Neurodireitos
e o direito à integridade mental
Jennifer Blumenthal-Barby
Tradução espontânea do editorial
Neuro rights and the right to mental
integrity
A
edição deste mês do Journal of Medical Ethics apresenta um simpósio sobre
“neurodireitos” e o “direito à integridade mental”. A ética médica e a lei há muito
que reconhecem os direitos fundamentais, exigindo que os doentes deem o seu consentimento
informado antes de lhes serem efetuadas intervenções médicas ou antes de ser realizada
investigação sobre si.
Os
rápidos passos dados pela neurociência e pela neurotecnologia estão a levantar novas
questões sobre os limites dos direitos fundamentais, se estes se estendem à mente
ou ao cérebro, ou se precisamos de novos conceitos e direitos para aplicar à esfera
mental.
Como
escreve Farahany1 no seu recente livro (2023), “The Battle
for Your Brain”, o mercado global da neurotecnologia de consumo está a crescer
rapidamente, prevendo-se que atinja 21 mil milhões de dólares em 2026. Um número
crescente de pessoas está a utilizar neurotecnologia pessoal para poder visualizar
e seguir as suas emoções, níveis de alerta e concentração, bem como as suas ondas
cerebrais reais (p. 3). Os dispositivos neurotecnológicos são também utilizados
no domínio da medicina para diagnosticar uma concussão imediatamente após a sua
ocorrência e para seguir as alterações no cérebro ao longo do tempo – alterações
que podem indicar doença de Alzheimer ou esquizofrenia. São também utilizados como
dispositivos de assistência, por exemplo, a empresa Neuralink inscreveu recentemente
o seu segundo doente no estudo PRIME. O implante da Neuralink, “Link”,
permite que as pessoas com tetraplegia controlem um cursor de computador com os
seus pensamentos, permitindo-lhes jogar jogos de vídeo ou programar.2
Os “descodificadores cerebrais” artificialmente inteligentes leem os pensamentos
dos doentes que não conseguem falar e verbalizam-nos através de um avatar animado
por computador através de uma interface cérebro-computador.3
A
quem pertencem os pensamentos e outras formas de dados mentais que são descobertos
através destas novas tecnologias? Precisamos do consentimento do doente para utilizar
esta informação e para “ler” ou influenciar a vida mental das pessoas de alguma
forma? Quais são os limites desses direitos e das autorizações dadas, uma vez que
a vida quotidiana implica interpretar e influenciar a vida mental dos outros? Como
é que as novas tecnologias alteram essa situação? Precisamos de novos direitos,
como o direito à integridade mental, ou os casos que dizem respeito a esta matéria
estão cobertos pelas normas e direitos legais e éticos existentes, como o direito
à privacidade e à autonomia individual?
Farahany1
defende que precisamos de um novo direito, a que chama “o direito à liberdade cognitiva”,
que passe a fazer parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos (p. 111). Este
direito faz parte de um conjunto de direitos que protegem a liberdade de pensamento,
a privacidade mental e a autodeterminação sobre os nossos cérebros e vivências mentais
(p. 11). Isto é para combater um mundo para o qual a autora pensa que estamos a
caminhar rapidamente, “...um mundo de transparência cerebral, no qual cientistas,
médicos, governos e empresas podem espreitar as nossas mentes à vontade” (p. 4).
O cérebro e a atividade mental estão no centro da personalidade e da identidade,
pelo que é fundamental garantir que dispomos de quadros legais e éticos corretos
para os proteger.
É
em resposta a esta preocupação central que se realizou este simpósio especial. Os
artigos da secção de simpósios da edição deste mês abordam questões fundamentais
sobre um dos tipos de neurodireitos mais frequentemente propostos – o direito à
integridade mental. Embora haja alguma variação na sua conceção e terminologia,
a ideia básica de um direito à integridade mental é que as pessoas têm o direito
de não sofrerem interferências não consentidas nas suas mentes ou estados mentais.
O
artigo meu e de Ubel adverte que o direito à integridade mental é demasiado amplo
e supérfluo, na medida em que os conceitos e direitos existentes na ética médica
e no direito podem abranger a maioria dos casos que nos preocupam – devemos evitar
a inflação (de violação) de direitos.4 O artigo de Zuk faz uma
tentativa de elaborar uma conceção do direito à integridade mental que não seja
demasiado ampla e argumenta que protege vários tipos de interesses fundamentais
– afetivos, epistémicos e agenciais.5 O artigo de Tesink et
al. examina a intersecção entre a tese de uma forma alargada da mente e o direito
à integridade mental.6 Argumentam que, numa conceção filosófica
da mente alargada, algumas neurotecnologias tornar-se-iam parte da mente (e, como
tal, protegidas) e muitas outras deixariam de constituir uma ameaça especial, uma
vez que muitas estariam abrangidas pelo direito à integridade mental (por exemplo,
as influências ambientais infringem a mente tanto como um neurodispositivo). Em
suma, a metafísica tem um papel central a desempenhar na nossa reflexão sobre o
âmbito e os limites dos neurodireitos, como o direito à integridade mental. Finalmente,
o artigo de Wajnerman-Paz et al. defende que, se adotarmos algo como um direito
à integridade mental, este deve envolver também direitos positivos – ou seja, a
ideia de que os indivíduos têm direito a intervenções que restaurem e sustentem
a função mental e neural.7
Esperamos que este
simpósio especial realce um dos compromissos fundamentais do Journal of Medical
Ethics – a ideia de que a análise filosófica é importante para a ética médica.
À medida que novas áreas da tecnologia se desenvolvem e levantam novas (e velhas)
questões éticas, a análise normativa e de conceitos tem um papel importante a desempenhar
na formação dessas questões e do discurso – já que, em última análise, molda a lei,
a política e a prática. Os avanços na neurotecnologia e o desenvolvimento que os
acompanha na reflexão sobre os neurodireitos, como o direito à integridade mental,
são apenas um exemplo. <
___________________
1.
Farahany NA. The battle for your brain. St.
Martin’s Press; 2023.
2.
Neuralink. PRIME study progress update — second
participant. 2024.
3.
Vox SS. Can new brain-computer interface technology
read your thoughts? 2024.
4.
Blumenthal-Barby J, Ubel P.
Neurorights in question: rethinking the concept of mental integrity. J Med
Ethics 2024;50:670–5.
5.
Zuk P. Mental integrity, autonomy, and fundamental interests. J Med
Ethics 2024;50:676–83.
6.
Tesink V, Douglas T, Forsberg
L et al. Right to mental integrity and neurotechnologies: implications of the extended
mind thesis. J Med Ethics 2024;50:656–63.
7.
Wajnerman-Paz A, Aboitiz F, Álamos
F et al. A healthcare approach to mental integrity.
J Med Ethics 2024;50:664–9.
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