Não digam à Mãe: transcrição de uma dramatização
pedagógica
Tradução de “Don't Tell Mama: A Role-Play Transcript”, páginas 273 a 289 do livro
“Mediação bioética - Um guia para soluções partilhadas e modeladas”
de Nancy Neveloff
Dubler e Carol B. Liebman.
Vanderbilt University Press. Nashville. 2011
Personagens
[NT: A opção por nomes portugueses, fictícios
como no original, procura significar que, se nunca aconteceu, uma conversação similar
pode acontecer entre nós]: Beatriz Barros, enfermeira
chefe; Carolina Costa, chefe de clínica; Gaspar Guimarães, filho
da doente; Guiomar Guimarães, filha da doente; Manuel Martins, médico
de família; Ricardo Reis, mediador bioético
Contexto A D. Guilhermina
é uma viúva com 82 anos que foi levada ao hospital há dois dias pela filha
depois de várias semanas de fadiga, fraqueza e perturbações gastrointestinais.
A sua história e exame físico apontavam fortemente para a hipótese de cancro do
cólon, o que foi confirmado por colonoscopia. Os seus filhos recomendaram
veementemente ao médico interno que não revelasse o diagnóstico à Mãe. A D.
Guilhermina encontra-se bem e parece consciente e atenta ao que a rodeia. Nos
primeiros dias não fez perguntas sobre a razão por que estava no hospital ou
sobre os seus problemas. Só depois perguntou ocasionalmente ao pessoal sobre os
motivos do internamento e os resultados dos exames.
Quando o interno disse à chefe de clínica, Dr.ª Carolina,
o que aconteceu esta ficou zangada. Disse que os doentes têm o direito legal a
conhecer a sua informação médica e não cabe à família dizer aos profissionais
de saúde que escondam essa informação. Quando a equipa passou visita na manhã
seguinte, a família estava à espera fora do quarto da doente e fez questão de
afirmar o mesmo à equipa. A Dr.ª Carolina explicou-lhes o direito à informação
de uma pessoa doente capaz e o correspondente direito a decidir sobre os
cuidados a receber. O filho da doente disse: "Ouçam, eu sou advogado, conheço
bem os direitos, mas se disserem o que quer que seja que incomode ou prejudique
a minha Mãe, descobrirão de fonte limpa o que a lei diz.” Antes que a
conversa ficasse mais tensa, o médico de família antecipou-se e assegurou que a
equipa hospitalar nada faria que pusesse a doente em risco.
O Dr. Martins pôs uma nota manuscrita em maiúscula na
capa do processo clínico: “Por indicação da família esta doente não deve
conhecer o seu diagnóstico”. Há uma manifesta diferença de opiniões na
equipa sobre a melhor maneira de lidar com a situação durante o internamento e
o tratamento da D. Guilhermina. Os esforços para evitar falar com a D. Guilhermina
sobre a sua doença estavam a ser muito complicados para os profissionais do
hospital. Vários enfermeiros sentiam que estavam a ser desleais para com a
doente e, como consequência, acabavam por não destinar tanto tempo para estar
junto dela como ela merecia. Outros sentiam-se intimidados pela ameaça de
perseguição judicial se não tivessem em conta as instruções da família.
A enfermeira chefe Beatriz Barros requereu uma Consulta
de Ética para clarificar as questões em aberto e ter orientações sobre como
lidar com esta situação desconfortável.
Transcrição e notas
Mediador bioético: Bom dia a todos. Eu sou o Dr. Ricardo Reis. Sou membro
da Comissão de Bioética e a Enf.ª Beatriz Barros pediu-me para os juntar de
modo a conversarmos um pouco sobre a D. Guilhermina. Pelo que percebi tem
havido algumas diferenças de opinião sobre quanto deve ser dito à D.
Guilhermina sobre a sua situação e por isso penso que seria bom para todos
sentarmo-nos à mesa e dialogar sobre os cuidados a ter com ela. Talvez pudéssemos
fazer uma ronda, para que cada um se apresente, e depois começaríamos.
O mediador identifica o tema que o levou a convocar esta sessão
mas falhou em dar uma explicação clara do seu papel ou sobre o que
participantes podem esperar do processo. Por exemplo, poderia ter dito: “Sou
membro da Comissão de Bioética e sou muitas vezes chamado a ajudar quando há desacordos
sobre um plano de cuidados de um doente. Não faço parte da equipa que trata da
D. Guilhermina. Trabalho neste hospital mas, nesta reunião, estou a atuar como Mediador
Bioético, não decido nada, apenas tentarei ajudar a que cada um possa aceitar
um consenso, uma resolução baseada em princípios, sobre a melhor maneira de
cuidar da D. Guilhermina.”
Neste caso, o mediador identificou a pessoa que lhe pediu
para vir ajudar. Os mediadores bioéticos devem ponderar se isso ajuda ou
prejudica o processo. Nomeadamente, quando a consulta tenha sido solicitada por
alguém com posições relativamente menos influentes na instituição, talvez seja
melhor não avançar com essa informação. Na nossa experiência, a referência a
quem pediu a consulta não deve ser feita por um participante na mediação, mas
essa informação e muitas vezes revelada no início do processo se for um modo de
o clarificar. Poderia talvez ser dito que foi “um membro da equipa de saúde”.
Guiomar Guimarães: O meu nome é Guiomar. Sou filha da D. Guilhermina.
Mediador bioético: Muito gosto em a conhecer.
Enf.ª Beatriz: Chamo-me Beatriz Barros. Sou a enfermeira que tem
estado a cuidar a sua Mãe nestes dias.
Carolina Costa: Eu sou Carolina Costa, chefe de clínica, responsável médica
pela sua Mãe.
Gaspar Guimarães: Chamo-me Gaspar Guimarães, sou filho da D. Guilhermina.
Manuel Martins: Sou o Dr. Martins. Sou o médico de família da D.
Guilhermina, não desde há semanas mas há já onze anos.
Mediador bioético: Muito prazer em os ter aqui. Enf.ª Beatriz, penso que
seria interessante começar com alguns dos factos [NT: Quem ouviu o Prof. Diego Gracia, no dia 22 de
novembro de 2013, na reunião organizada pela Comissão de Ética da ARSLVT, há de
lembrar-se do que ele disse sobre a necessidade de se começar sempre por ‘los
hechos’, os factos… ] médicos sobre
a doente e, já que este caso nos foi referenciado e vamos falar sobre a D.
Guilhermina, gostava que nos dissesse como definiria o motivo desta reunião.
Como referido noutras ocasiões neste livro, esta é uma boa
altura para chamar o doente a participar. O mediador podia portanto iniciar o
debate dizendo: “Todos sabeis que um dos nossos objetivos neste género de
debates e tentar que os doentes participem, mesmo que possam não estar presentes.
Este é um caso particularmente difícil porque, embora a D. Guilhermina
aparentemente seja capaz de participar nas decisões sobre os seus cuidados de saúde,
os seus filhos opõem-se a esse envolvimento. Por conseguinte, trazê-la para
esta discussão seria fácil – bastava que fôssemos para o seu quarto – mas a sua
família, que a conhece e adora mais do que ninguém, apoiada pelo seu médico de confiança,
não gostariam que ela estivesse presente. Permitam- me que peça a família que
nos fale sobre a vossa Mãe. Que tipo de pessoa é? O que é importante para ela?
Como tem sido a sua vida? Não se esqueça que nós somos peritos em medicina mas vocês
são os peritos sobre a vossa Mãe e a vossa família.”
Enf.ª Beatriz: Bem, pedi a sua intervenção porque é muito desagradável
para mim ver que nada dizem a D. Guilhermina sobre a sua situação. Penso que a
gente se sente desajeitada na sua presença porque tem receio de lhe dizer
inadvertidamente qual a sua real situação e qual o estádio em que está a sua doença.
A família pediu-nos para nada lhe dizermos e portanto penso que estamos, de
certo modo, a diminuí-la. Além disso, alguns de nós sentem-se desconfortáveis
porque nos ensinaram que um doente que compreenda os seus problemas médicos necessita
ser informado de tal modo que possa dar o seu consentimento para quaisquer
procedimentos. É por isso que estamos confusos e desconfortáveis.
O mediador precisa de ter em especial conta a escolha de
quem inicia o debate. Neste caso a decisão de escolher a enfermeira, que foi
quem desencadeou o processo de apreciação bioética, resultou. Ela fez uma
declaração cuidadosa das suas preocupações. A escolha de ter a Enf.ª Beatriz a
falar em primeiro lugar podia ter sido vista como um modo de validar o seu
pedido de ajuda e de corroborar o seu enquadramento do problema. Mas começar
com ela também teve o risco de torná-la alvo de atenção dos outros
participantes.
Podia ter sido melhor que o mediador começasse por
afirmar o seu entendimento sobre o problema: “Estamos aqui por que me
pareceu que há algumas diferenças entre a equipa de cuidadores e a família no
que se refere ao que deve ser dito a D. Guilhermina sobre o diagnóstico e o
pessoal está preocupado por nada lhe dizer sobre a sua situação, pelo que estamos
aqui para falar sobre isso e também sobre o que precisamos fazer para lhe
proporcionar os melhores cuidados possíveis. Antes de entrarmos nessas questões,
queria ter a certeza de que estamos todos a par da situação clínica da D.
Guilhermina.” O mediador deveria então pedir a um membro da equipa,
tipicamente a um médico, que fizesse uma apresentação sobre os factos médicos.
Um enfermeiro poderia também dar esta informação, mas a cultura hospitalar dominante
leva-nos habitualmente a preferir um médico como o primeiro a falar destes
factos.
Também aqui, perante um desacordo entre o médico de família
e a chefe de clínica, o mediador tem uma escolha potencialmente difícil. Começar
por aquele privilegia uma relação de forças no hospital e o papel que tem junto
da família. Contudo, num hospital escolar é costume pedir ao chefe de clínica
para relatar o caso e o restante pessoal pode esperar que o mediador comece
desse modo.
Gaspar Guimarães: A mim não me incomoda nada que se sinta desconfortável;
o que me preocupa é a minha Mãe. Quero ser muito claro – a minha preocupação é sobre
o que ela sente e receio que ela possa ser incomodada. Só peço que façam o que
vos compete e assumam as vossas responsabilidades. E se se sentem um pouco desconfortáveis,
eu acho que fico mais confortável com isso do que se for a minha Mãe a ficar desconfortável
e mesmo assustada.
Guiomar Guimarães: Sinto que nos atrasamos um pouco a trazê-la para o
hospital e de certa maneira possamos ter acelerado a sua morte. E, também, sei
que não quero sobrepor-me à sua alma ou ao seu pensar. Penso que eu e o meu irmão
sabemos bem o que é perder um pai. O nosso Pai morreu com cancro. Na nossa família,
esta doença é algo que nos assusta muito; é uma palavra medonha para nós e,
quando temos de a pronunciar, acho que pensamos em sentença de morte e perdemos
a esperança – e o que nós queremos é que a nossa Mãe, que é uma lutadora, não
perca a esperança.
Mediador bioético: Pergunto então ao Dr. Martins, que conhece a D.
Guilhermina há bastante tempo, que nos diga qualquer coisa sobre o seu estado clínico
atual e nos ponha a par do que sabemos sobre ela.
Tendo começado pela enfermeira, é tempo de passar a um
dos médicos e saber dos factos, mas não sem antes reconhecer como são
preocupantes e comoventes as afirmações dos filhos da D. Guilhermina. A D.
Guiomar falou sobre ter demorado a trazer ao hospital a D. Guilhermina. E possível
que ela se sinta culpada e receie que ela e o seu irmão não tenham ajudado a
evitar a morte da Mãe. Receia também que conhecer o diagnóstico de cancro
signifique “matar-lhe a alma”.
O mediador deveria ter dito: “A situação parece ser
realmente horrível. A vossa família passou um mau momento. É de facto difícil
passar de novo por tudo isto depois de perderem o vosso Pai por cancro. Também
percebo que desejavam ter sabido desta doença mais cedo e que querem estar
seguros de que quaisquer decisões que se tomem sobre a vossa Mãe sejam as
certas.” Ao introduzir esta mudança no debate, o mediador mostrava que
estava preocupado em que o reconhecimento por parte da filha, relativo a sensação
de que poderia ter-se atrasado em trazer a Mãe ao hospital, pudesse fazê-la
sentir culpada. Uma resposta como “Portanto sente-se culpada por ter
demorado a compreender as queixas da sua Mãe” seria certamente desadequada.
A última parte desta afirmação sugere um juízo de valor sobre o passado. Alem
disso, a palavra culpa provavelmente
produziria um forte recuo. Na nossa experiência é importante fazer duas coisas
quando tratamos de reagir a fortes afirmações de sentimentos: confirmar que são
sentimentos fortes e ajudar as partes dar uma ordenação a mistura de emoções.
Neste caso, a filha está a sentir uma terrível sensação sobre o que serão os
cuidados para a sua Mãe e esta também a voltar a viver a dor da perda do Pai.
Dizer “Compreendo que gostasse de ter trazido a sua Mãe mais cedo” não é
o mesmo que concordar em que ela o devia ter feito.
Dr. Martins: Como
disse, conheço a D. Guilhermina desde há dez ou onze anos e conheço os outros
membros da família que tem sido muito ativos no apoio que lhe dão, tratando das
suas questões de saúde e de outras necessidades. É bom ver uma família tão
forte como esta – valorizo muito este aspeto. Nas últimas semanas, a sua saúde
deteriorou-se claramente. Estava em boa forma para os seus oitenta e dois anos,
mas perdeu peso, mostrava- se fatigada, pálida e fraca. Pareceu-me que estava anémica
e por isso tratei de a internar para ver o que se passava. Tinha as fezes
escuras. Receávamos, obviamente, que fosse um cancro mas talvez pudesse ser
qualquer coisa mais benigna como uma úlcera. Fez uma colonoscopia e
infelizmente confirmou-se o cancro.
Sei que há aqui
quem se sinta na obrigação de dar a doente toda a informação mas temos de
compreender que as pessoas são frágeis e nem sempre respondem ao que as nossas convicções
nos ditam e também que nós temos aqui uma família muito atenta, que conheço há muito
tempo. Quero respeitá-los e tenho de reconhecer que o que estão a fazer é correto.
Infelizmente, a D. Guilhermina está provavelmente – não vou simplificar – diria
mesmo, certamente, vai morrer por causa deste cancro. É uma forma muito
agressiva, está muito grande, tem metástases nos intestinos e aparentemente é inoperável,
embora alguma cirurgia paliativa possa ser encarada para seu alívio. Os seus
filhos estarão sempre perto e eu próprio também estarei – teremos de viver com
as decisões que tomamos.
Guiomar Guimarães: Tanto eu como o meu irmão agradecemos-lhe muito.
Conhecemo-lo há muito tempo e sentimos que respeita a maneira de ser da nossa família.
É perturbador pensar que as preocupações do pessoal – que afinal não nos
conhecem – é sentirem-se desconfortáveis, tenham alguma prioridade sobre as
vontades que conhecemos da nossa Mãe há tanto tempo, não nos dando ouvidos. Têm
de seguir o que dizemos pois somos nós quem a conhece melhor.
Mediador bioético: Gostaria de fazer mais uma pergunta ao Dr. Martins. A
D. Guilhermina está capaz de tomar decisões autonomamente?
Dr. Martins:
Acredito que ela está na total posse das suas capacidades mentais – está a
sofrer uma degradação rápida do seu estado físico mas acredito que está capaz
de tomar decisões, incluindo a decisão de não decidir.
O mediador precisa resumir o que o Dr. Martins disse
sobre o sombrio prognóstico da D. Guilhermina. Por vezes este resumo da
apresentação dos factos é um caminho para aumentar a probabilidade de que os
membros da família compreenderem o que foi dito, especialmente se o médico usar
termos técnicos ou eufemismos. Neste caso, os factos são claros e os filhos
parecem bem informados. Contudo, seria útil um resumo para suavizar a conversa
é dar a cada um oportunidade para assimilarem o que foi dito.
Mediador bioético: Talvez, Dr. Guimarães, nos pudesse falar mais sobre as
conversas que teve com a sua Mãe. Como o seu Pai teve cancro – talvez nos
pudesse falar um pouco sobre modo como ela reagiu a essa doença.
Gaspar Guimarães: Sabe, a Mãe não é de falar muito. Ficou obviamente
triste e sofreu muito quando Pai faleceu e por o ver passar o que passou.
Talvez porque sou seu filho, não falou muito comigo sobre isso. Eu sou mais de tratar
das coisas. Sou advogado por isso ajudo-a a resolver coisas legais, na verdade
sou eu quem põe as mãos na massa. [Dirige-se à sua irmã Guiomar] Essas coisas sentimentais de que estais a falar,
realmente, não é no que me envolvo. Diria que, como advogado, sei o que são as
nossas leis e direitos e sei que temos o direito a proteger a nossa Mãe e se vocês
insistem em que nós precisamos de lhe dizer o diagnóstico, estou aqui para levar
o assunto onde for preciso. Agradeço que tenha vindo mas há outras pessoas
acima de si e se for preciso falarei com elas. E se não for no hospital, será
nos tribunais que gostosamente tratarei do assunto. Estou muito treinado e
habilitado para o fazer – é a minha profissão. O que realmente queria ouvir no
final desta reunião é que vocês vão respeitar o que pedimos e nada dirão à
minha Mãe.
Mediador bioético: Bem, não sou eu quem decide – será uma decisão de todos
nos. Estamos a tentar e a procurar o nosso caminho. Pergunto-me se não seria
capaz de nos dizer um pouco mais sobre o que a sua Mãe vos transmitiu quanto
aos seus problemas médicos e o conhecimento que tem deles?
O mediador, depois de uma resposta ligeiramente defensiva
(“não sou eu quem decide”) ignora as ameaças com o objetivo de minimizar
o seu impacto e evitar confrontos. Ao não se referir às ameaças incorre no
risco de que outros participantes se sintam inibidos por elas. Poderia ser útil
admitir a força dos sentimentos de Gaspar e encarar as suas ameaças como uma
expressão do seu compromisso com a Mãe. “Posso entender os seus sentimentos enérgicos
quanto ao que acha melhor para a sua Mãe e que use todas as suas habilitações
para lutar por ela. Espero bem que não seja necessário abrir um conflito
desses. Estamos aqui reunidos para tentar chegar a um acordo sobre a melhor
maneira de proceder.” Este modo de enquadrar reconhece os interesses e os
sentimentos subjacentes as ameaças ao mesmo tempo que as neutraliza. Também
permite que outros participantes ouçam esta linguagem agressiva como uma expressão
da sua dor mais do que um ataque a equipa médica.
O mediador podia também ter dito: “Dr. Guimarães, o
senhor é um grande advogado da sua Mãe e defensor do que pensa ser a sua
vontade. Mas, por agora, gostaria que aceitasse uma regra muito simples: eu
garanto-lhe que não deixarei que o afrontem, mas peço-lhe o mesmo da sua parte.
Todos aqui torcemos pela sua Mãe, bem como pelos filhos e pelo seu médico. Mas
estamos a explorar todas as perspetivas da família e dos prestadores de
cuidados e a tentar encontrar uma solução em todos se sintam confortáveis.
Peco-lhe que nos permita isso.”
Guiomar Guimarães: Bem, a minha Mãe foi sempre muito assustadiça. A medida
que foi envelhecendo e as preocupações foram crescendo passamos a contar com o
nosso médico de família. Eu era a porta-voz e era como se fosse um filtro – era
assim a nossa família, a nossa cultura. Era assim que nos sentíamos bem. Ela
adora o Gaspar e a mim, confia em nós. Somos muito diferentes. O Gaspar é muito
prático e sabido e eu sou mais de chorar e abraçar, mas entre nós, penso que
sempre fizemos o que era o melhor interesse dos nossos Pais. Conhecemo-los,
compreendemo-los e sabemos o que significam os seus sentimentos, sabemos o que é
a esperança e o que é o medo nas suas vidas. E poupar a nossa Mãe desse medo
nas últimas semanas da sua vida é muito mais importante para nós do que
dizerem-lhe tudo sobre a sua doença – só por causa das obrigações do hospital e
até pelo facto de vocês o esperarem quando alguém esteja capaz de decidir. Ser
capaz não a isenta de ser intimidada, ser deprimida, sentir-se abandonada e
cair na desgraça terrível do que possa acontecer.
Mediador bioético: Bem, compreendendo muito bem o que diz, gostaria de
perguntar ao pessoal de saúde que nos dissesse alguma coisinha sobre as suas reações
quando estão na enfermaria e como responde a D. Guilhermina. Que perguntas faz?
É curiosa?
Antes de recolher mais informações sobre o problema com
esta importante série de perguntas, o mediador precisa saber responder ao
expressivo depoimento da filha. Dizer simplesmente “Compreendo” não é
suficiente. O mediador precisa de dizer o que compreende, isto é, o que
aprendeu com as afirmações da filha sobre o modo como a família lida com os
problemas médicos e sobre os receios da sua Mãe. Quando Guiomar fala sobre a
sua Mãe “ser intimidada, ser deprimida, sentir-se abandonada e cair na desgraça
terrível que possa acontecer”, parece provável que essas palavras também
descrevam o que sente a filha. Estes sentimentos também precisam ser
reconhecidos antes de perguntar à equipa sobre as suas reações face a D.
Guilhermina.
O mediador devia também aproveitar para dizer: “Se bem
percebi a vossa família partilha de uma cultura particular que influencia muito
o modo como as decisões são tomadas e podemos dizer que o pessoal de saúde é também
parte de uma cultura, estruturada na bioética e nas leis nacionais, que
considera que o doente que seja capaz de assumir as suas decisões em matéria de
saúde tem o direito de conhecer as opções e de escolher por si mesmo como
decidir. Este debate é sobre como conciliar estas duas culturas. Portanto,
permitam que todos mostrem abertura para se ouvirem mutuamente antes que
tentemos decidir algo.”
Dependendo da etnia da família, pode haver outros fatores
em presença. As regras que prevalecem no que respeita a decisões sobre cuidados
de saúde resultam das leis nacionais e dos conceitos de liberdade, dignidade e
autodeterminação que lhes subjazem. Muitas culturas não têm estes conceitos. Em
muitas culturas asiáticas, por exemplo, assume-se que a doença e a morte não
devem ser mencionadas ao doente. Em algumas culturas indígenas da América,
acredita-se que falar sobre a morte acelera a sua chegada e é uma norma
comportamental desadequada. Muitos destes padrões familiares e culturais surgem
no decurso de processos de mediação.
Dr.ª Carolina Costa: Sendo a chefe de clínica deste caso, tenho acompanhado
a doente desde a admissão. É uma senhora muito simpática, mas sinto que ela
sabe que está muito doente e porque está no hospital, e que sabe que se não
estivesse tão doente já não estaria no hospital. Temos feito vários exames e
sinto que nada lhe dizer sobre as implicações dos resultados desses exames não é
justo porque ela faz-nos perguntas e está preocupada, e creio que isso é assim
por causa de o vosso Pai ter tido o que teve. Concordo convosco que parece que
ela tem medo – mas não diria que é assustadiça – está preocupada e sinto que
ela quer saber mais.
Mediador bioético: Pode explicar melhor sobre isso – esse sentimento?
Eis um bom exemplo de uma pergunta que clarifica.
Dr.ª Carolina Costa: Quando passo visita ou a vejo, pergunta-me sempre, “Qual
foi o resultado? O que mostra o exame?” Faz perguntas sobre o que penso. E
muito difícil responder-lhe parcialmente e não lhe dizer tudo, já que é alguém
capaz de tomar as suas decisões. Está muito atenta. Não está inconsciente nem
desatenta ao que se passa. Faz perguntas inteligentes sobre os resultados dos
exames. Se está a melhorar ou não está a melhorar, por que faz este exame, por
que não fazemos outros, quais as implicações, o que isso significa e porquê?
Por isso não dizer, não lhe explicar o quadro completo sobre o que estamos a
fazer e esconder-lhe coisas – não me parece que seja o que devemos fazer
enquanto médicos, designadamente estando ela capaz.
Vemos que há dois retratos diferentes da D. Guilhermina –
um em que ela é assustadiça e não quer saber o que passa consigo e outro em que
ela está cheia de dúvidas. O mediador precisa de admitir estas duas versões. “Quando
vos ouço, Dr. Gaspar Guimarães, D. Guiomar, Dr. Martins, e depois ouço a Dr.ª
Carolina e a Enf.ª Beatriz, fico confuso – é como se estivessem a falar de
pessoas diferentes. Gaspar e Guiomar, vocês descreveram a vossa Mãe como
querendo renunciar ao conhecimento e as decisões relativas aos seus cuidados,
deixando isso para ambos, e não querendo ser informada. Dr.ª Carolina e Enf.ª
Beatriz, vocês descreveram alguém que faz perguntas sobre os seus cuidados e a
sua situação. Gostava de saber o que pensam sobre estas diferenças.” Uma
afirmação como esta podia provocar uma resposta de qualquer dos participantes,
como por exemplo, que a D. Guilhermina está a tentar proteger os seus filhos,
evitando falar sobre o cancro ou que ela sente que eles não se sentem confortáveis
usando a palavra cancro, ou ainda que o
pessoal está sub-repticiamente a fazer com que ela pense que deve fazer
perguntas.
Guiomar Guimarães: Posso fazer uma pergunta? O que esperam que ela faça
com a informação de que tem um cancro? Há decisões sobre o tratamento que tem
de ser tomadas por ela? Gostava também de perguntar ao Dr. Martins que
ponderasse nisto. Estamos a dizer que ela está num ponto em que o tratamento é necessário
ou que esses cuidados de conforto são necessários?
Dr. Martins: Creio
que se trata de um cancro avançado. Neste ponto não é tratável, falei com os
meus colegas da Gastroenterologia e há um consenso médico neste assunto – os
cuidados paliativos são seguramente os mais apropriados. Vamos chamar um
consultor de cuidados paliativos – nenhuma destas decisões ou ações depende do
seu reconhecimento do cancro.
Seria útil que o mediador aqui avançasse e resumisse: “Então,
Dr. Martins, só para eu ver se estou certo, o cancro da D. Guilhermina não é curável
e o seu tratamento – da doença e das possíveis dores que venha a ter – não será
influenciado conforme se seja ou não dito que tem um cancro, é assim?” Então
o mediador podia ter perguntado à Enf.ª Beatriz e à Dr.ª Carolina se elas
concordavam em que o tratamento não dependia de a D. Guilhermina saber o seu diagnóstico.
Tal resumo e subsequentes perguntas podiam ter impedido a não muito produtiva
troca de palavras que se seguiu.
Gaspar Guimarães: Gostava muito de perceber por que é que ele se sente confortável
não a informando e vocês, que tem estado a cuidar dela nestes poucos dias, se
sentem desconfortáveis – não faz sentido, para mim.
Enf.ª Beatriz: Quero, realmente, respeitar o que decidirem e o que
sentem, já que querem protegê-la deste conhecimento e os receios que possa ter
desencadeiem um agravamento da sua situação. Com certeza que quero respeitar
tanto o medo que ambos veem, e que ela muitas vezes mostra, como realmente os
medos e a proteção que vocês têm em mente, mas acho que tenho uma impressão
muito pessoal. Ela fala muitas vezes amorosamente de vocês e obviamente está
muito orgulhosa e sente que pode contar convosco em tudo. Põe todos os assuntos
nas vossas mãos. Mas a minha impressão, ou talvez a minha esperança, é que,
quando alguém está bem informado ou possui uma informação mais realista do que
a do tipo beijos e abraços – em que possa falar e ter tempo para pensar –
talvez haja alguma coisa que ela vos queira dizer. Talvez seja o tempo para assegurar-lhe
que vocês a amam, que tudo tratam com o coração nas mãos e…
Guiomar Guimarães: Desculpe interromper, mas está a falar sobre
possibilidades e talvezes, mas não há talvezes para nós. No modo como temos
vivido as nossas vidas, não ficou nada por dizer e estimo muito que tenha impressões,
todos temos. Vocês não são as estrelas da companhia, a nossa Mãe é que é.
Sinto, penso que ambos sentimos, que é quase uma falta de respeito para
connosco pois nós agimos com profunda ponderação neste assunto. Isto não é um
capricho, isto não é coisa a que chegamos hoje. E, digamos, mantermo-nos
naquilo em que vivemos as nossas vidas como uma família, e penso, porque temos confiança
em nos próprios, que entendemos isto como o melhor interesse dela. Até
compreendo que isso possa ser desconfortável para os profissionais mas
esperamos, julgo eu, que consigam ultrapassar esse desconforto de modo a
continuarem a cuidar da nossa Mãe com o maior profissionalismo.
Enf.ª Beatriz: Com certeza. Estou precisamente a explorar essa
possibilidade.
Gaspar Guimarães: Só queria dizer que pode ficar com as suas impressões
para a sua Mãe e eu fico com as minhas para a minha, e ficamos por aí.
Mediador bioético: Talvez possamos parar por um momento e resumir o que
sabemos então sobre os cuidados. Temos, assim, que o Dr. Martins nos disse que
ela tem um cancro terminal – não sabemos bem quanto demorará até que haja morte
mas sabemos que está em fase terminal e é preciso fazer alguns planos para esta
fase. É evidente que ambos os filhos estão atentos ao que se passa com a Mãe e
têm uma experiência longa do modo como lidam com as doenças em vossa casa,
sobre o que gostaria ainda de ouvir um pouco mais, mas também temos a nossa
equipa de Saúde que igualmente também está preocupada com a senhora, e eu penso
que não devemos deixar de ter isso em conta. Todos queremos o melhor para a D.
Guilhermina. Talvez possamos recuar um pouco. Gostava de saber um pouco mais
sobre a vossa Mãe. Gostava de saber como é que ela se dedicava aos trabalhos domésticos
e como falava convosco sobre assuntos sérios como estes.
O mediador faz um bom resumo dos factos médicos e tentar
aperceber-se das tradições familiares sobre o modo de encarar as doenças.
Recorda que todos estão igualmente interessados no bem da D. Guilhermina. Havia
ainda uma parte para o mediador trabalhar. Os filhos atiraram-se ao uso pela
enfermeira da palavra impressões e
reagiram a isso. Seria útil que o mediador sublinhasse que o que a Enf.ª
Beatriz estava a querer dizer é que admitia ter os seus valores pessoais – os
seus preconceitos – mas estava também estava a tentar pô-los de lado e a
respeitar os valores da família. Poderia também fazer notar que a Enf.ª Beatriz
estava também a mostrar como era difícil compatibilizar a abordagem tão
protetora como amorosa de Guiomar e Gaspar com as respostas que queriam dar às
perguntas da sua Mãe. Poderia ajudar a Enf.ª Beatriz a completar o seu
pensamento dizendo o que ela quase disse: “Dr. Gaspar, D. Guiomar, vi que reagiram
ao que disse a Enf.ª Beatriz sobre as suas impressões ou preconceitos. Posso
estar enganado, mas a minha impressão é que a Enf.ª Beatriz está a tentar
respeitar as vossas vontades e as vossas tradições familiares. E, Enf.ª Beatriz,
corrija-me se estou a ver mal, penso que ia dizer que, na sua experiência, as
pessoas muitas vezes querem ter uma oportunidade para se despedir”.
Eis um novo caminho que, nesta altura, o mediador poderia
seguir. Poderia dizer que há estudos sérios que demonstram que os doentes que
estão a morrer se apercebem disso e com demasiada facilidade se isolam nos seus
medos. Esses estudos mostram um nível acrescido de conforto quando a informação
sobre o diagnóstico e o prognóstico e partilhada e serve de base as conversas.
Certamente que não é o caso da D. Guilhermina mas é muitas vezes uma perspetiva
a considerar. É bem possível que a D. Guilhermina esteja a proteger os seus
filhos que estão ocupados a protegê-la – seria um mal-entendido circular pouco benéfico
em cuidados de fim de vida.
Gaspar Guimarães: Peço desculpa mas queria saber do que está a falar?
Mediador bioético: Com certeza, o que eu queria saber era um pouco mais
sobre como é que a sua Mãe lidava consigo e a sua irmã quando falava de doenças.
Como disse que o seu Pai faleceu recentemente de cancro, o que deve ter sido difícil
para a família, queria só perceber um pouco melhor como foi.
Gaspar Guimarães: A nossa Mãe foi sempre uma grande mãe, tomou sempre
conta muito bem de nós e é como se precisássemos de retribuir esses cuidados
que teve connosco, sabe, ela é o género de pessoa que se amedronta facilmente,
e bastante ansiosa, de tal modo que durante toda a vida era o Pai que tomava
conta de tudo. Ela é muito viva, ativa e lúcida mas não lida muito bem com o
stresse. E por isso que precisamos efetivamente de assumir o stresse para nós e
deixar que desfrute a vida de modo a ser o que é, de modo que não seja a equipa
médica a liquidá-la antes do tempo.
Mediador bioético: E porque seria que, se ela soubesse as coisas de que não
lhe falam, isso a liquidaria? Porque pensa assim?
Gaspar Guimarães: Basta o que ela viu com a morte do meu Pai, e se
ouvisse a palavra cancro saberia
o que a esperava e ia-se abaixo. É o que sei, se este diagnóstico de cancro…
Guiomar Guimarães: Sabem, em nossa casa, nunca usamos a palavra cancro. Sabemos que cancro é sempre uma doença terrível. Quando
o nosso Pai adoeceu, o nosso maior receio era que fosse um cancro. E era também
o seu maior receio. Ele teve uma morte dolorosa e muito difícil com pouquíssima
esperança ou expectativas sobre a sua vida depois da doença. E víamos a nossa Mãe,
sempre atenta, víamos como ela era parte nesse final, e a perda que ela sentia
era confrangedora. Nós pressentimos que, certamente, percebe que esta doente,
ela não tem estudos, mas é muito inteligente. Sentimos que, dado o facto de
nada podermos fazer para salvar a sua vida, que usar a palavra infeção
e dizer-lhe que vamos usar medicamentos para a aliviar
seria mais fácil. Conhecemos o vosso dever profissional, mas que interessa se
for cancro ou infeção? Se é menos assustador para ela e lhe facilitar ter um
resto de vida sem pesadelos, suponho que a estaríamos a ajudar se pudesse haver
uma espécie de acordo em que continuassem com o que deve ser feito, em que não
a abandonassem só por se sentirem desconfortáveis em não usar a palavra que
evoca a morte terrível do seu marido, que ela tanto amava, e a terrível morte
que ela tanto teme.
Mediador bioético: Portanto está preocupada mais com a palavra do que com
o que ela possa entender do que se está a passar? Ela perguntou-lhe já o que se
passa de errado?
O mediador faz uma pergunta útil mas poderia ter ajudado
se levantasse antes o tema da dor. Como Guiomar referiu a morte dolorosa do pai
parece que a dor é uma grande causa para os receios tanto da D. Guilhermina
como dos seus filhos. Eles (e ela) precisam de ter a certeza de que os médicos já
conseguem controlar a dor muito melhor. O mediador, que chama o assunto mais
tarde, poderia já dizer: “O controlo da dor é uma questão concreta neste
caso e estou certo de que o Dr. Martins nos pode dizer que a equipa de cuidados
paliativos tem feito grandes progressos nos últimos anos com intervenções que
tranquilizam o doente. Seja o que for que aconteça a D. Guilhermina, podemos
garantir que ela será poupada à dor.”
Guiomar Guimarães: Nestes anos, especialmente desde que o nosso Pai
faleceu, éramos nós que lhe fazíamos companhia e ela dizia sempre “falem com
o meu filho, falem com a minha filha”. Sabem, nós somos o seu orgulho, nós
estudamos, ela não. Eles deram-nos tudo e a nossa família tem grandes
expectativas nos filhos que ela educou com respeito por valores familiares,
honrando os seus pais, e penso que o que estamos a fazer está muito fortemente
de acordo com o modo como ela viveu esses valores.
Dr. Martins:
Gostaria, de novo, de concordar com a narrativa que faz sobre as doenças, os médicos
e as questões de saúde. Conheço-a há onze anos e quando vinha ao meu consultório,
desde que o seu Pai faleceu, sempre consigo, com certeza, era isso que ela
queria. E, desde as coisas mais banais às mais graves, o que quer que se tratasse,
ela sempre deixava a decisão para os filhos, e penso que temos de dar ouvidos às
vontades da doente para compreender ou não compreender as coisas e deixar que
outros tomem as decisões difíceis. Foi o que ela sempre fez e não vejo razões
para mudar agora, passando para ela esse encargo.
Guiomar Guimarães: Penso que seria diferente se houvesse coisas a fazer
para lhe salvar a vida. Certamente que a queremos connosco e que vamos sentir a
sua falta amarguradamente, mas ambos queremos que percebam que nunca iriamos
interferir com o tratamento que salvasse a sua vida.
Mediador bioético: Acho que esse é um ponto importante. Suponho que temos
de falar sobre a palavra infeção que
referiram e de como é difícil para o pessoal de saúde dizer que é uma infeção
quando não e. Compreendem a perspetiva do pessoal sobre isto?
Gaspar Guimarães: Seria satisfatório se apenas lhe dissessem que ela
tinha uma doença e que estavam a fazer tudo para a melhorar.
Enf.ª Beatriz: Eu estou preocupada com a ansiedade dela e os seus
medos e queria garantir-vos que o pessoal tudo fará para, em cada dia, lhe dar
o maior apoio que possamos e mantê-la sem dores, não vamos…
Guiomar Guimarães: Muito obrigado.
Enf.ª Beatriz: Tudo o que pudermos fazer para ajudá-la nos seus medos
e ansiedade. Há alguma coisa que poderíamos fazer para atenuar algum destes
aspetos?
Mediador bioético: Pelo que estou a ver, penso que estamos a avançar num
caminho para lidar melhor com as preocupações de todos e parece que se estão
preocupados ou receosos com as dores e as ansiedades que ela possa ter, há maneiras
de a ajudar nisso, assim, peço ao Dr. Martins para dizer umas palavras sobre o
pensa sobre os tratamentos da sua doente.
Dr. Martins:
Certamente! Neste hospital, tenho trabalhado com a equipa de cuidados
paliativos. Nos últimos anos, tenho testemunhado que são cada vez mais
eficientes e disponíveis, Fazem um trabalho fantástico e não tenho dúvidas
sobre as suas capacidades de controlar a dor física e também de tratar de
outras questões associadas. Posso assegurar aos seus filhos e a todos que isso será
feito – por favor, não estejam preocupados com isso.
Mediador bioético: Quer dizer que não há razões para que ela sofra?
O mediador, fundamentando-se no reconhecimento da
enfermeira de que um dos maiores receios dos filhos fosse que a Mãe estaria
condenada à mesma morte dolorosa que o seu Pai, pede ao Dr. Martins que
confirme. O mediador proporciona então uma importante reafirmação da
possibilidade de se controlarem as dores da D. Guilhermina e os seus sofrimentos.
Contudo não se referiu a um outro problema que muito preocupa o pessoal, que é
sentirem que estão a mentir e a menosprezar as suas obrigações éticas e deveres
legais, não revelando a doente à sua situação.
O mediador percebeu que a doente sempre delegou nos seus
filhos. Talvez pudesse sugerir que os filhos e o pessoal conversassem com a
doente de modo que a filha ou o filho perguntassem: “Mãe, acha bem sermos
nos a resolver as coisas que estão a acontecer, para o seu bem e o seu
conforto? É o que temos feito quando falamos com o Dr. Martins. Podemos
continuar assim?” Esta clara delegação de poderes e autonomia sossegaria o
pessoal.
Dr. Martins: Eu não
diria melhor.
Dr.ª Carolina: Portanto, se bem percebo, sabendo mais sobre a vossa Mãe,
pelo que dizem, ela e a família passaram por um mau bocado. Lamento muito as
dificuldades que passaram com a doença do vosso Pai e conhecendo-a melhor, também
pelo que conta ao Dr. Martins, sobre ela vos delegar sempre as decisões, estou
pronta a concordar com a vossa decisão. Contudo preocupa-me que, na minha
limitada experiência, o que tenho visto como os doentes que vão ficando piores
e piores, os seus corpos vão cedendo à doença, e como que percebem que algo está
mal. Por isso, o que planeiam dizer-lhe – quando piorar e, digamos, tiver mais
hemorragias, mais sangue nas fezes, e enfraquecer muito – como falar disso
conforme avance a doença? É que me preocupa o modo como ela reagirá e como
lidar com essas aflições.
Mediador bioético: Eis algo sobre que temos necessidade de falar, pois a
sua condição vai certamente evoluir com o tempo e certamente temos o Dr.
Martins, que a conhece bem e poderá ajudar a tratar disso, mas suponho que é de
facto um problema importante. Que acontece se a vossa Mãe perguntar a um dos
membros da equipa “Tenho um cancro?”
Gaspar Guimarães: Penso que nessa altura, se se temos um médico como o
Dr. Martins que a conhece bem, está no seu papel dizer “Vamos falar com a
sua família sobre isso”. O meu sentir sobre a minha Mãe é que, quando ela
estiver pronta para fazer essa pergunta, vai fazê-la a nós e nós resolveremos o
que fazer. O que não quero e que seja outra pessoa qualquer, que a não conhece
bem, a dizer-lhe uma tal coisa.
Mediador bioético: Dr. Martins, o que lhe parece?
Dr. Martins: Bem,
concordo. Inquieta-me a possibilidade de, se ela perguntar ao pessoal, a alguém
que não a mim, é mais provável que o pessoal possa interpretar mal alguma coisa
que ela diga como sendo uma pergunta sobre o diagnóstico quando afinal esteja
apenas a pedir uma outra informação qualquer. Quero ter a certeza de que o
pessoal não a confronta com o diagnóstico quando estiver sozinha. Por favor,
por favor, não façam isso! Se acharem que estão perante uma pergunta direta, o
que preciso que façam é que mudem de assunto – eu, o seu médico que a conheço há
muito tempo, serei o único a abordar o assunto e a sua família tem de estar presente
no quarto. Juntos veremos o que ela realmente quer saber. Se ela mudar de opinião
e quiser saber, ela saberá. Mas não se espere que isso vai acontecer.
Mediador bioético: Permitam que pergunte – e talvez possamos falar sobre
isto. Temos um hospital a funcionar 24 horas por dia, sete dias por semana, e
sabemos que tentaremos comunicar com todos – como pensam que devemos fazer
isso? Como fazer para que todos os membros do pessoal saibam exatamente o que
fazer?
O mediador apercebe-se de que o grupo se aproxima de um
acordo mas há pormenores que precisam ser acertados antes do fim da sessão. É
tentador saltar passos, especialmente depois de uma longa e tensa conversa. É
altura em que seria útil fazer um resumo e reconhecer que os participantes
fizeram progressos significativos antes de testar a proposta do Dr. Martins: “Então,
penso que estamos a caminhar para uma solução aceitável por todos. Dr.ª
Carolina e Enf.ª Beatriz, segundo parece, depois de ouvirem o Dr. Guimarães e a
D. Guiomar e de ouvirem o Dr. Martins, podem trabalhar sem revelar a D.
Guilhermina o diagnóstico de cancro. Quero agradecer-lhes por isso. Dr.
Martins, o que mais o preocupa a si e aos filhos da D. Guilhermina é que,
quando chegar a altura – embora pensem que seja pouco provável – em que a D.
Guilhermina pergunte pelo diagnóstico, possam estar presentes para a apoiar.”
Resumir deste modo favorece as possibilidades de que a Dr.ª Carolina e a Enf.ª
Beatriz compreendam e transmitam ao resto da equipa a importância de não forçar
a D. Guilhermina enfrentar a palavra cancro sem a presença
do seu sistema de apoio.
Dr.ª Carolina: Podemos fazer uma nota sobre isso e pô-la no processo clínico,
como você fez ao escrever “não revelar o diagnóstico à doente” na porta
do quarto.
Há aqui alguma tendência para ver ironia nesta fala da Dr.ª
Carolina. Poderia merecer uma reação do mediador: “Bem, pode não ser preciso
um anúncio publico. Isto é uma matéria de foro privado e não precisa sem
anunciada aos sete ventos. Sinto que, com este comentário, poderemos precisar
de dar mais um passo de modo a conciliar este caso com a regra normal que tive
ocasião de formular antes – a de que os doentes capazes podem decidir. Que tal
se concordarmos em que, quando a D. Guilhermina fizer perguntas, se responda
que o Dr. Martins está a reunir todos os exames e lhe falará disso a breve
prazo? Assim, Dr. Martins, o senhor pode ajuizar o nível das perguntas, decidir
se fala à família e preparar o nível de resposta que acha necessário.” Este
resumo põe a responsabilidade e a autoridade nas mãos do médico de família, que
é a figura central da relação médico-doente e o que tem a experiência de cuidar
da doente – e uma boa parte das suas funções é partilhar e interpretar informação.
Enf.ª Beatriz: Também quero, como enfermeira-chefe deixar muito claro
que farei o meu melhor para dar à doente os melhores cuidados possíveis sem lhe
revelar o diagnóstico e que debaterei isto com o meu pessoal.
Gaspar Guimarães: É o seu trabalho, não o meu.
Guiomar Guimarães: Estamos muito gratos, agradecemos muito que nos tenham
ouvido e compreendido, e esperamos que, no hospital, seja possível, com a vossa
ajuda, comunicar o que acordamos.
Mediador bioético: Julgo que podíamos ainda falar um pouco mais sobre se
está ou não na altura de chamar o serviço de cuidados paliativos. E algo que
acham aceitável?
De novo, foi uma boa sequência ao que aconteceu agora.
Teria sido ainda melhor levantar o assunto da consulta de cuidados paliativos
com uma pergunta (“Acham que podíamos falar um pouco mais sobre chamar os
cuidados paliativos?”) em vez de como uma recomendação (“Julgo que podíamos
ainda falar…”).
Gaspar Guimarães: [para o Dr. Martins] Mais uma vez, respeito muito a sua opinião e o modo
como tem gerido até agora os cuidados com ela, por isso se e essa é uma
recomendação médica?
Dr. Martins: Sim.
Suponho que esta reunião foi a primeira em que tratamos diretamente desta questão.
Só há pouco recebi os resultados da colonoscopia e da tomografia mas sim, com
certeza, e vamos ter a melhor equipa de cuidados paliativos a ajudar a doente a
não sofrer e a viver o que lhe resta da sua vida tão confortável quanto possível.
Guiomar Guimarães: O senhor continua a ser o seu médico mesmo depois da
chegada dessa equipa?
Dr. Martins: Não
tenha dúvidas quanto a isso. Serei o seu médico e manterei o papel de decisor primário
mas realmente precisamos e queremos a ajuda deles.
Mediador bioético: Tem mais perguntas acerca do tratamento atual ou sobre
eventual alta e planeamento a seguir? Há quaisquer outras perguntas que queiram
fazer?
Guiomar Guimarães: Penso que, por agora, há muita coisa para pensar, tudo
isto é novo. Sei que já tem feito isto mais vezes, mas para nós foi a primeira
vez que estamos nesta situação pelo que acho que temos de nos sentar e pensar
mais em tudo. Acho que posso falar pelo meu irmão e mostrar que agradecemos o
tempo que estiveram connosco e que nos tenham ouvido.
Mediador bioético: [para a enfermeira] Em relação ao resto do pessoal, será quem fará a devida
passagem de informação?
Enf.ª Beatriz: Sim.
Mediador bioético: OK. Então, antes de ir embora, quero agradecer a todos
por terem vindo e falado sobre a D. Guilhermina; penso que chegamos a um bom
porto. Tentamos garantir-vos que cuidamos dela, a Enf.ª Beatriz e o Dr. Martins
farão o seu melhor para que o pessoal evite conversas diretas sobre cancro com
a vossa Mãe, e vamos pedir a equipa dos cuidados paliativos para vir falar
convosco e com a vossa Mãe de modo que possamos avaliar as suas necessidades
atuais e prever medidas para o futuro. É sobre isto que chegamos a um acordo?
O mediador poderia finalmente dizer qualquer coisa que
indicasse que este era um caso pouco vulgar e como o pessoal estava a seguir os
princípios éticos gerais: “Gostaria de fazer um comentário final ao debate.
Estou satisfeito com as decisões que tomamos, mas todos nós, em cuidados de saúde,
sabemos que foi uma conclusão pouco frequente. Concordo em que faz todo o
sentido neste debate que o que interessa são os cuidados com a D. Guilhermina.
Contudo, isto está contra os direitos legais da D. Guilhermina e é mesmo uma
exceção às regras que seguimos no ensino do pessoal da saúde. Por isso quero
assegurar aos profissionais que os seus instintos e formação eram os melhores e
que este caso é um desvio dos nossos procedimentos habituais.”
“Finalmente, está certo de que o Dr. Martins pergunte
a D. Guilhermina se ela aceita que seja ele a pedir os exames e lhe explique
tudo sobre os exames? Está certo de que os seus filhos falem com ele sobre os
cuidados que lhe dizem respeito?” (Seria surpreendente que este mediador
partisse para a discussão de alguns temas ligeiramente diferentes.)
Guiomar Guimarães: OK, OK!
Dr.ª Carolina: Vou marcar já a consulta.
Debate adicional Geralmente, num
caso como este em que há desacordos dentro da equipa de saúde, o mediador bioético
reúne com o pessoal primeiro (como referido no Capítulo 4) para ver se as suas diferenças
podem ser resolvidas e, se não forem, para tentar que concordem sobre como
apresentar os seus desentendimentos perante a família.
Este caso mostra bem a tensão entre o princípio bioético
da autonomia e as normas sobre a decisão de certas famílias no que se refere a
assuntos de saúde sérios. Muitas pessoas acham difícil imaginar como é que alguém,
não conhecendo a sua própria doença, poderá sofrer menos, numa época em que
toda a informação médica mais sofisticada está ao dispor do clique num
computador. Respeitando o princípio da autonomia, é também importante
reconhecer que, em muitas culturas, são as famílias que assumem, partilhando ou
controlando as decisões sobre problemas de saúde importantes dos seus entes
queridos. Se a doente dispõe da capacidade para mudar de ideias e de pedir
informações, a decisão de delegar a sua autonomia é eticamente valida.
O problema neste caso é que a D. Guilhermina nunca
delegou explicitamente esta responsabilidade – é com isso que o mediador e os
membros do pessoal se estão a debater. Uma resolução baseada em princípios
exige que o consenso da mediação assente em limites legais e regulamentares
conhecidos. É perfeitamente aceitável que um doente delegue o poder de decidir,
optando assim por uma autonomia apoiada ou diminuída, mas esta delegação só
deve ser ter efeito se, fora das regras habituais, for um abrigo seguro do
processo de decisão. Neste caso não havia uma delegação tão explicita assim.