27 setembro 2024

Neurodireitos

J Med Ethics 2024;50:655.

Neurodireitos e o direito à integridade mental

Jennifer Blumenthal-Barby

Tradução espontânea do editorial

Neuro rights and the right to mental integrity

A edição deste mês do Journal of Medical Ethics apresenta um simpósio sobre “neurodireitos” e o “direito à integridade mental”. A ética médica e a lei há muito que reconhecem os direitos fundamentais, exigindo que os doentes deem o seu consentimento informado antes de lhes serem efetuadas intervenções médicas ou antes de ser realizada investigação sobre si.

Os rápidos passos dados pela neurociência e pela neurotecnologia estão a levantar novas questões sobre os limites dos direitos fundamentais, se estes se estendem à mente ou ao cérebro, ou se precisamos de novos conceitos e direitos para aplicar à esfera mental.

Como escreve Farahany1 no seu recente livro (2023), “The Battle for Your Brain”, o mercado global da neurotecnologia de consumo está a crescer rapidamente, prevendo-se que atinja 21 mil milhões de dólares em 2026. Um número crescente de pessoas está a utilizar neurotecnologia pessoal para poder visualizar e seguir as suas emoções, níveis de alerta e concentração, bem como as suas ondas cerebrais reais (p. 3). Os dispositivos neurotecnológicos são também utilizados no domínio da medicina para diagnosticar uma concussão imediatamente após a sua ocorrência e para seguir as alterações no cérebro ao longo do tempo – alterações que podem indicar doença de Alzheimer ou esquizofrenia. São também utilizados como dispositivos de assistência, por exemplo, a empresa Neuralink inscreveu recentemente o seu segundo doente no estudo PRIME. O implante da Neuralink, “Link”, permite que as pessoas com tetraplegia controlem um cursor de computador com os seus pensamentos, permitindo-lhes jogar jogos de vídeo ou programar.2 Os “descodificadores cerebrais” artificialmente inteligentes leem os pensamentos dos doentes que não conseguem falar e verbalizam-nos através de um avatar animado por computador através de uma interface cérebro-computador.3

A quem pertencem os pensamentos e outras formas de dados mentais que são descobertos através destas novas tecnologias? Precisamos do consentimento do doente para utilizar esta informação e para “ler” ou influenciar a vida mental das pessoas de alguma forma? Quais são os limites desses direitos e das autorizações dadas, uma vez que a vida quotidiana implica interpretar e influenciar a vida mental dos outros? Como é que as novas tecnologias alteram essa situação? Precisamos de novos direitos, como o direito à integridade mental, ou os casos que dizem respeito a esta matéria estão cobertos pelas normas e direitos legais e éticos existentes, como o direito à privacidade e à autonomia individual?

Farahany1 defende que precisamos de um novo direito, a que chama “o direito à liberdade cognitiva”, que passe a fazer parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos (p. 111). Este direito faz parte de um conjunto de direitos que protegem a liberdade de pensamento, a privacidade mental e a autodeterminação sobre os nossos cérebros e vivências mentais (p. 11). Isto é para combater um mundo para o qual a autora pensa que estamos a caminhar rapidamente, “...um mundo de transparência cerebral, no qual cientistas, médicos, governos e empresas podem espreitar as nossas mentes à vontade” (p. 4). O cérebro e a atividade mental estão no centro da personalidade e da identidade, pelo que é fundamental garantir que dispomos de quadros legais e éticos corretos para os proteger.

É em resposta a esta preocupação central que se realizou este simpósio especial. Os artigos da secção de simpósios da edição deste mês abordam questões fundamentais sobre um dos tipos de neurodireitos mais frequentemente propostos – o direito à integridade mental. Embora haja alguma variação na sua conceção e terminologia, a ideia básica de um direito à integridade mental é que as pessoas têm o direito de não sofrerem interferências não consentidas nas suas mentes ou estados mentais.

O artigo meu e de Ubel adverte que o direito à integridade mental é demasiado amplo e supérfluo, na medida em que os conceitos e direitos existentes na ética médica e no direito podem abranger a maioria dos casos que nos preocupam – devemos evitar a inflação (de violação) de direitos.4 O artigo de Zuk faz uma tentativa de elaborar uma conceção do direito à integridade mental que não seja demasiado ampla e argumenta que protege vários tipos de interesses fundamentais – afetivos, epistémicos e agenciais.5 O artigo de Tesink et al. examina a intersecção entre a tese de uma forma alargada da mente e o direito à integridade mental.6 Argumentam que, numa conceção filosófica da mente alargada, algumas neurotecnologias tornar-se-iam parte da mente (e, como tal, protegidas) e muitas outras deixariam de constituir uma ameaça especial, uma vez que muitas estariam abrangidas pelo direito à integridade mental (por exemplo, as influências ambientais infringem a mente tanto como um neurodispositivo). Em suma, a metafísica tem um papel central a desempenhar na nossa reflexão sobre o âmbito e os limites dos neurodireitos, como o direito à integridade mental. Finalmente, o artigo de Wajnerman-Paz et al. defende que, se adotarmos algo como um direito à integridade mental, este deve envolver também direitos positivos – ou seja, a ideia de que os indivíduos têm direito a intervenções que restaurem e sustentem a função mental e neural.7

Esperamos que este simpósio especial realce um dos compromissos fundamentais do Journal of Medical Ethics – a ideia de que a análise filosófica é importante para a ética médica. À medida que novas áreas da tecnologia se desenvolvem e levantam novas (e velhas) questões éticas, a análise normativa e de conceitos tem um papel importante a desempenhar na formação dessas questões e do discurso – já que, em última análise, molda a lei, a política e a prática. Os avanços na neurotecnologia e o desenvolvimento que os acompanha na reflexão sobre os neurodireitos, como o direito à integridade mental, são apenas um exemplo. <

___________________

1.                   Farahany NA. The battle for your brain. St. Martin’s Press; 2023.

2.                  Neuralink. PRIME study progress update — second participant. 2024.

3.                   Vox SS. Can new brain-computer interface technology read your thoughts? 2024.

4.                  Blumenthal-Barby J, Ubel P. Neurorights in question: rethinking the concept of mental integrity. J Med Ethics 2024;50:670–5.

5.                  Zuk P. Mental integrity, autonomy, and fundamental interests. J Med Ethics 2024;50:676–83.

6.                  Tesink V, Douglas T, Forsberg L et al. Right to mental integrity and neurotechnologies: implications of the extended mind thesis. J Med Ethics 2024;50:656–63.

7.                  Wajnerman-Paz A, Aboitiz F, Álamos F et al. A healthcare approach to mental integrity. J Med Ethics 2024;50:664–9.

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