13 agosto 2023

O volumoso processo clínico

 


O volumoso processo clínico
William G. Wilkoff *

Tradução espontânea do artigo
The bloated medical record publicado em 08.080.2023 em MDedge

Até ao século XIX, não havia nada que se assemelhasse à nossa conceção atual de processo clínico. Alguns médicos podem ter mantido notas pessoais, observações e alguns apontamentos dos seus doentes, principal­mente para serem utilizados no ensino de estudantes de medicina ou como parte da sua própria investigação motivada pela curiosidade. No entanto, por volta de 1800, o Conselho de Governadores do Estado de Nova Iorque apro­vou uma proposta no sentido de todos os médicos domiciliários registarem também os seus casos clínicos para serem utilizados como instrumento pedagógico. Por volta de 1830, estes registos passaram a ser obrigatórios, incluindo admissões e altas, resultados de tratamentos e des­pesas. Não é de estranhar que a análise destes registos pudesse estar relacionada com as perspetivas de promoção de um médico.

Em 1919, o Colégio Americano de Cirurgiões tentou normalizar os “diários de tratamento” dos seus mem­bros para que se parecessem mais com os nossos registos médicos atuais, com um historial, análises laborato­riais, diagnóstico, plano de tratamento e algo semelhante a notas de acompanhamento diárias. No entanto, já na década de 1970, quando comecei a praticar os cuidados primários, havia muito poucos ditames sobre o que as nossas notas de consultório deveriam conter. Alguns (não incluindo eu) tinham sido treinados para usar o formato S.O.A.P. (Subjetivo, Objetivo, Avaliação e Plano) para organizar as suas observações. Naquela altura, eu via os meus registos de consultório sobretudo como um dispositivo mnemónico e só porque tinha um colega é que fazia alguma tentativa de legibilidade.

Com a Inteligência Artificial perante nós e ameaçando expandir o que já é um registo médico volumoso, talvez seja altura de reconsiderar qual a finalidade do processo clínico.

Embora tenha havido um tempo em que as notas de um médico funcionavam simplesmente como uma sim­ples memória, hoje em dia poucos médicos exercem a sua profissão isoladamente e os seus registos têm de servir como veículo de comunicação com outros médicos e consultores.

Quão pormenorizadas têm de ser essas notas? Precisamos de mais do que dados concretos – os números, as receitas, a biometria, a cronologia dos procedimentos do doente? Como médico assistente ou consul­tor, não estou assim tão interessado nas observações subjetivas de outros. Não é que não confie, mas, como qualquer bom médico, vou recolher a minha própria história diretamente do doente e fazer o meu próprio exame físico. Pode ter-lhes escapado alguma coisa e eu devo ao doente um novo olhar e uma nova escuta antes de emitir uma opinião ou prescrever um plano de tratamento.

O processo clínico tornou-se uma fatura pormenorizada a anexar à fatura a entidades terceiras paga­doras. É necessário provar-lhes que o serviço tem algum valor. Não é que as entidades pagadoras não confiem em si... bem, talvez seja esse o problema. Eles não confiam. Por isso, tem de lhes provar que fez realmente alguma coisa. Uma vez que não estavam na sala de exames, tem de documentar que fez per­guntas ao doente, efetuou um exame minucioso e passou um determinado tempo a fazê-lo. Claro que isso pressupõe que existe uma correlação direta entre o tempo que passou com o doente e a qualidade dos cuidados. O que nem sempre é o caso. Uma frase que se limita a afirmar que é um profissional bem formado e que fez um trabalho minucioso não parece ser suficiente. Funciona para o canalizador e para o eletricista. Mas, mais uma vez, é a tal questão da confiança.

É claro que existem as organizações de licenciamento e certificação que têm um interesse legítimo na quali­dade do seu trabalho. Uma vez que é impraticável ter um observador a segui-lo durante um ou dois dias (o que eu julgo ser uma boa ideia), é necessário incluir provas na sua ficha clínica de que pratica o padrão de cuidados, seguindo medidas e tratamentos de rastreio aceites de acordo com as diretrizes pa­drão.

E, finalmente, já que estamos a falar de confiança, há toda a questão da gestão do risco – talvez o mais potente inflacionador dos registos médicos. O mito promovido pelos advogados de que “se não docu­mentou, não acon­teceu” incentiva os médicos a utilizarem um palavreado volumoso apenas para dar munições ao seu advogado quando se encontrar numa situação de “disse-que-disse”.

É claro que tudo isto tem de ser cuidadosamente redigido, porque o doente agora tem e merece ter o direito de consultar os seus processos clínicos. E esta pode ser a única boa notícia. A Inteligência Artificial pode ser ensinada a criar um registo médico que seja completo e mais facilmente lido e digerido pelo doente. Isto poderá tornar os registos ainda mais volumosos e, à medida que mais doentes se familiari­zarem com os seus próprios registos de saúde, mais podem começar a exigir que estes se tornem mais con­cisos e reflitam efetivamente o que se passou na consulta. 


* O Dr. Wilkoff exerceu pediatria de cuidados primários em Brunswick, Maine, durante quase 40 anos. É autor de vários livros sobre pediatria comportamental