30 outubro 2023

Decisões de tratamento médico nas UCI sobre doentes não-representados

 

Am J Respir Crit Care Med. 2020 May 15;201(10):1182-1192

Decisões de tratamento médico nas UCI sobre doentes não-representados

 Tradução espontânea, para distribuição sem fins lucrativos, da seguinte Declaração: MakingMedical Treatment Decisions for Unrepresented Patients in the ICU, publicada em maio de 2020.

Antecedentes e razões de ser: Os clínicos das Unidades de Cuidados Intensivos (UCI) tratam regularmente doentes que não têm capacidade, nem uma diretiva avançada aplicável, nem um decisor substituto disponível. Embora não haja consenso sobre a terminologia, referimo-nos a estes doentes como “não-representados”. Existe uma controvérsia considerável sobre como tomar decisões de tratamento para esses doentes, e há uma variabilidade significativa tanto na lei como na prática clínica. ®Finalidade e objetivos: Esta declaração de várias sociedades apresenta aos clínicos e administradores hospitalares recomendações para a tomada de decisões em nome de doentes não-representados no contexto dos cuidados intensivos.

Ver tradução do texto completo AQUI

Quando um doente procura conselhos ou informações sobre a assistência no morrer

 

Quando um doente procura conselhos ou informações sobre a assistência no morrer


Tradução espontânea para distribuição sem fins lucrativos do guia do GMC 
«Patients seeking advice or information about assistance to die», atualizado em 2022

1. Os médicos enfrentam desafios difíceis ao responderem com sensibilidade e compaixão a um doente que procura conselhos ou informações sobre como apressar a sua morte, assegurando-se simultaneamente de que a sua resposta não viola a lei ao encorajar ou ajudar o doente a cometer suicídio.1

2. As boas práticas médicas deixam claro que ouvir os doentes, proporcionar-lhes informação e respeitar as suas decisões e escolhas são parte integrante das boas práticas. Os médicos devem:

a) demonstrar respeito pela vida humana

b) fazer do cuidado dos seus doentes a sua primeira preocupação

c) seguir as leis, as nossas orientações e outros regulamentos relevantes para o seu trabalho

d) assegurar que a sua conduta justifica sempre a confiança que os seus doentes depositam neles e a confiança do público na profissão

e) ouvir os doentes e respeitar as suas opiniões sobre a sua saúde

f) dar aos doentes as informações que eles querem ou precisam para que possam tomar decisões sobre a sua saúde ou cuidados de saúde e responder às perguntas dos doentes de forma honesta e, na medida do possível, tão completa quanto os doentes desejarem

g) tratar os doentes como indivíduos e respeitar a sua dignidade e privacidade

h) respeitar o direito dos doentes capazes de tomarem decisões sobre os seus cuidados, incluindo o direito de recusarem tratamentos, mesmo que isso conduza à sua morte2

i) prestar bons cuidados clínicos, incluindo tratamentos para lidar com a dor dos doentes e outros sintomas perturbadores.

3. Além disso, as orientações sobre Tratamento e cuidados no fim da vida: boas práticas na tomada de decisões estabelecem a obrigação de os médicos:

a) conversar com os doentes sobre as suas opções de tratamento (incluindo a opção de não receber tratamento) e os planos para o tratamento futuro, incluindo os tipos de tratamento ou de cuidados que os doentes desejariam – ou não desejariam – quando já não puderem decidir ou expressar as suas próprias decisões

b) criar oportunidades para os doentes expressarem as suas preocupações e medos sobre a progressão da sua doença e sobre a sua morte e para exporem as suas vontades.

4. Também deixam claro que os médicos não são obrigados a ministrar tratamentos que considerem não serem globalmente benéficos para o doente ou que o prejudiquem.

5. Quando os doentes abordam a questão de os ajudar a pôr termo à sua própria vida, ou pedem informações que os possam encorajar ou ajudar a fazê-lo, o respeito pela autonomia do doente não pode justificar uma ação ilegal.3

6. O médico deve:

a) estar preparado para ouvir e analisar as razões do pedido do doente
b) limitar qualquer conselho ou informação em resposta a:

i. uma explicação de que é um delito criminal que qualquer pessoa encoraje ou ajude uma pessoa a cometer ou tentar suicídio, e

ii. um aconselhamento objetivo sobre as opções clínicas legais (tais como sedação paliativa [NT: ver em Portugal a Lei n.º 31/2018] e outros cuidados paliativos) que estejam disponíveis, se os doentes chegarem a uma decisão estabelecida de pôr fim à sua própria vida.

Para evitar dúvidas, isto não impede que um médico concorde antecipadamente em aliviar a dor e o desconforto envolvidos para esses doentes, caso seja necessário gerir esses sintomas.

c) ser respeitador e compassivo e continuar a prestar cuidados adequados aos doentes
d) explorar a perceção que os doentes têm da sua situação atual e do seu plano de cuidados
e) avaliar se os doentes têm necessidades de cuidados paliativos não satisfeitas, incluindo a gestão da dor e dos sintomas, apoio psicológico, social ou espiritual.

7. É importante notar que nada nestas diretrizes impede os médicos de prescreverem medicamentos ou tratamentos para aliviar a dor ou outros sintomas angustiantes. O documento Tratamento e cuidados no fim da vida: boas práticas na tomada de decisões impõe aos médicos o dever de prestar esses cuidados.

Nota: Ler também as Guidance for the Investigation Committee and case examiners quando se trata de alegações sobre o envolvimento de um médico no incentivo ou auxílio ao suicídio. Abrange questões como os pedidos de acesso ao abrigo da lei de proteção de dados, a redação de relatórios e as ações de compaixão por parte de médicos que são familiares de doentes.

_______________
Referências
1 No presente documento, utilizamos a terminologia "pôr termo à sua própria vida" em vez de suicídio, exceto quando fazemos uma referência direta a ilícitos criminais.
2 Um doente que morre em resultado da progressão natural da sua doença, após a recusa de um tratamento de prolongamento da vida, não comete suicídio. Airedale NHS Trust v Bland [1993] 1 All ER 821, Re JT (Adult: Refusal of medical treatment) [1998] 1 FLR 48 and Re AK (Medical treatment: Consent) [2001] 1 FLR 129
3 Os médicos que não tenham a certeza sobre a forma como uma determinada ação pode ser considerada em termos legais devem procurar aconselhamento jurídico atualizado. Este pode ser obtido junto de uma organização de defesa de direitos, de uma associação profissional ou do departamento jurídico da entidade patronal.

26 outubro 2023

Saída de sócio do SMN


Sócio n.º 1 sai de sindicato por ser contra luta “à custa dos doentes”
Alexandra Campos 
Neurologista defende outras formas de protesto. 
Dirigente da Fnam responde que medicina “não é um sacerdócio”

Ao
fim de quatro décadas, o sócio número 1 do Sindicato dos Médicos do Norte (SMN), o neurologista aposentado Rosalvo Almeida, decidiu bater com a porta e sair da estrutura sindical que ajudou a fundar, argumentando que sente “vergonha” das declarações com que os dirigentes sindicais justificam as actuais “lutas” e “sucessivas greves” levadas a cabo “em desrespeito pelos doentes”.
“Durante muitos anos senti orgulho por ter no meu currículo a referência a ser o sócio n.º 1 de um sindicato que ajudei a fundar há já 40 anos. Nos últimos tempos, as declarações públicas justificativas das lutas e das sucessivas greves fizeram-me perder esse orgulho e, pelo contrário, sentir vergonha”, explica o médico de 76 anos, que é membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, num email enviado para este sindicato que integra a Federação Nacional dos Médicos (Fnam), enumerando os motivos pelos quais decidiu pediu a “desfiliação total” e com “efeitos imediatos”. A “gota que fez transbordar” a sua “paciência” e que o levou a exigir que retirassem o seu nome “do rol dos inscritos” no SMN, foram as declarações da presidente do sindicato e da Fnam, Joana Bordalo e Sá, sobre “ética, significativas da ausência total de racionalidade e de sensibilidade”, frisa.
Depois de, em entrevista ao PÚBLICO, o director executivo do Serviço Nacional de Saúde (SNS), Fernando Araújo, ter afirmado — a propósito dos protestos dos médicos que se recusam a fazer mais horas extras além das 150 a que estão obrigados — que era preciso ser “eticamente irrepreensível”, a presidente da Fnam respondeu na TSF dizendo que “não é ético o Governo tratar os médicos como trata e pagar o que lhes paga”, recorda Rosalvo Almeida. “Ora isso não tem nada que ver com ética mas com relações laborais”, contesta.
Sublinhando que “nenhuma luta sindical se faz sem cedências”, o neurologista observa que se torna “cada vez mais óbvio que a teimosia é bilateral e não apenas do Governo”. E acrescenta que “o recurso às greves, em desrespeito pelos doentes, tem sido sistematicamente medido em taxas (duvidosas, aliás) de adesão e não em ganhos de causa”.
Mas os dirigentes dos sindicatos que representam os médicos têm ou não razão nas reivindicações que fazem ao Governo? “Têm razão”, concede Rosalvo Almeida, que insiste, porém, em que “esta não é maneira de fazer valer a sua razão”. “A minha posição não é situacionista, eu não estou a defender o Governo. Sair do sindicato é uma crítica ao sindicato”, enfatiza, argumentando que os médicos podem optar por outras formas de luta, “por exemplo, com batas pretas, com a entrega de folhetos em que explicam as suas razões aos doentes levando a que os eleitores não votem no patrão”. “Mas não à custa dos doentes”, enfatiza.
“Diferença geracional”
“Cada um é livre de ter a sua opinião e compreendo que se calhar os mais antigos não se revejam nesta forma de luta e tenham dificuldade de compreender as condições de trabalho a que os mais jovens estão sujeitos”, retorque Joana Bordalo e Sá.
Considerando que “estas declarações são de alguém que não entende que há uma diferença geracional enorme e que não entende que o que se está a passar resulta de um acumular de insatisfação”, a presidente da Fnam sublinha que “a medicina não é um sacerdócio”. “Lamento muito que essa visão perdure. O SNS ainda se mantém de pé à custa de muitas horas extraordinárias feitas pelos médicos. O que os médicos pretendem é conciliar a profissão com a sua vida familiar, o que é, aliás, um direito constitucional”, diz.
Às críticas de Rosalvo Almeida, Joana Bordalo e Sá responde ainda com duas perguntas: “Acha que é ética a forma como o Governo está a tratar não só os médicos mas também o SNS? Acha que é ético pedir mais trabalho extraordinário aos médicos [250 horas por ano em vez das actuais 150], acabar com o descanso compensatório depois de fazerem noites, aumentar a jornada diária para nove horas, obrigar os que não fazem urgência a trabalhar ao sábado?”
Sublinhando que os sindicatos apenas estão a reclamar aquilo que foi retirado aos médicos no tempo da troika — quando acordaram trabalhar 18 horas por semana nos serviços de urgência em vez de apenas 12 e passaram do horário de 35 horas para 40 horas semanais —, além de reivindicarem a reposição dos dias de férias e do internato na carreira médica, a progressão na profissão e aumentos salariais, a presidente da Fnam está convencida de que será difícil chegar a acordo com o Governo na reunião marcada para amanhã. “Era bom que isso acontecesse, mas não estamos a ver cedências, além desta guerra de palavras e propaganda do Governo, tentando pôr a população contra os médicos”, critica.
“Os sindicatos cederam e têm o bom senso de admitir que esta reposição pode ser faseada”, mas, avisa a dirigente sindical, a Fnam não desiste das reivindicações e vai pedir a fiscalização da constitucionalidade do diploma da dedicação plena que o Presidente da República promulgou esta semana com “muitas reservas e reticências” novamente a Marcelo, à procuradora-geral da República e à provedora de Justiça, anuncia.
E se em Novembro morrer alguém porque há urgências fechadas por falta de médicos? “A responsabilidade não será dos médicos, mas sim do Ministério da Saúde, que não foi capaz de responder às reivindicações que há um ano e meio lhe foram apresentadas”, responde.

05 outubro 2023

Morte Cerebral / Morte por Critérios Neurológicos em adultos e em pediatria

Morte Cerebral / Morte por Critérios Neurológicos em adultos e em pediatria

Relatório das Diretrizes de Consenso da Subcomissão de Diretrizes da Academia Americana de Neurologia, Academia Americana de Pediatria, Sociedade de Neurologia Pediátrica e Sociedade de Medicina Intensiva

Tradução espontânea parcial do texto Pediatric and Adult Brain Death/Death by Neurologic Criteria, publicado online em 11 de outubro de 2023 na revista Neurology. Excluímos desta tradução os capítulos adiante assinalados com [...], por razões de comodidade de leitura

Contexto e Objetivos

O objetivo destas diretrizes é atualizar as diretrizes de 2010 da Academia Americana de Neurologia sobre morte cerebral / morte por critérios neurológicos (MC/MCN) para adultos e as diretrizes de 2011 da Academia Americana de Pediatria, da Sociedade de Neurologia Pediátrica e da Sociedade de Medicina Intensiva para bebés e crianças, bem como esclarecer o processo de verificação da MC/MCN, integrando as orientações para adultos e crianças numa única diretriz. As atualizações desta diretriz incluem orientações relacionadas com a realização da avaliação da MC/MCN no contexto de oxigenação por membrana extracorporal (ECMO), gestão orientada da temperatura e lesão infratentorial primária.

Métodos

Um painel de peritos de várias sociedades médicas elaborou as recomendações sobre MC/MCN. Devido à falta de evidência de alta qualidade sobre o assunto, foi utilizado um novo processo de consenso formal, baseado em provas. Este processo baseou-se na análise dos peritos do painel e no conhecimento pormenorizado da literatura relativa à MC/MCN para orientar a elaboração de recomendações preliminares. As recomendações foram formuladas e votadas, utilizando um processo Delphi modificado, de acordo com o Clinical Practice Guideline Process Manual da AAN de 2017.

Ver tradução completa AQUI

01 outubro 2023

A melhor crítica do Egoísmo Ético

 

Philosophy Now – a magazine of ideas, n.º 157,  
August/September 2023, p. 26

A melhor crítica do Egoísmo Ético
Stephen Leach

Tradução espontânea do artigo
The Best Criticism of Ethical Egoism

No mínimo, por vezes, deveríamos fazer o que é do nosso interesse. No entanto, o egoísmo ético afirma radicalmente que o nosso único dever é fazer o que é do nosso interesse. Por outras palavras, devemos ser egoístas! O egoísmo ético não diz que devemos evitar todas as ações que ajudam os outros. Diz que o que torna estas ações acertadas, quando são acertadas, é o facto de serem para nosso benefício. Assim, se devo ajudar alguém, é apenas porque isso seria bom para mim; e se devo abster-me de prejudicar alguém, mais uma vez, é apenas porque isso é benéfico para mim. Assim, por exemplo, se encontrar uma carteira caída, se eu for um egoísta ético, terei boas razões para a guardar, mesmo que saiba a quem pertence. Essa pessoa pode muito bem ser prejudicada pela minha ação; mas isso, por si só, não é uma boa razão para não ficar com a carteira, uma vez que eu beneficiarei ao ficar com ela. O mesmo se aplica a tudo o resto: ajudar as pessoas em situação de pobreza? dar de comer a quem tem fome? “Só se houver algo para mim”, responde o egoísta. (Note-se que a teoria diz que devemos ser guiados pelo interesse próprio, não que o sejamos sempre).

Estou certo de que a resposta de muitas pessoas a esta pergunta será que a posição do egoísmo ético é obviamente errada. Mas porque é que é errada? O egoísta ético argumenta que só pensamos que é errada devido à nossa aceitação inquestionável de outras teorias da moralidade mais consagradas. No entanto, essa não é uma razão suficientemente boa para rejeitar o egoísmo (diz o argumento), uma vez que estas teorias rivais são todas mais fracas do que o egoísmo ético, pelo menos em termos da minha própria sobrevivência e expectativa de sucesso. Todas as teorias rivais exigem que, por vezes, sacrifique o meu próprio bem-estar a um “bem” abstrato e não pessoal, mas sem qualquer justificação, diz o egoísta. O egoísmo ético, pelo contrário, não exige tais sacrifícios. A minha referência deve ser o meu interesse pessoal, e a tua deve ser o teu interesse pessoal. Afinal de contas, pergunta o egoísta ético, porque é que hei de sacrificar o meu interesse próprio pelo interesse de outra pessoa? Não faz sentido fazê-lo, pois saberei sempre mais sobre o que me faz feliz do que sobre o que pode fazer outra pessoa feliz. Se por acaso me sentir feliz por ajudar outra pessoa, tudo bem; mas, não se iludam, seja qual for a minha escolha, devo agir em primeiro lugar e acima de tudo em prol do meu próprio interesse.

Conflitos de interesse e contradições

Esta teoria pode ser intuitivamente rejeitada, mas é surpreendentemente difícil de refutar.

Tem sido criticada por não conseguir lidar com os conflitos de interesse. Se X é do interesse do Tomás e Y é do interesse da Joana, e X e Y entram em conflito, como é que o egoísta ético pode escolher entre X e Y? Não pode.

Mas o egoísta ético pode facilmente afastar esta objeção, não a reconhecendo sequer como uma objeção. A resposta seria que o Tomás deve seguir a orientação do seu interesse próprio e a Joana deve seguir a orientação do seu interesse próprio. Tudo bem, por vezes os seus interesses podem entrar em conflito – resultando num choque ou num compromisso – mas não existe um ponto de vista impessoal a partir do qual se deva (ou possa) escolher entre eles.

Uma segunda crítica que pode ser feita é que o egoísmo ético é logicamente contraditório. A mesma ação não pode ser moralmente errada e não moralmente errada (para o Tomás e para a Joana, respetivamente). Mas, mais uma vez, o egoísta ético pode lidar com esta objeção facilmente e da mesma forma que antes. Só existe uma contradição entre a intenção do Tomás e a da Joana se se assumir que existe um ponto de vista impessoal a partir do qual se pode julgá-los em conjunto – e isto é exatamente o que o egoísta nega.

Porquê eu?

Há, no entanto, uma crítica ao egoísmo ético que não assume um ponto de vista impessoal. Foi formulada pela primeira vez, tanto quanto sei, pelo filósofo moral James Rachels (1941-2003). Esta crítica é que o egoísmo ético é inaceitavelmente arbitrário: será que existe realmente uma diferença moral significativa entre mim e as outras pessoas que justifique que eu receba (ou me dê) um tratamento especial? O que é que me torna tão especial?

Sim, conheço-me melhor do que as outras pessoas; mas porque é que isso há de ser moralmente relevante? O mesmo se passa com a ideia de que o que me acontece a mim tem mais relevância imediata para mim do que o que acontece aos outros. E então? A distinção moral do egoísta entre mim e os outros parece arbitrária. É como uma distinção racista feita entre um grupo de pessoas e outro, com o racista a dar tratamento preferencial ao grupo a que pertence, só porque pertence a esse grupo. Que Ayn Rand (1905-1982) – sem dúvida a egoísta ética mais influente – tenha sido ela própria uma crítica do racismo, não prejudica esta crítica. A bola está de novo no campo do egoísta.

Conclusão

Esta terceira crítica é talvez a crítica mais forte que pode ser feita ao egoísmo ético. Não é feita na perspetiva de um padrão impessoal e universal de moralidade, mas é mais forte por isso mesmo. É uma crítica disponível a qualquer pessoa que, mesmo que vagamente, sinta, em relação a qualquer outra criatura, que, nas palavras de James Rachels, “estamos em pé de igualdade uns com os outros”. Está, por exemplo, aberta a qualquer pessoa cujos sentimentos morais, apesar de toda a sua imprecisão, possam, numa noite escura, fazê-la tremer perante o esmagar acidental de um caracol. n

________________

Stephen Leach is an honorary senior fellow at Keele University, UK. He is co-editor, with James Tartaglia, of Consciousness and the Great Philosophers (2017) and The Meaning of Life and the Great Philosophers (2018).