03 outubro 2025

História e desafios da demência


História e Desafios da Demência

Jesse F. Ballenger
Tradução espontânea do artigo
History and the Challenges of Dementia 8
parte do relatório especial
Living with Dementia: Learning from Cultural Narratives of Aging Societies 8
Hastings Center, setembro de 2025

 

Uma das grandes ironias de uma condição cujo sintoma mais temido é a perda da memória é que o debate popular e profissional sobre ela ocorre com muito pouca consciência da sua história. A demência tem sido amplamente discutida como um problema médico que, com o envelhecimento da população em todo o mundo, ameaça sobrecarregar as instituições de saúde e de assistência social e desestruturar a vida social. Muito tem sido escrito sobre os aspetos biológicos, clínicos e epidemiológicos da demência. Foram identificadas e discutidas questões sociais e políticas graves, por vezes apocalípticas, e dezenas de livros foram publicados explicando tudo isso ao grande público e proporcionando conselhos práticos para doentes e suas famílias. No entanto, na sua maioria, o debate público sobre a demência tem sido superficial e desavisado. As suposições nas quais se baseiam as ideias contemporâneas sobre a demência e as nossas respostas raramente foram reconhecidas, muito menos revistas no discurso popular. A história pode ser a base para uma discussão mais crítica e informada sobre a demência, mostrando que atitudes e ideias muitas vezes consideradas naturais e inevitáveis são, na verdade, historicamente contingentes, moldadas por circunstâncias sociais e culturais específicas. A história pode recuperar um sentido de possibilidade, mostrando que as coisas nem sempre foram como são agora – e que podem muito bem ser diferentes no futuro.

   A narrativa cultural dominante sobre a demência gira em torno de várias ideias-chave: que a demência é causada por doenças específicas, como a de Alzheimer, que podem ser independentes do envelhecimento; que a demência constitui uma ameaça existencial tanto para a sociedade (porque a prevalência crescente da demência ameaça sobrecarregar os sistemas de saúde e de assistência social) como para os indivíduos (porque ataca e destrói os atributos e capacidades essenciais que constituem a identidade); e que a única solução significativa para os desafios da demência reside no desenvolvimento de tratamentos eficazes, especialmente farmacológicos.1 Uma perspetiva histórica rigorosa levanta interrogações sobre cada uma destas ideias.

Demência e envelhecimento no passado distante

Talvez não haja afirmação mais importante para a narrativa cultural dominante sobre a demência do que a de que ela é causada por uma série de condições patológicas que podem ser diferenciadas do envelhecimento normal. Agências governamentais fidedignas e organizações sem fins lucrativos que lidam com a demência sempre incluem declarações proeminentes como esta da Associação de Alzheimer: “O maior fator de risco conhecido para a doença de Alzheimer e outras demências é o aumento da idade, mas esses distúrbios não são uma parte normal do envelhecimento. Embora a idade aumente o risco, ela não é uma causa direta da doença de Alzheimer.”2 Mas, durante a maior parte da história, a ideia de que a demência poderia ser claramente separada do envelhecimento teria parecido estranha. Embora a escassez de estudos sobre a demência nas sociedades antigas torne provisório qualquer argumento sobre como as sociedades do passado distante a consideravam, penso que vale a pena esboçar algumas possibilidades.

   É um equívoco comum pensar que, como a esperança média de vida ao nascer nas sociedades pré-industriais era de quarenta anos ou menos, poucas pessoas chegavam à velhice e, portanto, doenças associadas à idade, como a demência, eram praticamente desconhecidas. Na verdade, a baixa esperança de vida ao nascer na era pré-industrial era principalmente resultado das taxas muito altas de mortalidade infantil. Portanto, embora seja certamente verdade que houve um aumento na longevidade desde a segunda metade do século XX, não era incomum que as pessoas vivessem até uma idade avançada nas sociedades do passado distante.

   Não está claro o que isso possa significar para a demência. Os poucos estudos existentes sobre a prevalência da demência em sociedades pré-industriais chegam a conclusões diferentes. O arqueólogo Martin Smith e os seus colegas defendem que, embora a prevalência da demência seja significativamente menor do que nas sociedades modernas, ela deve ter afetado um número muito significativo de pessoas em períodos anteriores. Criando modelos de estruturas populacionais pré-industriais com base em registos escritos e restos mortais, Smith et al. aplicam as taxas contemporâneas de demência para estimar, por exemplo, que havia 9700 pessoas com demência na Roma Imperial no século I d.C. e cerca de 2000 pessoas na Londres do século XIV.3 Em contrapartida, o gerontologista biológico Caleb Finch e o historiador Stanley Brustein pesquisaram registos escritos na Grécia e Roma antigas e encontraram referências frequentes ao declínio cognitivo, mas poucas descrições de demência avançada. Eles concluem que o comprometimento cognitivo leve pode ter sido comum, mas que a demência avançada era relativamente desconhecida no mundo antigo, e argumentam que as toxinas ambientais associadas à industrialização são a causa provável do aumento dramático da demência observado na era moderna.4

   Em última análise, pode simplesmente não haver dados suficientes para determinar com certeza a prevalência da demência em sociedades do passado distante. No entanto, uma afirmação mais modesta parece razoável: os sintomas do declínio cognitivo associado à idade, se não a própria demência, têm sido amplamente reconhecidos ao longo da história e as atitudes em relação ao declínio cognitivo parecem diferentes da narrativa cultural dominante sobre a demência hoje em dia. Os estudiosos encontraram, em textos médicos, jurídicos e literários em praticamente todas as sociedades humanas, descrições de sintomas que hoje provavelmente seriam considerados sinais de demência.5 Mas antes do século XX, esses textos geralmente não tentavam separar a demência da ampla gama de perdas físicas e mentais debilitantes associadas ao envelhecimento. Em vez disso, a deterioração cognitiva era incluída numa longa lista de enfermidades e perdas que frequentemente acompanhavam o envelhecimento, e não era necessariamente considerada a pior delas. Em The Coming of Age, Simone de Beauvoir identificou “The Instructions of Ptahhotep”, escritas no Egito por volta de 2500 a.C., como a primeira descrição conhecida da velhice na tradição ocidental. Ela começa com um lamento sobre as aflições da velhice: “Ele fica mais fraco a cada dia; seus olhos ficam turvos, seus ouvidos surdos... O poder de sua mente diminui e hoje não consegue se lembrar como foi ontem. Todos os seus ossos doem... [O] paladar desaparece.” Ela argumenta que “esta lista infeliz das enfermidades da velhice [seria] repetida século após século, e é importante enfatizar a permanência deste tema”.6 Este tipo de litania das perdas do envelhecimento é repetido por inúmeros autores, talvez mais notoriamente por Shakespeare em As You Like It: a “segunda infância e mero esquecimento, sem dentes, sem olhos, sem paladar, sem tudo”.7 Note-se que, nestas linhas, Shakespeare, tal como inúmeros escritores antes e depois dele, incluiu a perda da capacidade cognitiva (“segunda infância e mero esquecimento”) como apenas uma das muitas perdas dolorosas associadas ao envelhecimento (“sem dentes, sem olhos, sem paladar, sem tudo”).

   Para os leitores contemporâneos, acostumados a pensar na demência como resultado de uma doença específica, o aparecimento de sintomas como perda de memória numa lista indiferenciada de problemas físicos associados à idade parecerá uma curiosidade arcaica. Talvez ainda mais difícil de entender seja a indiferença estoica com que tais sintomas eram frequentemente recebidos antes do século XX. Por exemplo, no livro de 2001 The Forgetting: Alzheimer’s: Portrait of an Epidemic, o jornalista David Shenk descreve com espanto como, na década de 1870, o brilhante ensaísta e poeta americano Ralph Waldo Emerson, então com mais de 70 anos, aceitou serenamente a sua deterioração cognitiva. Emerson consultou um médico apenas uma vez por causa da sua memória gravemente debilitada e nada, evidentemente, resultou disso. Nem Emerson nem ninguém à sua volta pensou em tratar a sua perda de memória, nem considerou isso uma doença. Quando um amigo perguntou sobre a sua saúde, Emerson respondeu: “Muito bem; perdi as minhas faculdades mentais, mas estou perfeitamente bem”. Para Shenk, essa atitude em relação à demência é trágica e peculiar.8 Mas, embora seja compreensível a tendência de descartar ideias e atitudes sobre a demência do passado distante como curiosidades históricas trágicas, devemos aceitar a possibilidade de que podemos aprender com a forma como as sociedades do passado respondiam à demência, por mais diferentes que fossem das nossas. De qualquer forma, para encontrar o tipo de temor que passamos a considerar como a atitude natural em relação à demência, devemos olhar para a história recente.

O conceito moderno de demência

O trabalho dos psiquiatras alemães Alois Alzheimer e Emil Kraepelin, na transição para o século XX, é frequentemente invocado como a base do conceito moderno de demência. Mas o seu trabalho não marcou uma rotura acentuada com a longa tradição de ver a demência como parte do envelhecimento. É verdade que o seu trabalho estabeleceu as características clínicas e as estruturas patológicas que ainda hoje definem a doença de Alzheimer, a forma mais prevalente de demência. Mas Alzheimer e Kraepelin não estavam interessados na demência como um problema grave numa sociedade em envelhecimento, como poderíamos imaginar hoje. Eles estavam principalmente interessados em colocar a psiquiatria numa base científica sólida, estabelecendo entidades patológicas com características clínicas claras que pudessem ser correlacionadas com patologias cerebrais distintas.9 A demência parecia uma candidata promissora, pois parecia estar associada a lesões claras e distintas no cérebro. No entanto, a sua associação com o envelhecimento tornava o seu estatuto como doença altamente ambíguo. Kraepelin acabou por categorizar os casos raros de demência que ocorriam antes dos sessenta e cinco anos como “doença de Alzheimer”, distintos do grupo muito maior de casos senis que lhe pareciam mais uma variante extrema da deterioração normal associada ao envelhecimento do que uma doença.10 Apesar do grande avanço na compreensão da neuropatologia da demência, a conceção de Kraepelin sobre a doença de Alzheimer tinha muito em comum com a visão tradicional de que a deterioração física e mental era, até certo ponto, normal na velhice. A demência foi, assim, deixada numa espécie de limbo nosológico. Se classificada como doença de Alzheimer, era interessante, mas demasiado rara para atrair muita atenção além de um pequeno círculo de especialistas; se considerada como demência senil, a sua prevalência era significativa, mas a sua associação com o envelhecimento significava que era de pouco interesse para a maioria dos investigadores da medicina e psiquiatria convencionais. Como resultado, a demência atraía relativamente pouco interesse entre a maioria dos psiquiatras e neurologistas.

   Isso mudou no final da década de 1970, quando uma coligação de investigadores, familiares e decisores políticos se reuniu nos Estados Unidos com o objetivo de aumentar a consciencialização pública sobre a demência e obter apoio governamental para a investigação. A sua estratégia girava em torno de reformular a demência em idosos como parte de um processo de doença, em vez de uma parte normal do envelhecimento. Essa afirmação de que a demência é uma síndrome clínica causada por uma doença específica tem sido repetida em editoriais e declarações consensuais com tanta frequência que pode parecer um simples fato da natureza. Mas, se lermos mais profundamente a literatura científica sobre a reformulação da demência senil como uma doença, encontramos um debate não resolvido (e talvez irresolúvel). Em termos científicos, podem ser apresentados argumentos razoáveis em ambos os sentidos. Por um lado, uma vez que os sintomas clínicos e a patologia cerebral associada à doença de Alzheimer e à demência senil eram essencialmente idênticos, era razoável considerá-los como uma única entidade. Por outro lado, uma vez que se sabia que todas as alterações cerebrais associadas à demência se desenvolviam no cérebro de todos os idosos, era razoável considerar a demência senil como uma variante extrema do envelhecimento normal e a demência que ocorria em idades significativamente mais jovens como algo diferente (a conceção original da doença de Alzheimer). No final da década de 1970 e na década de 1980, esse debate não resolvido refletiu-se no termo “demência senil do tipo Alzheimer”, usado para descrever a demência que ocorria com prevalência crescente após os 65 anos. O termo afirma uma entidade unificada em torno de uma patologia cerebral comum e preserva a antiga distinção entre a ocorrência comum de demência em idades mais avançadas. O termo “doença de Alzheimer” ainda era reservado para os casos relativamente raros que ocorriam mais cedo na vida.11

   Mas, por razões políticas pragmáticas, o termo “doença de Alzheimer” passou a ser cada vez mais utilizado para descrever a demência, independentemente da idade em que ocorria. Incluir a demência senil na categoria da doença de Alzheimer significava que ela já era um grande problema, afetando um milhão ou mais de pessoas, e que se tornaria um problema enorme nas décadas seguintes, com o envelhecimento da geração baby boom. Denominar a categoria unificada de “Alzheimer” em vez de “demência senil” reforçou que não se tratava “apenas de envelhecimento”, mas de uma entidade patológica com uma base patológica bem estabelecida no cérebro, digna de um enorme esforço de investigação sobre a sua causa e cura.12 Esta formulação foi feita de forma mais famosa e contundente pelo neurologista Robert Katzman num editorial de 1976 chamado “The Prevalence and Malignancy of Alzheimer Disease: A Major Killer”.13 Publicado na revista Archives of Neurology da American Medical Association, o artigo é amplamente reconhecido como a publicação que, mais do que qualquer outra, tornou a demência uma questão pública importante. A relevância política da reconceptualização da demência senil não passou despercebida por Katzman. Ao relembrar o seu trabalho num simpósio da Fundação Ciba sobre investigação do envelhecimento, em 1988, ele explicou: “Passei vários anos a tentar convencer as pessoas de que a doença de Alzheimer é uma doença, e não simplesmente o que costumava ser chamado de ‘senilidade’ ou ‘demência senil’. E houve um progresso maravilhoso na investigação. Na minha opinião, isso deve-se ao facto de as pessoas agora considerarem a doença de Alzheimer como uma doença.”14

A demência como ameaça existencial

A análise histórica acima sugere que a reconceptualização da doença de Alzheimer foi tanto uma afirmação política quanto científica. Parte do poder dessa afirmação foi a segunda ideia na narrativa cultural dominante sobre a demência – que ela representa uma ameaça existencial para a sociedade e para o indivíduo. Como vimos na secção anterior, os defensores da doença de Alzheimer frequentemente se envolviam no que os críticos descreveram como uma espécie de demografia apocalíptica, na qual a prevalência crescente da demência associada ao envelhecimento da população é caracterizada como uma “bomba-relógio demográfica” ou “tsunami prateado” que destruirá o sistema de saúde, a menos que um tratamento eficaz seja encontrado.15

   Ainda mais salientes do que essas alegações sobre uma catástrofe económica iminente são as descrições da doença de Alzheimer e de distúrbios semelhantes como as piores de todas as doenças, porque destroem a própria identidade das pessoas que afetam. No discurso popular de defesa da investigação e dos cuidados da doença de Alzheimer, as pessoas com demência são comumente retratadas como se já não estivessem realmente presentes, como estranhos assustadores para os seus entes queridos, como invólucros vazios ou mesmo zombies. Embora possa parecer perverso questionar o sofrimento das pessoas que enfrentam as terríveis perdas causadas pela demência, estas representações profundamente estigmatizantes e desmoralizantes das pessoas com demência merecem um escrutínio crítico.

   Como defendi no meu livro Self, Senility, and Alzheimer’s Disease in Modern America, embora a demência sempre tenha sido entendida como implicando perdas, a ansiedade específica em torno da sua ameaça à identidade pode ser atribuída à preocupação com a construção da identidade que surgiu no início da modernidade e se aprofundou nos séculos XIX e XX.16 No século XVI, a ideia tradicional de que os indivíduos eram dotados por Deus de traços essenciais e definidores foi sendo substituída pela ideia de que os indivíduos criavam-se a si mesmos através das escolhas conscientes e engenhosas que faziam ao longo da vida.17 Esta nova ênfase na autocriação foi acompanhada por uma ansiedade acrescida em relação à velhice em geral e à demência em particular. À medida que a ascensão do capitalismo liberal nos séculos XVIII e XIX minava as hierarquias tradicionais que proporcionavam fontes estáveis, embora restritivas, de identidade, a individualidade tornou-se mais problemática. A identidade tornou-se mais um projeto do que um estatuto atribuído, e a velhice tornou-se cada vez mais um local de ansiedade cultural sobre a identidade que se levou uma vida inteira a criar, ameaçando desmoronar-se e desaparecer à medida que a demência destruía a capacidade de criar uma narrativa pessoal coerente e coesa. Essa ansiedade cultural foi medicalizada no contexto das preocupações do século XX com o envelhecimento e a passagem à reforma numa economia industrial. Os trabalhadores idosos, com seus corpos e cérebros em deterioração, poderiam acompanhar as exigências da produção industrial e da gestão burocrática complexa? Após a Segunda Guerra Mundial, à medida que a aposentadoria se tornou uma fase aceitável da vida, apoiada por um sistema misto de previdência social pública e pensões privadas, a ansiedade passou a ser sobre o que os idosos fariam com seu tempo livre repentinamente abundante. Será que o facto de serem privados do envolvimento significativo com o mundo proporcionado pelo trabalho resultaria numa deterioração das suas capacidades cognitivas? Os programas sociais para idosos eram frequentemente justificados com o argumento de que evitariam um aumento catastrófico da demência senil. No geral, as expectativas de uma velhice produtiva e gratificante aumentaram durante a segunda metade do século XX. Nesse contexto, a ideia de que a deterioração mental poderia ser uma parte normal do envelhecimento parecia cada vez mais insustentável, e os investigadores geriátricos e gerontológicos procuraram identificar a demência como um estado patológico do envelhecimento, que, segundo eles, normalmente não deveria ser caracterizado por nenhuma perda significativa das capacidades cognitivas. A reconceptualização da doença de Alzheimer descrita na secção anterior foi o exemplo mais significativo disso.18

   No entanto, isso não diminuiu a estigmatização da demência e a ansiedade em relação ao envelhecimento. Nas campanhas altamente visíveis e eficazes dos media e do lobby do Congresso, organizadas em torno da reconceptualização da doença de Alzheimer, os seus defensores aumentaram a consciência pública e o financiamento para a doença de Alzheimer, explorando a ansiedade profundamente enraizada em relação à senilidade e à identidade. As perdas pessoais associadas à demência foram retratadas como tão globais e irrevogáveis que levantaram a questão de se as pessoas que sofrem dessa doença ainda podem ser consideradas pessoas. Na lógica dessa narrativa cultural dominante sobre a demência, as políticas destinadas a melhorar os cuidados e os tratamentos das pessoas com demência eram tardias, pois esses indivíduos já haviam sido privados de sua identidade. Embora admitissem que deveriam ser feitas algumas concessões para melhorar a situação das pessoas com demência e dos seus cuidadores, os defensores da doença de Alzheimer afirmavam veementemente que a ameaça existencial à sociedade tornava absolutamente prioritário encontrar meios eficazes para tratar, se não curar ou prevenir, a demência.19

Neoliberalismo, política de demência e o domínio da agência farmacêutica

Se o contexto histórico essencial para compreender o surgimento da demência como uma questão pública importante na década de 1980 foi, não apenas o envelhecimento da população, mas também as ansiedades profundamente enraizadas sobre a coerência e a estabilidade do eu na sociedade capitalista moderna, então o neoliberalismo é o contexto histórico essencial para compreender as políticas e as agendas de investigação que se desenvolveram desde então. “Neoliberalismo” é um termo controverso, definido e utilizado de várias maneiras. Mas há um amplo consenso no sentido de que descreve com precisão um conjunto de ideias e políticas que enfatizam a liberdade individual, a desregulamentação, a redução do Estado social, a livre iniciativa privada e a expansão dos valores e práticas do capitalismo de mercado livre para todos os aspetos da sociedade. Como argumentam Daniel George e Peter White-house, “uma visão neoliberal do mundo incorpora a lógica de mercado em todas as dimensões das nossas vidas... Tudo se torna uma mercadoria em potencial.” 20 A demência tornou-se uma questão pública importante na década de 1980, justamente quando o neoliberalismo estava a tornar-se a abordagem dominante para as políticas económicas e sociais nos Estados Unidos e no Reino Unido e estava a remodelar profundamente a pesquisa académica como um todo, e essa confluência distorceu as agendas da investigação e das políticas que surgiram para enfrentar os desafios da demência.

   Na narrativa cultural dominante sobre a demência, a busca por um tratamento ou cura é apresentada em termos heroicos. A investigação científica sobre a demência deve orientar-se para a descoberta de intervenções que beneficiem significativamente os doentes e as suas famílias. Mas a investigação médica académica foi reformulada com a aprovação da Lei Bayh-Dole em 1980, que permitiu às universidades reivindicar direitos de propriedade intelectual sobre os produtos da investigação financiada pelo governo federal.21 O resultado foi uma enorme injeção de dinheiro privado das indústrias farmacêutica e de dispositivos médicos na medicina académica. Embora a ligação direta da investigação académica aos mercados financeiros tivesse como objetivo aumentar a inovação e facilitar a translação da investigação em intervenções médicas eficazes, também criou o potencial para corrupção e conflito de interesses.22 O envolvimento da medicina e dos mercados era uma preocupação generalizada, mas tornou-se especialmente grave quando a investigação sobre a doença de Alzheimer surgiu, há cerca de treze anos, no centro de um dos maiores escândalos de abuso de informação privilegiada da história dos Estados Unidos.23

   É claro que nem toda a investigação sobre Alzheimer é corrupta. A maior parte da investigação é conduzida de boa-fé, com a intenção de desenvolver tratamentos que realmente ajudem os pacientes. Mas o investimento maciço e de alto risco em empreendimentos farmacêuticos vinculou o campo da Alzheimer ao mesmo tipo de práticas e pressões financeiras que levaram a repetidos escândalos e a ciclos perturbadores de expansão e recessão em toda a economia. Embora as questões éticas em torno dos casos de má conduta sejam obviamente sérias, a questão mais importante é a forma como a investigação sobre a doença de Alzheimer, desde a década de 1980, está orientada para um modelo de rentabilidade a curto prazo através dos mercados financeiros. Não é preciso duvidar que os líderes farmacêuticos e os investigadores científicos que eles financiam estejam genuinamente empenhados na ideia de desenvolver produtos que tratem ou previnam eficazmente a doença de Alzheimer para se preocupar com o poder das forças de mercado para distorcer a investigação e a regulamentação.

   Essas preocupações estão no centro da controvérsia em torno de vários medicamentos para remoção de amiloide recentemente licenciados pela Food and Drug Administration dos EUA (FDA) para o tratamento da demência em estágio inicial. Desde meados da década de 1990, a hipótese amiloide, que sugere que a neurodegeneração na doença de Alzheimer é causada pelo excesso da proteína beta-amiloide, que causa a formação de placas no cérebro, tem sido o ponto focal das estratégias de desenvolvimento de medicamentos. Depois de vários medicamentos para remoção de amiloide terem falhado nos ensaios clínicos, a FDA aprovou o aducanumab em 2021, embora nenhum membro do painel consultivo de especialistas convocado para avaliar os dados dos ensaios clínicos do medicamento tenha considerado que havia provas suficientes de eficácia.24 Dois outros medicamentos para remoção de amiloide, o lecanemab e o donanemab, atingiram os seus objetivos nos ensaios clínicos. O lecanemab foi aprovado pela FDA em 2023 e o donanemab em 2024. Mas muitos líderes de opinião proeminentes na área de Alzheimer continuam céticos; o efeito desses medicamentos é tão pequeno que eles podem não proporcionar nenhum benefício percetível aos doentes, mas apresentam riscos significativos e são muito caros.25

   Parte da fundamentação para aprovar esses medicamentos, apesar das objeções, foi a necessidade de incentivar as empresas farmacêuticas a continuarem a investir no desenvolvimento de medicamentos para Alzheimer, pois esse investimento inevitavelmente levaria a tratamentos eficazes. Mas, como a pesquisa e o desenvolvimento farmacêuticos são orientados para o mercado de ações, o impacto final de um novo medicamento pode parecer secundário. O dinheiro será ganho de qualquer maneira. Independentemente de os medicamentos atuais proporcionarem ou não benefícios significativos aos doentes, ao saber quando comprar e quando vender, os investidores experientes terão feito fortunas; e ao saber onde investir o seu tempo e como vender os seus conhecimentos, os investigadores experientes terão construído carreiras.

   Além disso, a ênfase neoliberal em abordagens orientadas para o mercado favorece os tratamentos farmacêuticos, porque são facilmente comercializados e apoiados pelas operações de marketing e distribuição de grandes companhias. Como argumenta o médico, especialista em ética e investigador clínico Jason Karlawish no seu livro The Problem of Alzheimer’s: How Science, Culture, and Politics Turned a Rare Disease into a Crisis and What We Can Do about It, “uma intervenção eficaz não é um tratamento, a menos que tenha um plano de negócios”. Os inibidores da colinesterase, a geração anterior de medicamentos licenciados para Alzheimer, nunca mostraram mais do que um benefício modesto para os doentes, e muitos investigadores de Alzheimer argumentaram que eles eram inúteis. Mas “por um tempo, os inibidores da colinesterase tiveram um modelo de negócios robusto que começou com financiamento privado e público para pesquisas para descobri-los e testá-los, seguido por uma revisão regulatória de seus benefícios e malefícios. O mais importante foi um sistema altamente coordenado e organizado para promover a sua prescrição”. E assim, tornaram-se medicamentos de grande sucesso. Karlawish contrasta-os com duas intervenções comportamentais destinadas a treinar e apoiar cuidadores que, em ensaios clínicos, mostraram claramente uma melhora significativa tanto para os doentes quanto para seus cuidadores.26 Um editorial que acompanhou a publicação dos estudos na revista Annals of Internal Medicine defendeu que “a magnitude do benefício e a qualidade das provas que apoiam essas intervenções excedem consideravelmente as das terapias [medicamentosas] atualmente aprovadas para demência”.27 Mas as intervenções comportamentais são mais difíceis de comercializar, por isso as empresas têm demonstrado pouco interesse nelas. Na falta de um plano de negócios, poucos doentes e cuidadores beneficiam delas, por mais clara que seja a prova da sua eficácia. “As intervenções comportamentais..., com exceção do apoio financeiro do National Institute on Aging, das fundações e agências estaduais, não tinham um sistema para divulgá-las, promovê-las ou mantê-las”, observa Karlawish. “É essa disparidade entre os dois sistemas — um financeiramente robusto, o outro fragmentado e descoordenado — que está no cerne da crise da doença de Alzheimer.” 28

Para uma história diferente

Quais são as lições da história em relação à demência? Primeiro, que algumas coisas que parecem naturais e inevitáveis dentro da narrativa cultural dominante sobre a demência podem, na verdade, ser historicamente contingentes, refletindo as atitudes e ideias de um determinado tempo e lugar. Segundo, que alguns aspetos do contexto histórico contemporâneo levantam sérias questões sobre a ênfase na busca por um tratamento farmacêutico e uma cura, e que o envolvimento da indústria de pesquisa com os mercados financeiros cria um conflito de interesses estrutural. Por fim, ao adotar uma abordagem mais crítica e historicamente informada em relação à demência, podemos acabar por contestar o domínio de valores políticos e sociais, como o individualismo e a eficiência económica, que têm impulsionado a narrativa cultural dominante sobre a demência e a ênfase no desenvolvimento de comprimidos que possam ser facilmente comercializados e vendidos.

   Para enfrentar os desafios da demência, precisamos incorporar e encontrar novos valores na vulnerabilidade, na interdependência e no bem comum, além de desenvolver e financiar intervenções sociais e comportamentais que apoiem diretamente tanto os doentes como os seus cuidadores. Essa transformação ajudar-nos-á a enfrentar não apenas o desafio da demência, mas também uma ampla gama de desafios sociais, económicos e ambientais que a humanidade enfrenta neste momento histórico. A história recorda-nos que outro mundo é possível. E necessário. <

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