13 dezembro 2012

Morte em certeza

 

Morte em certeza

Agradeço o convite da Direção da Sociedade Portuguesa de Neurologia para escrever um breve texto sobre “morte cerebral” na publicação comemorativa dos 30 anos desta sociedade científica. Faço-o ao mesmo tempo que ouço, no computador onde escrevo, o adagietto de Mahler (1), recordando o célebre filme de Visconti: “Morte em Veneza”. Tantas vezes ouvida, esta música leva-nos sempre aos mares suaves do isolamento tranquilo.

O desenvolvimento, nomeadamente na área da anestesiologia, de extraordinárias capacidades técnicas que asseguram a ventilação artificial de pessoas vítimas de traumatismos cranianos graves ou de outras patologias causadores de lesões reversíveis a nível cerebral, conduziu, em todo o mundo, à sobrevida de milhões de seres humanos que, sem esse recurso, não escapariam a um destino fatal.

A iminência da morte, em unidades de cuidados intensivos cada vez mais sofisticadas, constitui um desafio a que os profissionais de saúde não negaram forças, empenhamento e criatividade. Hoje essas unidades são locais onde, todos os dias, se trava uma verdadeira luta de vida ou de morte. Os mecanismos poderosos e muitas vezes automatizados de que dispomos, assim como os progressos farmacológicos, levaram ao surgimento de um novo conceito de morte. Além da morte por paragem cardiorrespiratória, constatou-se que havia também a morte “por paragem” neurológica (2). A verificação de que, apesar dos batimentos cardíacos persistirem e da respiração poder ser assistida mecanicamente, um corpo estava já morto levou a que, nesses casos, se considerasse lícito colher órgãos ou tecidos para benefício de quem deles necessitasse.

Contudo, antes das dúvidas sobre a licitude das colheitas para transplantes, houve necessidade de resolver a questão da legitimidade para desligar as máquinas. Na verdade, se se reconhece que uma pessoa morreu, não se compreende, nem se justifica, que se mantenha uma ventilação artificial a um cadáver.

Quando, em 1993, foi aprovada a Lei dos Transplantes (3), ficou definido que a Ordem dos Médicos deveria «enunciar e manter atualizado, de acordo com os progressos científicos que venham a registar-se, o conjunto de critérios e regras de semiologia médico-legal idóneos para a verificação da morte cerebral». Tal vem a verificar-se em 1994 pela publicação de uma Declaração (4) que estabelece os critérios de morte cerebral e afirma que a sua certificação «requer a demonstração da cessação das funções do tronco cerebral e da sua irreversibilidade» . Esta declaração vem a ser corroborada, em 1995, pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (5). Contudo só em 1998 é publicado na “Acta Médica Portuguesa” o Guia de Diagnóstico da Morte Cerebral (6), onde se afirma que «o diagnóstico se baseia na noção de que a morte do tronco cerebral é componente necessária e suficiente para a confirmação da morte cerebral. Por isso se pesquisam, um a um, todos os reflexos dependentes do tronco cerebral, incluindo aqueles que, embora de execução mais demorada, são conhecidos como sendo os últimos a desaparecer». Este Guia foi elaborado por uma comissão designada pelo Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos que, além do autor destas linhas, integrava o Dr. Mário Lopes (designado pelo Colégio de Anestesiologia), o Dr. Nelson Rocha (designado pelo Colégio de Medicina Interna) e a Doutora Paula Coutinho (designada pelo Colégio de Neurologia). A Comissão pediu a colaboração do Dr. Dílio Alves (da Comissão Diretiva da subespecialidade de Neuropediatria). O texto foi amplamente discutido pelos diversos Colégios da Ordem antes de ser fixada a versão final. Participaram, portanto, na sua redação três membros desta Sociedade.

Ficou, deste modo, resolvido o problema legal da verificação da morte em pessoas internadas em unidades de cuidados intensivos e submetidas a apoio respiratório mecânico. Para alguns subsistem, no entanto, algumas dúvidas.

Do ponto de vista técnico-científico, permanecem algumas correntes que defendem que só se pode falar em morte cerebral quando há lesão irreversível de todo o cérebro e não apenas do tronco cerebral. Esta opção, embora minoritária, é especialmente seguida nos Estados Unidos da América (EUA) e configura o que se pode talvez considerar um excesso de zelo. As controvérsias sobre o receio de que se possa desligar a ventilação a alguém que não está verdadeiramente morto continuam a dar origem a pronunciamentos nem sempre bem fundamentados. Este tema é abordado com clareza, em 2004, por Fernando Pita e Cátia Carmona, num artigo da “Acta Médica Portuguesa” (7).

Do ponto de vista ético, há outras faces do problema que, dentro dos limites espaciais de um texto como este, ainda valerá a pena focar.

Merece reflexão a necessidade de claramente se separar o momento da colheita de órgãos do momento da verificação da morte cerebral. Por outras palavras, deverá tornar-se evidente que só há colheita de órgãos em pessoa morta e não que se apressa uma verificação de morte porque há urgência num transplante. É aliás o que concluiu, em 2008, o Conselho de Bioética do Presidente dos EUA no seu relatório sobre as controvérsias na determinação da morte (8). Veja-se, a este respeito, o citado Guia de Diagnóstico que rege os procedimentos diariamente, entre nós, há mais de uma dúzia de anos e as especiais precauções no que se refere às provas de verificação e às qualidades dos seus intervenientes, separando-os, de modo transparente, dos profissionais envolvidos em transplantes.

Refira-se também a posição expressa por pensadores da área jurídico-filosófica sobre a impossibilidade do legislador estabelecer processos declarativos de morte face à alegada incapacidade de dirimir dúvidas e ao risco de ferir a inviolabilidade da vida (9).

Finalmente, e não menos importante, sobressai a questão do respeito pela dignidade da pessoa humana e em particular pela dignidade dos familiares da pessoa falecida. Daí que importe que todos os atos referentes à verificação da morte, à comunicação da mesma e à eventual colheita de órgãos ou tecidos deverem ser sempre acompanhados de especiais cuidados de explicação, adequada à cultura e literacia dos interlocutores. Sabe-se que as diferentes morais religiosas não coincidem na forma como estes assuntos são encarados.

Se católicos e protestantes consideram os transplantes lícitos, já a moral judaica lhes levantam óbices, apenas ultrapassáveis em condições especiais, dados os seus preceitos de inviolabilidade dos cadáveres. Algo de similar se passa com a moral muçulmana, sendo que esta, tal como a budista, consideram essencial o prévio consentimento em vida (10). Entre nós, a opção por um registo nacional de não-dadores consagrou, sem controvérsia moral ou ética, o consentimento presumido. Todavia, não haverá razões substantivas para deixar de adotar uma posição compassiva perante familiares que invoquem objeções à colheita de órgãos, mesmo depois de adequadamente informados da bondade do mesmo.

A morte e as atitudes perante a morte hão de ser sempre temas que precisam tanto da serenidade da música e como da profundidade do pensamento. 

_______________________
(1) Mahler, G. 3.º andamento da 3.ª sinfonia. Bernstein
(2) Almeida, R. Morte há só uma. Revista da Ordem dos Médicos, nº 91. Junho 2008
(3) Lei n.º 12/93, de 22 de abril
(4) Declaração da Ordem dos Médicos (DR, I série, B, nº 235, 11/10/94)
(5) Parecer n.º 10/CNECV/95
(6) Guia de Diagnóstico da Morte Cerebral. Acta-Med-Port, 1998, Vol. 11, Nº 1, pág. 91-95
(7) Pita F, Carmona C. Do medo de ser enterrado vivo ao mito do dador vivo. Acta-Med-Port, 2004, Vol. 17, N.º 1, pág. 70-75:
(8) Controversies in the Determinations of Death. A white paper by the President’s Council on Bioethics.
(9) Geraldes, JO. Finis vitae ou Ficta mortis. Revista da Ordem dos Advogados, ano 70, Lisboa, 2010
(10) Rede Europeia de Cooperação Científica «Medicina e Direitos dos Homens» da Federação Europeia das Redes Científicas - Saúde face aos Direitos dos Homem, à Ética e às Morais. Ed. Conselho da Europa, 1996. Tradução de Maria Teresa Serpa. Instituto Piaget, Lisboa.