01 dezembro 2012

Consentimento e discernimento

 

Quando falamos em consentimento informado para intervenções de saúde, sejam cirurgias altamente invasivas ou simples prescrições de comprimidos, estamos a falar da autonomia do destinatário dessas intervenções.

Porém, a verdade é que, no pensamento de muitos, a primeira ideia que surge é ainda a que associa o consentimento informado a uma questão de responsabilidade. Algumas pessoas, influenciadas pela velha designação de “termo de responsabilidade”, consideram que o “consentimento informado”, nomeadamente se passado a escrito, é um instrumento de defesa do profissional de saúde. Creem que, na posse de um papel que diga “consinto”, aqueles ficam livres de qualquer acusação se algo correr mal. Embora esta interpretação seja, felizmente, cada vez mais rara, admitimos que no dia -a -dia das nossas instituições de saúde subsistem numerosos exemplos de falta de respeito pelo princípio ético da autonomia.

O princípio a que nos referimos exige que haja uma adequada informação como condição para o adequado consentimento e, como tal, deve estar sempre presente no relacionamento entre os profissionais de saúde e os destinatários das suas ações. Por outras palavras, só com informação feita em «moldes simples, concretos, compreensíveis, suficientes e razoáveis [e com] com o objetivo de esclarecer sobre o diagnóstico, alcance, envergadura e consequências (diretas e indiretas) da intervenção ou tratamento»(1) é que se pode falar em consentimento livre e esclarecido.

Acresce que, além do acima dito, há situações em que, por razões legais ou outras, se impõe que o consentimento seja feito por escrito. Também aqui são frequentes os casos de práticas indevidas, seja por falta ou insuficiência de informação, seja por outras razões. Casos há em que o consentimento é pedido depois do ato praticado (!) e outros em que o documento não contém a assinatura e identificação da pessoa que informa e pede o consentimento. Raras vezes se entrega à pessoa que consente uma cópia do que ela acabou de assinar e quase nunca é dado tempo para reflexão ou se explica que todo o consentimento é revogável.

Uma outra questão, da maior importância, deve ser também merecer a nossa atenção. Trata -se de saber se, mesmo que a informação prévia seja adequadamente prestada, mesmo que todos os trâmites sejam corretamente seguidos, a pessoa que consente tem capacidade para o fazer. «A iliteracia, o analfabetismo ou as manifestações de incompreensão não são razões para deixar de tentar obter um consentimento livre e esclarecido, antes obrigam a melhores explicações e a mais adequada informação.»(2)

Mas, se a autonomia pressupõe esclarecimento (informação adequada), ela também requer liberdade (ausência de coação)(3) e discernimento. É por tais razões que, quando estamos perante menores de idade ou incapazes por deficiência mental, importa refletir um pouco mais e tomar certas precauções derivadas não só do legalmente estabelecido mas, sobretudo, dos imperativos éticos.

No plano jurídico, a capacidade para consentir é definida pela idade(4), contudo a própria lei introduz o conceito de discernimento como complemento. No plano ético, o discernimento deve também ser tido em conta mesmo antes de cumprido o pressuposto etário – ou seja, a criança, desde que tenha discernimento, qualquer que seja a sua idade, merece conhecer um mínimo de informação, adequada a cada situação, sobre o ato de saúde que lhe é destinado e o profissional deverá tentar que a execução do mesmo seja feita com o seu assentimento.

Por outro lado, se a «opinião do menor é tomada em consideração como um fator cada vez mais determinante, em função da sua idade e do seu grau de maturidade»(5), não se deverá deixar de pensar que pedir um consentimento, tanto a uma criança como a um adulto capaz, implica aceitar também o correspondente direito à recusa. Deste modo, manda a prudência que a abordagem seja feita de modo que, sobretudo em casos de especial gravidade em que haja risco de lesão séria ou perigo de morte, o pedido de consentimento para ato médico seja formulado usando mais a persuasão empática do que a mera confrontação entre o tudo ou nada. Não havendo aparelhos que meçam o discernimento, cabe dizer que o bom senso, sendo algo que tem muito de intuitivo, também se aprende e treina.

Naturalmente que estas breves considerações sobre o “consentimento” para atos de saúde se aplicam também à participação de crianças em estudos, sejam observacionais ou experimentais(6), sendo que foram redigidas com o objetivo de estimular a reflexão por parte dos seus leitores sobre assuntos que constantemente necessitam de atenção e de serem revisitados.

_____________________

BIBLIOGRAFIA
1. Comissão de Ética para a Saúde da ARSN, Documento-guia sobre Consentimento Informado, 2009
2. Idem
3. Nelson RM, Beauchamp T, Miller VA, Reynolds W, Ittenbach RF, Luce MF. The concept of voluntary consent. Am J Bioeth, 2011; 11: 6 -16.
4. Decreto-lei n.º 400/82, de 23 de setembro (Código Penal) – Artigo 38.º - Consentimento (Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro) – «3. O consentimento só é eficaz se for prestado por quem tiver mais de 16 anos de idade e possuir discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta.»
5. Resolução da Assembleia da República n.º 1/2001 - Convenção [de Oviedo] para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina.
6. Almeida, R. Carta aberta a um jovem investigador clínico. Rev Port Clin Geral, 2011, 27: 499 -500.