17 dezembro 2012

Guia de Epilepsia para Empregadores

Emprego e Epilepsia 
Guia de Epilepsia para Empregadores

tradução e adaptação livre do folheto da 
Epilepsy Scotland – “An employer’s guide to epilepsy

Introdução

O que faria se um dos seus empregados lhe dissesse que tinha epilepsia? Perguntaria logo se essa pessoa precisava de alguma ajuda no trabalho? O objetivo deste folheto é fornecer mais informações e alguns conselhos sobre o modo de ajudar pessoas com epilepsia no seu local de trabalho.
Se sabe pouco sobre epilepsia talvez tenha muitas perguntas a fazer. Há muitas boas razões para informar os patrões sobre esta perturbação neurológica tão comum e muitos querem ajudar os seus trabalhadores. Esta abordagem construtiva ajuda a elevar a moral e a produtividade do pessoal.
(…) 
 Uma em cada 130 pessoas tem epilepsia, portanto é provável que quem está a ler este folheto já tenha entrevistado e admitido uma pessoa com epilepsia alguma vez. Os empregadores não podem saber tudo sobre deficiências e doenças crónicas. Pode até ser difícil saber que perguntas há a fazer e por onde começar. A epilepsia afeta pessoas de modos muito variados. Algumas pessoas com epilepsia não precisam de qualquer apoio e adaptações no seu local de trabalho. Outras há que podem precisar de mudanças de emprego.

Ver o folheto completo AQUI

13 dezembro 2012

Morte em certeza

 

Morte em certeza

Agradeço o convite da Direção da Sociedade Portuguesa de Neurologia para escrever um breve texto sobre “morte cerebral” na publicação comemorativa dos 30 anos desta sociedade científica. Faço-o ao mesmo tempo que ouço, no computador onde escrevo, o adagietto de Mahler (1), recordando o célebre filme de Visconti: “Morte em Veneza”. Tantas vezes ouvida, esta música leva-nos sempre aos mares suaves do isolamento tranquilo.

O desenvolvimento, nomeadamente na área da anestesiologia, de extraordinárias capacidades técnicas que asseguram a ventilação artificial de pessoas vítimas de traumatismos cranianos graves ou de outras patologias causadores de lesões reversíveis a nível cerebral, conduziu, em todo o mundo, à sobrevida de milhões de seres humanos que, sem esse recurso, não escapariam a um destino fatal.

A iminência da morte, em unidades de cuidados intensivos cada vez mais sofisticadas, constitui um desafio a que os profissionais de saúde não negaram forças, empenhamento e criatividade. Hoje essas unidades são locais onde, todos os dias, se trava uma verdadeira luta de vida ou de morte. Os mecanismos poderosos e muitas vezes automatizados de que dispomos, assim como os progressos farmacológicos, levaram ao surgimento de um novo conceito de morte. Além da morte por paragem cardiorrespiratória, constatou-se que havia também a morte “por paragem” neurológica (2). A verificação de que, apesar dos batimentos cardíacos persistirem e da respiração poder ser assistida mecanicamente, um corpo estava já morto levou a que, nesses casos, se considerasse lícito colher órgãos ou tecidos para benefício de quem deles necessitasse.

Contudo, antes das dúvidas sobre a licitude das colheitas para transplantes, houve necessidade de resolver a questão da legitimidade para desligar as máquinas. Na verdade, se se reconhece que uma pessoa morreu, não se compreende, nem se justifica, que se mantenha uma ventilação artificial a um cadáver.

Quando, em 1993, foi aprovada a Lei dos Transplantes (3), ficou definido que a Ordem dos Médicos deveria «enunciar e manter atualizado, de acordo com os progressos científicos que venham a registar-se, o conjunto de critérios e regras de semiologia médico-legal idóneos para a verificação da morte cerebral». Tal vem a verificar-se em 1994 pela publicação de uma Declaração (4) que estabelece os critérios de morte cerebral e afirma que a sua certificação «requer a demonstração da cessação das funções do tronco cerebral e da sua irreversibilidade» . Esta declaração vem a ser corroborada, em 1995, pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (5). Contudo só em 1998 é publicado na “Acta Médica Portuguesa” o Guia de Diagnóstico da Morte Cerebral (6), onde se afirma que «o diagnóstico se baseia na noção de que a morte do tronco cerebral é componente necessária e suficiente para a confirmação da morte cerebral. Por isso se pesquisam, um a um, todos os reflexos dependentes do tronco cerebral, incluindo aqueles que, embora de execução mais demorada, são conhecidos como sendo os últimos a desaparecer». Este Guia foi elaborado por uma comissão designada pelo Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos que, além do autor destas linhas, integrava o Dr. Mário Lopes (designado pelo Colégio de Anestesiologia), o Dr. Nelson Rocha (designado pelo Colégio de Medicina Interna) e a Doutora Paula Coutinho (designada pelo Colégio de Neurologia). A Comissão pediu a colaboração do Dr. Dílio Alves (da Comissão Diretiva da subespecialidade de Neuropediatria). O texto foi amplamente discutido pelos diversos Colégios da Ordem antes de ser fixada a versão final. Participaram, portanto, na sua redação três membros desta Sociedade.

Ficou, deste modo, resolvido o problema legal da verificação da morte em pessoas internadas em unidades de cuidados intensivos e submetidas a apoio respiratório mecânico. Para alguns subsistem, no entanto, algumas dúvidas.

Do ponto de vista técnico-científico, permanecem algumas correntes que defendem que só se pode falar em morte cerebral quando há lesão irreversível de todo o cérebro e não apenas do tronco cerebral. Esta opção, embora minoritária, é especialmente seguida nos Estados Unidos da América (EUA) e configura o que se pode talvez considerar um excesso de zelo. As controvérsias sobre o receio de que se possa desligar a ventilação a alguém que não está verdadeiramente morto continuam a dar origem a pronunciamentos nem sempre bem fundamentados. Este tema é abordado com clareza, em 2004, por Fernando Pita e Cátia Carmona, num artigo da “Acta Médica Portuguesa” (7).

Do ponto de vista ético, há outras faces do problema que, dentro dos limites espaciais de um texto como este, ainda valerá a pena focar.

Merece reflexão a necessidade de claramente se separar o momento da colheita de órgãos do momento da verificação da morte cerebral. Por outras palavras, deverá tornar-se evidente que só há colheita de órgãos em pessoa morta e não que se apressa uma verificação de morte porque há urgência num transplante. É aliás o que concluiu, em 2008, o Conselho de Bioética do Presidente dos EUA no seu relatório sobre as controvérsias na determinação da morte (8). Veja-se, a este respeito, o citado Guia de Diagnóstico que rege os procedimentos diariamente, entre nós, há mais de uma dúzia de anos e as especiais precauções no que se refere às provas de verificação e às qualidades dos seus intervenientes, separando-os, de modo transparente, dos profissionais envolvidos em transplantes.

Refira-se também a posição expressa por pensadores da área jurídico-filosófica sobre a impossibilidade do legislador estabelecer processos declarativos de morte face à alegada incapacidade de dirimir dúvidas e ao risco de ferir a inviolabilidade da vida (9).

Finalmente, e não menos importante, sobressai a questão do respeito pela dignidade da pessoa humana e em particular pela dignidade dos familiares da pessoa falecida. Daí que importe que todos os atos referentes à verificação da morte, à comunicação da mesma e à eventual colheita de órgãos ou tecidos deverem ser sempre acompanhados de especiais cuidados de explicação, adequada à cultura e literacia dos interlocutores. Sabe-se que as diferentes morais religiosas não coincidem na forma como estes assuntos são encarados.

Se católicos e protestantes consideram os transplantes lícitos, já a moral judaica lhes levantam óbices, apenas ultrapassáveis em condições especiais, dados os seus preceitos de inviolabilidade dos cadáveres. Algo de similar se passa com a moral muçulmana, sendo que esta, tal como a budista, consideram essencial o prévio consentimento em vida (10). Entre nós, a opção por um registo nacional de não-dadores consagrou, sem controvérsia moral ou ética, o consentimento presumido. Todavia, não haverá razões substantivas para deixar de adotar uma posição compassiva perante familiares que invoquem objeções à colheita de órgãos, mesmo depois de adequadamente informados da bondade do mesmo.

A morte e as atitudes perante a morte hão de ser sempre temas que precisam tanto da serenidade da música e como da profundidade do pensamento. 

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(1) Mahler, G. 3.º andamento da 3.ª sinfonia. Bernstein
(2) Almeida, R. Morte há só uma. Revista da Ordem dos Médicos, nº 91. Junho 2008
(3) Lei n.º 12/93, de 22 de abril
(4) Declaração da Ordem dos Médicos (DR, I série, B, nº 235, 11/10/94)
(5) Parecer n.º 10/CNECV/95
(6) Guia de Diagnóstico da Morte Cerebral. Acta-Med-Port, 1998, Vol. 11, Nº 1, pág. 91-95
(7) Pita F, Carmona C. Do medo de ser enterrado vivo ao mito do dador vivo. Acta-Med-Port, 2004, Vol. 17, N.º 1, pág. 70-75:
(8) Controversies in the Determinations of Death. A white paper by the President’s Council on Bioethics.
(9) Geraldes, JO. Finis vitae ou Ficta mortis. Revista da Ordem dos Advogados, ano 70, Lisboa, 2010
(10) Rede Europeia de Cooperação Científica «Medicina e Direitos dos Homens» da Federação Europeia das Redes Científicas - Saúde face aos Direitos dos Homem, à Ética e às Morais. Ed. Conselho da Europa, 1996. Tradução de Maria Teresa Serpa. Instituto Piaget, Lisboa.

01 dezembro 2012

Consentimento e discernimento

 

Quando falamos em consentimento informado para intervenções de saúde, sejam cirurgias altamente invasivas ou simples prescrições de comprimidos, estamos a falar da autonomia do destinatário dessas intervenções.

Porém, a verdade é que, no pensamento de muitos, a primeira ideia que surge é ainda a que associa o consentimento informado a uma questão de responsabilidade. Algumas pessoas, influenciadas pela velha designação de “termo de responsabilidade”, consideram que o “consentimento informado”, nomeadamente se passado a escrito, é um instrumento de defesa do profissional de saúde. Creem que, na posse de um papel que diga “consinto”, aqueles ficam livres de qualquer acusação se algo correr mal. Embora esta interpretação seja, felizmente, cada vez mais rara, admitimos que no dia -a -dia das nossas instituições de saúde subsistem numerosos exemplos de falta de respeito pelo princípio ético da autonomia.

O princípio a que nos referimos exige que haja uma adequada informação como condição para o adequado consentimento e, como tal, deve estar sempre presente no relacionamento entre os profissionais de saúde e os destinatários das suas ações. Por outras palavras, só com informação feita em «moldes simples, concretos, compreensíveis, suficientes e razoáveis [e com] com o objetivo de esclarecer sobre o diagnóstico, alcance, envergadura e consequências (diretas e indiretas) da intervenção ou tratamento»(1) é que se pode falar em consentimento livre e esclarecido.

Acresce que, além do acima dito, há situações em que, por razões legais ou outras, se impõe que o consentimento seja feito por escrito. Também aqui são frequentes os casos de práticas indevidas, seja por falta ou insuficiência de informação, seja por outras razões. Casos há em que o consentimento é pedido depois do ato praticado (!) e outros em que o documento não contém a assinatura e identificação da pessoa que informa e pede o consentimento. Raras vezes se entrega à pessoa que consente uma cópia do que ela acabou de assinar e quase nunca é dado tempo para reflexão ou se explica que todo o consentimento é revogável.

Uma outra questão, da maior importância, deve ser também merecer a nossa atenção. Trata -se de saber se, mesmo que a informação prévia seja adequadamente prestada, mesmo que todos os trâmites sejam corretamente seguidos, a pessoa que consente tem capacidade para o fazer. «A iliteracia, o analfabetismo ou as manifestações de incompreensão não são razões para deixar de tentar obter um consentimento livre e esclarecido, antes obrigam a melhores explicações e a mais adequada informação.»(2)

Mas, se a autonomia pressupõe esclarecimento (informação adequada), ela também requer liberdade (ausência de coação)(3) e discernimento. É por tais razões que, quando estamos perante menores de idade ou incapazes por deficiência mental, importa refletir um pouco mais e tomar certas precauções derivadas não só do legalmente estabelecido mas, sobretudo, dos imperativos éticos.

No plano jurídico, a capacidade para consentir é definida pela idade(4), contudo a própria lei introduz o conceito de discernimento como complemento. No plano ético, o discernimento deve também ser tido em conta mesmo antes de cumprido o pressuposto etário – ou seja, a criança, desde que tenha discernimento, qualquer que seja a sua idade, merece conhecer um mínimo de informação, adequada a cada situação, sobre o ato de saúde que lhe é destinado e o profissional deverá tentar que a execução do mesmo seja feita com o seu assentimento.

Por outro lado, se a «opinião do menor é tomada em consideração como um fator cada vez mais determinante, em função da sua idade e do seu grau de maturidade»(5), não se deverá deixar de pensar que pedir um consentimento, tanto a uma criança como a um adulto capaz, implica aceitar também o correspondente direito à recusa. Deste modo, manda a prudência que a abordagem seja feita de modo que, sobretudo em casos de especial gravidade em que haja risco de lesão séria ou perigo de morte, o pedido de consentimento para ato médico seja formulado usando mais a persuasão empática do que a mera confrontação entre o tudo ou nada. Não havendo aparelhos que meçam o discernimento, cabe dizer que o bom senso, sendo algo que tem muito de intuitivo, também se aprende e treina.

Naturalmente que estas breves considerações sobre o “consentimento” para atos de saúde se aplicam também à participação de crianças em estudos, sejam observacionais ou experimentais(6), sendo que foram redigidas com o objetivo de estimular a reflexão por parte dos seus leitores sobre assuntos que constantemente necessitam de atenção e de serem revisitados.

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BIBLIOGRAFIA
1. Comissão de Ética para a Saúde da ARSN, Documento-guia sobre Consentimento Informado, 2009
2. Idem
3. Nelson RM, Beauchamp T, Miller VA, Reynolds W, Ittenbach RF, Luce MF. The concept of voluntary consent. Am J Bioeth, 2011; 11: 6 -16.
4. Decreto-lei n.º 400/82, de 23 de setembro (Código Penal) – Artigo 38.º - Consentimento (Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro) – «3. O consentimento só é eficaz se for prestado por quem tiver mais de 16 anos de idade e possuir discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta.»
5. Resolução da Assembleia da República n.º 1/2001 - Convenção [de Oviedo] para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina.
6. Almeida, R. Carta aberta a um jovem investigador clínico. Rev Port Clin Geral, 2011, 27: 499 -500.

30 novembro 2012

Futilidade, o que é

 
Manter os doentes vivos durante mais algumas semanas: será isso um cuidado fútil?

Arthur L. Caplan, PhD

Tradução espontânea do texto 

Keeping Patients Alive a Few Weeks More: Is It Futile Care?

[ver também Futilidade terapêutica]

Futilidade. Em que pensam mesmo os médicos quando fazem algo que acham ser fútil? Futilidade”, para mim, é considerar que um tratamento ou uma intervenção não produzem qualquer benefício.

A Medscape acaba de realizar um estudo junto de 24000 médicos e apenas 25% disseram que não promoveriam intervenções fúteis. Uma percentagem muito significativa, mais de 30%, disseram que o fariam. Os restantes inquiridos disseram que poderiam fazer, dependendo das circunstâncias. Estamos perante achados impressionantes porque entendemos a futilidade como um “não-benefício”, tanto do ponto de vista da ética como da prática médica. Então por que se fazem coisas que não são benéficas para o doente?

Uma das razões para a diversidade das respostas resulta do que alguns médicos dizem: “Bem, poderá haver um pequeno benefício. Talvez se possa manter alguém connosco por algumas semanas ou meses.Percebo e não considero que seja fútil. É uma decisão para proporcionar um benefício marginal.

Considerar um benefício significativo ou marginal é algo que, em parte, depende do doente. Numa unidade de cuidados intensivos, ouvimos doentes dizer: “Quero viver até ao casamento do meu filho” ou “Quero viver até ao meu aniversário”. Ouvi doentes a dizer: Quero ver a final da Taça”. Cada um tem o seu sistema de valores sobre o que algumas semanas mais ou mesmo alguns dias mais de vida significam para si. Mas acho que isso não é futilidade pura. Por isso compreendo bem quando ouço os que dizem: “Bem, talvez eu faça coisas com um benefício marginal. Tenho de conversar com o doente, mostrar-lhe que apenas será uma pequena ajuda mais um dia, mais uma semana ou mais um mês”.

Contudo, se se está a pensar seguir essa estratégia, o doente precisa de compreender que a situação continua a ser preocupante, que ainda que se faça a dita intervenção (uma pequena cirurgia, a administração de certa medicação para o cancro, etc.) isso não será feito na expectativa de que, de algum modo, irá ficar melhor ou recuperar. Quando conversamos sobre uma questão de futilidade, precisamos de mostrar, claramente, ao doente que estamos a falar de controlar a sua morte, procurando adiá-la por um curto período de tempo, sem que isso seja uma reapreciação do prognóstico.

Algumas pessoas responderam, no inquérito, que providenciavam tratamentos fúteis porque há sempre a possibilidade de um milagre. Há sempre a possibilidade de que algo possa acontecer. É uma forma inquietante de encarar o tema da futilidade. É verdade que podem acontecer milagres mas, em pessoas que sabemos ter formas terminais de cancro pulmonar, doença hepática ou cancro do pâncreas, tais milagres não acontecem. Não nos faltam provas de que sabemos o prognóstico nestas situações.

Portanto, embora compreenda o desejo de dar esperança às pessoas e dar-lhes apoio emocional, não estaremos a ajudar se dissermos: “Sabe, os milagres acontecem, as coisas acontecem quando menos se espera”. Talvez seja o que o capelão queira dizer, mas é algo que os médicos não deveriam dizer.

Uma abordagem melhor, ou uma alternativa, é dar às pessoas alguma esperança dizendo qualquer coisa como: Que tal se nós lhe dissermos que amanhã vai poder estar com a sua família? Não acha que isso pode ser um bom motivo para continuar? Podemos, assim, aos poucos, juntos, ir somando pequenos pedaços de esperança. Deste modo vai poder, em cada dia, falar com os amigos e familiares, dizer-lhes como se sente e como gosta deles”.

As grandes esperanças milagres, curas milagrosas chamam-se milagres porque seriam sobrenaturais se acontecessem. Oferecer pequenas esperanças em vez de promover tratamentos fúteis é um modo mais humano de lidar com a realidade da morte pequenos passos, pequenas esperanças. E os doentes compreendem. Normalmente sabem quando estão numa situação desesperada, e o mesmo acontece com as famílias. Têm direito à esperança mas é nosso dever dar-lhes metas razoáveis de curto prazo e não continuar a dar-lhes esperanças que sabemos ser absolutamente fúteis nesta fase dos seus tratamentos.

Haver ainda tantos médicos que prestam cuidados fúteis está, provavelmente, relacionado com outra realidade que se traduz no medo da lei. As pessoas receiam que “se alguém os processa e não fizeram isto ou aquilo, então ficam no lado errado de um processo por má prática”.

Nunca vi tal coisa e já fui testemunha pericial. Nunca se perdem tais casos. Se se diz, em consciência, como médico ou como perito, que não se fazem certas coisas porque se considera que são fúteis e que se falou sobre isso com o doente qualquer pessoa pode ser, em qualquer altura, processado por qualquer coisa daí não resulta que se perca o processo, desde que se cumpram os padrões estabelecidos para os cuidados e se atue de acordo com o que acreditamos, enquanto especialistas.

Praticar cuidados fúteis para contornar ou evitar processos por má prática ou litigâncias judiciais nunca é bom para o doente e o que é preciso é fazer, nestes casos, o que for melhor para o doente. Prolongar sofrimentos, causar mais danos ao doente se é esse o significado de futilidade, para ter uma falsa sensação de segurança em tribunal não é o caminho.

A futilidade é, seguramente, uma coisa complexa mas não a confundamos com tratamentos ou intervenções de benefício marginal. Este é um assunto diferente e percebemos muito bem por que alguns se inclinam a negociar com o doente no sentido de entender o que quer. Pessoas diferentes hão de responder de modo diferente. Não nos enganemos a nós próprios. Nós queremos dar ânimo.

Mas não o façamos desligados da realidade, não usemos a futilidade como maneira de evitar processo judiciais. Não resulta. Se formos desafiados, ficaremos em melhor posição se não proporcionarmos cuidados, e explicarmos, claramente, que não fazem sentido, que sobrecarregam o doente e que, provavelmente, lhe causam mais dano e sofrimento.

O meu nome é Art Caplan da Divisão de Ética Médica, Centro Médico Langone, Universidade de

Nova Iorque. Obrigado por me ouvirem.

01 outubro 2012

Em defesa da honra e da liberdade

Revista OM - outubro/2012

É de todos conhecido que o Conselho Nacional Executivo da Ordem «decidiu solicitar a abertura de um processo de averiguação aos Médicos que assinaram o parecer do CNECV» por alegadas ofensas ao Código Deontológico. Entretanto foi dito publicamente que o processo provavelmente levará muito tempo a concluir-se, pelo que se pode esperar apenas uma de duas situações, ambas intoleráveis: uma condenação presumida arrastada por meses em lume brando ou um arquivamento silencioso sem direito a defesa. 

Dispenso-me de fazer aqui a explicação detalhada do Parecer n.º 64/CNECV/2012 por entender que ele se explica por si mesmo. Lido com seriedade, seguramente se verifica ser um marco importante da forma como as autoridades devem exercer o seu múnus, ou seja, com «a integridade, a transparência, a publicidade, a consistência e a minúcia (…) que deverão estar na base (…) [d]as decisões políticas», como nele se pode ler. No entanto, reconheço que não posso tentar convencer quem não quer ser convencido, quem intencionalmente distorce e quem tem outros objetivos em mente. 

Todos os conselheiros, médicos ou não, manifestaram a sua concordância com o teor do Parecer e a sua maioria contribuiu para o aperfeiçoamento da versão final. Tendo sido um dos seus relatores, estou no centro das investidas dos dirigentes da Ordem e, assim, justifico a necessidade de me pronunciar a título individual deste modo e neste local – recusei e tenciono continuar a recusar prestar declarações perante órgãos de comunicação social. 

Longe de negar o direito a qualquer pessoa de discordar do Parecer, move-me a necessidade de afirmar veementemente o inalienável direito a continuar, até ao final do mandato, a ser conselheiro nacional sem qualquer tipo de constrangimentos e o, igualmente inalienável, direito ao meu bom nome. 

A censura pública que representa a instauração deste processo é repugnante e não pode passar sem algumas explicações básicas destinadas aos dirigentes da Ordem que assim demonstraram delas precisarem. 

O CNECV é um «órgão consultivo independente que funciona junto da Assembleia da República» e é composto por personalidades designadas por diversas entidades (Academia das Ciências de Lisboa, Assembleia da República, Conselho de Ministros, Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, Instituto Nacional de Medicina Legal, Fundação para a Ciência e Tecnologia, Ordens dos Advogados, dos Biólogos, dos Enfermeiros e dos Médicos). No exercício das suas funções, os conselheiros não têm que prestar contas às entidades que os indicaram, o que lhes concede o estatuto de total independência e o direito a livremente se pronunciarem. 

Ainda que, por absurdo, um conselheiro médico defendesse posições contrárias ao Código Deontológico, qualquer ação que o impedisse ou pretendesse punir seria sempre um atentado à liberdade de expressão, tanto mais que participar num Conselho Nacional nunca pode ser considerado como o exercício da profissão de médico. 

Repudio, por isso, tanto a legitimidade desta iniciativa disciplinar como a suspeita, levantada pelos dirigentes que a aprovaram, de que tenhamos de algum modo contrariado os princípios deontológicos ao defender que «existe fundamento ético para que o Serviço Nacional de Saúde promova medidas para conter custos com medicamentos. Tais medidas devem basear-se num modelo como o […] indicado, para que se assegure a mais justa e equilibrada distribuição dos recursos existentes», assim como ao recomendar que «nas decisões sobre racionalização de custos, esteja patente que as opções fundamentais serão entre os “mais baratos dos melhores” (fármacos de comprovada efetividade) e não sobre os “melhores dos mais baratos”.» 

A afirmação de que o Parecer foi «encomendado pelo Ministério da Saúde» é ofensiva e distancia-se ridiculamente da realidade. Entre as competências do CNECV conta-se, por Lei, textualmente, a de responder aos pedidos de parecer solicitados pelo Presidente da República, a Assembleia da República, os membros do Governo, as demais entidades com direito a designação de membros e ainda os «centros públicos ou privados em que se pratiquem técnicas com implicações de ordem ética nas áreas da biologia, da medicina ou da saúde». 

Aguardo com serenidade, embora indignado, pela conclusão do processo que me foi movido mas não deixo de considerar que, infelizmente, qualquer que seja o desenvolvimento que venha a ter, está causado um grave dano de consequências difíceis de calcular na credibilidade da Ordem dos Médicos e do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. E isso é mau, mesmo muito mau! 

Porto, 3 de outubro de 2012

18 agosto 2012

Pais que esperam curas miraculosas podem estar a “torturar” filhos agonizantes, dizem médicos britânicos


Pais que esperam curas miraculosas podem estar a “torturar” filhos agonizantes, dizem médicos britânicos
Michael Cook 

Tradução espontânea do artigo

O que devem fazer os médicos se pais profundamente religiosos quiserem manter uma criança viva a qualquer custo, mesmo que a criança esteja em sofrimento e não haja qualquer hipótese de sobreviver? Num polémico artigo no Journal of Medical Ethics, dois pediatras e o capelão do Hospital de Great Ormond Street, em Londres, apelam a uma mudança na lei.

Os autores temem que crenças profundamente enraizadas estejam a levar mais pais – especialmente cristãos fundamentalistas da África subsaariana – a insistir em tratamentos agressivos que não são, em última análise, no melhor interesse da criança doente. De 203 decisões de fim de vida, em três anos, 17 casais recusaram firmemente um acordo para suspender tratamentos agressivos mas, no final de contas, inúteis. Destes, 11 invocaram motivos religiosos. Os autores referem o islamismo, o judaísmo e o cristianismo e que, muitas vezes, os casais se recusaram a ouvir os conselhos das suas próprias autoridades religiosas. “Todas essas famílias explicitaram expectativas de uma ‘cura milagrosa’ para o seu filho, e, como tal, todos consideravam a informação científica médica como sendo de utilidade limitada.

Como devem estes conflitos ser resolvidos? É aqui que as coisas começam a ficar interessantes. A proposta dos autores é que a posição padrão legal deve ser a interrupção do tratamento quando as negociações entre pais e médicos fracassam face à esperança de uma cura milagrosa. O modelo que propõem é a solução usada para os filhos de Testemunhas de Jeová que precisam de uma transfusão de sangue: uma ordem judicial que permite a transfusão, por ser no melhor interesse da criança. Continuar o tratamento pode até ser uma violação do artigo três da Convenção Europeia de Direitos Humanos que proíbe a tortura.

Contudo, como reconhecem, a analogia não é exata porque o “melhor interesse” do filho de Testemunhas de Jeová é a vida, enquanto o “melhor interesse” do filho de fundamentalistas teimosos é a morte. É um pouco complicado pelo que procuram outros argumentos. Citando Richard Dawkins, argumentam que uma criança pequena não tem idade suficiente para ter crenças religiosas. Em seguida, sublinham que, ainda que a criança sobreviva, ela vai ter, de qualquer modo, uma baixa qualidade de vida. Finalmente, sugerem que manter o apoio à criança é um desperdício de recursos escassos.

As respostas no Journal of Medical Ethics são fascinantes. O seu editor, Julian Savulescu, um utilitarista de Oxford, argumenta que o artigo erra completamente o alvo. É realmente uma questão de alocação de recursos escassos. “Embora eu possa querer um tratamento com uma probabilidade de cura de 1 num milhão, a sociedade tem o direito de dizer que tal tratamento não pode ser disponibilizado, num sistema de saúde público, ainda que haja uma pequena probabilidade de cura. Tal probabilidade é de facto muito pequena.

Outro especialista em Ética de Oxford, Mark Sheehan, diz que a religião faz desviar a atenção do assunto central no debate. “Considerando a história cultural e política do Islão e de África ao longo dos últimos 100 anos, não é de estranhar que os pais que não vejam uma recuperação não tenham confiança numa mistura de medicina ocidental, representantes religiosos ocidentais e a visão laica dos médicos.”

Steve Clarke, também de Oxford, analisa algumas questões controversas. O melhor interesse da criança: “Haverá maior interesse de uma criança que está a morrer do que ser milagrosamente salva?” Milagres: “Ninguém provou que os milagres são impossíveis; de facto, isso seria muito difícil já que há importantes argumentos académicos que concluem que os milagres são possíveis.”

Assim, sugeriu que, em vez de declarar guerra contra as crenças religiosas dos pais, o melhor seria fazê-los participar usando os seus próprios termos. Deus pode já ter decidido e esperar mais tempo não vai mudar isso; Deus podia curar milagrosamente a criança após a cessação do tratamento; ou Deus podia mesmo devolver a vida à criança.

Finalmente, Charles Foster, um advogado cuja especialidade é a suspensão de tratamentos de suporte de vida, sugere que os autores são ignorantes legais que não compreendem o conceito de “melhor interesse” ou o sentido atual da lei. Segundo escreveu, “parecem pensar que, porque nos estamos tornando uma ‘sociedade laica’, cada vez mais há uma espécie de mandato democrático que nos condena a impor valores seculares a todos”. “Os autores levantam a questão: ‘As crenças religiosas permitem contrariar uma abordagem laica de suspender e não iniciar tratamentos em crianças?’ É uma pergunta curiosa. A ortodoxia legal e ética é que as crenças, religiosas ou laicas, não devem contrariar os melhores interesses da criança.

01 junho 2012

Alvíssaras!

Revista OM - junho/2012

Foi publicada finalmente a lei que «regula as diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, e a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital(RENTEV)»

Nos tempos que vão correndo é caso para saudar esta boa notícia.

Contra ventos e marés, enfrentando receios infundados, os deputados aprovaram uma legislação similar à que muitas regiões autonómicas espanholas têm há vários anos. Vai ser possível agora que as equipas de saúde deixem de se refugiar em posições pretensamente defensivas, receosas de perseguição judicial, quando “apenas” respeitem a vontade da pessoa que estão a tratar.

Sim, é certo que a lei podia ser melhor mas ter sido aprovada por unanimidade na Assembleia da República é, só por si, motivo para a inscrever no rol das coisas boas.

Sim, é verdade que ainda falta que o governo regulamente alguns aspetos indispensáveis à aplicação plena do que foi aprovado – o prazo limite termina em meados de janeiro de 2013.

Sim, há clausulados mal redigidos que podem ser mal interpretados e até já o foram. Veja-se a “notícia” que a Lusa produziu no dia da publicação da lei: «Os profissionais que atendam um doente que tenha feito testamento vital e corra "perigo imediato" não têm de levar em consideração as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) se isso implicar uma demora que agrave os riscos». Ora o que diz a lei é, textualmente, que «em caso de urgência ou de perigo imediato para a vida do paciente, a equipa responsável pela prestação de cuidados de saúde não tem o dever de ter em consideração as diretivas antecipadas de vontade, no caso de o acesso às mesmas poder implicar uma demora que agrave, previsivelmente, os riscos para a vida ou a saúde do outorgante.» Esta redação arrevesada significa, suponho que sem margem para dúvidas, que o legislador apenas pretendeu recomendar que, não havendo tempo para consultar eventuais diretivas, os médicos não deixassem de agir perante casos de risco de vida.

Sim, pode dizer-se que não está claro, numa primeira leitura da lei, que qualquer pessoa pode fazer um “testamento vital” e também nomear um procurador de cuidados de saúde. Assim como pode optar apenas por um desses modos de garantir o respeito pelas suas vontades, caso fique incapaz de as expressar.

Sim, sempre haverá médicos que acham, em consciência, que devem ligar aparelhos de suporte artificial de vida a pessoas inconscientes que declararam formal e precisamente que recusam tais tratamentos. Mas, em contrapartida, muitos outros há que sabem os limites das suas funções (não se arvoram em possuidores de poderes divinos) e compreendem o significado do princípio da autonomia.

Sim, há quem queira abrir um debate sobre a morte medicamente assistida e defenda que é chegado o tempo de rever o Código Penal nessa matéria. Mas não é disso que trata este diploma.

Sim, a Lei n.º 25/2012, de 16 de julho, repete disposições que já estão em vigor e não precisariam constar de um testamento vital – não é preciso ir ao notário para que uma pessoa tenha direito a cuidados paliativos e a uma terapêutica sintomática apropriada ao «sofrimento determinado por doença grave ou irreversível, em fase avançada». Tão pouco parece necessário que alguém precise de escrever, assinar e registar que deseja «não ser submetido a tratamento fútil, inútil ou desproporcionado no seu quadro clínico e de acordo com as boas práticas profissionais, nomeadamente no que concerne às medidas de suporte básico de vida e às medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte». Contudo não se perde nada em que a lei realce essas e outras redundâncias.

Sim, há quem considere que a lei era desnecessária, alegando que “hoje” os médicos já não praticam futilidades terapêuticas e não se encarniçam na defesa absoluta da vida, mesmo quando a morte é certa. Quem o diz está, certamente, desfasado da realidade. Pelo contrário, cada vez mais as pessoas sentem necessidade de se protegerem de deslumbramentos tecnológicos, de profissionais que sabem quase tudo sobre quase nada, de técnicos desumanizados e anónimos.

É portanto justo felicitar os nossos deputados! E ao fazê-lo felicitamos a nossa sociedade e a nossa profissão. 

01 fevereiro 2012

Não digam à mãe: transcrição de uma dramatização pedagógica (Mediação bioética)

 

Não digam à Mãe: transcrição de uma dramatização pedagógica

Tradução de “Don't Tell Mama: A Role-Play Transcript”, páginas 273 a 289 do livro
Mediação bioética - Um guia para soluções partilhadas e modeladas” 
de Nancy Neveloff Dubler e Carol B. Liebman.
Vanderbilt University Press. Nashville. 2011

Personagens [NT: A opção por nomes portugueses, fictícios como no original, procura significar que, se nunca aconteceu, uma conversação similar pode acontecer entre nós]: Beatriz Barros, enfermeira chefe; Carolina Costa, chefe de clínica; Gaspar Guimarães, filho da doente; Guiomar Guimarães, filha da doente; Manuel Martins, médico de família; Ricardo Reis, mediador bioético

Contexto A D. Guilhermina é uma viúva com 82 anos que foi levada ao hospital há dois dias pela filha depois de várias semanas de fadiga, fraqueza e perturbações gastrointestinais. A sua história e exame físico apontavam fortemente para a hipótese de cancro do cólon, o que foi confirmado por colonoscopia. Os seus filhos recomendaram veementemente ao médico interno que não revelasse o diagnóstico à Mãe. A D. Guilhermina encontra-se bem e parece consciente e atenta ao que a rodeia. Nos primeiros dias não fez perguntas sobre a razão por que estava no hospital ou sobre os seus problemas. Só depois perguntou ocasionalmente ao pessoal sobre os motivos do internamento e os resultados dos exames.

Quando o interno disse à chefe de clínica, Dr.ª Carolina, o que aconteceu esta ficou zangada. Disse que os doentes têm o direito legal a conhecer a sua informação médica e não cabe à família dizer aos profissionais de saúde que escondam essa informação. Quando a equipa passou visita na manhã seguinte, a família estava à espera fora do quarto da doente e fez questão de afirmar o mesmo à equipa. A Dr.ª Carolina explicou-lhes o direito à informação de uma pessoa doente capaz e o correspondente direito a decidir sobre os cuidados a receber. O filho da doente disse: "Ouçam, eu sou advogado, conheço bem os direitos, mas se disserem o que quer que seja que incomode ou prejudique a minha Mãe, descobrirão de fonte limpa o que a lei diz.” Antes que a conversa ficasse mais tensa, o médico de família antecipou-se e assegurou que a equipa hospitalar nada faria que pusesse a doente em risco.

O Dr. Martins pôs uma nota manuscrita em maiúscula na capa do processo clínico: “Por indicação da família esta doente não deve conhecer o seu diagnóstico”. Há uma manifesta diferença de opiniões na equipa sobre a melhor maneira de lidar com a situação durante o internamento e o tratamento da D. Guilhermina. Os esforços para evitar falar com a D. Guilhermina sobre a sua doença estavam a ser muito complicados para os profissionais do hospital. Vários enfermeiros sentiam que estavam a ser desleais para com a doente e, como consequência, acabavam por não destinar tanto tempo para estar junto dela como ela merecia. Outros sentiam-se intimidados pela ameaça de perseguição judicial se não tivessem em conta as instruções da família.

A enfermeira chefe Beatriz Barros requereu uma Consulta de Ética para clarificar as questões em aberto e ter orientações sobre como lidar com esta situação desconfortável.

Transcrição e notas

Mediador bioético: Bom dia a todos. Eu sou o Dr. Ricardo Reis. Sou membro da Comissão de Bioética e a Enf.ª Beatriz Barros pediu-me para os juntar de modo a conversarmos um pouco sobre a D. Guilhermina. Pelo que percebi tem havido algumas diferenças de opinião sobre quanto deve ser dito à D. Guilhermina sobre a sua situação e por isso penso que seria bom para todos sentarmo-nos à mesa e dialogar sobre os cuidados a ter com ela. Talvez pudéssemos fazer uma ronda, para que cada um se apresente, e depois começaríamos.

O mediador identifica o tema que o levou a convocar esta sessão mas falhou em dar uma explicação clara do seu papel ou sobre o que participantes podem esperar do processo. Por exemplo, poderia ter dito: “Sou membro da Comissão de Bioética e sou muitas vezes chamado a ajudar quando há desacordos sobre um plano de cuidados de um doente. Não faço parte da equipa que trata da D. Guilhermina. Trabalho neste hospital mas, nesta reunião, estou a atuar como Mediador Bioético, não decido nada, apenas tentarei ajudar a que cada um possa aceitar um consenso, uma resolução baseada em princípios, sobre a melhor maneira de cuidar da D. Guilhermina.”

Neste caso, o mediador identificou a pessoa que lhe pediu para vir ajudar. Os mediadores bioéticos devem ponderar se isso ajuda ou prejudica o processo. Nomeadamente, quando a consulta tenha sido solicitada por alguém com posições relativamente menos influentes na instituição, talvez seja melhor não avançar com essa informação. Na nossa experiência, a referência a quem pediu a consulta não deve ser feita por um participante na mediação, mas essa informação e muitas vezes revelada no início do processo se for um modo de o clarificar. Poderia talvez ser dito que foi “um membro da equipa de saúde”.

Guiomar Guimarães: O meu nome é Guiomar. Sou filha da D. Guilhermina.
Mediador bioético: Muito gosto em a conhecer.
Enf.ª Beatriz: Chamo-me Beatriz Barros. Sou a enfermeira que tem estado a cuidar a sua Mãe nestes dias.
Carolina Costa: Eu sou Carolina Costa, chefe de clínica, responsável médica pela sua Mãe.
Gaspar Guimarães: Chamo-me Gaspar Guimarães, sou filho da D. Guilhermina.
Manuel Martins: Sou o Dr. Martins. Sou o médico de família da D. Guilhermina, não desde há semanas mas há já onze anos.
Mediador bioético: Muito prazer em os ter aqui. Enf.ª Beatriz, penso que seria interessante começar com alguns dos factos [NT: Quem ouviu o Prof. Diego Gracia, no dia 22 de novembro de 2013, na reunião organizada pela Comissão de Ética da ARSLVT, há de lembrar-se do que ele disse sobre a necessidade de se começar sempre por ‘los hechos’, os factos… ] médicos sobre a doente e, já que este caso nos foi referenciado e vamos falar sobre a D. Guilhermina, gostava que nos dissesse como definiria o motivo desta reunião.

Como referido noutras ocasiões neste livro, esta é uma boa altura para chamar o doente a participar. O mediador podia portanto iniciar o debate dizendo: “Todos sabeis que um dos nossos objetivos neste género de debates e tentar que os doentes participem, mesmo que possam não estar presentes. Este é um caso particularmente difícil porque, embora a D. Guilhermina aparentemente seja capaz de participar nas decisões sobre os seus cuidados de saúde, os seus filhos opõem-se a esse envolvimento. Por conseguinte, trazê-la para esta discussão seria fácil – bastava que fôssemos para o seu quarto – mas a sua família, que a conhece e adora mais do que ninguém, apoiada pelo seu médico de confiança, não gostariam que ela estivesse presente. Permitam- me que peça a família que nos fale sobre a vossa Mãe. Que tipo de pessoa é? O que é importante para ela? Como tem sido a sua vida? Não se esqueça que nós somos peritos em medicina mas vocês são os peritos sobre a vossa Mãe e a vossa família.

Enf.ª Beatriz: Bem, pedi a sua intervenção porque é muito desagradável para mim ver que nada dizem a D. Guilhermina sobre a sua situação. Penso que a gente se sente desajeitada na sua presença porque tem receio de lhe dizer inadvertidamente qual a sua real situação e qual o estádio em que está a sua doença. A família pediu-nos para nada lhe dizermos e portanto penso que estamos, de certo modo, a diminuí-la. Além disso, alguns de nós sentem-se desconfortáveis porque nos ensinaram que um doente que compreenda os seus problemas médicos necessita ser informado de tal modo que possa dar o seu consentimento para quaisquer procedimentos. É por isso que estamos confusos e desconfortáveis.

O mediador precisa de ter em especial conta a escolha de quem inicia o debate. Neste caso a decisão de escolher a enfermeira, que foi quem desencadeou o processo de apreciação bioética, resultou. Ela fez uma declaração cuidadosa das suas preocupações. A escolha de ter a Enf.ª Beatriz a falar em primeiro lugar podia ter sido vista como um modo de validar o seu pedido de ajuda e de corroborar o seu enquadramento do problema. Mas começar com ela também teve o risco de torná-la alvo de atenção dos outros participantes.

Podia ter sido melhor que o mediador começasse por afirmar o seu entendimento sobre o problema: “Estamos aqui por que me pareceu que há algumas diferenças entre a equipa de cuidadores e a família no que se refere ao que deve ser dito a D. Guilhermina sobre o diagnóstico e o pessoal está preocupado por nada lhe dizer sobre a sua situação, pelo que estamos aqui para falar sobre isso e também sobre o que precisamos fazer para lhe proporcionar os melhores cuidados possíveis. Antes de entrarmos nessas questões, queria ter a certeza de que estamos todos a par da situação clínica da D. Guilhermina.” O mediador deveria então pedir a um membro da equipa, tipicamente a um médico, que fizesse uma apresentação sobre os factos médicos. Um enfermeiro poderia também dar esta informação, mas a cultura hospitalar dominante leva-nos habitualmente a preferir um médico como o primeiro a falar destes factos.

Também aqui, perante um desacordo entre o médico de família e a chefe de clínica, o mediador tem uma escolha potencialmente difícil. Começar por aquele privilegia uma relação de forças no hospital e o papel que tem junto da família. Contudo, num hospital escolar é costume pedir ao chefe de clínica para relatar o caso e o restante pessoal pode esperar que o mediador comece desse modo.

Gaspar Guimarães: A mim não me incomoda nada que se sinta desconfortável; o que me preocupa é a minha Mãe. Quero ser muito claro – a minha preocupação é sobre o que ela sente e receio que ela possa ser incomodada. Só peço que façam o que vos compete e assumam as vossas responsabilidades. E se se sentem um pouco desconfortáveis, eu acho que fico mais confortável com isso do que se for a minha Mãe a ficar desconfortável e mesmo assustada.
Guiomar Guimarães: Sinto que nos atrasamos um pouco a trazê-la para o hospital e de certa maneira possamos ter acelerado a sua morte. E, também, sei que não quero sobrepor-me à sua alma ou ao seu pensar. Penso que eu e o meu irmão sabemos bem o que é perder um pai. O nosso Pai morreu com cancro. Na nossa família, esta doença é algo que nos assusta muito; é uma palavra medonha para nós e, quando temos de a pronunciar, acho que pensamos em sentença de morte e perdemos a esperança – e o que nós queremos é que a nossa Mãe, que é uma lutadora, não perca a esperança.
Mediador bioético: Pergunto então ao Dr. Martins, que conhece a D. Guilhermina há bastante tempo, que nos diga qualquer coisa sobre o seu estado clínico atual e nos ponha a par do que sabemos sobre ela.

Tendo começado pela enfermeira, é tempo de passar a um dos médicos e saber dos factos, mas não sem antes reconhecer como são preocupantes e comoventes as afirmações dos filhos da D. Guilhermina. A D. Guiomar falou sobre ter demorado a trazer ao hospital a D. Guilhermina. E possível que ela se sinta culpada e receie que ela e o seu irmão não tenham ajudado a evitar a morte da Mãe. Receia também que conhecer o diagnóstico de cancro signifique “matar-lhe a alma”.

O mediador deveria ter dito: “A situação parece ser realmente horrível. A vossa família passou um mau momento. É de facto difícil passar de novo por tudo isto depois de perderem o vosso Pai por cancro. Também percebo que desejavam ter sabido desta doença mais cedo e que querem estar seguros de que quaisquer decisões que se tomem sobre a vossa Mãe sejam as certas.” Ao introduzir esta mudança no debate, o mediador mostrava que estava preocupado em que o reconhecimento por parte da filha, relativo a sensação de que poderia ter-se atrasado em trazer a Mãe ao hospital, pudesse fazê-la sentir culpada. Uma resposta como “Portanto sente-se culpada por ter demorado a compreender as queixas da sua Mãe” seria certamente desadequada. A última parte desta afirmação sugere um juízo de valor sobre o passado. Alem disso, a palavra culpa provavelmente produziria um forte recuo. Na nossa experiência é importante fazer duas coisas quando tratamos de reagir a fortes afirmações de sentimentos: confirmar que são sentimentos fortes e ajudar as partes dar uma ordenação a mistura de emoções. Neste caso, a filha está a sentir uma terrível sensação sobre o que serão os cuidados para a sua Mãe e esta também a voltar a viver a dor da perda do Pai. Dizer “Compreendo que gostasse de ter trazido a sua Mãe mais cedo” não é o mesmo que concordar em que ela o devia ter feito.

Dr. Martins: Como disse, conheço a D. Guilhermina desde há dez ou onze anos e conheço os outros membros da família que tem sido muito ativos no apoio que lhe dão, tratando das suas questões de saúde e de outras necessidades. É bom ver uma família tão forte como esta – valorizo muito este aspeto. Nas últimas semanas, a sua saúde deteriorou-se claramente. Estava em boa forma para os seus oitenta e dois anos, mas perdeu peso, mostrava- se fatigada, pálida e fraca. Pareceu-me que estava anémica e por isso tratei de a internar para ver o que se passava. Tinha as fezes escuras. Receávamos, obviamente, que fosse um cancro mas talvez pudesse ser qualquer coisa mais benigna como uma úlcera. Fez uma colonoscopia e infelizmente confirmou-se o cancro.
Sei que há aqui quem se sinta na obrigação de dar a doente toda a informação mas temos de compreender que as pessoas são frágeis e nem sempre respondem ao que as nossas convicções nos ditam e também que nós temos aqui uma família muito atenta, que conheço há muito tempo. Quero respeitá-los e tenho de reconhecer que o que estão a fazer é correto. Infelizmente, a D. Guilhermina está provavelmente – não vou simplificar – diria mesmo, certamente, vai morrer por causa deste cancro. É uma forma muito agressiva, está muito grande, tem metástases nos intestinos e aparentemente é inoperável, embora alguma cirurgia paliativa possa ser encarada para seu alívio. Os seus filhos estarão sempre perto e eu próprio também estarei – teremos de viver com as decisões que tomamos.
Guiomar Guimarães: Tanto eu como o meu irmão agradecemos-lhe muito. Conhecemo-lo há muito tempo e sentimos que respeita a maneira de ser da nossa família. É perturbador pensar que as preocupações do pessoal – que afinal não nos conhecem – é sentirem-se desconfortáveis, tenham alguma prioridade sobre as vontades que conhecemos da nossa Mãe há tanto tempo, não nos dando ouvidos. Têm de seguir o que dizemos pois somos nós quem a conhece melhor.
Mediador bioético: Gostaria de fazer mais uma pergunta ao Dr. Martins. A D. Guilhermina está capaz de tomar decisões autonomamente?
Dr. Martins: Acredito que ela está na total posse das suas capacidades mentais – está a sofrer uma degradação rápida do seu estado físico mas acredito que está capaz de tomar decisões, incluindo a decisão de não decidir.

O mediador precisa resumir o que o Dr. Martins disse sobre o sombrio prognóstico da D. Guilhermina. Por vezes este resumo da apresentação dos factos é um caminho para aumentar a probabilidade de que os membros da família compreenderem o que foi dito, especialmente se o médico usar termos técnicos ou eufemismos. Neste caso, os factos são claros e os filhos parecem bem informados. Contudo, seria útil um resumo para suavizar a conversa é dar a cada um oportunidade para assimilarem o que foi dito.

Mediador bioético: Talvez, Dr. Guimarães, nos pudesse falar mais sobre as conversas que teve com a sua Mãe. Como o seu Pai teve cancro – talvez nos pudesse falar um pouco sobre modo como ela reagiu a essa doença.
Gaspar Guimarães: Sabe, a Mãe não é de falar muito. Ficou obviamente triste e sofreu muito quando Pai faleceu e por o ver passar o que passou. Talvez porque sou seu filho, não falou muito comigo sobre isso. Eu sou mais de tratar das coisas. Sou advogado por isso ajudo-a a resolver coisas legais, na verdade sou eu quem põe as mãos na massa. [Dirige-se à sua irmã Guiomar] Essas coisas sentimentais de que estais a falar, realmente, não é no que me envolvo. Diria que, como advogado, sei o que são as nossas leis e direitos e sei que temos o direito a proteger a nossa Mãe e se vocês insistem em que nós precisamos de lhe dizer o diagnóstico, estou aqui para levar o assunto onde for preciso. Agradeço que tenha vindo mas há outras pessoas acima de si e se for preciso falarei com elas. E se não for no hospital, será nos tribunais que gostosamente tratarei do assunto. Estou muito treinado e habilitado para o fazer – é a minha profissão. O que realmente queria ouvir no final desta reunião é que vocês vão respeitar o que pedimos e nada dirão à minha Mãe.
Mediador bioético: Bem, não sou eu quem decide – será uma decisão de todos nos. Estamos a tentar e a procurar o nosso caminho. Pergunto-me se não seria capaz de nos dizer um pouco mais sobre o que a sua Mãe vos transmitiu quanto aos seus problemas médicos e o conhecimento que tem deles?

O mediador, depois de uma resposta ligeiramente defensiva (“não sou eu quem decide”) ignora as ameaças com o objetivo de minimizar o seu impacto e evitar confrontos. Ao não se referir às ameaças incorre no risco de que outros participantes se sintam inibidos por elas. Poderia ser útil admitir a força dos sentimentos de Gaspar e encarar as suas ameaças como uma expressão do seu compromisso com a Mãe. “Posso entender os seus sentimentos enérgicos quanto ao que acha melhor para a sua Mãe e que use todas as suas habilitações para lutar por ela. Espero bem que não seja necessário abrir um conflito desses. Estamos aqui reunidos para tentar chegar a um acordo sobre a melhor maneira de proceder.” Este modo de enquadrar reconhece os interesses e os sentimentos subjacentes as ameaças ao mesmo tempo que as neutraliza. Também permite que outros participantes ouçam esta linguagem agressiva como uma expressão da sua dor mais do que um ataque a equipa médica.

O mediador podia também ter dito: “Dr. Guimarães, o senhor é um grande advogado da sua Mãe e defensor do que pensa ser a sua vontade. Mas, por agora, gostaria que aceitasse uma regra muito simples: eu garanto-lhe que não deixarei que o afrontem, mas peço-lhe o mesmo da sua parte. Todos aqui torcemos pela sua Mãe, bem como pelos filhos e pelo seu médico. Mas estamos a explorar todas as perspetivas da família e dos prestadores de cuidados e a tentar encontrar uma solução em todos se sintam confortáveis. Peco-lhe que nos permita isso.”

Guiomar Guimarães: Bem, a minha Mãe foi sempre muito assustadiça. A medida que foi envelhecendo e as preocupações foram crescendo passamos a contar com o nosso médico de família. Eu era a porta-voz e era como se fosse um filtro – era assim a nossa família, a nossa cultura. Era assim que nos sentíamos bem. Ela adora o Gaspar e a mim, confia em nós. Somos muito diferentes. O Gaspar é muito prático e sabido e eu sou mais de chorar e abraçar, mas entre nós, penso que sempre fizemos o que era o melhor interesse dos nossos Pais. Conhecemo-los, compreendemo-los e sabemos o que significam os seus sentimentos, sabemos o que é a esperança e o que é o medo nas suas vidas. E poupar a nossa Mãe desse medo nas últimas semanas da sua vida é muito mais importante para nós do que dizerem-lhe tudo sobre a sua doença – só por causa das obrigações do hospital e até pelo facto de vocês o esperarem quando alguém esteja capaz de decidir. Ser capaz não a isenta de ser intimidada, ser deprimida, sentir-se abandonada e cair na desgraça terrível do que possa acontecer.
Mediador bioético: Bem, compreendendo muito bem o que diz, gostaria de perguntar ao pessoal de saúde que nos dissesse alguma coisinha sobre as suas reações quando estão na enfermaria e como responde a D. Guilhermina. Que perguntas faz? É curiosa?

Antes de recolher mais informações sobre o problema com esta importante série de perguntas, o mediador precisa saber responder ao expressivo depoimento da filha. Dizer simplesmente “Compreendo” não é suficiente. O mediador precisa de dizer o que compreende, isto é, o que aprendeu com as afirmações da filha sobre o modo como a família lida com os problemas médicos e sobre os receios da sua Mãe. Quando Guiomar fala sobre a sua Mãe “ser intimidada, ser deprimida, sentir-se abandonada e cair na desgraça terrível que possa acontecer”, parece provável que essas palavras também descrevam o que sente a filha. Estes sentimentos também precisam ser reconhecidos antes de perguntar à equipa sobre as suas reações face a D. Guilhermina.

O mediador devia também aproveitar para dizer: “Se bem percebi a vossa família partilha de uma cultura particular que influencia muito o modo como as decisões são tomadas e podemos dizer que o pessoal de saúde é também parte de uma cultura, estruturada na bioética e nas leis nacionais, que considera que o doente que seja capaz de assumir as suas decisões em matéria de saúde tem o direito de conhecer as opções e de escolher por si mesmo como decidir. Este debate é sobre como conciliar estas duas culturas. Portanto, permitam que todos mostrem abertura para se ouvirem mutuamente antes que tentemos decidir algo.

Dependendo da etnia da família, pode haver outros fatores em presença. As regras que prevalecem no que respeita a decisões sobre cuidados de saúde resultam das leis nacionais e dos conceitos de liberdade, dignidade e autodeterminação que lhes subjazem. Muitas culturas não têm estes conceitos. Em muitas culturas asiáticas, por exemplo, assume-se que a doença e a morte não devem ser mencionadas ao doente. Em algumas culturas indígenas da América, acredita-se que falar sobre a morte acelera a sua chegada e é uma norma comportamental desadequada. Muitos destes padrões familiares e culturais surgem no decurso de processos de mediação.

Dr.ª Carolina Costa: Sendo a chefe de clínica deste caso, tenho acompanhado a doente desde a admissão. É uma senhora muito simpática, mas sinto que ela sabe que está muito doente e porque está no hospital, e que sabe que se não estivesse tão doente já não estaria no hospital. Temos feito vários exames e sinto que nada lhe dizer sobre as implicações dos resultados desses exames não é justo porque ela faz-nos perguntas e está preocupada, e creio que isso é assim por causa de o vosso Pai ter tido o que teve. Concordo convosco que parece que ela tem medo – mas não diria que é assustadiça – está preocupada e sinto que ela quer saber mais.
Mediador bioético: Pode explicar melhor sobre isso – esse sentimento?

Eis um bom exemplo de uma pergunta que clarifica.

Dr.ª Carolina Costa: Quando passo visita ou a vejo, pergunta-me sempre, “Qual foi o resultado? O que mostra o exame?” Faz perguntas sobre o que penso. E muito difícil responder-lhe parcialmente e não lhe dizer tudo, já que é alguém capaz de tomar as suas decisões. Está muito atenta. Não está inconsciente nem desatenta ao que se passa. Faz perguntas inteligentes sobre os resultados dos exames. Se está a melhorar ou não está a melhorar, por que faz este exame, por que não fazemos outros, quais as implicações, o que isso significa e porquê? Por isso não dizer, não lhe explicar o quadro completo sobre o que estamos a fazer e esconder-lhe coisas – não me parece que seja o que devemos fazer enquanto médicos, designadamente estando ela capaz.

Vemos que há dois retratos diferentes da D. Guilhermina – um em que ela é assustadiça e não quer saber o que passa consigo e outro em que ela está cheia de dúvidas. O mediador precisa de admitir estas duas versões. “Quando vos ouço, Dr. Gaspar Guimarães, D. Guiomar, Dr. Martins, e depois ouço a Dr.ª Carolina e a Enf.ª Beatriz, fico confuso – é como se estivessem a falar de pessoas diferentes. Gaspar e Guiomar, vocês descreveram a vossa Mãe como querendo renunciar ao conhecimento e as decisões relativas aos seus cuidados, deixando isso para ambos, e não querendo ser informada. Dr.ª Carolina e Enf.ª Beatriz, vocês descreveram alguém que faz perguntas sobre os seus cuidados e a sua situação. Gostava de saber o que pensam sobre estas diferenças.” Uma afirmação como esta podia provocar uma resposta de qualquer dos participantes, como por exemplo, que a D. Guilhermina está a tentar proteger os seus filhos, evitando falar sobre o cancro ou que ela sente que eles não se sentem confortáveis usando a palavra cancro, ou ainda que o pessoal está sub-repticiamente a fazer com que ela pense que deve fazer perguntas.

Guiomar Guimarães: Posso fazer uma pergunta? O que esperam que ela faça com a informação de que tem um cancro? Há decisões sobre o tratamento que tem de ser tomadas por ela? Gostava também de perguntar ao Dr. Martins que ponderasse nisto. Estamos a dizer que ela está num ponto em que o tratamento é necessário ou que esses cuidados de conforto são necessários?
Dr. Martins: Creio que se trata de um cancro avançado. Neste ponto não é tratável, falei com os meus colegas da Gastroenterologia e há um consenso médico neste assunto – os cuidados paliativos são seguramente os mais apropriados. Vamos chamar um consultor de cuidados paliativos – nenhuma destas decisões ou ações depende do seu reconhecimento do cancro.

Seria útil que o mediador aqui avançasse e resumisse: “Então, Dr. Martins, só para eu ver se estou certo, o cancro da D. Guilhermina não é curável e o seu tratamento – da doença e das possíveis dores que venha a ter – não será influenciado conforme se seja ou não dito que tem um cancro, é assim?” Então o mediador podia ter perguntado à Enf.ª Beatriz e à Dr.ª Carolina se elas concordavam em que o tratamento não dependia de a D. Guilhermina saber o seu diagnóstico. Tal resumo e subsequentes perguntas podiam ter impedido a não muito produtiva troca de palavras que se seguiu.

Gaspar Guimarães: Gostava muito de perceber por que é que ele se sente confortável não a informando e vocês, que tem estado a cuidar dela nestes poucos dias, se sentem desconfortáveis – não faz sentido, para mim.
Enf.ª Beatriz: Quero, realmente, respeitar o que decidirem e o que sentem, já que querem protegê-la deste conhecimento e os receios que possa ter desencadeiem um agravamento da sua situação. Com certeza que quero respeitar tanto o medo que ambos veem, e que ela muitas vezes mostra, como realmente os medos e a proteção que vocês têm em mente, mas acho que tenho uma impressão muito pessoal. Ela fala muitas vezes amorosamente de vocês e obviamente está muito orgulhosa e sente que pode contar convosco em tudo. Põe todos os assuntos nas vossas mãos. Mas a minha impressão, ou talvez a minha esperança, é que, quando alguém está bem informado ou possui uma informação mais realista do que a do tipo beijos e abraços – em que possa falar e ter tempo para pensar – talvez haja alguma coisa que ela vos queira dizer. Talvez seja o tempo para assegurar-lhe que vocês a amam, que tudo tratam com o coração nas mãos e…
Guiomar Guimarães: Desculpe interromper, mas está a falar sobre possibilidades e talvezes, mas não há talvezes para nós. No modo como temos vivido as nossas vidas, não ficou nada por dizer e estimo muito que tenha impressões, todos temos. Vocês não são as estrelas da companhia, a nossa Mãe é que é. Sinto, penso que ambos sentimos, que é quase uma falta de respeito para connosco pois nós agimos com profunda ponderação neste assunto. Isto não é um capricho, isto não é coisa a que chegamos hoje. E, digamos, mantermo-nos naquilo em que vivemos as nossas vidas como uma família, e penso, porque temos confiança em nos próprios, que entendemos isto como o melhor interesse dela. Até compreendo que isso possa ser desconfortável para os profissionais mas esperamos, julgo eu, que consigam ultrapassar esse desconforto de modo a continuarem a cuidar da nossa Mãe com o maior profissionalismo.
Enf.ª Beatriz: Com certeza. Estou precisamente a explorar essa possibilidade.
Gaspar Guimarães: Só queria dizer que pode ficar com as suas impressões para a sua Mãe e eu fico com as minhas para a minha, e ficamos por aí.
Mediador bioético: Talvez possamos parar por um momento e resumir o que sabemos então sobre os cuidados. Temos, assim, que o Dr. Martins nos disse que ela tem um cancro terminal – não sabemos bem quanto demorará até que haja morte mas sabemos que está em fase terminal e é preciso fazer alguns planos para esta fase. É evidente que ambos os filhos estão atentos ao que se passa com a Mãe e têm uma experiência longa do modo como lidam com as doenças em vossa casa, sobre o que gostaria ainda de ouvir um pouco mais, mas também temos a nossa equipa de Saúde que igualmente também está preocupada com a senhora, e eu penso que não devemos deixar de ter isso em conta. Todos queremos o melhor para a D. Guilhermina. Talvez possamos recuar um pouco. Gostava de saber um pouco mais sobre a vossa Mãe. Gostava de saber como é que ela se dedicava aos trabalhos domésticos e como falava convosco sobre assuntos sérios como estes.

O mediador faz um bom resumo dos factos médicos e tentar aperceber-se das tradições familiares sobre o modo de encarar as doenças. Recorda que todos estão igualmente interessados no bem da D. Guilhermina. Havia ainda uma parte para o mediador trabalhar. Os filhos atiraram-se ao uso pela enfermeira da palavra impressões e reagiram a isso. Seria útil que o mediador sublinhasse que o que a Enf.ª Beatriz estava a querer dizer é que admitia ter os seus valores pessoais – os seus preconceitos – mas estava também estava a tentar pô-los de lado e a respeitar os valores da família. Poderia também fazer notar que a Enf.ª Beatriz estava também a mostrar como era difícil compatibilizar a abordagem tão protetora como amorosa de Guiomar e Gaspar com as respostas que queriam dar às perguntas da sua Mãe. Poderia ajudar a Enf.ª Beatriz a completar o seu pensamento dizendo o que ela quase disse: “Dr. Gaspar, D. Guiomar, vi que reagiram ao que disse a Enf.ª Beatriz sobre as suas impressões ou preconceitos. Posso estar enganado, mas a minha impressão é que a Enf.ª Beatriz está a tentar respeitar as vossas vontades e as vossas tradições familiares. E, Enf.ª Beatriz, corrija-me se estou a ver mal, penso que ia dizer que, na sua experiência, as pessoas muitas vezes querem ter uma oportunidade para se despedir”.

Eis um novo caminho que, nesta altura, o mediador poderia seguir. Poderia dizer que há estudos sérios que demonstram que os doentes que estão a morrer se apercebem disso e com demasiada facilidade se isolam nos seus medos. Esses estudos mostram um nível acrescido de conforto quando a informação sobre o diagnóstico e o prognóstico e partilhada e serve de base as conversas. Certamente que não é o caso da D. Guilhermina mas é muitas vezes uma perspetiva a considerar. É bem possível que a D. Guilhermina esteja a proteger os seus filhos que estão ocupados a protegê-la – seria um mal-entendido circular pouco benéfico em cuidados de fim de vida.

Gaspar Guimarães: Peço desculpa mas queria saber do que está a falar?
Mediador bioético: Com certeza, o que eu queria saber era um pouco mais sobre como é que a sua Mãe lidava consigo e a sua irmã quando falava de doenças. Como disse que o seu Pai faleceu recentemente de cancro, o que deve ter sido difícil para a família, queria só perceber um pouco melhor como foi.
Gaspar Guimarães: A nossa Mãe foi sempre uma grande mãe, tomou sempre conta muito bem de nós e é como se precisássemos de retribuir esses cuidados que teve connosco, sabe, ela é o género de pessoa que se amedronta facilmente, e bastante ansiosa, de tal modo que durante toda a vida era o Pai que tomava conta de tudo. Ela é muito viva, ativa e lúcida mas não lida muito bem com o stresse. E por isso que precisamos efetivamente de assumir o stresse para nós e deixar que desfrute a vida de modo a ser o que é, de modo que não seja a equipa médica a liquidá-la antes do tempo.
Mediador bioético: E porque seria que, se ela soubesse as coisas de que não lhe falam, isso a liquidaria? Porque pensa assim?
Gaspar Guimarães: Basta o que ela viu com a morte do meu Pai, e se ouvisse a palavra cancro saberia o que a esperava e ia-se abaixo. É o que sei, se este diagnóstico de cancro…
Guiomar Guimarães: Sabem, em nossa casa, nunca usamos a palavra cancro. Sabemos que cancro é sempre uma doença terrível. Quando o nosso Pai adoeceu, o nosso maior receio era que fosse um cancro. E era também o seu maior receio. Ele teve uma morte dolorosa e muito difícil com pouquíssima esperança ou expectativas sobre a sua vida depois da doença. E víamos a nossa Mãe, sempre atenta, víamos como ela era parte nesse final, e a perda que ela sentia era confrangedora. Nós pressentimos que, certamente, percebe que esta doente, ela não tem estudos, mas é muito inteligente. Sentimos que, dado o facto de nada podermos fazer para salvar a sua vida, que usar a palavra infeção e dizer-lhe que vamos usar medicamentos para a aliviar seria mais fácil. Conhecemos o vosso dever profissional, mas que interessa se for cancro ou infeção? Se é menos assustador para ela e lhe facilitar ter um resto de vida sem pesadelos, suponho que a estaríamos a ajudar se pudesse haver uma espécie de acordo em que continuassem com o que deve ser feito, em que não a abandonassem só por se sentirem desconfortáveis em não usar a palavra que evoca a morte terrível do seu marido, que ela tanto amava, e a terrível morte que ela tanto teme.
Mediador bioético: Portanto está preocupada mais com a palavra do que com o que ela possa entender do que se está a passar? Ela perguntou-lhe já o que se passa de errado?

O mediador faz uma pergunta útil mas poderia ter ajudado se levantasse antes o tema da dor. Como Guiomar referiu a morte dolorosa do pai parece que a dor é uma grande causa para os receios tanto da D. Guilhermina como dos seus filhos. Eles (e ela) precisam de ter a certeza de que os médicos já conseguem controlar a dor muito melhor. O mediador, que chama o assunto mais tarde, poderia já dizer: “O controlo da dor é uma questão concreta neste caso e estou certo de que o Dr. Martins nos pode dizer que a equipa de cuidados paliativos tem feito grandes progressos nos últimos anos com intervenções que tranquilizam o doente. Seja o que for que aconteça a D. Guilhermina, podemos garantir que ela será poupada à dor.

Guiomar Guimarães: Nestes anos, especialmente desde que o nosso Pai faleceu, éramos nós que lhe fazíamos companhia e ela dizia sempre “falem com o meu filho, falem com a minha filha”. Sabem, nós somos o seu orgulho, nós estudamos, ela não. Eles deram-nos tudo e a nossa família tem grandes expectativas nos filhos que ela educou com respeito por valores familiares, honrando os seus pais, e penso que o que estamos a fazer está muito fortemente de acordo com o modo como ela viveu esses valores.
Dr. Martins: Gostaria, de novo, de concordar com a narrativa que faz sobre as doenças, os médicos e as questões de saúde. Conheço-a há onze anos e quando vinha ao meu consultório, desde que o seu Pai faleceu, sempre consigo, com certeza, era isso que ela queria. E, desde as coisas mais banais às mais graves, o que quer que se tratasse, ela sempre deixava a decisão para os filhos, e penso que temos de dar ouvidos às vontades da doente para compreender ou não compreender as coisas e deixar que outros tomem as decisões difíceis. Foi o que ela sempre fez e não vejo razões para mudar agora, passando para ela esse encargo.
Guiomar Guimarães: Penso que seria diferente se houvesse coisas a fazer para lhe salvar a vida. Certamente que a queremos connosco e que vamos sentir a sua falta amarguradamente, mas ambos queremos que percebam que nunca iriamos interferir com o tratamento que salvasse a sua vida.
Mediador bioético: Acho que esse é um ponto importante. Suponho que temos de falar sobre a palavra infeção que referiram e de como é difícil para o pessoal de saúde dizer que é uma infeção quando não e. Compreendem a perspetiva do pessoal sobre isto?
Gaspar Guimarães: Seria satisfatório se apenas lhe dissessem que ela tinha uma doença e que estavam a fazer tudo para a melhorar.
Enf.ª Beatriz: Eu estou preocupada com a ansiedade dela e os seus medos e queria garantir-vos que o pessoal tudo fará para, em cada dia, lhe dar o maior apoio que possamos e mantê-la sem dores, não vamos…
Guiomar Guimarães: Muito obrigado.
Enf.ª Beatriz: Tudo o que pudermos fazer para ajudá-la nos seus medos e ansiedade. Há alguma coisa que poderíamos fazer para atenuar algum destes aspetos?
Mediador bioético: Pelo que estou a ver, penso que estamos a avançar num caminho para lidar melhor com as preocupações de todos e parece que se estão preocupados ou receosos com as dores e as ansiedades que ela possa ter, há maneiras de a ajudar nisso, assim, peço ao Dr. Martins para dizer umas palavras sobre o pensa sobre os tratamentos da sua doente.
Dr. Martins: Certamente! Neste hospital, tenho trabalhado com a equipa de cuidados paliativos. Nos últimos anos, tenho testemunhado que são cada vez mais eficientes e disponíveis, Fazem um trabalho fantástico e não tenho dúvidas sobre as suas capacidades de controlar a dor física e também de tratar de outras questões associadas. Posso assegurar aos seus filhos e a todos que isso será feito – por favor, não estejam preocupados com isso.
Mediador bioético: Quer dizer que não há razões para que ela sofra?

O mediador, fundamentando-se no reconhecimento da enfermeira de que um dos maiores receios dos filhos fosse que a Mãe estaria condenada à mesma morte dolorosa que o seu Pai, pede ao Dr. Martins que confirme. O mediador proporciona então uma importante reafirmação da possibilidade de se controlarem as dores da D. Guilhermina e os seus sofrimentos. Contudo não se referiu a um outro problema que muito preocupa o pessoal, que é sentirem que estão a mentir e a menosprezar as suas obrigações éticas e deveres legais, não revelando a doente à sua situação.

O mediador percebeu que a doente sempre delegou nos seus filhos. Talvez pudesse sugerir que os filhos e o pessoal conversassem com a doente de modo que a filha ou o filho perguntassem: “Mãe, acha bem sermos nos a resolver as coisas que estão a acontecer, para o seu bem e o seu conforto? É o que temos feito quando falamos com o Dr. Martins. Podemos continuar assim?” Esta clara delegação de poderes e autonomia sossegaria o pessoal.

Dr. Martins: Eu não diria melhor.
Dr.ª Carolina: Portanto, se bem percebo, sabendo mais sobre a vossa Mãe, pelo que dizem, ela e a família passaram por um mau bocado. Lamento muito as dificuldades que passaram com a doença do vosso Pai e conhecendo-a melhor, também pelo que conta ao Dr. Martins, sobre ela vos delegar sempre as decisões, estou pronta a concordar com a vossa decisão. Contudo preocupa-me que, na minha limitada experiência, o que tenho visto como os doentes que vão ficando piores e piores, os seus corpos vão cedendo à doença, e como que percebem que algo está mal. Por isso, o que planeiam dizer-lhe – quando piorar e, digamos, tiver mais hemorragias, mais sangue nas fezes, e enfraquecer muito – como falar disso conforme avance a doença? É que me preocupa o modo como ela reagirá e como lidar com essas aflições.
Mediador bioético: Eis algo sobre que temos necessidade de falar, pois a sua condição vai certamente evoluir com o tempo e certamente temos o Dr. Martins, que a conhece bem e poderá ajudar a tratar disso, mas suponho que é de facto um problema importante. Que acontece se a vossa Mãe perguntar a um dos membros da equipa “Tenho um cancro?
Gaspar Guimarães: Penso que nessa altura, se se temos um médico como o Dr. Martins que a conhece bem, está no seu papel dizer “Vamos falar com a sua família sobre isso”. O meu sentir sobre a minha Mãe é que, quando ela estiver pronta para fazer essa pergunta, vai fazê-la a nós e nós resolveremos o que fazer. O que não quero e que seja outra pessoa qualquer, que a não conhece bem, a dizer-lhe uma tal coisa.
Mediador bioético: Dr. Martins, o que lhe parece?
Dr. Martins: Bem, concordo. Inquieta-me a possibilidade de, se ela perguntar ao pessoal, a alguém que não a mim, é mais provável que o pessoal possa interpretar mal alguma coisa que ela diga como sendo uma pergunta sobre o diagnóstico quando afinal esteja apenas a pedir uma outra informação qualquer. Quero ter a certeza de que o pessoal não a confronta com o diagnóstico quando estiver sozinha. Por favor, por favor, não façam isso! Se acharem que estão perante uma pergunta direta, o que preciso que façam é que mudem de assunto – eu, o seu médico que a conheço há muito tempo, serei o único a abordar o assunto e a sua família tem de estar presente no quarto. Juntos veremos o que ela realmente quer saber. Se ela mudar de opinião e quiser saber, ela saberá. Mas não se espere que isso vai acontecer.
Mediador bioético: Permitam que pergunte – e talvez possamos falar sobre isto. Temos um hospital a funcionar 24 horas por dia, sete dias por semana, e sabemos que tentaremos comunicar com todos – como pensam que devemos fazer isso? Como fazer para que todos os membros do pessoal saibam exatamente o que fazer?

O mediador apercebe-se de que o grupo se aproxima de um acordo mas há pormenores que precisam ser acertados antes do fim da sessão. É tentador saltar passos, especialmente depois de uma longa e tensa conversa. É altura em que seria útil fazer um resumo e reconhecer que os participantes fizeram progressos significativos antes de testar a proposta do Dr. Martins: “Então, penso que estamos a caminhar para uma solução aceitável por todos. Dr.ª Carolina e Enf.ª Beatriz, segundo parece, depois de ouvirem o Dr. Guimarães e a D. Guiomar e de ouvirem o Dr. Martins, podem trabalhar sem revelar a D. Guilhermina o diagnóstico de cancro. Quero agradecer-lhes por isso. Dr. Martins, o que mais o preocupa a si e aos filhos da D. Guilhermina é que, quando chegar a altura – embora pensem que seja pouco provável – em que a D. Guilhermina pergunte pelo diagnóstico, possam estar presentes para a apoiar.” Resumir deste modo favorece as possibilidades de que a Dr.ª Carolina e a Enf.ª Beatriz compreendam e transmitam ao resto da equipa a importância de não forçar a D. Guilhermina enfrentar a palavra cancro sem a presença do seu sistema de apoio.

Dr.ª Carolina: Podemos fazer uma nota sobre isso e pô-la no processo clínico, como você fez ao escrever “não revelar o diagnóstico à doente” na porta do quarto.

Há aqui alguma tendência para ver ironia nesta fala da Dr.ª Carolina. Poderia merecer uma reação do mediador: “Bem, pode não ser preciso um anúncio publico. Isto é uma matéria de foro privado e não precisa sem anunciada aos sete ventos. Sinto que, com este comentário, poderemos precisar de dar mais um passo de modo a conciliar este caso com a regra normal que tive ocasião de formular antes – a de que os doentes capazes podem decidir. Que tal se concordarmos em que, quando a D. Guilhermina fizer perguntas, se responda que o Dr. Martins está a reunir todos os exames e lhe falará disso a breve prazo? Assim, Dr. Martins, o senhor pode ajuizar o nível das perguntas, decidir se fala à família e preparar o nível de resposta que acha necessário.” Este resumo põe a responsabilidade e a autoridade nas mãos do médico de família, que é a figura central da relação médico-doente e o que tem a experiência de cuidar da doente – e uma boa parte das suas funções é partilhar e interpretar informação.

Enf.ª Beatriz: Também quero, como enfermeira-chefe deixar muito claro que farei o meu melhor para dar à doente os melhores cuidados possíveis sem lhe revelar o diagnóstico e que debaterei isto com o meu pessoal.
Gaspar Guimarães: É o seu trabalho, não o meu.
Guiomar Guimarães: Estamos muito gratos, agradecemos muito que nos tenham ouvido e compreendido, e esperamos que, no hospital, seja possível, com a vossa ajuda, comunicar o que acordamos.
Mediador bioético: Julgo que podíamos ainda falar um pouco mais sobre se está ou não na altura de chamar o serviço de cuidados paliativos. E algo que acham aceitável?

De novo, foi uma boa sequência ao que aconteceu agora. Teria sido ainda melhor levantar o assunto da consulta de cuidados paliativos com uma pergunta (“Acham que podíamos falar um pouco mais sobre chamar os cuidados paliativos?”) em vez de como uma recomendação (“Julgo que podíamos ainda falar…”).

Gaspar Guimarães: [para o Dr. Martins] Mais uma vez, respeito muito a sua opinião e o modo como tem gerido até agora os cuidados com ela, por isso se e essa é uma recomendação médica?
Dr. Martins: Sim. Suponho que esta reunião foi a primeira em que tratamos diretamente desta questão. Só há pouco recebi os resultados da colonoscopia e da tomografia mas sim, com certeza, e vamos ter a melhor equipa de cuidados paliativos a ajudar a doente a não sofrer e a viver o que lhe resta da sua vida tão confortável quanto possível.
Guiomar Guimarães: O senhor continua a ser o seu médico mesmo depois da chegada dessa equipa?
Dr. Martins: Não tenha dúvidas quanto a isso. Serei o seu médico e manterei o papel de decisor primário mas realmente precisamos e queremos a ajuda deles.
Mediador bioético: Tem mais perguntas acerca do tratamento atual ou sobre eventual alta e planeamento a seguir? Há quaisquer outras perguntas que queiram fazer?
Guiomar Guimarães: Penso que, por agora, há muita coisa para pensar, tudo isto é novo. Sei que já tem feito isto mais vezes, mas para nós foi a primeira vez que estamos nesta situação pelo que acho que temos de nos sentar e pensar mais em tudo. Acho que posso falar pelo meu irmão e mostrar que agradecemos o tempo que estiveram connosco e que nos tenham ouvido.
Mediador bioético: [para a enfermeira] Em relação ao resto do pessoal, será quem fará a devida passagem de informação?
Enf.ª Beatriz: Sim.
Mediador bioético: OK. Então, antes de ir embora, quero agradecer a todos por terem vindo e falado sobre a D. Guilhermina; penso que chegamos a um bom porto. Tentamos garantir-vos que cuidamos dela, a Enf.ª Beatriz e o Dr. Martins farão o seu melhor para que o pessoal evite conversas diretas sobre cancro com a vossa Mãe, e vamos pedir a equipa dos cuidados paliativos para vir falar convosco e com a vossa Mãe de modo que possamos avaliar as suas necessidades atuais e prever medidas para o futuro. É sobre isto que chegamos a um acordo?

O mediador poderia finalmente dizer qualquer coisa que indicasse que este era um caso pouco vulgar e como o pessoal estava a seguir os princípios éticos gerais: “Gostaria de fazer um comentário final ao debate. Estou satisfeito com as decisões que tomamos, mas todos nós, em cuidados de saúde, sabemos que foi uma conclusão pouco frequente. Concordo em que faz todo o sentido neste debate que o que interessa são os cuidados com a D. Guilhermina. Contudo, isto está contra os direitos legais da D. Guilhermina e é mesmo uma exceção às regras que seguimos no ensino do pessoal da saúde. Por isso quero assegurar aos profissionais que os seus instintos e formação eram os melhores e que este caso é um desvio dos nossos procedimentos habituais.”

Finalmente, está certo de que o Dr. Martins pergunte a D. Guilhermina se ela aceita que seja ele a pedir os exames e lhe explique tudo sobre os exames? Está certo de que os seus filhos falem com ele sobre os cuidados que lhe dizem respeito?” (Seria surpreendente que este mediador partisse para a discussão de alguns temas ligeiramente diferentes.)

Guiomar Guimarães: OK, OK!
Dr.ª Carolina: Vou marcar já a consulta.

Debate adicional Geralmente, num caso como este em que há desacordos dentro da equipa de saúde, o mediador bioético reúne com o pessoal primeiro (como referido no Capítulo 4) para ver se as suas diferenças podem ser resolvidas e, se não forem, para tentar que concordem sobre como apresentar os seus desentendimentos perante a família.

Este caso mostra bem a tensão entre o princípio bioético da autonomia e as normas sobre a decisão de certas famílias no que se refere a assuntos de saúde sérios. Muitas pessoas acham difícil imaginar como é que alguém, não conhecendo a sua própria doença, poderá sofrer menos, numa época em que toda a informação médica mais sofisticada está ao dispor do clique num computador. Respeitando o princípio da autonomia, é também importante reconhecer que, em muitas culturas, são as famílias que assumem, partilhando ou controlando as decisões sobre problemas de saúde importantes dos seus entes queridos. Se a doente dispõe da capacidade para mudar de ideias e de pedir informações, a decisão de delegar a sua autonomia é eticamente valida.

O problema neste caso é que a D. Guilhermina nunca delegou explicitamente esta responsabilidade – é com isso que o mediador e os membros do pessoal se estão a debater. Uma resolução baseada em princípios exige que o consenso da mediação assente em limites legais e regulamentares conhecidos. É perfeitamente aceitável que um doente delegue o poder de decidir, optando assim por uma autonomia apoiada ou diminuída, mas esta delegação só deve ser ter efeito se, fora das regras habituais, for um abrigo seguro do processo de decisão. Neste caso não havia uma delegação tão explicita assim.