal ou de ideologia política. Em vez disso, tem de estar ligado ao seu desempenho profissional global, que é orientado e normalizado pela profissão. As organizações profissionais de médicos devem então aceitar o alargamento do seu mandato e considerar as questões das alterações climáticas relacionadas com a saúde como parte da sua atividade genuína.

Numa perspetiva prática, vemos a necessidade de promover uma maior consciencialização neste sentido. Do ponto de vista da bioética, como disciplina académica, encorajaríamos outros académicos a contribuir e a utilizar as suas "ferramentas" e competências teóricas e metodológicas para esclarecer questões prementes na intersecção entre a ética profissional dos médicos e as alterações climáticas como uma questão de saúde.

Ver todo o artigo original AQUI

24 maio 2024

Efeméride - 24 de maio de 1898

Faz hoje 126 anos que nasceu Ferreira de Castro (24.05.1898-29.06.1974)

«Com pouco mais de 12 anos, emigrou para o Brasil, a tentar fortuna. Uma estada de quatro anos na região amazónica deu-lhe experiência para escrever a sua obra-prima, o romance A Selva, um dos livros portugueses mais traduzidos no Mundo. Em 1919, regressou a Portugal, prosseguindo a sua carreira de jornalista. [...] Continuou a editar vários romances até 1928, quando vem a lume Emigrantes, considerado pelo autor o seu primeiro livro definitivo. Seguiram-se: Eternidade, Terra Fria, A Tempestade, A Lã e a Neve, etc. É autor de obras de reportagem cultural, como Pequenos Mundos e Velhas Civilizações e A Volta ao Mundo.» [Breve Dicionário de Autores Portugueses, António Manuel Couto Viana. Verbo, 1985, p. 31]

«O Movimento de Unidade Democrática desperta em outubro de 1945 e Ferreira de Castro encontra-se nele envolvido desde a primeira hora, sendo citado no processo que a PIDE inicia relativo aos membros da Comissão Central do movimento.» [Brandos Costumes... – O Estado Novo, a PIDE e os intelectuais, Luís Reis Torgal. Temas e Debates, 2022, p. 144]

“Sonho de uma humanidade”, homenagem a Ferreira de Castro, por José Rodrigues, 1988, avenida D. Carlos I, Porto
Ferreira de Castro, por António Duarte Silva Santos, 
Museu António Duarte, Caldas da Rainha

18 maio 2024

Se o autismo não é uma doença mental, o que é?


Se o autismo não é uma doença mental, o que é?
Elliot Gavin Keenan

Tradução espontânea do artigo de opinião publicado em janeiro de 2023
If Autism Isn’t a Mental Illness, What Is?
e de um comentário de um leitor também autista 

O meu nome é Elliot. Sou um psicólogo autista com transtorno bipolar 1 (e TDAH – transtorno de défice de atenção e hiperatividade). Fui citado de passagem [1] [2] em artigos de jornais sobre investigadores autistas, mas prefiro manter-me no lado científico das coisas. Normalmente só uso o Twitter para entretenimento pessoal, por vezes arrependendo-me quando peso os prós e os contras de me envolver nos debates sobre o autismo. Não me envolvo demasiado na defesa de causas. Na maior parte das vezes, mantenho as minhas opiniões sobre assuntos controversos de forma discreta, independentemente do lado em que estou. Este texto não segue essa tendência.

Não é raro ouvir pessoas oporem-se à classificação do autismo como uma doença mental. É quase um dado adquirido que o autismo não se enquadra nessa categoria. Talvez fique surpreendido com a forma como as pessoas tentam justificá-lo quando perguntamos "Porque é que não é uma doença mental?" De facto, quando pressionadas, as respostas mais comuns são do tipo:

    "O autismo é uma deficiência do desenvolvimento neurológico" / " Nasce-se com autismo"

    "O autismo não é uma doença" / "O autismo não precisa de ser tratado"

    "As pessoas autistas não são como *aquelas* pessoas"

O elemento comum a todas estas respostas é a falta de compreensão do que são as doenças mentais e do que vivenciam as pessoas com doenças mentais. A pergunta que quero fazer é a seguinte: Se o autismo não é uma doença mental, o que é?

Não sou insensível à causa de não rotular as pessoas como tendo uma "doença" por serem neurodivergentes, mas porque é que se pode fazer isso a pessoas esquizofrénicas e não a pessoas autistas? Há muitas pessoas insanas que não veem o seu diagnóstico como uma doença, embora as opiniões na comunidade psiquiátrica sejam variadas sobre este assunto. Alguns consideram os rótulos diagnósticos como uma prisão e outros como uma dádiva. Vivemos de facto com muitos rótulos.

As doenças mentais assumem muitas formas. Algumas delas são corretamente classificadas como "deficiências do neurodesenvolvimento" (incluindo o espectro esquizo, a perturbação bipolar e a TDAH - entre possivelmente muitas outras). Os distúrbios que acabei de mencionar são predominantemente causados pela genética e, portanto, estão presentes à nascença. A expressão muda de facto com o tempo – mas as pessoas autistas não têm qualidades que mudam à medida que crescem e aprendem?

As pessoas recusam-se a reconhecer as semelhanças entre o autismo e a esquizofrenia (e outras doenças mentais graves).

Quero reconhecer isto abertamente: penso que grande parte da nossa comunidade é preconceituosa. Muitas pessoas autistas têm vieses de sanidade e têm perpetuado mal-entendidos.

O meu próprio terapeuta tentou uma vez convencer-me, depois de eu ter admitido ter tido delírios há poucos dias, que eu estava apenas a referir-me a pensamentos "demasiado rígidos" devido ao meu autismo. Os meus sintomas psicóticos estavam a ser falsamente atribuídos ao meu autismo e não estava a ser dada a devida atenção ao que era necessário.

No mundo real, as pessoas autistas correm um risco elevado de serem confundidas com esquizofrénicas e levadas para as urgências para avaliação psicológica quando estão em sofrimento. As pessoas podem ser tratadas de forma horrível. Mas em vez de darmos um passo atrás e dizermos "Porque é que tratamos as pessoas com doenças mentais de forma horrível?", decidimos que isso não é connosco e repetimos "O autismo não é uma doença mental". Consideramos que as pessoas neurodivergentes não autistas (e algumas autistas!) são o Outro.

Para ser sincero, acho que algumas pessoas autistas têm medo da loucura.

Talvez tenham medo de pessoas que possam ser erráticas, difíceis de prever ou que tenham reações emocionais dramáticas.

Existem razões para distinguir o autismo das condições que consideramos "doença mental"? Não vejo justificação para considerar o autismo tão singularmente único em relação a outras condições. É possível que, no futuro, possamos redefinir e eliminar completamente o rótulo de "doença mental". Estou interessado em ver como a linguagem evolui para as pessoas neurodivergentes. Espero ainda mais que as pessoas da comunidade autista abordem a comunidade psiquiátrica com a mente aberta, e não com medo ou preconceitos. Vejo esperança num futuro de solidariedade entre pessoas com deficiências.

[1] https://undark.org/2019/07/11/being-autistic-at-an-autism-research-conference/

[2] https://www.spectrumnews.org/features/deep-dive/meet-the-autistic-scientists-redefining-autism-research/

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Comentário de Kim, Canadá

(Sou um adulto desempregado, com diagnóstico de autismo, licenciado pela Universidade, que tem estado envolvido na autodefesa do autismo desde a sua infância. Passei a maior parte dos últimos 30 anos a lidar com a depressão e o trauma resultantes da perspetiva capacitista da sociedade sobre a deficiência em geral e o autismo em particular.)

Embora concorde consigo porque sempre achei estranho o facto de o autismo se ter tornado subitamente, nos últimos anos, na sua própria categoria de deficiência, de algum modo magicamente separada de qualquer outra forma de deficiência mental, devo dizer que é muito importante que as pessoas reconheçam que o autismo não é uma doença mental. As teorias psicológicas anteriores sobre o autismo eram extremamente prejudiciais para todos os que estavam envolvidos com pessoas autistas. O reconhecimento de que as pessoas autistas são pessoas "completas" e que é possível ser autista e mentalmente saudável é essencial. O facto de termos emoções como toda a gente, e de não sermos, de facto, imunes a problemas de saúde mental, mas sim mais suscetíveis a eles, devido ao capacitismo como à discriminação, foi um desenvolvimento enorme, mas recente, na história do autismo! (há menos de uma década atrás). O facto de termos direito à personalidade e, por conseguinte, a um tratamento humano, é algo pelo qual muitos dos nossos ainda lutam e que muitas vezes lhes é negado!

Não foi há muito tempo que os "especialistas" (incluindo pais que pensavam que sabiam melhor do que as pessoas autistas o que era ser autista) afirmavam que éramos incapazes de ter qualquer perceção das nossas próprias experiências, das nossas próprias vidas, e que, portanto, pela própria natureza do nosso autismo, não tínhamos direito às proteções que outras populações deficientes há muito tinham recebido (incluindo a personalidade e uma palavra a dizer sobre as nossas próprias vidas). Isso porque éramos considerados versões "patológicas" de NT [neurologically typical], inerentemente defeituosos, e "em nossos próprios mundos", tendo "virado as costas" para o mundo ao nosso redor como resultado de um trauma, ou algum outro transtorno.

Reconhecer o autismo como uma questão de neurodesenvolvimento permitiu-nos muitas proteções que nos eram historicamente negadas, e a capacidade de participar na sociedade de formas que nunca nos foram permitidas antes.

Neste momento, parece que a terminologia está em transição, à medida que as pessoas compreendem cada vez mais o autismo e que a ciência progride na compreensão de tantas outras condições. Eventualmente, espero que cheguemos a algo menos confuso, enquanto sociedade, mas até lá, penso que faz bem à sociedade começar a considerar a diversidade de todos os tipos mais como um conceito "normal", e que abraçar a ideia de neurodiversidade ajuda a isso.

Dito isto, não concordo com qualquer tipo de discriminação ou opressão, e penso que o atual movimento da neurodiversidade sofre de demasiada divisão e falta de abertura e ligação com a comunidade mais alargada dos direitos dos deficientes, talvez mesmo com a comunidade humana mais alargada. Devíamos estar a apoiar-nos uns aos outros, não a lutar uns com os outros. Excluir os NT também não é uma estratégia eficaz. Mesmo que possa ser fácil sentir ódio e zanga, até mesmo revolta, contra um grupo maioritário que é responsável pela opressão de qualquer minoria.

De qualquer forma, na minha opinião, nunca é correto discriminar alguém por ter uma doença mental, ou outra diferença neurológica, psicológica ou física, ou tratar alguém como se fosse "menos humano" ou "menos digno de respeito", ou qualquer outra coisa do género.

Dizer que o autismo não é uma doença mental não é, inerentemente, tentar fazer isso, é apenas tentar escalar o nosso caminho para fora das profundezas do poço em que a história nos colocou; aquele em que o autismo foi considerado "um destino pior do que a morte", e onde os autistas foram vistos como não merecedores até mesmo dos direitos que os doentes mentais não autistas receberam há muito tempo. Da nossa própria pertença à raça humana.

Talvez um dia encontremos um termo melhor do que "doença mental" para descrever as pessoas que sofrem de depressão, ansiedade, delírios e quaisquer outras diferenças que normalmente são incluídas no "guarda-chuva" da doença mental. Esperemos que um dia nós, como sociedade, vejamos a doença mental a par da doença física. Esperemos que um dia as ciências (tanto as "duras" como as "moles") desenvolvam uma compreensão muito melhor das várias formas de diversidade que existem e aceitem muito melhor aqueles que são incapacitados pelas suas diferenças e aqueles que são capazes de as fazer funcionar para si, sem terem de demonizar ou idolatrar quaisquer outros.

11 maio 2024

Fazer bem sem fazer o bem


Manobras financeiras em cuidados de saúde - fazer bem sem fazer o bem

David M. Cutler, PhD, Department of Economics, Harvard University

Tradução espontânea do artigo publicado em 09.05.2024 no JAMA

Financial Games in Health Care - Doing Well Without Doing Good

  O objetivo das novidades na área dos cuidados de saúde deve ser fazer o bem fazendo-o bem – melhorar a saúde dos doentes, poupar-lhes dinheiro e obter lucro pelo caminho. Infelizmente, nos últimos anos, tem-se assistido a um desvio significativo deste objetivo. A manipulação financeira tem-se generalizado ao ponto de os investidores obterem lucros à custa da saúde e do património dos doentes. Neste artigo, discuto as dimensões deste jogo financeiro e aponto as políticas que o podem combater. É necessária uma ação urgente e significativa antes que os danos causados aos doentes aumentem.

  Uma forma deste jogo é a pilhagem de ativos – empresas que retiram dinheiro dos cuidados de saúde e depois exigem aos governos estatais que reponham os fundos. Numa publicação anterior,1 Song e eu discutimos como isto funciona. Tipicamente, uma empresa de capital privado proprietária de um hospital vende o terreno onde o hospital se encontra e concorda em arrendá-lo de volta ao hospital a uma taxa de juro elevada. O dinheiro da venda é pago aos investidores de capitais privados; o hospital fica com a dívida. Se o hospital não puder pagar o empréstimo, a empresa de capital privado ameaça encerrar as instalações, a menos que o governo cubra a dívida. A qualidade é afetada durante este processo. Os indicadores de qualidade dos hospitais e lares de idosos adquiridos por empresas de capitais privados pioraram após estas mudanças de propriedade.2,3

  Uma vez que as catástrofes financeiras podem ser repentinas, devem ser tomadas medidas antes de um hospital se encontrar em dificuldades financeiras. Song e eu propusemos1 que os governos proibissem as empresas de capitais privados de receber pagamentos até se provar que os doentes não são prejudicados.

  Uma segunda estratégia de jogo financeiro consiste em fundir práticas médicas independentes numa única entidade e utilizar o poder de mercado resultante para aumentar os preços. Esta estratégia é particularmente frequente em áreas com grandes exigências clínicas e um número limitado de médicos (nos cuidados dentários e nos cuidados de saúde comportamental, por exemplo). Mas a prática é quase universal; uma grande parte das fusões no sector dos cuidados de saúde nos últimos anos teve como objetivo criar poder de mercado. Além de instituírem preços mais elevados na sequência das fusões, os médicos dos grupos fundidos encaminham os doentes para especialistas do grupo que praticam preços elevados.4

  Para responder a estas preocupações, o Departamento de Justiça dos EUA, a Comissão Federal do Comércio e os procuradores-gerais dos Estados deveriam contestar mais fusões. No entanto, simplesmente não há clínicos independentes suficientes para garantir a concorrência em muitos mercados. A regulamentação é a única alternativa. Alguns analistas sugeriram que se estabelecessem diferenças máximas entre clínicas com preços altos e baixos num mercado, ou margens máximas de preços em relação ao Medicare.5 Tais limites são especialmente justificados em situações como os serviços de urgência, em que os doentes têm pouco tempo e capacidade para escolher um outro médico ou clínica.

  Uma terceira estratégia de jogo envolve a “intensidade de codificação” e a sobrecodificação, que consiste na codificação e faturação de cuidados mais complexos (e, por conseguinte, mais dispendiosos). Estas práticas procuram maximizar os reembolsos ajustados ao risco com base em códigos de diagnóstico. Com a intensidade da codificação, a seguradora codifica todos os diagnósticos já recebidos por um indivíduo para que o reembolso baseado na doença seja mais elevado. A Medicare paga aos planos privados com base nos riscos de saúde dos seus inscritos (medidos pelos diagnósticos comunicados). Assim, as seguradoras privadas que participam no Medicare Advantage gastam somas enormes para encontrar e codificar diagnósticos adicionais. As estimativas indicam que a intensidade da codificação custará à Medicare 50 mil milhões de dólares em 2024.6

  Uma análise recente refere que a percentagem de consultas, urgências e cuidados urgentes nas categorias mais complexas está a aumentar ao longo do tempo muito mais rapidamente do que a verdadeira complexidade dos doentes.7 As práticas de intensidade de codificação dos planos e a sobrecodificação clínica contribuem para a elevada carga administrativa dos cuidados de saúde nos EUA.8

  A intensidade da codificação poderia ser resolvida reduzindo a ênfase nos diagnósticos anteriores no ajustamento do risco, talvez com mais ênfase nas circunstâncias demográficas, como o rendimento das pessoas próximas. Em alternativa, os pagamentos aos planos poderiam ser reduzidos com base em estimativas da intensidade da codificação, por exemplo, utilizando dados sobre a proveniência da informação. A Medicare Payment Advisory Commission desenvolveu essas estimativas e os Centers for Medicare & Medicaid Services poderiam utilizá-las nos pagamentos do Medicare Advantage, mas optaram por não ser muito agressivos.

  No entanto, enfrentar as práticas de codificação é um desafio porque pode incentivar a seleção de riscos. Se os pagamentos pelos cuidados prestados a um doente forem inferiores aos custos incorridos com esse doente, as seguradoras e as clínicas podem procurar tratar apenas os doentes rentáveis e afastar os não rentáveis. Existem inúmeras formas de o fazer. Ao nível do plano, deixar hospitais de prestígio fora de uma rede e colocar medicamentos caros em níveis elevados de partilha de custos afastará os doentes mais doentes.9,10 As clínicas também se envolvem na seleção de riscos. A não participação generalizada no Medicaid é a prova das consequências quando a rentabilidade varia consoante o estatuto de seguro dos doentes.

  Uma vez que é difícil estabelecer um reembolso ótimo dos cuidados de saúde, os clínicos e as seguradoras menos escrupulosos terão sempre incentivos para cortar nos custos. Recentemente, parece que as normas que impedem esta tendência estão a enfraquecer. Assim, os decisores políticos têm de contrariar a ideia de que fazer bem pode ser feito sem fazer o bem. Sempre que possível, a prevaricação deve ser evitada antecipadamente e punida quando ocorre. Esta estratégia exigirá força de vontade por parte dos decisores políticos e não apenas palavras duras.<

Referências

1. Cutler DM, Song Z.  The new role of private investment in health care delivery. JAMA Health Forum. 2024;5(2):e240164.

2. Kannan S, Bruch JD, Song Z. Changes in hospital adverse events and patient outcomes associated with private equity acquisition. JAMA. 2023;330(24):2365-2375.

3. Gupta A, Howell ST, Yannelis C, Gupta A. Owner incentives and performance in healthcare: private equity investment in nursing homes. Rev Financ Stud. 2024;37(4):1029-1077.

4. Gaynor M. Examining the impact of health care consolidation: statement before the Committee on Energy and Commerce Oversight and Investigations Subcommittee. Accessed April 15, 2024.

5. Chernew ME, Dafny LS, Pany MJ. The Hamilton Project: a proposal to cap provider prices and price growth in the commercial health-care market. Published March 2020. Accessed April 15, 2024.

6. Medicare Payment Advisory Commission. Executive summary: report to the Congress. Published March 2024. Accessed April 15, 2024.

7. Schwartz H, Claxton G, Rae M, Cox C. Outpatient visits billed at increasingly higher levels: implications for health costs. Published February 27, 2023. Accessed August 9, 2023.

8. Sahni NR, Carrus B, Cutler DM. Administrative simplification and the potential for saving a quarter-trillion dollars in health care. JAMA. 2021;326(17):1677-1678.

9. Shepard M. Hospital network competition and adverse selection: evidence from the Massachusetts Health Insurance Exchange. Am Econ Rev. 2022;112(2):578-615.

10. Geruso M, Layton T, Prinz D. Screening in contract design: evidence from the ACA health insurance exchanges. Am Econ J Econ Policy. 2019;11(2):64-107.

07 maio 2024

Efeméride - 7 de maio de 1829

Faz hoje 195 anos que foram enforcados os “Mártires da Liberdade”

Nesta praça, pouco tempo antes da entrada de D. Pedro IV na cidade, foram executados alguns liberais (dois tenentes-coronéis, um capitão de ordenança, um desembargador da Relação, um juiz, dois bacharéis em direito e dois oficiais da fazenda) da fracassada rebelião antimiguelista de Aveiro, de 1829, chefiada pelo avô de Eça de Queirós. Esses presos políticos, conduzidos em cortejo, sob escolta, da prisão da Relação à Praça Nova, ali foram enforcados na manhã de 7 de maio de 1829. A Câmara Municipal, em 1914, mandou inscrever seus nomes no pedestal do monumento. [Guia de Portugal, vol. 4 – Entre-Douro-e-Minho, I – Douro Litoral, Sant’Anna Dionísio. Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, p. 149]

D. Pedro IV, por Célestin Anatole Calmels, 1866, praça da Liberdade, Porto

Homenagem da Câmara Municipal do Porto em 1914 em memória dos mártires da liberdade executados em 7 de maio e 9 de outubro de 1829 / António Bernardo de Brito e Cunha, contador / Bernardo Francisco Pinheiro, capitão / Clemente de Moraes Sarmento, sargento / Clemente da S. M. Soares de Freitas, juiz de fora / Francisco M. G. da Veiga e Lima, desembargador / Francisco Silvestre C. M. Serrão, fiscal dos tabacos / João Henrique Ferreira Júnior, estudante / Joaquim M. da Fonseca Lobo, tenente-coronel / José António Oliveira da Silva Barros, guarda-livros / José Maria Martiniano da Fonseca, bacharel / Manuel Luís Nogueira, advogado / Vitório T. Medeiros e Vasconcelos, tenente-coronel

02 maio 2024

Ensinar filosofia da ciência


SCIENCE 11 Apr 2024 Vol 384Issue 6692 p. 141

Ensinar filosofia da ciência
H. Holden Thorp

tradução espontânea do texto
Teach philosophy of science

  Muito se tem falado sobre a erosão da confiança do público na ciência. Os estudos revelam um declínio modesto nos Estados Unidos em relação ao nível de confiança, mas isso também se verifica noutras instituições. O que se depreende dos estudos é que uma melhor explicação da natureza da ciência – aperfeiçoada à medida que surgem novos dados – teria um efeito positivo na confiança do público. Uma vez que os cientistas estão tão conscientes desta característica, é muitas vezes dado como adquirido que o público também o compreende. Um passo para resolver este problema seria a revisão dos currículos dos cursos de licenciatura e pós-graduação, de modo a ensinar não só teorias e técnicas, mas também a filosofia subjacente à ciência.

  Tal como os estudos da Pew demonstraram, a confiança nos cientistas e nos médicos nos EUA é mais elevada do que em todas as outras instituições inquiridas, com exceção das forças armadas. Registou-se um ligeiro declínio nos últimos 4 anos, mas houve um declínio semelhante noutras profissões. Em termos absolutos, a confiança nos cientistas é de 73%, enquanto a confiança na maioria das outras instituições é muito inferior, com os líderes empresariais a 35% e os políticos a 24%. Apesar deste nível relativamente elevado de confiança, Lupia et al. identificaram formas de a aumentar. O estudo revelou que 92% dos inquiridos consideram importante que os cientistas mostrem que estão “abertos a mudar de opinião com base em novas provas”, o que é, obviamente, o que devem fazer.

  Muitos cientistas ficariam surpreendidos se descobrissem que esta ideia precisa de ser reafirmada. A ciência é, afinal, um trabalho em curso que se altera à medida que novas descobertas provocam a atualização e o refinamento de interpretações anteriores. A história da ciência é uma narrativa poderosa desta cultura de autocorreção, e é da essência da ciência tentar fazer descobertas que mudem a forma como os cientistas pensam. Mas sempre que a ciência se torna importante aos olhos do público, como acontece com as alterações climáticas e a pandemia, a reavaliação permanente pode tornar-se um alvo para aqueles que querem fragilizar o conhecimento científico.

  O sociólogo francês Pierre Bourdieu cunhou o termo “falácia escolástica“ para descrever a tendência dos académicos para assumirem que toda a gente pensa nos problemas da mesma forma que os cientistas. Como Bourdieu salienta, a maioria das pessoas não tem tempo e esforço necessários para pensar sobre estas questões da mesma forma que aqueles para quem isto é um trabalho a tempo inteiro. Os académicos não reconhecem frequentemente este facto e ficam perplexos quando o público não compreende que as interpretações são continuamente revistas à luz de novos dados, como tem acontecido ao longo da história. Essas análises são a forma mais fiável de um cientista ser publicado em revistas de renome e ganhar reconhecimento científico, como quando são encontradas pegadas que alteram a nossa ideia sobre quando os humanos estavam presentes nos EUA ou quando se descobre que um medicamento para a diabetes tem muitas outras utilizações.

  A comunidade científica tem, de um modo geral, feito um fraco trabalho na explicação ao público de que a ciência é o que se sabe até à data. Há muitas razões que dificultam este trabalho. A forma como as descobertas científicas são divulgadas nos meios de comunicação social, em particular nos meios que não são especializados em jornalismo científico, é muitas vezes muito simplificada, sem as advertências que dariam uma imagem mais realista, ao mesmo tempo que tornam as histórias menos convincentes para alguns leitores. Outro obstáculo é o facto de, devido à falácia escolástica, os cientistas tenderem a dar por adquirido que as suas descobertas podem ser atualizadas e esquecerem-se de o explicar ao público. E quando os cientistas falam uns com os outros, tendem a ser apaixonados pelas suas ideias e discordâncias. Quando essas conversas são processadas pelo público, podem ser facilmente mal interpretadas.

  A redefinição do entendimento do público sobre o modo como a ciência funciona pode ser um grande desafio, mas um bom sítio para começar é com os estudantes que obtêm diplomas em ciências. Infelizmente, a maioria dos cursos está repleta de aulas didáticas sobre princípios científicos, com poucos ou nenhuns requisitos sobre a história e a filosofia da ciência. Dado que muitos licenciados em ciências seguem carreiras fora da ciência, incluindo a medicina, uma mudança nos currículos acabaria por produzir um público mais informado sobre a forma como a ciência funciona. Isto significa tomar decisões difíceis sobre como encaixar uma perspetiva mais alargada e profunda em currículos que já estão sobrecarregados com bases necessárias. No entanto, é urgente que os cientistas façam algumas cedências na sua forma de ensinar tendo em vista para um bem maior.