Agradeço o convite da Direção da Sociedade Portuguesa de
Neurologia para escrever um breve texto sobre “morte cerebral” na publicação
comemorativa dos 30 anos desta sociedade científica. Faço-o ao mesmo tempo que
ouço, no computador onde escrevo, o adagietto
de
Mahler (1), recordando o célebre filme de Visconti: “Morte em
Veneza”. Tantas vezes ouvida, esta música leva-nos sempre aos mares suaves do
isolamento tranquilo.
O desenvolvimento, nomeadamente na área da
anestesiologia, de extraordinárias capacidades técnicas que asseguram a
ventilação artificial de pessoas vítimas de traumatismos cranianos graves ou de
outras patologias causadores de lesões reversíveis a nível cerebral, conduziu,
em todo o mundo, à sobrevida de milhões de seres humanos que, sem esse recurso,
não escapariam a um destino fatal.
A iminência da morte, em unidades de cuidados intensivos
cada vez mais sofisticadas, constitui um desafio a que os profissionais de
saúde não negaram forças, empenhamento e criatividade. Hoje essas unidades são
locais onde, todos os dias, se trava uma verdadeira luta de vida ou de morte.
Os mecanismos poderosos e muitas vezes automatizados de que dispomos, assim
como os progressos farmacológicos, levaram ao surgimento de um novo conceito de
morte. Além da morte por paragem cardiorrespiratória, constatou-se que havia
também a morte “por paragem” neurológica (2). A verificação de que, apesar dos batimentos cardíacos
persistirem e da respiração poder ser assistida mecanicamente, um corpo estava
já morto levou a que, nesses casos, se considerasse lícito colher órgãos ou
tecidos para benefício de quem deles necessitasse.
Contudo, antes das dúvidas sobre a licitude das colheitas
para transplantes, houve necessidade de resolver a questão da legitimidade para
desligar as máquinas. Na verdade, se se reconhece que uma pessoa morreu, não se
compreende, nem se justifica, que se mantenha uma ventilação artificial a um
cadáver.
Quando, em 1993, foi aprovada a Lei dos Transplantes (3), ficou definido que a Ordem dos
Médicos deveria «enunciar
e manter atualizado, de acordo com os progressos científicos que venham a
registar-se, o conjunto de
critérios e regras de semiologia médico-legal idóneos para a verificação da
morte cerebral». Tal
vem a verificar-se em 1994 pela publicação de uma Declaração (4) que estabelece os critérios de
morte cerebral e afirma que a sua certificação «requer a demonstração da cessação das funções
do tronco cerebral e da sua irreversibilidade» . Esta declaração vem a ser
corroborada, em 1995, pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida
(5). Contudo só em 1998 é publicado na “Acta Médica
Portuguesa” o Guia de Diagnóstico da Morte Cerebral (6), onde se afirma que «o diagnóstico se baseia na noção de que a
morte do tronco cerebral
é componente necessária e suficiente para a confirmação da morte cerebral. Por
isso se pesquisam, um a um,
todos os reflexos dependentes do tronco cerebral, incluindo aqueles que, embora
de execução mais demorada, são conhecidos como sendo os
últimos a desaparecer». Este Guia foi elaborado por uma comissão designada
pelo Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos que, além do autor destas
linhas, integrava o Dr. Mário Lopes (designado pelo Colégio de Anestesiologia),
o Dr. Nelson Rocha (designado pelo Colégio de Medicina Interna) e a Doutora
Paula Coutinho (designada pelo Colégio de Neurologia). A Comissão pediu a
colaboração do Dr. Dílio Alves (da Comissão Diretiva da subespecialidade de
Neuropediatria). O texto foi amplamente discutido pelos diversos Colégios da
Ordem antes de ser fixada a versão final. Participaram, portanto, na sua
redação três membros desta Sociedade.
Ficou, deste modo, resolvido o problema legal da
verificação da morte em pessoas internadas em unidades de cuidados intensivos e
submetidas a apoio respiratório mecânico. Para alguns subsistem, no entanto, algumas
dúvidas.
Do ponto de vista técnico-científico, permanecem algumas
correntes que defendem que só se pode falar em morte cerebral quando há lesão
irreversível de todo o cérebro e não apenas do tronco cerebral. Esta opção,
embora minoritária, é especialmente seguida nos Estados Unidos da América (EUA)
e configura o que se pode talvez considerar um excesso de zelo. As
controvérsias sobre o receio de que se possa desligar a ventilação a alguém que
não está verdadeiramente morto continuam a dar origem a pronunciamentos nem
sempre bem fundamentados. Este tema é abordado com clareza, em 2004, por
Fernando Pita e Cátia Carmona, num artigo da “Acta Médica Portuguesa” (7).
Do ponto de vista ético, há outras faces do problema que,
dentro dos limites espaciais de um texto como este, ainda valerá a pena focar.
Merece reflexão a necessidade de claramente se separar o
momento da colheita de órgãos do momento da verificação da morte cerebral. Por
outras palavras, deverá tornar-se evidente que só há colheita de órgãos em
pessoa morta e não que se apressa uma verificação de morte porque há urgência
num transplante. É aliás o que concluiu, em 2008, o Conselho de Bioética do
Presidente dos EUA no seu relatório sobre as controvérsias na determinação da
morte (8). Veja-se, a este respeito, o citado Guia de Diagnóstico
que rege os procedimentos diariamente, entre nós, há mais de uma dúzia de anos
e as especiais precauções no que se refere às provas de verificação e às
qualidades dos seus intervenientes, separando-os, de modo transparente, dos
profissionais envolvidos em transplantes.
Refira-se também a posição expressa por pensadores da
área jurídico-filosófica sobre a impossibilidade do legislador estabelecer
processos declarativos de morte face à alegada incapacidade de dirimir dúvidas
e ao risco de ferir a inviolabilidade da vida (9).
Finalmente, e não menos importante, sobressai a questão
do respeito pela dignidade da pessoa humana e em particular pela dignidade dos
familiares da pessoa falecida. Daí que importe que todos os atos referentes à
verificação da morte, à comunicação da mesma e à eventual colheita de órgãos ou
tecidos deverem ser sempre acompanhados de especiais cuidados de explicação,
adequada à cultura e literacia dos interlocutores. Sabe-se que as diferentes
morais religiosas não coincidem na forma como estes assuntos são encarados.
Se católicos e protestantes consideram os transplantes
lícitos, já a moral judaica lhes levantam óbices, apenas ultrapassáveis em
condições especiais, dados os seus preceitos de inviolabilidade dos cadáveres. Algo
de similar se passa com a moral muçulmana, sendo que esta, tal como a budista,
consideram essencial o prévio consentimento em vida (10). Entre nós, a opção por um registo
nacional de não-dadores consagrou, sem controvérsia moral ou ética, o
consentimento presumido. Todavia, não haverá razões substantivas para deixar de
adotar uma posição compassiva perante familiares que invoquem objeções à
colheita de órgãos, mesmo depois de adequadamente informados da bondade do
mesmo.
A morte e as atitudes perante a morte hão de ser sempre temas que precisam tanto da serenidade da música e como da profundidade do pensamento.
(1) Mahler, G. 3.º andamento da 3.ª sinfonia. Bernstein
(2) Almeida, R. Morte há só uma. Revista da Ordem dos Médicos, nº 91. Junho 2008
(3) Lei n.º 12/93, de 22 de abril
(4) Declaração da Ordem dos Médicos (DR, I série, B, nº 235, 11/10/94)
(5) Parecer n.º 10/CNECV/95
(6) Guia de Diagnóstico da Morte Cerebral. Acta-Med-Port, 1998, Vol. 11, Nº 1, pág. 91-95