25 agosto 2023

Eutanásia por Doença Mental – Certo ou Errado?

Falam os clínicos: Eutanásia por Doença Mental – Certo ou Errado?
    Batya Swift Yasgur, MA, LSW *
Tradução espontânea para distribuição sem fins lucrativos do artigo 
Clinicians Are Talking: Euthanasia for Mental Illness -- Right or Wrong? 
publicado no Medscape em 03.08.2023

Uma das questões mais controversas atualmente é a de saber se um médico deve ser autori­zado, ou até obrigado, a ajudar os doentes com uma doença terminal ou incurável a pôr termo à sua vida – um processo conhecido como ajuda médica na morte (MMA = morte medi­camente assistida) ou suicídio medicamente assistido.

Até há pouco tempo, esta questão polémica aplicava-se apenas a doentes com doenças físicas que desejassem pôr fim ao seu sofrimento e que procurassem um médico disposto a ajudar nesse objetivo. Nos Estados Unidos, e noutros países, é esta a população de doentes que poderá recor­rer a esta opção.

No entanto, a legislação recentemente proposta no Canadá – país que regista o maior número de mortes ajudadas por médicos em todo o mundo – alargaria a indicação para a MMA de modo a incluir doenças mentais graves. Originalmente prevista para ser aprovada em março de 2023, a lei foi adiada para decisão final até março de 2024.

Um comentário recente da psiquiatra Dinah Miller, MD, no Medscape, explorou a ética desta proposta de legislação para os profissionais de saúde mental. “Propiciar a opção da morte, facili­tada pela própria pessoa que está a tentar fazer com que [os doentes com doenças mentais graves] melhorem, parece-me tão contrário a tudo o que aprendi e contradiz o nosso papel de psiquiatras que trabalham tão arduamente para prevenir o suicídio”, escreve Miller. “Como psiquiatras, damos esperança aos nossos doentes mais vulneráveis ou oferecemos a morte? Insurgimo-nos contra o suicídio ou facilitámo-lo?”

O artigo de Miller suscitou uma enorme quantidade de reações dos leitores, que incluíram muitos comentários elogiosos: uma “investigação matizada e aberta”, “oportuna e honesta” e “muito bem es­crita”. Um leitor agradeceu à autora por “esta reflexão ponderada, questionadora e aberta sobre o que significa ser um psiquiatra que enfrenta uma prática espinhosa e profunda­mente pessoal e uma questão filosófica”.

Distorção cognitiva ou realidade objetiva?

Muitos leitores opuseram-se a qualquer tipo de envolvimento de um médico para provocar a morte de um doente, independentemente de a doença ser médica ou psiquiátrica. “Dei­xem que os outros que desejam morrer façam os seus próprios arranjos sem a ajuda da profissão médica”, escreve um leitor.

Mas outros consideraram que, para as pessoas com doenças físicas terminais ou dores intratá­veis, se justifica que os profissionais de saúde facilitem a morte ou, no mínimo, recusem trata­mentos que pro­longuem a vida.

Um médico de cuidados intensivos descreveu a sua resposta às acusações das famílias de que a sus­pensão das medidas de manutenção da vida significa “armar-se em Deus”. Pelo contrário, escreve o mé­dico, “há um limite para as nossas capacidades; e retirar essas intervenções que prolongam a vida permite que a natureza ou Deus ou o que quer que seja desempenhe um papel e siga o seu curso”.

Um outro leitor dos EUA salientou que “várias sondagens neste país mostraram que a maioria do público em geral, dos médicos em geral e dos psiquiatras em particular, apoia a opção de MMA para os doentes terminais. Não a consideram incompatível com a sua vocação de médi­cos”.

“Eu e muitos dos meus amigos idosos não tememos a morte, mas sim a demência prolongada com a sua dependência e falta de qualidade de vida”, escreve um leitor. “Ficaríamos muito mais tranquilos se pudéssemos incluir na nossa diretiva avançada que pedimos MMA assim que chegássemos a um certo ponto de dependência.”

Outro escreve que, no caso de entrar num estado de “dependência degradante e de sofrimento para a família, por favor, deixe-me ir em paz, sem sobrecarregar os outros, para aquela boa noite [da morte]”.

Muitos consideraram que não só a doença física, mas também a perspetiva de deterioração cognitiva – especificamente a demência – também justificam a ajuda à morte do doente.

“Sofrimento enorme”

Um leitor canadiano referiu que estão atualmente em vigor no Canadá disposições relativas ao con­sentimento prévio para as pessoas que enfrentam a perspetiva de uma doença neurodegene­rativa e que ainda são mentalmente competentes para tomar tais decisões.

Mas é aí que reside o problema – o conceito de diretiva avançada remete para a questão da capacidade de decisão. Miller refere que “a depressão distorce a cognição e leva muitos doentes a acreditar que esta­riam melhor se morressem e que os seus entes queridos estariam melhor sem eles”.

O conceito de “distorção cognitiva” implica que a própria doença pode impedir a capacidade de deci­são necessária para uma diretiva avançada ou uma decisão tomada no momento, na au­sência de tal dire­tiva. Miller pergunta: “Como é que determinamos se os doentes com doença mental grave são compe­tentes para tomar essa decisão ou se é a doença mental que está a con­duzir a sua perceção de um futuro sem esperança?”

Um leitor atesta este facto por experiência própria. “Como médico e como sofredor de uma depressão grave, muitas vezes profunda, durante 50 anos, posso afirmar com confiança que... a procura da morte é o resultado de um estado mental deficiente, que impede simultaneamente uma decisão racional.”

Outro concordou. “Como psiquiatra, tratei doentes suicidas quase todos os dias da minha carreira de 27 anos. Acredito que se devem envidar todos os esforços para evitar o suicídio de uma pessoa deprimida e saudável e não apoio a MMA para doenças psiquiátricas. Mas apoio a MMA para os doentes terminais”.

Outros leitores discordaram. Nas palavras de um comentador: “Penso que se vamos ajudar os doentes mentais, temos de ter em conta as suas escolhas. A pressão imposta por uma doença mental grave/intra­tável é tão má como qualquer outra doença médica devastadora. Se ninguém os vai apoiar durante a vida (uma vez que os serviços de apoio são limitados e os tratamentos psiquiátricos muitas vezes falham), permitam que um profissional de saúde os apoie nos seus momentos finais”.

Um psiquiatra descreveu doentes muito graves com distúrbio bipolar resistente aos tratamen­tos que não só tinham recebido medicamentos, incluindo cetamina, como também tinham sido submetidos a terapia electroconvulsiva e continuavam a não reagir.

“O seu sofrimento é enorme e a verdade é que não melhoram mais do que alguns dias ou semanas e depois voltam ao seu inferno. Reconhecer que estariam melhor mortos, para si e para as suas famílias, nem sempre é uma distorção cognitiva, mas uma avaliação objetiva da sua reali­dade.”

No entanto, como referiu outro leitor, um problema com o argumento aqui apresentado é pressupor que a MMA exige uma “justificação clínica”. Mas no Canadá, “a MMA... é entendida como uma expressão de autonomia pessoal. Enraizada na filosofia política liberal do individualismo... a apro­vação da morte não precisa de ser baseada numa avaliação clínica”. Em vez disso, “a morte é vista como um 'direito' que o Estado deve proporcionar”.

Uma outra forma de eugenia?

Miller levantou as implicações éticas dos fatores raciais e socioeconómicos que desempenham um papel na possibilidade de considerar a MMA no caso de pessoas com doenças psiquiátricas.

“Será que as pessoas pobres, que têm menos acesso a opções de tratamento dispendiosas e a apoio social, têm mais probabilidades de pedir uma morte antecipada?”, pergunta. “Será que nos arriscamos a facilitar a morte de um doente quando não existem outras opções devido à falta de acesso ao tratamento ou quando as dificuldades sociais e financeiras exacerbam o desespero da pessoa? Devemos preocupar-nos com o facto de a eutanásia psiquiátrica se transformar numa forma de eugenia em que aqueles que não podem contribuir são obrigados a sentir que devem desistir?”

Vários leitores concordaram. “Se olharmos para o peso desproporcionado da doença, para as taxas das prisões e para a aplicação da pena de morte, parece-me que a raça e o estatuto socio­económico serão um fator imediato na forma como, onde e com quem a MMA nas  doenças mentais seria praticada em grande parte, se não em todos os Estados Unidos”, escreve um mé­dico.

Um leitor canadiano manifestou preocupações semelhantes. “Vi algumas pessoas, incluindo alguém que considerava um bom amigo, optar pela MMA porque era mais fácil do que viver como uma pessoa com deficiência na pobreza, sem cuidados de saúde mental adequados.”

Outro clínico canadiano refere que oferecer às pessoas bons cuidados pode fazer toda a dife­rença... “Como clínico canadiano de saúde mental que trabalhou com jovens com doenças men­tais graves durante mais de 20 anos através da nossa rede médica socializada, posso atestar a diferença que os bons cuidados normalmente fazem para que os clientes passem do desespero e do compromisso com a morte para abraçarem a vida mais uma vez. Não vamos, como clínicos, aceitar a facilitação de um caminho para a morte sancionado pelo governo/estado.”

Alguns leitores acreditam que este tipo de questões não pode ser resolvido com uma aborda­gem ge­neralista, observando que cada caso é diferente. “A vida real é sempre mais complicada do que as discus­sões académicas. Tendo feito parte de um comité de ética hospitalar, sei que cada caso é único”, observa um leitor.

Outro leitor acrescenta: “Penso que tudo o que podemos fazer enquanto médicos é deixar que as pessoas decidam por si próprias e participar apenas se a nossa consciência o permitir”. n

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* Batya Swift Yasgur MA, LSW é uma autora freelancer com um consultório de aconselhamento em Teaneck, NJ. Contribui regularmente para várias publicações médicas, incluindo Medscape e WebMD, e é autora de vários livros sobre saúde orientados para o consumidor, bem como de Behind the Burqa: Our Lives in Afghanistan and How We Escaped to Freedom (as memórias de duas corajosas irmãs afegãs que lhe contaram a sua história).