31 janeiro 2025

Boas práticas em ensaios clínicos

Conselho Internacional de Harmonização das Normas Técnicas Aplicáveis aos Produtos Farmacêuticos para Uso Humano
DIRETRIZES DE BOAS PRÁTICAS CLÍNICAS

"As Boas Práticas Clínicas (BPC) são o padrão internacional, ético, científico e de qualidade para a realização de ensaios que envolvem participantes humanos. Os ensaios clínicos realizados de acordo com esta norma ajudarão a garantir a proteção dos direitos, segurança e bem-estar dos participantes no ensaio; que a conduta é consistente com os princípios que têm a sua origem na Declaração deHelsínquia; e que os resultados do ensaio clínico são fiáveis. O termo “condução do ensaio” neste documento inclui processos desde o planeamento até ao relatório, incluindo o planeamento, início, execução, registo, supervisão, avaliação, análise e ações de comunicação, conforme apropriado.
O objetivo desta diretriz ICH BPC é proporcionar uma norma unificada para facilitar a aceitação mútua de dados de ensaios clínicos para os países e regiões membros da ICH pelas autoridades regulamentares aplicáveis."

Ver tradução das Diretrizes AQUI ou AQUI 
(em caso de dificuldade de acesso, pedir envio de PDF via rosalvo.almeida@gmail.com)

18 janeiro 2025

Túnel D. Carlos I


O TÚNEL D. CARLOSI

por Rosalvo Almeida (1)
Boletim de 2024, 4.ª série, n.º 9, p. 207-211
Associação Cultural Amigos do Porto

Então, ele virou-se para mim e disse-me assim:
– Quem foi o D. Carlosi? Será algum italiano?...
– Estás a brincar. O que está escrito ali em cima é D. Carlos, primeiro.
– Ah! O que também foi o último!
– Esse mesmo. No seu reinado foi aberto o túnel que liga Campanhã a S. Bento.
– E aquela placa que está por baixo? Tem quatro nomes que terão sido “precursores”...


– É claro que os quatro cidadãos homenageados não são propriamente “precursores” – não andaram lá a tentar fazer túneis antes deste. A palavra mais correta talvez seja “promotores” pois foram eles que abriram caminho legal para a construção desta importante obra pública.(2)
– ... e depois refere um centro comercial do Porto... Não entendo.
– Não é “um” centro comercial, é “o” Centro Comercial do Porto – nome de uma associação que congregava comerciantes portuenses e era paralela à mais conhecida Associação Comercial do Porto. Foi por sua iniciativa que foi colocada a placa que homenageia as personalidades que estão ligadas às decisões políticas que permitiram a concretização do projeto de Hippolyte de Baère (1844-1921), um engenheiro belga que trabalhou nos nascentes caminhos de ferro do nosso Portugal.

– Sei quem é. Está representado no bronze que está no átrio da Estação de S. Bento, ladeado por Marques da Silva, o arquiteto, e por Jorge Colaço, o pintor dos belos azulejos que a revestem.
– Esse mesmo. Mas, ainda sobre o Centro Comercial digo-te que foi fundado em 1887, representava sobretudo os pequenos lojistas e tinha grandes preocupações na vertente do apoio social.(3) Esteve “na primeira linha no socorro às vítimas da grande tragédia marítima de 27 de Fevereiro de 1892 - os pescadores”.(4) Acolheu na sua sede a primeira delegação da Cruz Vermelha no Porto.(5) É, por isso, natural que se tenha juntado às instituições – como as Associações Comercial e Industrial, o Ateneu Comercial – que reclamavam insistentemente a Lisboa pela conclusão do túnel.(6)
– Obrigado por essas informações, mas se calhar não sabes que os sócios do FCP, nos primórdios, se reuniam no Centro Comercial do Porto...(7)
– Sim, há numerosa documentação que prova a profunda inserção da associação na sociedade portuense.
– Gostava então de saber quem são afinal esses tais precursores.
– Três foram ministros das Obras Públicas na época em que se decidiu avançar e se construiu o túnel. O quarto foi vereador da Câmara do Porto.
– É o costume! A história só grava os nomes dos grandes decisores e esquece os verdadeiros obreiros.
– Terás alguma razão, para mais há notícia de que, nas obras, morreram vários trabalhadores. Não esqueças, contudo, que sem decisões políticas não há obras...
– Qual era o vereador?
– José Maria Ferreira era vereador da Câmara cujo presidente era o doutor Aires de Gouveia Osório e tendo o doutor Oliveira Monteiro como vice-presidente.(8) Na sessão de 8 de julho de 1887, ele e outro edil chamado António Júlio Machado propuseram e obtiveram a aprovação do projeto do túnel.(9)
– E os outros?
– Emídio Navarro, Campos Henriques e Carlos de Ávila foram ministros de várias pastas e deputados de vários círculos, embora nem todos tenham tido o mesmo grau de intervenção do decorrer da construção do túnel que se concluiu em 1896.
- Emídio Júlio Navarro (1844-1905) foi quem em 18 de janeiro de 1888 assinou a autorização para obra e depois, em 5 de novembro, a portaria que aprovou o projeto do túnel.(10) Foi considerado um dos ministros das Obras Públicas com “mais rasgadas iniciativas”(11), como por exemplo a instalação da linha telefónica Porto-Lisboa, o Hotel do Buçaco, as obras dos portos de Lisboa, Ponta Delgada e da Horta.(12) Destacou-se também como jornalista e foi fundador do jornal As Novidades, mas as “vilanias” que aí escreveu sobre a cerco sanitário do Porto, por ocasião da epidemia de peste, em 1899, levaram a que fosse riscado de sócio honorário da Associação Comercial do Porto, em decisão unânime da sua Assembleia Geral.(13)
- Artur Alberto de Campos Henriques (1853-1922) terá sido o que teve maior ligação ao Porto, cidade onde nasceu. Além de ministro e deputado foi Governador Civil do Porto e dirigente do Clube Portuense. É-lhe atribuída responsabilidade por uma importante reforma do Notariado, enquanto ministro da Justiça, mas sobraçou outras pastas e até presidiu a um governo, temporariamente. Chefiou o Partido Regenerador. Foi Par do Reino e, na República, foi juiz do Supremo.(14,15)
- Carlos Orta Lobo de Ávila (1860-1895) ficou mais conhecido por ser um diletante que pertenceu ao grupo dos Vencidos da Vida (com Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, entre outros intelectuais de nomeada). Participou em múltiplas intrigas políticas – era “maquiavélico” – e, segundo Bernardino Machado, se não tem morrido tão cedo, “teria sido ele o ditador em lugar de João Franco”.(16)
– Fiquei a saber mais do que, de facto, diz essa placa, que quase ninguém vê quando vai apanhar o comboio. E até fiquei para aqui a pensar em quais virão a ser os nomes gravados numa futura lápide comemorativa da chegada ao Porto do comboio de alta velocidade!
– Perguntas bem, mas suspeito que não vai ser afixada nos nossos dias, caro amigo do Porto. Entretanto, vamo-nos manter atentos à nossa cidade.(17)
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_______________________________

(1) Autor do Dicionário Toponímico Ilustrado do Porto, Unicepe, 2021 (esgotado)
(2) Curiosamente, o Boletim da CP (n.º 509, novembro de 1971), citado no blogue Porto de Antanho, refere que a lápide tem a seguinte inscrição “aos promotores do progresso nacional, emídio navarro, carlos de ávila, campos henriques, e ao iniciador josé maria ferreira, o centro comercial do porto, 7-11-96” e não, como se pode ver hoje no local, “aos precursores / emigdyo navarro - campos henriques / carlos de ávila - josé m. ferreira / centro comercial do porto
(3) José Capela, A Burguesia Mercantil do Porto e as Colónias (1834-1900), Ed. CEAU
(4) Américo Conceição e Simão Gomes, blogue Porto de Antanho 
(5) Cruz Vermelha Portuguesa 
(6) Luís Miguel Queirós, Público 
(7) Histórias na Cidade – Futebol Clube do Porto 
(8) Fernando de Sousa e outros, Presidentes da Câmara Municipal do Porto (1822-2009), Ed. CEPESE, 2009, p. 300
(9) O Túnel da Estação de S. Bento, O Tripeiro, ano VI, volume VIII, n.º 9. Setembro de 1968, p. 281
(10) Efemérides Portuenses, O Tripeiro, ano V, volume IX, n.º 9. Janeiro de 1954, p. 267
(11) Pedro Tavares de Almeida e Miguel Bandeira Jerónimo, Dicionário Biográfico Parlamentar (1834-1910), Maria Filomena Mónica (coordenação), volume III, p. 36
(12) Efemérides Portuenses, O Tripeiro, ano VI, volume VII, n.º 2. Fevereiro de 1967, p. 42
(13) Aconteceu há 50 anos..., O Tripeiro, ano V, volume V, n.º 5. Setembro de 1949, p. 115
(14) Aconteceu há 50 anos..., O Tripeiro, ano VI, volume XII, n.º 11. Novembro de 1972, p. 345
(15) Rui Ramos, Dicionário Biográfico Parlamentar (1834-1910), Maria Filomena Mónica (coordenação), volume II, p. 407
(16) Rui Ramos, Dicionário Biográfico Parlamentar (1834-1910), Maria Filomena Mónica (coordenação), volume I, p. 241
(17) Um agradecimento especial é devido ao Senhor Manuel do Carmo Ferreira que me chamou a atenção para a placa, levando-me a redigir este diálogo, que não aconteceu mas podia ter acontecido, e fez, para todos nós, o grande Índice Geral d'O Tripeiro (1908-2006), Campo das Letras, 2007.

17 janeiro 2025

Efeméride – 17 de janeiro de 1995

 Efeméride – 17 de janeiro de 1995

Miguel Torga (1907-1995) faleceu há 30 anos

«Em dezembro de 1939, acabado de se estabelecer em Leiria, Miguel Torga [aliás, Adolfo Rocha] foi preso a mando da PVDE [...] era-lhe imputada a autoria “de uma publicação obscena e de propaganda comunista”, que mais não era do que o livro A Criação do Mundo: O Quarto dia, editado em plena guerra civil de Espanha. [Médicos e Sociedade – para uma História da Medicina em Portugal no século XX, João Moreira dos Santos, A. J. Barros Veloso (ed.), By The Book, 2017, p. 508]

Miguel Torga, por Luís Fernandes, Museu Nacional Soares dos Reis, Porto

08 janeiro 2025

Dez erros estatísticos frequentes

 

Dez erros estatísticos frequentes a que devemos estar atentos quando escrevemos ou revemos um artigo

Tamar R Makin / Jean-Jacques Orban de Xivry

University College London, United Kingdom / KU Leuven, Belgium

Tradução espontânea sem fins lucrativos por Rosalvo Almeida, com revisão científica pela professora Isabel Fonseca a quem muito se agradece, do artigo publicado em outubro de 2019 na revista eLife

Ten common statistical mistakes to watch out for when writing or reviewing a manuscript

Resumo: Inspirados noutros trabalhos para tornar as conclusões da investiga­ção científica mais robustas, compilámos uma lista de alguns dos erros estatísti­cos mais frequen­tes que aparecem na literatura científica. Os erros têm origem em desenhos experi­mentais ineficazes, análises inadequadas e/ou raciocínios incorretos. Apresentamos suges­tões sobre a forma como autores, revisores e leitores podem identificar e resolver estes erros e, esperamos, evitá-los no futuro.

A tradução completa pode ser descarregada DAQUI ou DAQUI. Em caso de dificuldade de acesso, pode ser solicitado o envio via rosalvo.almeida@gmail.com 

01 janeiro 2025

Relação de confiança entre o doente e o médico

A ética da relação de confiança entre o doente e o médico:
o caso do consentimento informado
Sophie Ludewigs1, Jonas Narchi2, Lukas Kiefer2, Eva C Winkler2

tradução espontânea sem fins lucrativos do artigo
1 Institute for German and European Corporate and Business Law, Faculty of Law, Heidelberg University, Germany2 National Center of Tumor Diseases, Department of Medical Oncology, Section for Translational Medical Ethics, University Hospital Heidelberg, Germany 

Resumo: Este artigo tem dois objetivos: em primeiro lugar, a proposta de uma teoria ética fiduciária que fundamenta a afirmação frequentemente citada de que a relação médico-doente é uma relação de confiança por natureza; e, em segundo lugar, a aplicação desta teoria ao caso do consentimento informado. As preferências dos doentes em matéria de tomada de decisões variam significativamente. Enquanto alguns procuram uma tomada de decisão totalmente autónoma, outros preferem delegar partes da sua decisão. Por conseguinte, propomos uma teoria ética fiduciária que permite ao médico e ao doente determinar conjuntamente o papel do médico num espectro que vai da confiança como conselheiro à confiança como agente. Baseando-se nos conceitos jurídicos da relação fiduciária e nos relatos fenomenológicos de obrigação de Lévinas e Løgstrup, a nossa teoria assenta nos atributos-chave de confiança, vulnerabilidade e alteridade. Finalmente, desenvolvemos as implicações práticas desta teoria para o processo de consentimento informado: propomos uma pré-avaliação dos perfis de risco e de valor dos doentes, bem como uma reestruturação da entrevista de consentimento oral e dos materiais de consentimento escrito.

Introdução

  O conceito fiduciário é considerado um quadro conceptual clássico para a relação médico-doente. Assim, na sua famosa descrição da ética médica, Beauchamp e Childress afirmaram: ‘A relação médico-doente é uma relação fiduciária – isto é, baseada na confiança; e o médico é, por conseguinte, necessariamente um fiduciário do bem-estar médico do doente’.1(p430) De acordo com este entendimento geral, os principais aspetos de uma relação fiduciária são o empenhamento pessoal do médico e a confiança mútua. Isto, no entanto, está longe de ser uma teoria completa e seria certamente difícil deduzir imperativos éticos específicos de um sentido tão lato do conceito de fiduciário. Coloca-se a questão de saber se há mais a dizer sobre a natureza fiduciária da relação médico-doente e quais as implicações que isso pode ter para a prática dos cuidados de saúde.

  Este artigo centra-se na ética da relação de confiança entre o médico e o doente: primeiro, de uma forma teórica e fundamental e, depois, no contexto específico do consentimento informado. Na secção 1, é introduzido o conceito de médicos como fiduciários e a sua origem legal. Na secção 2, estabelecem-se os fundamentos teóricos do conceito ético de fiduciário. A teoria fiduciária recentemente estabelecida é depois aplicada ao contexto específico do consentimento informado na secção 3. Por fim, a secção 4 tiramos conclusões práticas da teoria fiduciária do consentimento informado: as mais importantes são a introdução de uma pré-avaliação em que se avaliam as preferências e os valores do doente na tomada de decisões e a reorganização das entrevistas de consentimento informado e dos documentos escritos de consentimento informado.

O conceito jurídico de médico-fiduciário e as suas implicações para uma teoria ética do fiduciário

  Apesar da prevalência do conceito de fiduciário na ética médica, a sua fundamentação teórica continua a ser insuficiente. Para compreender melhor a conceptualização do médico como fiduciário, começaremos por recorrer ao direito, onde a teoria do médico-fiduciário foi mais desenvolvida.

  Historicamente, os tribunais descreviam as relações em que uma pessoa era obrigada a atuar no melhor interesse de outra como relações de confiança. Rapidamente, a ‘confiança’ evoluiu para uma categoria jurídica distinta relacionada com a propriedade. Assim, os tribunais cunharam o termo ‘relação fiduciária’ para se referirem a um grupo mais vasto de relações, que não se ajustam aos requisitos restritos da confiança legal, mas que ainda assim obrigam uma pessoa a agir em benefício de outra.2 Atualmente, o direito fiduciário rege uma miríade de relações pessoais, profissionais e comerciais, incluindo, por exemplo, a relação entre pais e filhos, advogado e cliente, médico e doente, fiduciário e beneficiário e diretor de uma empresa e empresa.3 Apesar da amplitude e importância das relações fiduciárias, os tribunais e os comentadores ainda não chegaram a acordo sobre uma definição comum. Alguns consideram mesmo que as relações fiduciárias são indefiníveis.2,4,5 No entanto, é consensual entre os académicos e o poder judicial que todas as relações fiduciárias partilham, pelo menos, os seguintes atributos comuns: aos fiduciários é confiado o poder sobre os interesses legais ou práticos de outra pessoa (beneficiário). Os fiduciários prestam serviços que são socialmente desejados e exigem conhecimentos especiais. Para poderem aplicar os seus conhecimentos e competências superiores em benefício de outrem, os fiduciários são normalmente dotados de poderes discricionários. O beneficiário, pelo contrário, é vulnerável e dependente do fiduciário. No centro desta relação assimétrica está a confiança especial que o beneficiário deposita no fiduciário. Para proteger a confiança e a integridade da relação, os fiduciários são obrigados a adotar os mais elevados padrões de conduta: devem ao beneficiário ‘não só a honestidade, mas o rigor de uma honra das mais sensíveis’.6(p464) Portanto, os fiduciários estão vinculados a um dever de cuidado, lealdade e boa-fé.7-14

  A relação médico-doente enquadra-se bem nesta descrição: o doente carece geralmente de conhecimentos médicos, o que o torna dependente dos conhecimentos e da apreciação do médico. O doente atribui ao médico o poder sobre o seu corpo e concede-lhe liberdade no que respeita à sua apreciação médica. A particularidade das relações médico-doente é a confiança especial que os doentes depositam no seu médico.10,15-21 Como referiu o Supremo Tribunal de Nova Jérsia: ‘Poucas decisões denotam maior confiança e segurança do que a decisão de um doente de proceder a uma cirurgia. Implícita nessa decisão está a vontade de o doente colocar a sua vida nas mãos de um médico conhecido e de confiança’.22 Do mesmo modo, o Supremo Tribunal do Canadá considerou ‘bastante evidente que a relação médico-doente partilha a caraterística peculiar da relação fiduciária’.23 Atualmente, os tribunais e os comentadores reconhecem quase unanimemente a natureza fiduciária da relação médico-doente.20,21

  Para garantir a aplicação plena e exata dos princípios fiduciários em contextos médicos, é vital esclarecer um equívoco comum: os médicos são fiduciários dos seus doentes; no entanto, não são mandatários no sentido estrito do direito fiduciário, como indicado por algumas fontes.1 Aos mandatários são confiados bens. Aos médicos é confiado o poder sobre o corpo do doente – que dificilmente pode ser qualificado como propriedade. A relação médico-doente enquadra-se na categoria mais ampla da relação fiduciária, mas não no subgrupo restrito da propriedade do património. A representação do médico enquanto mandatário causa confusão e, no pior dos casos, resulta numa aplicação inadequada do direito fiduciário, que não se adequa aos requisitos da relação médico-doente.24

  Com base no conceito jurídico do médico como fiduciário, Chervenak, McCullough e outros desenvolveram os primeiros relatos éticos do médico como fiduciário: em ética médica, ‘o conceito de médico como fiduciário significa que o médico (1) é uma autoridade – ou seja, possui conhecimentos e competências especializados sobre como proteger e promover os interesses do doente relacionados com a saúde e (2) está empenhado em utilizar esses conhecimentos principalmente em benefício do doente e em tornar o interesse próprio uma condição sistematicamente secundária’.25 (p174)

  O objetivo deste documento é mostrar como esses aspetos jurídicos e os primeiros relatos éticos do conceito de fiduciário se podem basear numa análise fenomenológica mais profunda da obrigação ética e, em seguida, ser aplicados ao caso do consentimento informado. No processo de consentimento informado, o doente confia ao médico uma série de responsabilidades: (1) inquirir e procurar compreender os seus valores pessoais, (2) avaliar que informação é necessária para uma decisão suficientemente informada de acordo com esses valores, (3) enquadrar a informação em conformidade e (4) (se desejado) fazer recomendações com base nesse conhecimento. Chamamos a isto ‘consentimento informado fiduciário’.

Um fundamento ético da relação fiduciária entre o doente e o médico

  Em relatos éticos anteriores sobre o conceito de fiduciário, os comentadores limitaram-se muitas vezes a assumir a natureza fiduciária da relação médico-doente sem apresentar uma base teórica para tal. Quando muito, o caráter fiduciário foi justificado por referência a uma longa tradição histórica26,27 ou à utilização do conceito na lei. Embora estes contextos sejam importantes para compreender a génese do conceito, a sua importância para a validade é bastante limitada. A questão mantém-se: quais são as razões válidas para considerar que a relação médico-doente tem um carácter fiduciário? Para responder a esta questão, é necessário investigar a estrutura fundamental da obrigação ética. Isto permitirá descobrir uma infraestrutura ética subjacente às interações intersubjetivas de confiança que possa servir de ponto de partida para repensar a relação fiduciária entre o doente e o médico.

  De um modo geral, existem dois pontos de vista relativamente à origem da obrigação ética: nas palavras de Christensen, as abordagens ‘individualistas’ – como a de Immanuel Kant – colocam a fonte da obrigação no indivíduo, enquanto as abordagens ‘relacionais’ a colocam fora do indivíduo, ou seja, na outra pessoa ou, mais precisamente, na relação entre elas.28 Entre os autores que Christensen cita em apoio desta última perspetiva, há dois que merecem ser analisados aqui: o filósofo lituano-francês Emmanuel Lévinas (falecido em 1995) e o menos conhecido filósofo e teólogo dinamarquês Knud E. Løgstrup (falecido em 1981). Como se verá, os seus relatos relacionais serão um ponto de partida para uma teoria ética fiduciária, precisamente por se centrarem nas relações interpessoais como fundamento da obrigação ética.

  No seu livro pioneiro Totality and Infinity, Lévinas analisou a estrutura fenomenológica da intersubjetividade em geral e a estrutura ética da obrigação em particular. De acordo com a sua análise, a infraestrutura ética das relações intersubjetivas é a do eu e do outro que é mediada pelo rosto, um termo que engloba todos os aspetos da aparência de uma pessoa. O rosto revela a alteridade do outro que é fundamentalmente vulnerável, insubstituível e que, em certa medida, escapa sempre ao eu. O ponto de vista do outro nunca é totalmente permutável com o nosso, porque a liberdade do eu encontra a vulnerabilidade do outro como limite. ‘Mas o [...] absolutamente outro [...] não limita a liberdade do mesmo; chamando-o à responsabilidade, funda-o e justifica-o’.29(p197) Da liberdade do outro surge a obrigação ética de o respeitar e de se responsabilizar por ele sem lhe retirar a liberdade.

  Aplicando a fenomenologia de Lévinas ao domínio da ética médica, foi proposto pensar a relação médico-doente como uma manifestação especial da relação entre o eu e o outro. Em comparação com a descrição geral de Lévinas sobre o eu e o outro, a relação médico-doente é ‘qualificada’ em dois aspetos. Enquanto profissionais de saúde, os médicos já têm uma responsabilidade geral por qualquer potencial doente, o que resulta num dever especial de ajuda em casos de emergência. Quando o doente se confia aos cuidados de um médico específico e o médico aceita essa confiança, a responsabilidade geral do médico para com qualquer potencial doente torna-se uma obrigação específica para com esse doente individual.

  No ‘rosto do doente’ aparece uma vulnerabilidade fundamental e uma liberdade não permutável que obriga o médico a responsabilizar-se por ele, respeitando, ao mesmo tempo, a sua alteridade30: A liberdade e a vulnerabilidade do doente constituem o fundamento da liberdade e da responsabilidade do médico para cuidar dele. Benito e García aplicaram a teoria de Lévinas ao consentimento informado: ‘No processo de CI [consentimento informado] [...] aparece o Rosto do doente: este Rosto exige apoio e proteção e limita a autonomia do doente. Consequentemente ao médico é pedido pelo doente que assuma a responsabilidade pelo Outro. [...] A boa prática médica tem de incorporar uma responsabilidade centrada no doente, uma proteção que respeite a autonomia do sujeito e não permita a indiferença’.31(p452) Assim, defendem a passagem de um conceito de consentimento informado baseado apenas no princípio da autonomia para um conceito que inclua a beneficência e a não-maleficência num grau mais elevado: perante a alteridade e a vulnerabilidade do doente, o médico não deve confiar apenas no desejo do doente, mas deve considerar se uma intervenção é verdadeiramente beneficente ou, nas palavras da teoria fiduciária, é do melhor interesse do doente.

  Na perspetiva da teoria fiduciária, a relação assimétrica entre o eu e o outro é mais bem descrita – não como paternalista, num extremo do espectro, ou como baseada apenas na autonomia do doente, no outro – mas como uma relação intermediária, em que o médico e o doente partilham a responsabilidade pela saúde deste.

  Tal como foi salientado por Christensen, Lévinas faz uma descrição abrangente da estrutura da obrigação ética, no entanto, ‘não apresenta uma teoria sobre o conteúdo da obrigação ética’.28(p25) Para tal, recorremos à descrição de Løgstrup. Em The Ethical Demand, Løgstrup opta por uma abordagem semelhante, baseada na análise fenomenológica da relação de confiança. No entanto, difere de Lévinas num pormenor importante: enquanto Lévinas vê a fonte da obrigação ética apenas na alteridade do outro, Løgstrup defende que ‘a responsabilidade ética surge [...] da natureza da própria relação, a confiança entre seres humanos’.28(p30) Løgstrup começa o seu argumento com a observação de que a existência humana se baseia na confiança: ‘É parte integrante da vida humana que nos encontremos normalmente uns com os outros com confiança natural’.32(p9) Até os desconhecidos se encontram com confiança. A desconfiança só surge quando há dúvidas razoáveis de que se pode confiar no outro. A confiança, no entanto, implica a possibilidade de ser prejudicado, porque ‘mostrar confiança é entregar-se a si próprio’.32 (p10)

  Ao confiar no outro, por exemplo, para me indicar o caminho para uma estação de comboios que não consigo encontrar, exponho uma vulnerabilidade e um desconhecimento e, ao mesmo tempo, provoco uma exigência que pode ser satisfeita ou ignorada pelo outro. ‘Por mais variada que seja a comunicação entre nós, ela consiste sempre em ousar vir ao encontro do outro. Este é [...] o fenómeno fundamental da vida ética. Por conseguinte, a exigência que daí decorre não necessita de revelação no sentido teológico [...], nem de uma disposição [...] consciente’.32(p17) A exigência que decorre de uma relação de confiança é, de facto, implícita e pode mesmo contradizer o pedido expresso da pessoa: ‘Uma coisa é a interpretação que o outro faz da confiança que demonstra ou deseja; outra coisa é a exigência implícita nessa confiança [...]’.32(p20) Por outras palavras, existe um conflito potencial entre o eu e o outro e a forma como interpretam a obrigação ética decorrente da sua relação de confiança. Paradoxalmente, esse conflito não é prejudicial para a relação, mas antes um sinal de liberdade: ‘Se assim não fosse, não seria possível uma comunicação entre nós – a um nível básico e existencial – [...]. Porque, se se tratasse apenas de responder à expectativa do outro e de satisfazer o seu desejo, a nossa vida em comum consistiria simplesmente em transformarmo-nos irresponsavelmente num instrumento do outro’.32(p20)

  Considerando estes aspetos fenomenológicos de obrigação como uma relação ética entre o eu e o outro, a relação fiduciária entre o doente e o médico aparece como uma manifestação especial da mesma: ao demonstrar confiança, os doentes confiam-se ao médico, acrescentando a vulnerabilidade da confiança à vulnerabilidade já existente relacionada com a saúde. Com o estabelecimento desta relação, existe uma exigência tácita do outro, o doente, para o eu, o médico, (ou vice-versa) de que um deve respeitar e proteger o outro. A mesma relação pode ser vista como hierárquica de qualquer uma das perspetivas: devido a uma vulnerabilidade especial, o doente está ‘nas mãos’ do médico que parece ter o poder. Ao mesmo tempo, o doente impõe ao médico um imperativo ético fundamental que Lévinas descreveu como o rosto do outro que não pode ser reposto. Compreender a relação médico-doente como fiduciária é encontrar um meio-termo onde o eu e o outro se encontram ao nível dos olhos. Nas palavras de Løgstrup: ‘A partir desta dependência fundamental [...], surge a exigência de cuidarmos daquilo que, na vida da outra pessoa, depende de nós e que temos em nosso poder. No entanto, com base na mesma exigência, é proibido tentar roubar ao outro a sua independência, mesmo para seu próprio bem. A responsabilidade pelo outro nunca pode consistir em assumirmos a responsabilidade que lhe é própria’.32(p26) Devido à divisão da alteridade, nem a liberdade do doente nem a do médico podem ser absorvidas pelo outro. Assim, o modelo fiduciário navega no meio-termo entre o modelo paternalista, por um lado, e o modelo do consumidor, no outro extremo do espectro.33 Dizer que o médico enquanto fiduciário faz dos interesses do doente os seus próprios interesses não significa, portanto, dizer que o médico cede todo o seu julgamento ao doente (nem o contrário). Em vez disso, o médico e o doente têm de encontrar e avaliar a convergência ou divergência entre a exigência expressa do doente e a exigência não expressa da situação. A forma como isto pode ser feito no caso do consentimento informado será descrita de seguida.

Teoria do consentimento informado fiduciário

  Passando da teoria ética abstrata da relação fiduciária para uma aplicação mais concreta da mesma, será demonstrado que as questões da confiança e da obrigação, detalhadas com a ajuda de Lévinas e Løgstrup, ressurgem na discussão jurídica e ética do consentimento informado: No direito americano, a doutrina do consentimento informado é considerada como ‘a aplicação mais direta dos princípios fiduciários’.21(p295) Desde a introdução da doutrina do consentimento informado centrado no doente em Cobbs vs. Grant e em Canterbury vs. Spence, os tribunais têm-se apoiado fortemente no estatuto fiduciário do médico para explicar o seu dever de informar o doente.16,21 No que respeita à falta de informação médica do doente, as caraterísticas da relação fiduciária – a vulnerabilidade do doente, a sua confiança e dependência do médico – tornam-se evidentes. De acordo com o entendimento do Supremo Tribunal da Califórnia, no processo Cobbs, ‘o doente, não tendo conhecimentos de ciências médicas, depende e confia totalmente no seu médico para obter as informações em que se baseia durante o processo de decisão, o que faz surgir no médico uma obrigação que transcende as transações em condições normais de mercado’.34 No processo Canterbury, o tribunal identificou explicitamente estas ‘qualidades fiduciárias’ como a base do ‘dever do médico de revelar ao doente aquilo que, no seu melhor interesse, é importante que ele saiba’.35

Qualidades fiduciárias relevantes para o consentimento informado

  Com a ajuda de Lévinas e Løgstrup, conseguimos demonstrar que as obrigações éticas entre o médico e o doente assentam precisamente nos atributos que os tribunais identificaram como as ‘qualidades fiduciárias’: vulnerabilidade, confiança e alteridade. Mas como é que estas qualidades se relacionam com a questão do consentimento informado?

  1. Vulnerabilidade: a relação fiduciária é assimétrica na medida em que o médico se encontra numa posição de superioridade, enquanto o doente é vulnerável; em primeiro lugar, devido à sua saúde precária, em segundo lugar, devido à sua falta de conhecimentos especializados. No contexto do consentimento informado, a vulnerabilidade do doente tem as seguintes implicações: em primeiro lugar, a vulnerabilidade psicofísica é exposta na doença e na necessidade de cuidados. Os doentes estão muitas vezes dispostos a fazer tudo o que for preciso para receber as intervenções que prometem aumentar a qualidade ou a duração da vida. Em segundo lugar, a vulnerabilidade do doente assume a forma de falta de conhecimento, o que torna necessário o processo de informação. No que respeita ao consentimento informado, a relação médico-doente é, por conseguinte, particularmente assimétrica, o que reforça ainda mais a confiança do doente no médico.

  2. Confiança: da confiança entre o doente e o médico surge uma obrigação ética para ambos (mas especialmente para este último) de ponderar ações alternativas e de encontrar os pedidos não expressos da situação. Para identificar os pedidos não expressos no contexto do consentimento informado, o doente e o médico devem avaliar em conjunto os riscos do tratamento e identificar os valores que afetam o doente. As decisões médicas dependem muitas vezes de valores. No entanto, os doentes raramente sabem da importância que os valores têm na tomada de decisões médicas. Podem até não ter uma resposta espontânea sobre quais são os seus valores ou preferências. Os valores e as preferências dos doentes são, portanto, muitas vezes ‘pedidos não ditos’. O pedido não dito pode nem sempre ser idêntico ao dito: por exemplo, a formulação expressa por alguns doentes pode ser a de não tomar conhecimento dos riscos graves de um tratamento, mas o pedido não formulado pode ainda assim obrigar a que o médico o informe desses riscos. É importante notar que esta não é uma posição paternalista. Não permite que o médico se sobreponha à decisão do doente. ‘Identificar um pedido tácito’ no contexto do consentimento informado significa simplesmente identificar os valores e as preferências do doente.

  3. Alteridade: devido à alteridade face ao outro, que nunca pode ser substituído, é eticamente proibido substituir completamente a responsabilidade do outro. Tanto a substituição paternalista da vontade do doente pela do médico como (à falta de melhor termo) a substituição ‘autonomista’ da vontade do médico pela do doente devem ser evitadas. Em vez disso, o doente e o médico devem definir as suas responsabilidades distintas numa determinada situação e até que ponto as decisões podem ser delegadas (e até que ponto o doente está disposto a fazê-lo). Aplicando isto ao consentimento informado, pode deduzir-se o seguinte: devido à alteridade do doente (e vice-versa do médico), é eticamente problemático substituir completamente a capacidade de decisão do outro. Existe certamente um direito a não saber, tal como existe um direito a saber, mas não é ilimitado. Haverá sempre partes de uma decisão que não podem ser totalmente delegadas e que devem ser discutidas com o doente. Por outro lado, há partes que podem muito bem ser delegadas no médico, se o doente assim o desejar. É aqui que reside, como se verá adiante, a importância de uma avaliação prévia das preferências e valores do doente e de um acordo entre o doente e o médico sobre até que ponto o médico está autorizado a atuar no interesse do doente.

Implicações teóricas para um quadro de consentimento informado fiduciário

  Como é que estas implicações podem ser traduzidas numa teoria mais elaborada do consentimento informado fiduciário? Em 2009, Joffe e Truog lançaram os alicerces de uma teoria que pode servir de ponto de partida: o seu relato começa com a afirmação de que o consentimento informado, entendido como o processo em que os doentes autorizam autonomamente intervenções médicas, é fundamental para a prática ética nos cuidados de saúde. Ao mesmo tempo, na vida quotidiana, os doentes reivindicam frequentemente a responsabilidade pela tomada de decisões apenas até certo ponto e confiam aos médicos uma parte substancial da decisão. De acordo com os autores, o conceito fiduciário como solução para este problema pode servir dois objetivos diferentes: pode conceptualizar uma prática existente de forma descritiva e pode regular normativamente essas práticas.36 Como pode fazê-lo no caso do consentimento informado?

  Devido a diferentes fatores, entre os quais o tempo e os recursos, poderem desempenhar um papel importante, os médicos muitas vezes não cumprem a sua obrigação de facilitar o consentimento informado e não apresentam ao doente todas as alternativas de tratamento, riscos e benefícios, mas propõem apenas a intervenção que consideram melhor. O resultado pode ser chamado de ‘concordância minimamente informada em vez de verdadeiro consentimento informado’.36(p347) No entanto, isto parece ser aceite ou mesmo desejado por muitos doentes que preferem um papel mais reservado na tomada de decisões. Um modelo que poderia explicar a transferência implícita de responsabilidade que ocorre nestas situações é o modelo fiduciário: utilizando uma analogia jurídica derivada de Shepherd37, Joffe e Truog descrevem dois papéis relevantes que um fiduciário pode desempenhar: o fiduciário como agente atua em nome do seu cliente sem exigir autorização específica para ações individuais. Pelo contrário, esta autonomia é-lhe conferida pelo cliente ao estabelecer a relação fiduciária. O fiduciário como consultor fornece principalmente informações ao cliente e nunca é autorizado a atuar como seu representante sem o seu consentimento36.

  É fácil constatar que nenhuma destas conceptualizações dá conta de forma exclusiva da complexidade da relação médico-doente: o conceito de fiduciário como agente só é adequado se o doente não for capaz de assumir o papel de decisor ou se o tiver delegado totalmente no médico. Além disso, o médico não pode conhecer antecipadamente os valores e as preferências do doente para tomar decisões médicas importantes enquanto seu representante. Por outro lado, o fiduciário como conselheiro não seria realisticamente aplicável a tratamentos médicos complexos que exigem que o médico tome numerosas decisões menores sem poder obter sempre o consentimento explícito do doente36. Os autores defendem, por isso, um modelo misto: espelhando o meio-termo entre o eu e o outro que delineámos à luz da análise fenomenológica de Lévinas e Løgstrup, propõem ‘que todas as interações que envolvam um médico e um doente adulto capaz se cruzem inevitavelmente com os modelos de agência e de conselheiro das relações fiduciárias’.36(p355) Estes modelos devem ser encarados como um espectro em que ‘diferentes díades médico-doente ocupam diferentes pontos no continuum entre estas duas relações arquetípicas’,36(p355) proporcionando a oportunidade de graus de delegação que dependem das preferências individuais do doente. Por outras palavras, o quadro fiduciário não é uma solução única para todos, mas depende da vontade autónoma do doente para formar o seu consentimento informado de acordo com as suas próprias necessidades. Será demonstrado seguidamente como este aspeto do modelo fiduciário misto pode ser posto em prática através da introdução de uma pré-avaliação das preferências do doente.

  Então, como é que o modelo misto pode ser aplicado a situações específicas do processo de consentimento informado? Que ‘partes’ das decisões médicas podem ser delegadas no médico enquanto agente e onde é que funciona apenas como consultor? Joffe e Truog propõem a distinção entre as escolhas sobre os fins e as escolhas sobre os meios: ‘Os valores dos doentes informam as decisões sobre os fins, ao passo que, quando os doentes e os médicos chegam a acordo sobre os fins, as considerações técnicas que se situam no domínio da competência médica informam as decisões sobre os meios’.36(p356) Por conseguinte, de um modo geral, as escolhas sobre os fins situam-se no domínio do doente e do médico-fiduciário enquanto conselheiro, ao passo que as escolhas sobre os meios se situam no domínio do médico-fiduciário enquanto agente e do doente enquanto beneficiário. Para citar um exemplo no contexto da tomada de decisões em fim-de-vida, a escolha entre longevidade e qualidade de vida é uma escolha de fins altamente dependente dos valores dos doentes, enquanto a escolha entre dois anestésicos diferentes é uma escolha de meios que parece quase neutra em termos de valores. Por conseguinte, a primeira decisão não pode ser delegada a um médico-fiduciário, enquanto a segunda pode. Nem sempre é claro até que ponto uma decisão diz respeito principalmente a fins ou a meios (especialmente porque estes estão frequentemente interligados), mas, segundo os autores, também eles podem estar situados num espectro. Neste espectro, os valores e preferências do doente são tão mais relevantes quanto mais a decisão afeta as finalidades do tratamento.

  Além disso, pode haver casos em que a escolha dos meios é dependente do valor, necessitando assim do consentimento do doente. Para dar um exemplo diferente do do cancro da mama citado por Joffe e Truog, as transfusões de sangue parecem ser um meio neutro durante uma operação. No entanto, grupos religiosos como as Testemunhas de Jeová opõem-se às transfusões de sangue por as considerarem contrárias à lei divina. Por conseguinte, a decisão (fazer ou não uma transfusão de sangue) torna-se dependente do valor, uma vez que afeta as crenças religiosas do doente.38 Do mesmo modo, os medicamentos de origem suína podem ser meios dependentes do valor, uma vez que violam potencialmente as regras dietéticas judaicas ou muçulmanas, enquanto os produtos de origem bovina podem entrar em conflito com as crenças hindus.39 Isto ilustra a importância de estabelecer o perfil de valores de um doente, uma vez que mostra como o espectro pode ser complexo. Cobrindo o início, o meio e o fim da banda ‘meios/fins’, Joffe e Truog terminam com as seguintes hipóteses:

    1. ‘Os doentes são sempre responsáveis pelas decisões médicas sobre os objetivos finais da terapia, o que implica necessariamente uma ponderação de valores.

    2. Os doentes são presumivelmente responsáveis pelas decisões relativas aos meios para atingir esses fins, na medida em que tais decisões implicam escolhas eivadas de valores entre fins subsidiários.

    3. Os médicos podem assumir a responsabilidade presumida pelas decisões sobre os meios que não são suscetíveis de implicar escolhas eivadas de valores entre fins subsidiários’.36(p360)

  A conceptualização do consentimento informado num quadro fiduciário permite simultaneamente um maior ou menor grau de delegação e de tomada de decisão autónoma por parte do doente, em função das suas preferências decisórias e do seu perfil de valores. Longe de ser um regresso ao paternalismo sob uma nova forma, o conceito fiduciário permite que os doentes decidam por si próprios até que ponto querem exercer a sua capacidade de decisão autónoma e se querem delegar certas partes da decisão no médico como fiduciário. O quadro fiduciário engloba tanto o direito de saber como, de certo modo, o ‘direito de não saber’. Este último é, no entanto, limitado: algumas decisões não podem ser delegadas, uma vez que a sua delegação prejudicaria a autonomia do doente e violaria a do médico ao confiar-lhe decisões que não são da sua responsabilidade.

Consequências práticas do consentimento informado fiduciário

  O consentimento informado fiduciário baseia-se no raciocínio de que os doentes diferem no seu modelo preferido de tomada de decisões e nos papéis que atribuem ao médico: enquanto alguns doentes procuram uma tomada de decisão totalmente autónoma (médico como conselheiro), outros preferem uma tomada de decisão partilhada (modelo deliberativo) e outros ainda preferem delegar partes da sua decisão (médico como agente).33 Se a autodeterminação for levada a sério como justificação e objetivo do consentimento informado, o processo de consentimento informado deve ser adaptado às preferências individuais do doente. Estas implicações teóricas têm consequências práticas diretas: em primeiro lugar, a introdução de uma discussão preliminar em que se avaliam as preferências de decisão e o perfil de valores do doente e, em segundo lugar, uma reorganização da entrevista de consentimento e dos materiais de consentimento escrito.

Pré-avaliação do papel preferido pelos doentes na tomada de decisões

  O primeiro objetivo da discussão preliminar é determinar o papel desejado pelo doente no processo de tomada de decisão. Se o doente preferir um papel ativo, o médico atua apenas como conselheiro, limitando-se a fornecer as informações necessárias para permitir a tomada de decisão independente do doente. Se este desejar uma tomada de decisão colaborativa ou um papel dependente, o médico será mais um agente. Como agente, o médico não só fornece informações, mas também dá sugestões concretas.

  Para o desenvolvimento dos perfis dos doentes, no que diz respeito às suas preferências informativas, o conceito fiduciário pode utilizar os resultados da investigação empírica em curso sobre o consentimento informado na prática dos cuidados de saúde. Num estudo sobre as atitudes dos doentes em relação ao consentimento informado para anestesia e cirurgia, Burkle et al descobriram que, enquanto a maioria dos doentes (61%) achava que o benefício da informação superava os efeitos negativos produzidos por ela, 21% dos doentes achavam o contrário. Do primeiro grupo, 80% queriam a divulgação de riscos raros mas graves e quase todos (97%) concordavam com a divulgação de riscos comuns mas menos graves. A proporção de doentes que desejam a divulgação é significativamente menor no grupo que pode ser caracterizado como avesso à informação (66% e 80%, respetivamente). Este grupo pode ser interpretado como estando mais disposto a correr riscos e a delegar o controlo no médico.40 Parece haver tipos distintos de informação e de risco num espectro que vai desde os que exigem mais informação e estão menos dispostos a correr riscos até aos que são mais avessos à informação e estão mais dispostos a correr riscos.

  Com estes resultados como ponto de partida para uma tipologia mais ou menos esboçada, podem distinguir-se três tipos de informação e risco para os doentes: o grupo A, num extremo do espectro, pode ser descrito como altamente orientado para a procura de informação e avesso ao risco, enquanto o grupo C, no outro extremo, é mais orientado para a tomada de riscos e avesso à informação. O grupo A prefere o médico-fiduciário como conselheiro, enquanto o grupo C tende para o médico-fiduciário como agente. O grupo B inclui doentes ‘intermédios’ que estão dispostos a delegar partes do processo de decisão, reservando outras para o seu próprio julgamento. No que respeita ao grupo B, o médico assume um papel fiduciário misto. O papel do médico não é, por conseguinte, idêntico em todas as relações médico-doente. Pelo contrário, depende profundamente das preferências individuais do doente. Estas classificações não são estáticas, decisões únicas entre médicos e doentes, mas permanecem sujeitas à autonomia do doente e podem, portanto, mudar conforme a situação. As alterações nas preferências de informação dos doentes podem levar a uma reavaliação do seu tipo de risco e a uma consequente alteração do papel fiduciário do médico.

  A avaliação do tipo de risco do doente deve ser combinada com uma avaliação da frequência e gravidade das complicações que podem ocorrer durante a intervenção. De acordo com Carlisle, os aspetos com uma elevada gravidade de dano devem ser divulgados mesmo que a probabilidade de ocorrência do risco seja baixa. Propomos que o tipo de risco do doente seja adaptado a esta situação, de modo que um doente avesso ao risco seja informado sobre todos os riscos potenciais de uma intervenção, independentemente da sua gravidade (mas ainda numa ordem que traduza a gravidade, ver abaixo), enquanto os doentes que assumem mais riscos só precisam de ser informados sobre os riscos mais prejudiciais.

  Outra forma de abordar a questão seria classificar os tipos de risco e de informação dos doentes quanto ao seu papel no processo de tomada de decisão partilhada, utilizando a Escala de Preferência de Controlo desenvolvida por Degner et al.42 Em entrevistas transversais em situações de fim de vida, os investigadores distinguiram cinco grupos de doentes de acordo com as suas preferências de controlo, que iam desde ‘Prefiro tomar as decisões sobre os exames ou tratamentos que recebo’ até ‘Prefiro deixar todas as decisões sobre os exames ou tratamentos que recebo para o meu médico’. Estes cinco grupos foram posteriormente agrupados em três classificações gerais: ‘ativo’, ‘colaborativo’ e ‘passivo’. Nas categorias acima apresentadas, o grupo A seria independente, o grupo B procuraria o controlo partilhado e o grupo C dependeria do médico como agente fiduciário. Este exemplo ilustra como os conceitos de tomada de decisão partilhada se enquadram bem na teoria fiduciária, proporcionando uma oportunidade para uma combinação da investigação sobre a tomada de decisão partilhada e a teoria fiduciária na ética e no direito.

Pré-avaliação dos perfis de valor dos doentes

  O segundo objetivo da conversa preliminar é incentivar o doente a refletir sobre os valores pessoais que podem determinar o que considera adequado delegar. Como a discussão de Joffe e Truog demonstrou, o facto de as informações deverem ou não ser divulgadas e as decisões poderem ou não ser delegadas depende não só dos riscos e danos potenciais, mas também dos valores que uma decisão pode afetar. As decisões relativas aos fins de uma intervenção médica são sempre baseadas em valores e não podem ser delegadas. Devem ser sempre discutidas com o doente, mesmo que este se identifique como um doente do grupo C. Relativamente às decisões sobre os meios, a questão é mais complicada: os exemplos religiosos citados anteriormente mostraram que os meios podem estar eivados de valores. Assim, os meios médicos, que de outra forma não precisam de ser discutidos, podem tornar-se uma parte essencial do processo de consentimento informado devido aos valores específicos do doente. A conversa preliminar deve mostrar que as decisões médicas podem estar eivadas de valores e que as decisões eivadas de valores não devem ser delegadas. Uma vez que não é possível antecipar decisões específicas eivadas de valores que possam surgir durante futuras entrevistas de consentimento, a conversa preliminar deve abordar apenas de forma geral o que é mais importante para o doente. Esse entendimento geral dos valores mais importantes do doente serve como ponto de partida para a discussão de decisões específicas eivadas de valores em futuras entrevistas de consentimento e dá ao doente um impulso para refletir antecipadamente sobre os seus valores pessoais.

Pré-avaliações dentro dos limites do ambiente clínico

  Tendo em conta os recursos limitados no ambiente clínico, a introdução de pré-avaliações adicionais deve ser cuidadosamente ponderada para evitar sobrecarregar ainda mais os médicos, já de si pressionados. Está provado que as pré-avaliações melhoram significativamente a qualidade do consentimento informado e, provavelmente, poupam tempo a longo prazo. Embora as preferências e os valores da tomada de decisão se tornem mais importantes em intervenções de alto risco, se as preferências dos doentes variarem consideravelmente ou se não houver consenso sobre o padrão de cuidados no seio da profissão médica43, transmitir a lógica – que os valores pessoais e as preferências da tomada de decisão são importantes – tem um impacto positivo em todas as decisões médicas e relações de tratamento. Especialmente se os doentes não tiverem considerado previamente as suas preferências e valores, apresentar-lhes a importância dos valores pessoais para as decisões médicas e os possíveis papéis no processo de tomada de decisão promove uma melhor compreensão das decisões médicas que enfrentam, ajuda a desenvolver preferências de tratamento mais claras e incentiva os doentes a assumirem um papel mais ativo.42,44

  Embora a vantagem de nos aproximarmos do ideal da plena autodeterminação seja um forte argumento a favor da introdução de pré-avaliações, não se devem ignorar os contra-argumentos relativos à viabilidade. As pré-avaliações exigem, de facto, mais tempo. Mas não consomem tantos recursos como se poderia supor: Em primeiro lugar, a conversa preliminar é efetuada apenas uma vez, quando a relação médico-doente se estabelece pela primeira vez. A avaliação é registada para todas as interações futuras e será disponibilizada ao médico assistente em cada visita subsequente. As preferências podem sempre ser alteradas, mas a avaliação inicial completa não terá de ser repetida de cada vez. Em segundo lugar, mesmo a avaliação inicial não deve demorar mais do que alguns minutos. A conversa preliminar é concebida como um breve debate sobre a importância dos valores e das preferências de tomada de decisão que devem ser suficientemente ‘elevados’ para informar todas as interações subsequentes com os doentes. As decisões médicas que surgem no decurso de uma relação de tratamento variam em natureza e significado. Os ‘parâmetros de alto nível’ podem ser aplicados a diferentes decisões médicas e podem ser enriquecidos com mais informações durante a respetiva entrevista de consentimento. Mais investigação deverá mostrar se a conversa preliminar é bem conduzida como uma discussão aberta entre o doente e o médico ou se devem ser introduzidas ferramentas padronizadas de avaliação de preferências. Em estudos anteriores, os instrumentos normalizados de avaliação das preferências foram avaliados pela sua facilidade de interpretação, administração e preenchimento num período de tempo razoável e sem formação prévia.45 Mas são necessários mais estudos para confirmar estes resultados na rotina clínica.

  Independentemente do método concreto, as pré-avaliações institucionalizadas proporcionam dois benefícios consideráveis: melhoram significativamente a qualidade do consentimento informado e aliviam a pressão sobre os médicos, uma vez que não se espera que estes simplesmente ‘saibam’ o que é importante para o doente, nem que tenham de justificar o facto de despenderem mais tempo a inquirir sobre esses valores.

Reestruturar a conversa sobre o consentimento informado oral

  A pré-avaliação é apenas o primeiro passo para obter um consentimento informado fiduciário. Num segundo passo, a entrevista de consentimento deve ser adaptada às preferências e valores do doente para a tomada de decisões, que foram identificados na conversa preliminar. A entrevista de consentimento deve distinguir entre decisões sobre fins e decisões sobre meios. Ao discutir os meios, o médico deve destacar todas as questões eivadas de valores que o caso particular possa suscitar, por exemplo, o uso de produtos bovinos que interferem com as crenças religiosas do doente. Esta distinção entre meios e fins proporciona uma estrutura lógica para a entrevista de consentimento, uma vez que as decisões sobre os fins precedem logicamente as decisões sobre os meios. Mais importante ainda, a distinção esclarece quais decisões são eivadas de valor no caso particular, servindo como um lembrete de que essas decisões não devem ser delegadas e só devem ser tomadas após consideração cuidadosa dos valores do doente.

Restruturar o material de consentimento informado escrito

  Como outra consequência prática, o material de informação escrita deve ser reorganizado em três secções:

  A primeira secção deve conter informações gerais sobre os fins. As fichas de informação do doente referem-se regularmente a um tratamento específico – logo, apenas a meios específicos. No entanto, todas as fichas de informação do doente devem incluir uma breve primeira secção com perguntas abstratas sobre os fins, para lembrar ao médico que a entrevista de consentimento deve começar com uma discussão sobre os fins.

  A segunda secção deve dizer respeito às decisões sobre os meios, marcadas por valores. Embora os materiais de consentimento padronizados não possam incluir informações relativas a todas as crenças idiossincráticas, a folha de informação deve destacar as decisões que podem entrar em conflito com crenças comuns, como a utilização de produtos de origem animal que violam regras dietéticas (religiosas) comuns.

  A terceira secção deve discutir decisões neutras em termos de valores sobre os meios, indicando informações sobre os riscos do tratamento específico. Em vez de fornecer a informação de acordo com critérios médicos, como a ordem dos órgãos afetados ou as etapas consecutivas da intervenção, deve ser utilizada uma ordem de relevância. Os riscos mais graves em termos de danos e de probabilidade de ocorrência devem ser descritos em primeiro lugar, seguindo-se os riscos menos graves ou menos prováveis.

  A organização do material de consentimento escrito na ordem proposta permite que o médico e os doentes acedam facilmente à informação que o doente procura, de acordo com as suas preferências individuais, assegurando simultaneamente que todos os doentes recebem pelo menos a informação necessária. É necessária a divulgação de informações sobre os fins e os meios eivados de valores, uma vez que tais decisões nunca podem ser delegadas ao médico sem violar a autonomia do doente. Do mesmo modo, a divulgação dos riscos mais comuns e mais graves é obrigatória porque a autodeterminação exige um consentimento informado. Para tomar uma decisão informada, o doente deve, no mínimo, compreender os riscos de maior gravidade e de maior probabilidade. Os doentes do grupo C só teriam de ler a(s) primeira(s) página(s): a secção 1 sobre os fins, a secção 2 sobre os meios eivados de valores e o início da secção 3 sobre os riscos mais comuns e mais graves. Se desejassem, poderiam ficar por aí e seriam poupados a uma sobrecarga de informação. Os doentes que desejassem obter mais informações poderiam ler as restantes páginas sobre os riscos de menor gravidade ou probabilidade. Estas fichas de informação reestruturadas garantem que a medida em que os doentes estão dispostos a confiar a sua responsabilidade ao médico continua a ser uma decisão autónoma.

Conclusão

  Começando com a classificação legal da relação médico- doente como fiduciária, demonstrámos que o conceito de fiduciário pode proporcionar uma orientação normativa para o caso do consentimento informado, uma vez que se baseia numa teoria ética mais profunda da obrigação fiduciária. Baseando-nos nos relatos fenomenológicos da obrigação de Lévinas e Løgstrup, a nossa teoria ética fiduciária assenta nos atributos-chave da vulnerabilidade, confiança e alteridade: devido à sua falta de conhecimentos médicos e à confiança que depositam no médico, os doentes são vulneráveis e estão dependentes do médico. Desta dependência decorre a obrigação de o médico em cuidar do doente e de atuar no seu melhor interesse. No entanto, a alteridade do doente não permite que o médico comprometa a independência do doente, nem mesmo para seu próprio bem. A natureza fiduciária da relação médico-doente proíbe uma substituição paternalista da vontade do doente, tal como proíbe o médico de ceder todo o seu julgamento ao doente. Em vez disso, a teoria fiduciária navega no meio-termo entre o modelo paternalista, por um lado, e o modelo do consumidor, no outro extremo do espectro – permite que o médico e o doente partilhem a responsabilidade pela sua saúde.

  Combinando a nossa teoria ética da relação fiduciária médico-doente com as teorias do consentimento informado, podemos retirar várias implicações práticas: o grau em que a responsabilidade pode ser delegada no médico no processo de consentimento informado depende da vontade do doente em o fazer e da relação individual de confiança entre o médico e o doente. Assim, propomos a introdução de uma pré-avaliação do tipo de informação, risco e valor do doente, para que este possa escolher a forma como o médico deve atuar no espectro que vai do fiduciário como agente ao fiduciário como conselheiro. Com base nesta avaliação individual, o médico pode adaptar o processo de consentimento informado às necessidades individuais do doente. Para facilitar essa personalização, a entrevista de consentimento deve distinguir entre decisões sobre fins e meios e destacar todas as decisões eivadas de valores. Assim, o material de consentimento escrito deve ser reorganizado em três secções distintas: a secção 1 deve conter informações básicas sobre os fins; a secção 2 deve realçar as decisões sobre os meios que têm carga de valor; a secção 3 deve referir-se a decisões neutras sobre os meios, indicando informações sobre os riscos do tratamento específico, começando pelos riscos mais comuns e graves. A nossa teoria fiduciária não se limita ao consentimento informado. Na nossa opinião, a resposta a muitas das questões éticas nos cuidados de saúde pode estar na afirmação, frequentemente citada mas raramente explicada, de que a relação médico-doente é fiduciária por natureza.

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