Sócio n.º 1 sai de sindicato por ser contra luta “à custa dos
doentes”
Alexandra Campos
Neurologista defende outras formas de
protesto.
Dirigente da Fnam responde que medicina “não é um sacerdócio”
Ao
fim de quatro
décadas, o sócio número 1 do Sindicato dos Médicos do Norte (SMN), o
neurologista aposentado Rosalvo Almeida, decidiu bater com a porta e sair da
estrutura sindical que ajudou a fundar, argumentando que sente “vergonha” das declarações
com que os dirigentes sindicais justificam as actuais “lutas”
e “sucessivas greves” levadas a cabo “em desrespeito pelos doentes”.
“Durante
muitos anos senti orgulho por ter no meu currículo a referência a ser o sócio
n.º 1 de um sindicato que ajudei a fundar há já 40 anos. Nos últimos tempos, as
declarações públicas justificativas das lutas
e das sucessivas greves fizeram-me perder esse
orgulho e, pelo contrário, sentir vergonha”, explica o médico de 76 anos, que é
membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, num email enviado para este sindicato
que integra a Federação Nacional dos Médicos (Fnam), enumerando os motivos
pelos quais decidiu pediu a “desfiliação total” e
com “efeitos imediatos”. A “gota que fez transbordar” a sua “paciência” e que o
levou a exigir que retirassem o seu nome “do rol dos inscritos” no SMN, foram
as declarações da presidente do sindicato e da Fnam, Joana Bordalo e Sá, sobre “ética,
significativas da ausência
total de racionalidade e de sensibilidade”, frisa.
Depois
de, em entrevista ao PÚBLICO, o director executivo do Serviço Nacional de Saúde
(SNS), Fernando Araújo, ter afirmado — a
propósito dos protestos dos médicos que se recusam a fazer mais horas extras além
das 150 a que estão obrigados — que era preciso ser “eticamente irrepreensível”,
a presidente da Fnam respondeu na TSF dizendo que “não é ético o Governo tratar
os médicos como trata e pagar o que lhes paga”, recorda Rosalvo Almeida. “Ora
isso não tem nada que ver com ética mas com relações laborais”, contesta.
Sublinhando
que “nenhuma luta sindical se faz sem cedências”, o neurologista observa que se
torna “cada vez mais óbvio que a teimosia é bilateral e não apenas do Governo”.
E acrescenta que “o recurso às greves, em desrespeito pelos doentes, tem sido
sistematicamente medido em taxas (duvidosas, aliás) de adesão e não em ganhos
de causa”.
Mas
os dirigentes dos sindicatos que representam os médicos têm ou não razão nas
reivindicações que fazem ao Governo? “Têm razão”, concede Rosalvo Almeida, que
insiste, porém, em que “esta não é maneira de fazer valer a sua razão”. “A
minha posição não é situacionista, eu não estou a defender o Governo. Sair do sindicato
é uma crítica ao sindicato”, enfatiza, argumentando que os médicos podem optar
por outras formas de luta, “por exemplo, com batas pretas, com a entrega de
folhetos em que explicam as suas razões aos doentes levando a que os eleitores não
votem no patrão”. “Mas não à custa dos doentes”, enfatiza.
“Diferença
geracional”
“Cada
um é livre de ter a sua opinião e compreendo que se calhar os mais antigos não
se revejam nesta forma de luta e tenham dificuldade de
compreender as condições de trabalho a que os mais jovens estão sujeitos”, retorque
Joana Bordalo e Sá.
Considerando
que “estas declarações são de alguém que não entende que há uma diferença
geracional enorme e que não entende que o que se está a passar resulta de um
acumular de insatisfação”, a presidente da Fnam sublinha que “a medicina não é
um sacerdócio”. “Lamento muito que essa visão perdure. O SNS ainda se mantém de
pé à custa de muitas horas extraordinárias feitas pelos médicos. O que os
médicos pretendem é conciliar a profissão com a sua vida
familiar, o que é, aliás, um direito constitucional”, diz.
Às
críticas de Rosalvo Almeida, Joana Bordalo e Sá responde ainda com duas
perguntas: “Acha que é ética a forma como o Governo está a tratar não só os
médicos mas também o SNS? Acha que é ético pedir mais trabalho extraordinário
aos médicos [250 horas por ano em vez das actuais 150], acabar com o descanso
compensatório depois de fazerem noites, aumentar a jornada diária para nove horas,
obrigar os que não fazem urgência a trabalhar ao sábado?”
Sublinhando
que os sindicatos apenas estão a reclamar aquilo que foi retirado aos médicos
no tempo da troika — quando acordaram trabalhar 18 horas por semana nos
serviços de urgência em vez de apenas 12 e passaram do horário de 35 horas para
40 horas semanais —, além de reivindicarem a reposição dos dias de férias e do
internato na carreira médica, a progressão na profissão e aumentos salariais,
a presidente da Fnam está convencida de que será difícil chegar a acordo com o
Governo na reunião marcada para amanhã. “Era bom que isso acontecesse, mas não
estamos a ver cedências, além desta guerra de palavras e propaganda do Governo,
tentando pôr a população contra os médicos”, critica.
“Os
sindicatos cederam e têm o bom senso de admitir que esta reposição pode ser
faseada”, mas, avisa a dirigente sindical, a Fnam não desiste das
reivindicações e vai pedir a fiscalização da
constitucionalidade do diploma da dedicação plena que o Presidente da República
promulgou esta semana com “muitas reservas e reticências” novamente a Marcelo,
à procuradora-geral da República e à provedora de Justiça, anuncia.
E
se em Novembro morrer alguém porque há urgências fechadas por falta de médicos?
“A responsabilidade não será dos médicos, mas sim do Ministério da Saúde, que
não foi capaz de responder às reivindicações que há um ano e meio lhe foram
apresentadas”, responde.